O TRATAMENTO PEDAGÓGICO DA DIVERSIDADE CULTURAL NA EJA Cybelle Regina Carvalho da Cunha1 João Francisco de Souza2 RESUMO: A diversidade cultural se evidencia na pós-modernidade/mundo como um contexto econômico, ideológico, social, cultural e histórico da contemporaneidade. Fato que remete à importância do tratamento pedagógico da diversidade cultural nos espaços escolares, no reconhecimento e na assunção da identidade cultural dos educandos. Nossa metodologia de pesquisa ancorou-se na análise reflexiva das questões de diversidade cultural na sala de aula da EJA, com essas análises, pudemos compreender que para tratar a diversidade cultural pedagogicamente é pertinente perceber o ser humano em suas interações sociais, culturais e intersubjetividades. No entanto, esse é um processo que ainda não se efetiva nas salas de EJA analisadas. Palavras–chave: Diversidade Cultural - Identidade – Escola – Educação de Jovens e Adultos A diversidade cultural é um elemento que sempre esteve presente no âmbito escolar. Contudo, ela se evidencia na pós-modernidade/mundo como um contexto econômico, ideológico, social, cultural e histórico em que o modelo tradicional de educação e seus pressupostos não se enquadram nos requerimentos contraditórios fomentados pelo processo de globalização da economia e inovações tecnológicas. Demanda um novo perfil de ser humano com habilidades e potencialidades que não estavam sendo consideradas pelo antigo modelo escolar. Por outro lado, esse mesmo processo de globalização oculta e contribui para o processo de homogeneização ou fragmentação cultural. No primeiro caso, teremos a massificação das culturas pelo modelo de identidade nacional ou internacional burguesa. No segundo, o estabelecimento de lutas culturais, sociais e econômicas nas quais serão violentadas as diversas culturas. Como compreende Souza, (2001, p. 64): 1 Concluinte do Curso de [email protected] 2 Pedagogia – Centro de Educação – UFPE. E-mail: Professor Titular da Universidade Federal de Pernambuco, no Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino. Coordenador Geral do NUPEP e Vice-Diretor do Centro Paulo Freire: Estudos e Pesquisas. - Centro de Educação – UFPE. [email protected] 2 Homogeneizar significa destruir uma enorme riqueza cultural. Essa representada pela diversidade de formas de viver da humanidade que os seres humanos têm inventado na busca não apenas de viver, mas de existir pela convivência intra e inter grupal. Pensar nesta destruição ou, pior ainda, realizá-la, atualmente, pode se constituir na violência das violências. Essa fragmentação gera a impossibilidade de comunicação e de crescimento coletivo dos diferentes seres humanos que nos remete à questão fundamental da reflexão nos tempos atuais sobre a importância da diversidade cultural na sociedade e identidade nacional3. Identidade que deve tratar de gerar uma nação em uma unidade, porém consolidada na diversidade de suas manifestações culturais. Nesse contexto, a educação no cumprimento de seu papel que é de promover o desenvolvimento integral do educando contribuindo no processo de construção de sua humanidade, encontra-se desafiada a promover um novo paradigma que atenda as especificidades culturais, étnico-racias e sociais do ser humano na construção da humanização. Essa diversidade em convivência na sala de aula faz emergir conflitos e divergências no processo de construção coletiva da identidade, os quais se apresentam como desafios para o corpo escolar (professores, coordenadores, direção). Ao trabalhar a disciplina Pesquisa e Prática Pedagógica, percebemos que a escola tem dificuldade em lidar com a diversidade cultural existente nas turmas de EJA. Observamos vários fatores que nos mostram essa realidade como alto índice de evasão, infantilização dos conteúdos, falta de estrutura física e pedagógica do ambiente escolar, entre outros aspectos. Desse modo, compreendo que a escola necessita de uma proposta pedagógica específica que lhe permita tratar adequadamente a questão da diversidade na EJA. A aprendizagem precisa atender as especificidades dos alunos na coletividade, como forma de construção de sua humanidade e de sua permanência no contexto escolar no diálogo das diferentes culturas. 3 A compreensão das identidades nacionais trata de direcionar outra nacionalidade (sem nacionalismos) que possa oferecer as condições de crescimento da individualidade e da convivência das culturas. O ser pessoal no concerto comunitário e o ser nacional no concerto das nações ou na pós-modernidade/ mundo (SOUZA, 2001, p. 91). 3 A EJA, enquanto uma modalidade da educação básica é voltada para jovens e adultos que foram excluídos de um direito social, que é o acesso à escola ou mesmo não tendo sido negado esse direito foi negligenciado a esses jovens no decorrer do processo escolar. Além desses fatores, é relevante ressaltar que o processo de abandono se dá ainda pelas necessidades de subsistência, em que alunos deixam a escola para ingressar no mercado de trabalho, como forma de complementar a renda familiar ou quando os mesmos já possuem essa responsabilidade de sustentar a família. De um modo ou de outro, são alunos-trabalhadores vítimas da realidade gerada pelo sistema social capitalista. Dessa forma, sinto-me instigada a compreender de que forma é tratada a diversidade cultural na EJA e como a escola a enfrenta na busca de seu papel social, cultural e histórico de promover a educação? Desejo compreender como a escola trata a diversidade cultural. Como enfrentar a diversidade favorecendo a construção das identidades pessoais, sociais, culturais e nacionais dos alunos na pós-modernidade/ mundo por meio da prática pedagógica? Deste modo, entendemos que o docente diante da diversidade cultural dos sujeitos possa desenvolver uma prática de maneira que permita um diálogo entre os diferentes. Por isso, como indica Freire (1992, p. 157), É preciso reenfatizar que a multiculturalidade como fenômeno que implica a convivência num mesmo espaço de diferentes culturas não é algo natural e espontâneo. É uma criação histórica que implica decisão, vontade política, mobilização, organização de cada grupo cultural com vistas a fins comuns. Que demanda, portanto, uma certa prática educativa coerente com esses objetivos. Que demanda uma nova ética no respeito às diferenças. Desse modo, o educador