Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 1 O CORDEL DE “OS DESVALIDOS”: ENTRE O RASTRO DA HISTÓRIA E O LIMIAR DA MEMÓRIA Maria Luzia Oliveira Andrade (UFS)1 Na leitura de Os desvalidos2, a segunda obra da autoria do sergipano Francisco José Costa Dantas, publicada em 1993 pela Editora Companhia das Letras, percebese, de imediato, um universo configurado mediante a força de três materiais: história, memória e testemunho. Também o cordel surge na musicalidade que brota da narrativa, funcionando como uma espécie de pano de fundo que envolve o leitor durante ao longo do desenrolar da trama. A obra é dividida em três partes “O cordel de Coriolano”, “Jornada dos pares do Aribé”, “Emblemário de partida e de chegada”. A primeira é centrada nas memórias de Coriolano, a segunda nas memórias dos últimos dias de Lampião e nos pares Coriolano, Felipe e Zerramo; já a terceira é um epílogo, uma espécie de análise sobre o destino previamente reservado aos personagens. Tal divisão funciona tanto como as pistas iniciais para o leitor observar com quais elementos a narrativa sobre esses personagens desvalidos é tecida, quanto como indícios de que memória, história e testemunho se entrecruzam na trama. 1 Mestre em Letras pelo NPGL/UFS e professora da rede estadual de ensino de Sergipe. A edição de Os desvalidos utilizada neste trabalho é a segunda edição, de 1996; doravante será utilizada, ao longo do trabalho, a abreviatura OD para a referida obra. 2 Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 2 A história começa com a notícia da morte de Lampião e a consequente comemoração eufórica de Coriolano, celebrando o fim trágico do cangaceiro, num nítido desabafo: “Toma lá, satana dos infernos!” (OD, 1996, p.11). Conta a história oficial que Virgulino Ferreira da Silva é o seu nome e Lampião é o seu pseudônimo. Dizem as memórias dos mais velhos que ele é mais conhecido por onde passou com a alcunha de “cão da peste, cão danado, peste cego”, cujas façanhas por décadas amedrontaram o agreste e o sertão do interior de Sergipe e do Nordeste, e sobre o qual ainda paira uma áurea de anti-herói. Com uma linguagem retirada do real, da fala pausada e quase cantada dos sertanejos configurados nos personagens desta ficção, a obra tece uma ruptura das barreiras entre o prosaico e o poético. Com isso, a narrativa é impregnada da oralidade retirada da linguagem da sofrida, mas forte gente nordestina que, segundo os repentistas, adota a desconfiança como uma das normas de sobrevivência e manutenção de sua coragem e força. É como se o leitor real do interior sergipano reconhecesse e até ouvisse, via reconstrução das memórias representadas na obra, os próprios avós e bisavós relatarem as batalhas travadas no passado pelas brenhas do agreste e do alto-sertão. Ou ainda, se o mesmo leitor rememorasse as proezas desse cangaceiro, cantadas pelos repentistas nas feiras livres do interior e da periferia da capital, reelaboradas por Dantas com os acordes da cultura popular. Não obstante a relação entre o factual e o ficcional, a representação do cangaço ainda ganha um ar de peculiaridade e de Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 3 novidade temática, quando o leitor leva em conta a forma como a narrativa é construída, quer pela técnica narrativa, quer pela explosão de memórias individuais e sociais testemunhando a história. As vozes populares e, por conseguinte, os causos sobre a valentia e a destreza de Lampião ditam o ritmo das histórias contadas nesta obra. Histórias essas recuperadas do velho hábito das antigas gerações do interior de (re)contarem suas vicissitudes. Ou melhor, histórias e memórias dos velhos, como diria Ecléa Bosi (2007). Hábito de rememorar numa tentativa de eternizar, mesmo que temporariamente, sua tragédia cotidiana. No caso nordestino, o maior dos dramas: os feitos de um cangaceiro que – ao desafiar o Governo com saques aos fazendeiros e emboscadas aos “oficiais”, ou melhor, aos soldados da lei – aterrorizou o Nordeste brasileiro na primeira metade do século XX. É dentro desse contexto histórico-rememorativo que Dantas recorre à estrutura do cordel para contar os reveses dos sergipanos nos tempos do cangaço. Vicissitudes que ganham forma poética na própria estrutura do cordel, dissolvida na materialidade textual de Os desvalidos. No entanto, a constatação da presença da cultura popular e do próprio cordel no referido texto literário não é nova. Por um lado, Alfredo Bosi (1997) foi quem afirmou que a trama de Os desvalidos é construída com os acordes da cultura popular. Por outro, Marta Morais da Costa (1994) foi quem primeiro percebeu a presença do cordel em Os desvalidos, num ensaio publicado um ano após o lançamento deste texto literário. Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 4 Sobre esse aspecto, a produção do cordel divide-se em dois tipos: folheto e romance; o primeiro corresponde a textos curtos ou de poucas páginas, já o segundo a textos longos nos quais sobressai o sofrimento que narra as desgraças dos protagonistas (cf. MEYER, 1980 apud COSTA, 1994). Na opinião de Marta Morais da Costa, o cordel se faz presente nas três divisões ou partes da narrativa de Os desvalidos: “O cordel de Coriolano”, “Jornada dos pares do Aribé”, “Emblemário de partida e de chegada”. Na primeira parte, “a pretensão de Coriolano ao narrar o acontecido e as desgraças decorrentes aponta para esse romance de sofrimento”. Na segunda, a obra também “mantém a ligação com a literatura de cordel ao estabelecer – via o vocábulo pares – o anúncio de feitos de bravura como os d' Os doze pares de França, um dos ‘livros do povo’’’. Na terceira assim “como nos folhetos e nos romances de cordel, o encaminhamento, do texto conduz, ao final, na exposição da moralidade da história lida, para uma conclusão de ordem moralizadora” (COSTA, 1994, p. 31). É na evidência desse cordel presente na estrutura de Os desvalidos que os dois planos temáticos se entrecruzam: o de Coriolano e o de Lampião. No primeiro, estão configuradas a vida de Coriolano e da sua família: tio Felipe, compadre Zerramo e Zé Queixada (outrora Maria Melona). No segundo, está configurada a vida de Lampião que – ao ver o próprio pai assassinado por um soldado da