de EJA, para desenvolver uma prática que atenda esses objetivos, necessita desenvolver atividades que problematizem a realidade em que vivem os alunos, sua história, sua cultura e sua vida e tomem-na como conteúdo educativo. A escola, nesse mesmo propósito, poderá ter um projeto político pedagógico que comporte a questão da diversidade cultural (e promova suas ações a partir da compreensão que dela construir coletivamente). Faz-se preciso que ocorra, segundo Correia (2000, p. 19-20) (apud SOUZA, 2001, p.136) “uma recriação tanto da escola como da 4 comunidade” no sentido de juntas trabalhar no projeto de educar na diversidade. Apenas com os sujeitos que compõem o ambiente escolar em constante diálogo e debate sobre as práticas na diversidade é possível realizar uma prática enérgica e coerente com as finalidades pretendidas pela EJA. A partir dessa hipótese, compreendemos a Educação de Jovens e Adultos como uma construção de saberes que são confrontados a partir da diversidade cultural presente na sala de aula. Os professores e a escola precisam estar preparados a lidar com essa realidade. Pesquisar sobre o tratamento que a escola dá à diversidade cultural na EJA visa contribuir com a função da escola que é possibilitar a formação de cidadãos críticos, participativos, com perspectivas e metas diante do futuro e da realidade da sociedade contemporânea, sujeitos que promovam e acreditem na mudança social. Garantir, portanto, algumas condições de sua humanização. Compreendendo as diversas relações que se dão no meio escolar e como elas influenciam na aprendizagem e permanência dos alunos no contexto escolar, poderemos como futuros educadores cooperar com a mudança da realidade educacional da EJA. 1 A DIVERSIDADE CULTURAL: CONTEXTO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO BÁSICA A Diversidade Cultural como característica das sociedades atuais entra na discussão epistemológica da educação a partir das posições defendidas por Paulo Freire na década de 1960, quando propõe a educação como atividade cultural para o desenvolvimento da cultura, tendo em vista a construção da humanidade do ser humano (SOUZA, 2001, p. 9). A partir dessa visão da educação são valorizadas todas as manifestações culturais da sociedade a partir do diálogo entre culturas (interculturalidade) implicando a convivência num mesmo espaço de diferentes culturas e na nova ética que se fundamenta no respeito às diferenças. A diversidade cultural a partir dessa perspectiva ética posiciona ideologicamente a política, a epistemológica e a pedagogia nas 5 Possibilidades do diálogo entre culturas e, dentro de uma mesma cultura, entre seus diferentes traços culturais. Essas serão as características propostas para as relações sociais de uma inter/multiculturalidade que não pode concretizar-se apenas pela simples justaposição de culturas, dominações ou submissões culturais. O fato de se estar frente a uma multiplicidade de culturas em presença ou pluriculturalidade, não é suficiente para se dizer que nos encontramos numa sociedade inter/multicultural. O fato social e sociológico é a diversidade cultural. A multiculturalidade pode ser construída a partir dessa pluriculturalidade por meio da interculturalidde (SOUZA, 2001, p. 12) A Diversidade Cultural enquanto contexto a ser considerado nos processos da educação (inclusive na educação escolar) é fato social e sociológico e exige, repito, uma nova ética fundada no respeito às diferenças conforme a perspectiva freireana de validar a educação como atividades culturais e de desenvolvimento das culturas na proposta de humanização do ser humano. Supondo que a convivência consciente das diferentes culturas ou traços culturais numa mesma cultura através do diálogo e do respeito ético pode contribuir com o surgimento de formas mais humanas de convivência e de crescimento pessoal de cada um dos seres humanos. Desse modo, percebemos que os contextos da pós-modernidade/mundo remetem ao questionamento do que seja a Diversidade Cultural para a sociedade e para as relações sociais que se dão no meio escolar e não escolar. A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (UNESCO), na Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em sua 33ª reunião celebrada em Paris, de 03 a 21 de outubro de 2005, leva a UNESCO a reconhecer a diversidade como “Patrimônio Cultural da Humanidade” e a define como sendo: À multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados. 6 O debate da diversidade cultural no contexto político e sociológico da pós-modernidade/mundo nos remete às novas responsabilidades da educação face aos desafios “do tecido geral do novo clima cultural” (FREIRE, 1967, p.46). Nessa perspectiva, esse patrimônio cultural deve ser respeitado e ao mesmo tempo promova o respeito às diferentes culturas que o compõem desenvolvendo o diálogo entre as mesmas. A diversidade cultural deve ser preservada e vista como uma possibilidade para a interculturalidade. A interculturalidade possibilitará a convivência entre crenças, pensamentos, formas de organização da economia superando suas configurações de exploração e de predominância de dominações, por meio do diálogo respeitando as diferenças, sem que se mantenham justapostas ou excluídas perpetuando desigualdades econômicosociais e exclusões histórico-culturais. Essa discussão, segundo (SOUZA, 2001, p. 12) Questiona a existência do ser humano e de sua educação no próprio cerne histórico da humanidade. Ou seja, as possibilidades da convivência dos diferentes com suas diferenças num contexto que supere as violências, as hierarquias, os preconceitos, as inclusões perversas, as subordinações, as desigualdades econômico-sociais e as exclusões histórico-culturais. A Educação de Jovens e Adultos se consolida através da compreensão de que somos capazes de reconhecer a diversidade cultural dos alunos e alunas de EJA. Pois, numa sala de aula, existe uma heterogeneidade de idades, classe, gênero, religiões, étnicas e orientações sexuais, opções ideopolíticas. Isso revela a importância de trabalhar em turmas de jovens e adultos a partir da compreensão da diversidade cultural. 2 A DIVERSIDADE CULTURAL NA EJA 7 O debate da memória contemporânea no campo da educação de pessoas jovens e adultas consolida a importância da defesa de dois princípios básicos: o da educação como direito de todas e todos e o do direito à educação ao longo da vida. Esses são abordados em diversos estudos e pesquisas aprofundando o debate em torno da busca da educação para todos no Brasil e no Mundo. Desse modo, a Educação de Jovens e Adultos é contextualizada na responsabilidade da Educação Básica que deve contemplar a todos, em todas as idades potencializando saberes, direito e deveres na ação individual e coletiva. Neste contexto, a Declaração de Hamburgo, da V Conferência Internacional de Educação de Adultos no item 9, afirma: Educação básica para todos significa dar às pessoas, independente da idade a oportunidade de desenvolver seu potencial, coletiva ou individualmente. Não é apenas um direito, mas também um dever e uma responsabilidade para com os outros e com toda a sociedade. É fundamental que o reconhecimento do direito à educação continuada durante a vida seja acompanhado de medidas que garantam as condições necessárias para o exercício desse direito. A educação compreendida como direito, dever e responsabilidade com o outro e com a sociedade, implica uma educação que se assuma como processos de ressocialização: recognição e reinvenção de saberes. Essa Teoria da Educação pode fundamentar as diretrizes da EJA e as exigências de sua prática na contemporaneidade. Apóia-se em dois princípios essenciais que a lingüísta norte-americana Ann Berthoff identifica como próprios da Pedagogia do Saber de Paulo Freire: a recognição e a reinvenção. Dessa forma, a EJA é uma proposta não apenas para adultos e jovens analfabetos, mas para todas as mulheres e homens que estão permanentemente chamados a nos reinventar e reconstruir o mundo (SOUZA, 2003, p. 44) A Educação de Jovens e Adultos diante das questões sociais, culturais e epistemológicas da contemporaneidade, está desafiada a um novo paradigma que possibilite um diálogo entre culturas (interculturalidade) apropriando-se de 8 elementos da perspectiva pós-colonialista que entende o campo educativo como dispositivo de normalização da cultura. O campo da alfabetização de jovens e adultos pode estar organizado de forma a estabelecer um diálogo permanente com outros domínios da problematização da cultura, a exemplo da mídia, dos movimentos sociais, em geral, e de outros campos do saber. Isso se for do interesse ter outras ferramentas para atuar nas questões colocadas no cotidiano da escola, em particular as questões relacionadas com problemas culturais, agora acrescentadas pela própria visibilidade dada às lutas culturais no final do século XX e início do século XXI. Essas questões são, no nosso entender, as fundamentais no campo educativo, campo que atua como dispositivo de normalização da cultura, isto é, um campo com potencial para qualificar ou desqualificar pessoas a partir de um tipo ideal de normalidade, tal como acontece com a produção de objetos de saber/poder/ser que levam à formação das categorias analfabeto/a, atrasado/a, retardado/a, lento/a (CARVALHO, 2004, p.14). As políticas de EJA da atualidade compreendem que os contextos educacionais podem validar a importância do respeito à diversidade cultural. Para isso, têm-se enfatizado novos paradigmas da educação que repercutem, inclusive, em diversas conferências e órgãos nacionais e internacionais pelo seu reconhecimento e divulgação. 3 E A ESCOLA NESSE CONTEXTO? Os desafios da escola diante da necessidade de uma educação crítica, como vêm caracterizando, no mundo de hoje, levam-na a um enfrentamento com a tentativa de uma dominação cultural que busca se impor por meio de um processo sutil e romântico de “aceitação não-refletida do discurso neoconservardor e neoliberal como um discurso autorizado que serve para cultuar certas interpretações da vida social e cultural para obscurecer outras” (APPLE, 2001, p. 146). Esses favorecimentos e obscurecimentos implicam a legitimidade da desigualdade que ocorre a partir das imposições de um currículo nacional e um programa nacional de avaliação. Por isso, como entende Apple (2001, p. 47), “a tendência da política cultural e educação na escola se valida na valorização 9 de vários elementos objetivos: econômicos e valores, visão tanto da família quanto da raça, gênero e relação de classe, política cultural, diferença e identidade e o papel do estado nisso tudo”. Todos esses elementos se reinterpretados a partir da compreensão da diversidade cultural na perspectiva da humanização do ser humano. Nesse sentido tem que se entender a escola como palco de lutas culturais e ideológicas. Portanto, a luta contra a legitimação da “desigualdade” passa a ser o cerne da questão curricular para não “criar a ilusão de que, não importa quão maciça sejam as diferenças entre as escolas, todas têm alguma coisa em comum e todas são culturalmente iguais (APPLE, 2001, p. 48) Essa palavra “ilusão” é enfatizada por Apple a partir de sua preocupação com o poder enorme das diferenças absolutamente reais entre escolas e cidades de regiões pobres, rurais e centrais dos subúrbios. Essa diferença implica a necessidade do respeito à diversidade cultural presente nos sujeitos da escola assim como ressaltar a importância de pensar em “uma cultura comum e de um currículo comum de modo muito diferente de como essas questões vem sendo pensadas atualmente (APPLE, 2001, p. 48). Pois, um movimento rápido rumo à centralidade do cultural é um passo na construção de objetivos de longo prazo contra a investida da direita na privatização da escola. Afirmar que as escolas são culturalmente iguais em sua diversidade de relações, tolhe a efervescência cultural dos sujeitos que fazem parte da prática do cotidiano escolar numa tendência maior de fragmentação do que de homogeneização a partir de quatro lógicas: 1) presença de grupos que tentam afirmar a sua identidade a partir de um sentimento de legitimidade histórica; 2) sentimento de identidade que experimentam e exprimem os grupos de migrantes vivendo noutra sociedade e que mantêm, de forma explicita, as suas raízes e manifestações culturais; 3) grupos que, embora vivendo há muito em sociedades dominantes, mantém e reproduzem as suas características culturais; 4) situações complicadas de localização, como as da pósmodernidade/ mundo, que geram relações complexas de interação de grupos e sub-grupos que vão emergindo, tornando-se visíveis (STOER; CORTESÃO, 1999, p. 17-19 apud SOUZA, 2001, p.120). 10 Essa diversificação cultural presente na escola nos alerta para o fato de que: As questões da diversidade cultural se colocam, especificamente no país, pelo número crescente e cada vez mais diversificado de alunos de diferentes condições sociais diversas etnias, visível, especificamente, a partir da obrigatoriedade da universalização da escola (SOUZA, 2001, p.119) Fato que Souza compreende como a “diversificação de públicos na escola” chamando a atenção para as diferentes culturas, finalidade e objetivos da educação que na escola pode combater as desigualdades econômico-sociais e exclusões histórico-culturais decorrentes do tratamento inadequado da diversidade cultural. Esses são complexos desafios a serem enfrentados na prática pedagógica escolar. A necessidade de um tratamento adequado da percepção da diversidade cultural nas práticas pedagógicas tomando os contextos culturais como objeto de conhecimento por meio da recontextualização dos textos do sistema educativo oficiais, bem como dos científicos e pedagógicos pode ser um caminho para esse tratamento (SOUZA, 2001, p. 114). Esse tratamento pode potencializar os saberes próprios de uma cultura ou de traços culturais nos processos educativos considerando as especificidades dos contextos históricoculturais (das diferentes culturas) nas práticas pedagógicas, tanto dos alunos e das comunidades quanto da própria escola, enquanto instituição social e histórica no processo de formação humana dos educandos e na consolidação dos direitos sociais e culturais. A escola na percepção da diversidade cultural nos remete ao conceito de relação defendido por Freire (2005, p. 47) em Educação como prática da liberdade, pois implica a reflexão da escola em sua condição de estar no mundo com o mundo exige perceber essas relações com conotações de pluralidades, de transcedência, de criticidade, de conseqüência e de temporalidade. Essa compreensão, transposta para as esferas institucionais, pode ajudar a escola a ser antenada às relações que o ser humano trava no mundo e com o mundo por meio da problematização e indignação frente às 11 negatividades dos contextos da pós-modernidade/mundo e promoção de suas positividades. A tendência da política cultural e educação na escola serão validas se identificar e promover os vários elementos culturais positivos que podem possibilitar uma ação cultural transformadora frente aos desafios enfrentados pela sociedade. A escola no seu contexto social, cultural e pedagógico deve realizar uma prática que dialogue os contextos culturais dos alunos para potencializar os processos educativos e o respeito a suas diversidades. A escola diante dos novos paradigmas da atualidade poderá propor uma ação transformadora de intervenção na realidade que supere as oposições entre os saberes científicos e populares por meio do diálogo entre a escola, família e comunidade no exercício da cidadania, instituindo a cultura de direitos e de participação democrática. Essa questão pode ser equacionada pela proposta do paradigma da interpelação na gestão do conflito e do diálogo das diferenças de saberes em que O diálogo entre saberes formais e informais não pode preocuparse apenas com a eficácia cognitiva da acção da escola, nem pode ser apenas limitado a uma relação dialogante entre Escola e Família que melhore o clima de aprendizagem mantendo intacto os fundamentos do currículo escolar. O paradigma da interpelação subentende por um lado que se reabilitem as potencialidades formativas do conflito cognitivo e por outro lado que se reconheça que a comunidade está sempre presente através dos alunos, razão pela qual as relações que se estabelecem com a comunidade derivam prioritariamente das relações pedagógicas e sociais que ela estabelece com os alunos. Essa perspectiva implica que a escola se pense como uma cidade a construir, ou seja, que se pense não só como espaço de formação de cidadão, mas principalmente como um espaço de exercício de uma cidadania que não se limite à aprendizagem da disciplina e das regras, mas que institua uma cultura dos direitos e da participação democrática” (CORREIA, 2000, p.19-20 apud SOUZA, 2001, p.134). Neste contexto é importante compreender que a escola é um espaço de exercício da cidadania na formação social, cultural e humana de cada educando no diálogo da escola com a comunidade. Deste modo ao reconhecer a presença da comunidade na escola através da diversidade dos alunos implica, não apenas um espaço de formação de cidadãos limitado a 12 aprendizagem de disciplinas, mas uma cultura de direitos e de participação democrática nos contextos da pós-modernidade/mundo. 4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Com essas compreensões, preocupações e ocupações encetamos esta pesquisa para perceber e construir o tratamento que a diversidade cultural já está ou não está recebendo na Educação de Jovens e Adultos, enquanto escolarização daqueles que não a iniciaram ou não a concluíram na chamada idade própria. O objeto é a compreensão do tratamento pedagógico da diversidade cultural na EJA, a relação social e cultural de sujeitos com o fenômeno da diversidade cultural no âmbito escolar. Nossa metodologia de pesquisa ancorou-se na análise reflexiva das questões de diversidade cultural na sala de aula da EJA. Para a pesquisa de campo, foi selecionada a Escola Municipal Carlos Alberto da Silva Alves, uma escola da rede municipal da cidade do Paulista, localizada no bairro de Maranguape I. Que abrange três turmas de EJA no turno da noite, duas do módulo I e uma do módulo II. Esta escola foi proposta por já ter sido campo de pesquisa nas disciplinas de Pesquisa e Prática Pedagógica no período de formação docente. Nesse momento, foram feitas atividades de acompanhamento e observação da educação infantil, das series iniciais do Ensino Fundamental e da modalidade EJA. No trabalho de pesquisa para o TCC, foram aplicados questionários individuais com 28 alunos da três turmas que compõem a escola. Neles, foram contempladas questões de gênero, raça, faixa etária, religião, trabalho, origem (urbano/rural) e buscaram as razões da desistência e retorno do/ao processo formação escolar. Esses aspectos se transformaram em categorias de análise para configuração da diversidade cultural dessas turmas da escola em estudo. Pelo fato da escola compreender três turmas de Educação de Jovens e Adultos, a aplicação aconteceu com todos os sujeitos presentes na sala de aula, no momento da aplicação. Na modalidade I – turma A: 15 alunos, modalidade I – turma B: 7 alunos e modalidade II: 6 alunos. Totalizando 28 13 sujeitos no mapeamento dos dados que compreendem o perfil da diversidade cultural. A questão da desistência e retorno dos alunos foi importante porque nos permitiu identificar discursos dos desejos e interesses dos sujeitos possibilitando a identificação de outras categorias de análise das informações recolhidas: cotidiano, futuro, desejo. Realizamos também observação de uma turma do módulo I composta por 44 alunos, 8 homens e 36 mulheres. A observação acompanhada do registro no diário etnográfico contempla entrevista realizada com alunos e professores. Optamos por realizar entrevistas por se tratar de uma técnica que nos permite uma maior possibilidade de compreensão dos assuntos apresentados aos entrevistados. Todas as entrevistas foram gravadas e depois transcritas. As informações obtidas por meio da entrevista ou observação foram registradas em diário etnográfico de acordo com as categorias centrais da investigação para identificação da diversidade na sala de aula; em seguida, tentamos identificar o tratamento dessas questões pelas professoras. 5 A DIVERSIDADE NA SALA DE AULA E O SEU TRATAMENTO Neste tópico, vamos apresentar os resultados das análises e reflexões colhidas no trabalho de campo em duas dimensões: a identificação da diversidade cultural dos sujeitos da EJA na sala de aula e o tratamento pedagógico da diversidade cultural na prática pedagógica. 5. 1 – A DIVERSIDADE CULTURAL NA SALA DE AULA Neste item, buscaremos caracterizar os elementos referentes à diversidade dos sujeitos que compõem esta pesquisa. Inicialmente vamos abordar a diversidade cultural existente na EJA, na relação da constituição 14 identitária na perspectiva social e cultural de sujeitos com o fenômeno da diversidade cultural no âmbito escolar. Questões que na perspectiva da cultura envolve elementos relacionais/atitudinais/culturais como raça, gênero, faixa etária, origem (urbano/rural), religião, trabalho e desistência que contemplam os sujeitos no espaço da sala de aula. Diversidade que é caracterizada, segundo Souza a partir de identidades culturais [...] fortemente influenciados pelos costumes de cada um, pela religião que professa, pelos papéis sociais que desempenha, pelas condições materiais, pela situação de classe, de gênero ou de etnia de cada um. [...] relações pedagógicas estabelecidas entre educadoras e educandos, entre o professor e o grupo de alunos, a relação de pais com filhos, [...] por isso, cada um recebe a informação e reage de um jeito diferente. Aprende de uma forma particular. (2007, p.33). Fato que nos remete ao reconhecimento das especificidades culturais de cada grupo humano e dos seres humanos, homem, mulher, aluno/a em diferentes espaços sociais na possibilidade de diálogo com um novo paradigma que atenda as especificidades culturais do ser humano na construção da humanização. GÊNERO E FAIXA ETÁRIA O mapeamento da diversidade de gênero na sala de aula revela que a presença da mulher é predominante no processo do retorno escolar, a presença do homem é pouco notada nas turmas de jovens e adultos. A faixa etária se concentra na variação de 31 a 60 anos. Existe pouca concentração de adolescentes (14-20). Como podemos perceber no gráfico abaixo. Quadro 1: Variação de gênero e faixa etária. 15 8 7 6 5 4 Homem 3 Mulher 2 1 0 14-20 21-30 31-40 41-50 51-60 61-70 71-80 Aparece nos discursos dos sujeitos como elemento de justificativa social o fato de não ter tido oportunidade de estudar. Evidenciando, relações de gênero em que o homem ou o casamento nega e negligencia o reencontro e a presença da mulher com a/na escola: Tenho vontade de aprender. Nunca tive chance de estudar, casei muito nova. Quero ler tudo. (Al -8) Sei-lá. Porque tinha vontade de aprender, não foi porque eu não quis. Quando eu era casada ele não deixava, separei. Aí voltei. Quero escrever um livro. (Al - 9) Me casei cedo, tinha os meninos pequenos e o marido ciumento nunca me deixou estudar. (Al – 1) Muitas mulheres voltam à escola quando se tornam viúvas ou quando os filhos crescem. Constatamos que, em variadas salas de Educação de Jovens e Adultos, a presença predominante é da mulher. Suponho que se trata do gênero que durante as últimas décadas obteve um direito fortemente negligenciado pela predominância do patriarcado4. Atualmente, com o reconhecimento dos direitos da mulher e de outros grupos sociais5, há uma abertura para auto afirmar-se/ auto decidir-se em relação aos desejos, objetivos e metas da vida. Essas mulheres da EJA afirmam para a família, para a sociedade o desejo de estudar, de aprender e se revelam não alfabetizadas para a sociedade. GÊNERO E RELAÇÕES DE AFETIVIDADE 4 Patriarcais partindo da compreensão de submissão da mulher a diferentes setores sociais e situações cotidianas da vida, estruturado no período de colonização do Brasil como compreende Gilberto Freyre. 5 Na contemporaneidade as desigualdades nas relações de gênero, raça, etnia e sexualidade são evidenciadas e discutidas. Movimentos de resistência se fortalecem nas lutas culturais através do movimento feminista, lutas de grupos étnicos e raciais considerados minoritários, movimento de homossexuais e direitos humanos como demonstra Tomás Tadeu da Silva (2004). 16 O grupo de mulheres forma subgrupos dialógicos acerca das questões da comunidade, do dia-a-dia, da família, da televisão e da sala-de-aula. Esses subgrupos de mulheres são formados e aglutinados a partir das proximidades residenciais, percebemos uma mediação local que promove essas interações. Pois, chegam juntas e saem juntas. Fato que aproxima as relações de afetividade, pois em sua maioria são vizinhas, conhecem os filhos, os maridos, são comadres. As relações de afetividade em sala de aula entre alunos e dos alunos com os professores permeiam relações pedagógica e as ações realizadas no espaço escolar. Conformam uma complexidade da prática pedagógica em que: [ ...] o pólo da complexidade professor, da complexidade aluno, da complexidade conhecimento em suas inter-relações no interior da instituição, representada pelo pólo da complexidade gestor, se organiza a partir de um contexto econômico, social, político, institucional e interpessoal que pode ser caracterizado como de diversidade cultural ou pluriculturalidade com determinados desejos, intencionalidades, objetivos e finalidades claramente definidos (SOUZA, 2007, p. 201)6. Podemos compreender que a afetividade, é um fator significativo presente nas relações dos alunos da turma observada durante a pesquisa, permeam a relação aluno/aluno, professor/aluno e inter-relações dentro da instituição. Porém, mesmo sendo a maioria do gênero feminino, os conflitos que aparecem no cotidiano da sala de aula não são por causa do gênero, mas por causa da diversidade de idades (faixa etária diferenciadas). Conflitos que evidenciam a experiência do adulto na interação com a imaturidade do jovem. Da alegria do jovem com a seriedade do adulto. Evidenciam-se possibilidades de diálogo, de troca de saberes, de práticas discursivas interculturais7. Nesses conflitos de faixa etária, entre o jovem e o adulto, objetivos e metas se fortalecem na construção da identidade cultural na perspectiva conformação de metas para a vida. A tomada da consciência permite a construção de um 6 Explicação da afetividade nessas ações e relações se deve à reflexão da Fátima Holmes (2006) em sua dissertação de Mestrado. 7 Segundo (CARVALHO, 2004, p.6), “a interculturalidade no campo educativo refere-se a possibilidades de diálogo no domínio das lutas culturais, pois, sendo o resultado de múltiplas relações entre discursos produzidos no âmbito de racionalidades multidimensionais, está implicada nas formas de produção de relações de classe, raça, etnia, geração, religião, sexualidade”. 17 significado para a existência ao encontrar-se consigo e ao distanciar-se no reconhecimento do outro. Pois, a identidade individual se fortalece no dialogo entre o indivíduo e a cultura, como afirma Vital. E continua Arquitetamos, pois, essa identidade a partir de alguns movimentos humanos que supõem relações de sujeitos potencialmente ativos/interativos, sendo sujeitos individuais e / ou coletivos. Assim, na produção da identidade do ser humano, destacamos os movimentos de centração / descentração e de diferenciação/similaridade. (VITAL, 2007, p.83) O processo de descentração da identidade repercute no debate contemporâneo acerca da crise das identidades na pós-modernidade, segundo HALL (2000) se manifesta nos processos de subjetivação, de conformação subjetiva no mundo gerando descontinuidade/ fragmentação, ruptura e deslocamento. Esses processos, sob o impacto da mudança contemporânea (globalização), provocam a fragmentação ou pluralização de identidades [...] a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado. [...] Ela tornou-se politizada. [...] constituiu-se uma mudança de uma política de identidade (de classe) para uma política da diferença. (HALL, 2000, p.21) A identidade enquanto elemento cultural descentrada, politizada na perspectiva da política da diferença, remete à necessidade da escola reencontrar-se na pós-modernidade por uma ruptura epistemológica e organizacional8 que proporcione uma identidade especifica da formação humana. Pois os sujeitos evidenciam a necessidade do ser e poder ser em categorias discursivas de trabalho, desejo, cotidiano, histórias de vida e futuro evidenciadas nas entrevistas. Percebemos processos de descontinuidade/ fragmentação, centração/ descentração pelo fato das trocas culturais nas relações de afetividade em que nega ou reconhece o outro, processos de subjetivação na troca entre jovens e adultos. Aspectos que reaparecem nas questões étnico-raciais. RAÇA 8 Proposta apresentada por João Francisco de Souza: desvincular a Educação Básica (ensino fundamental e ensino médio) da Educação Superior. (SOUZA, 2007, p.280.) 18 Na questão da raça, apenas 4 alunos se reconhecem com origem negra. Há resistência ao reconhecimento ou aproximação de questões afrodescentendes, pois os demais alunos optam pela categoria outros nesse item do questionário apresentando sua cor como moreno/a, morena clara, morena clarinha, cafuza. Como podemos observar no quadro abaixo: Quadro 2: variação de raça 10 8 6 Homens 4 Mulheres 2 0 Branco Negro Índio Pardo Outros Esse fato nos mostra que existe uma predominância de rejeição racial e resistência cultural nas questões relacionadas à auto-afirmação racial e identitária de ser/proceder/constituir-se negro/a ou afrodescente. Portanto, nos momentos do preenchimento do questionário a opção de 70% dos sujeitos foi pela categoria “outros”. Segundo Frantz Fanon é preciso ajudar o Negro a libertar-se do arsenal complexual que germinou no seio da situação colonial. Mascara-se um problema fundamental de reconhecimento étnico racial, cultural e identitário: O negro no seu meio, no século XXI, ignora o momento em que a sua inferioridade passa pelo outro... Porque o negro já não pode ser negro, mas sê-lo em face do Branco. Alguns teimaram em lembrar que a situação é de sentido duplo. Respondemos que é falso. Os negros não têm resistência ontológica aos olhos do Branco. (FANON, 1975, p.122). Nessa compreensão, reconhecemos a negação histórica dos sujeitos à pertença do ser negro/a, afrodescentende atribuindo a importância discutida por FANON9 no capítulo 1, o negro e a linguagem, em que o falar, é existir absolutamente para o outro, na perspectiva da historicidade. Em que a 9 FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas. Porto: Paisagem. 1975. 19 civilização branca, a cultura branca impuseram ao Negro uma irregularidade social que repercute na negação identitária. PROCEDENCIA RURAL URBANA Na perspectiva da origem urbano/rural, aparece um elemento interessante, pois as mulheres em sua totalidade compreendem 50% da zona urbana e 50% da zona rural. Com origem na Zona da Mata de Pernambuco, em cidades como Engenho de Glória de Goitá, São Joaquim do Monte, Caruaru, Gravatá, Guabira, Araçoiaba, Aliança e Tracunhaém. Quadro 3: Origem Urbano / Rural 12 10 8 Urbano 6 Rural 4 2 0 H M Quanto à origem regional do Brasil, todos compreendem a região nordeste, 95% dos alunos/as são pernambucanos, apenas três alunas são oriundas da Bahia, Alagoas e Paraíba. Os homens em sua totalidade são da área urbana, as mulheres estão distribuídas no espaço urbano e rural. As origens urbanas e rurais dos sujeitos reconhecem a importância da escola na produção de saberes10 que contemplem as especificidades culturais. Percebemos nos discursos de desistência dos alunos/as que a afirmação da desistência vinha carregada de justificativas sociais diversas relacionadas à origem rural e urbana: Cortava cana com minha mãe desde menina. (Al -2) Tive que trabalhar muito cedo. (Al -4) Morava na roça... (Al - 3) 10 Saberes compreendidos na perspectiva de que os processos de aquisição da leitura e da escrita do/no código alfabético devem levar em conta várias dimensões: a social, a afetiva, a ideológica, a política, a pessoal, a gnosiológica e a pedagógica na intersecção dos saberes populares, conhecimentos científicos e escolares permeados pelas influências midiáticas e populares (urbano e rurais). (SOUZA, 2006, p.189). 20 Não havia escola no município que eu morava. (Al – 6) Essas justificativas podem estar relacionadas a questões sócioeducacionais em que os direitos educacionais são negados ou negligenciados pela falta de uma estrutura educacional que atenda a diferentes espaços urbanos e rurais na resistência ao trabalho infantil.11 COTIDIANO, DESEJO E FUTURO Nos últimos anos, são muitas as propostas com vista à democratização da escola, no resgate aos processos de escolarização. Políticas educacionais desenvolvem projetos de alfabetização e regulamentam12 a educação de jovens e adultos, como modalidade para possibilitar maior equidade dos sistemas educativos. A análise da questão desistência e retorno dos alunos, evidenciaram discursos dos desejos e interesses dos sujeitos possibilitando a identificação de outras categorias de analise: cotidiano, futuro, desejo. A categoria cotidiano compreende os discursos acerca de suas necessidades diversas, seja na autonomia de suas atitudes individuais ou coletivas do cotidiano. Seja porque o óbvio as exigia codificação das palavras na sua relação social com o outro. Porque, ah pra aprender. A primeira não ensinava, voltei queria preencher meu tempo. (Al – 6) Porque precisa. Porque a gente aprende mais coisa, ler e escrever. Quer sair tem que saber pegar certo o nome dos ônibus. (Al – 4) Porque o médico disse que era uma terapia. (AL -10) Porque eu queria aprender a ligar os telefones, ver os preços das mercadorias, a conta de água ou de luz que eu não sabia. (Al -11). Pra ver se aprende a ler tudo, nome de ônibus, é muito ruim perguntar ao povo da rua. Todo mundo olha pra você e sabe que você não sabe ler. (Al – 2) 11 O trabalho infantil é uma realidade presente na região nordeste como revela uma avaliação recente na região sisaleira da Bahia. SOUZA, João Francisco; SOUZA, Adriana Fornari. Crianças e Adolescentes: futuro da região sisaleira da Bahia? (avaliação do PETI – Bahia). Feira de Santana: MOC, UNICEF, Governo da Bahia, Comissão Estadual do Brasil, Comissão Estadual de prevenção e erradicação do trabalho infantil – Bahia – 2003. 12 Regulamentação que ocorre através de uma política educacional no reconhecimento a identidade e especificidades da modalidade da EJA pela LDB 9394/96; Assim como uma nova concepção de Educação na proposição holística e multissetorial afirmadas na V Confitea (Declaração de Hamburgo/ 2000 e Agenda para o Futuro). 21 Algumas alunas revelam a categoria desejo, em que o objetivo de aprender se evidencia: Porque senti falta, quis estudar de novo. Porque gostei de estudar, não tinha paciência, me aperreava. (Al -14) Muito bom aprender alguma coisa. O máximo que eu quero é ler correto. Ler tudo sem soletrar. (Al -18) Porque Deus colocou desejo no meu coração pra estudar. (Al – 23) Porque deu vontade de estudar e ver se aprende alguma coisa, fazer conta é que é o mais difícil. (Al - 25) Os mais jovens apresentam em seu discurso a categoria futuro, em que o desejo de estudar se projeta nos objetivos e metas do ser/poder ser: (15 anos) – Porque eu to muito precisado. Porque eu preciso muito passar para a 5ª série, porque eu já reprovei muito a 3ª.(Al – 3) (16 anos) – Porque eu queria ser repórter. Aprender a ler e escrever. Aprender mais, arrumar um emprego melhor. Melhorar á vida. (Al -17) (30 anos) – Porque eu acho importante o estudo, nunca é tarde e eu quero ser uma mulher inteligente, sem escola a gente não é nada. (Al – 22) (21 anos) – Por necessidade, sem estudo ninguém é nada. Quero aprender português, matemática. Arrumar um emprego, trabalho, construir uma família. (Al -21) Podemos nestes discursos perceber que o retorno à escola contempla as necessidades básicas do cotidiano, do desejo e do futuro. Permeadas por princípios da corporeidade, da totalidade, da ludicidade, historicidade e identidade que são pilares da proposta freireana. Permeados pelo eixo comum do princípio dialógico na relação sócio/cultural de estar com o mundo e não no mundo. (FREIRE, 2005, p.47). RELIGIÃO E TRABALHO O elemento religião não é muito ponderado na sala de aula. Percebi que existe certa tensão no debate religioso, todos se respeitam quanto à opção religiosa. Mapeamos que 70% são católicos e 30% evangélicos. 22 Quadro 4: Variação de Religião Católicos Evangélicos Neste sentido, percebemos que a religião surge como afirmação forte por se tratar de um componente de identificação cultural religiosa da comunidade, em que os alunos se afirmam em determinada crença, em determinada instituição, ou seja, existe uma força cultural de pertença a determinado grupo local. Nesta perspectiva compreendemos que: As identidades nacionais permanecem fortes, especialmente com respeito a coisas como direitos legais e de cidadania, mas as identidades locais, regionais e comunitárias têm se tornado mais importante. Colocadas acima do nível da cultura nacional, as identificações “globais” começam a deslocar e algumas vezes, a apagar, as identidades nacionais. (HALL, 2000, p. 73) As identidades nacionais são compreendidas na perspectiva de reconhecer outra nacionalidade, sem nacionalismos que possa oferecer diálogos culturais. Que no aspecto da religião é fortalecida por se tratar de uma cultura local que não é descentrada por ser um elemento referente à cidadania e identidade da comunidade. Quanto ao item trabalho a maioria desenvolve atividades informais para geração de renda como atividades artesanais (confeitaria, costura, flores de emborrachado). Assim como venda de picolé, prestação de serviço de pintura, pedreiro, faxina e motorista. Poucos são aposentados e possui uma renda fixa mensal. Esta realidade compreende a identidade de alunos/as da EJA trabalhadores/as.13 A categoria trabalho aparece enquanto elemento que estimula o retorno à escola nas questões de subsistência e responsabilidade familiar. 13 Como afirmo no corpo teórico do artigo que a EJA, enquanto uma modalidade da educação básica é voltada para jovens e adultos que foram excluídos de um direito social, que é o acesso à escola ou mesmo não tendo sido negado esse direito foi negligenciado a esses jovens no decorrer do processo escolar. 23 Eu voltei porque tinha que continuar... Negócio de família. Documentação, profissão de motorista. Tinha que preencher umas fichas e não sabia. Eu sabia dirigir e num sabia ler. E tinha que saber ler né. (AL – 1) Porque as coisas lá fora tá difícil, arrumar um trabalho bom exige qualificação, 2º grau. (AL – 26) Por necessidade, sem estudo ninguém é nada. Quero aprender português, matemática, arrumar um emprego, trabalhar, construir uma família. (AL – 20) Com estes discursos podemos compreender que o trabalho é uma realidade que faz com que alunos evadam ou retomem o ambiente escolar. A partir de suas necessidades especificas de subsistência. 5.2 - O TRATAMENTO DA DIVERSIDADE CULTURAL NA PRÁTICA PEDAGÓGICA Perceber o processo de tratamento da diversidade cultural na prática pedagógica implica em realizar um olhar minucioso a cerca dos sujeitos que compõem a sala de aula. No tópico anterior relacionado à diversidade cultural dos sujeitos, podemos visualizar que a sala de aula predomina o gênero feminino, faixa etária de 30 a 60 anos, afro-descedentes, católicos, desistentes e trabalhadores informais na renda familiar. Uma sala com tais características, evidencia a realidade das escolas em que jovens e adultos (predominantemente mulheres) no retorno ao direito escolar, negado ou negligenciado na infância e adolescência. Durante as observações e registros em diário etnográfico acerca das diferentes relações cotidianas que contemplam especificamente o objeto desta pesquisa, o tratamento pedagógico da diversidade cultural. Percebi que para tratar a cultura presente na diversidade de sujeitos sociais da sala de aula, fazse necessário tratar o sujeito enquanto humano em suas múltiplas dimensões existenciais. O tratamento da diversidade cultural, tão específicas do ser homem, ser mulher, aluno/a, pai/mãe, negro/a, trabalhador/a, em diferentes papéis sociais e culturais implica /contempla o que podemos compreender: 24 DIÁLOGO + VISÃO INTEGRAL DO SER HUMANO INTERAÇÕES SOCIAIS SABERES CULTURAIS SUBJETIVIDADES Tratar a diversidade cultural pedagogicamente na prática pedagógica, parte de tratar o ser humano em suas interações sociais, saberes culturais e subjetividades. Interações culturais na perspectiva de contemplar os papéis sociais (ser homem, mulher, pai, mãe, na família, no trabalho), saberes culturais na perspectiva que contempla a historicidade humana (suas histórias de vida, suas experiências, seus saberes), contemplar as subjetividades (desejos e afetividades significadas em suas formas de ser e estar no mundo). As interações observadas no período de pesquisa e registradas no diário etnográfico evidenciaram que a temática a cerca dos conteúdos que contemplam os debates relacionados aos tópicos de diversidade cultural, não estão presentes nos debates educacionais. Os artefatos culturais da mídia, novela e noticiários são comentados na sala de aula, mas não contempla uma análise. As aulas são transmitidas em disciplinas diferenciadas (português na primeira aula, matemática na segunda, sem um elo de ligação temática). Porém é importante salientar que a discussão acerca da África e questões étnico-raciais fazem parte dos conteúdos curriculares, compreendendo parte dos conteúdos transversais pertencentes ao módulo I da Educação de Jovens e Adultos. Porém percebemos que o tratar pedagógico da diversidade cultural ocorre nas relações atitudinais mediadas pela afetividade, relação aluno-aluno e professor-aluno. Pois tratar o outro com afetividade, implica em relações de comprometimento e reconhecimento a capacidade social, cultural e intelectual do sujeito. 25 Esta relação de comprometimento e reconhecimento é confirmada na prática pedagógica da professora permeada por suas relações com os alunos, na legitimação de seus saberes, suas culturas e sua integralidade humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a realização da nossa pesquisa podemos compreender que o tratamento pedagógico da diversidade cultural na educação de jovens e adultos contempla a perspectiva das relações dos sujeitos da escola mediados pela afetividade. Pelo quadro aplicado e analisado podemos perceber a sala de aula enquanto espaço de relação/atitude/diálogo cultural engloba a presença feminina em sua totalidade, pouca presença da juventude, mediados pelos saberes da cidade e do campo. Fator que revela a importância de reconhecer as especificidades culturais dos educandos, pois tratar a diversidade cultural significa possibilitar o diálogo da identidade cultural do ser humano no dialogo com diferentes culturas, para a possibilidade da interculturalidade. Nesta perspectiva partimos do pressuposto que a prática pedagógica do professor é um dos aliados principais no reconhecimento a cultura. E que este reconhecimento de tratar o ser humano em suas interações sociais, saberes culturais e subjetividades, são possibilidades para interculturalidade. BIBLIOGRAFIA APPLE, Michael W. Política Cultural e Educação. São Paulo: Cortez. 2001. BERNSTEIN, Basil. A pedagogização do conhecimento. Estudos sobre recontextualização. Tradução: Maria de Lourdes Soares e Vera Luiza Visocks. IN: Cadernos de Pesquisa 120. Novembro /2003. p. 75-110, BRANDÃO, Zaia (org.). A crise dos paradigmas e a educação. 9ed. São Paulo, Cortez (Coleção questões da nossa época; v.35) 2005. CARVALHO, Rosângela Tenório de. Discursos pela interculturalidade no campo curricular da educação de jovens e adultos no Brasil nos anos de 1990. Recife: Bagaço. NUPEP/UFPE: Coleção Teses/ Dissertações 3. 2004. CARVALHO, Rosângela Tenório de. Alfabetização de Jovens e adultos e interculturalidade. In: Revista Fênix. NUPEP – Ano 3 – Nº 4. Julho/Dezembro de 2004. DUARTE, Simone Viana e FURTADO, Maria Sueli. 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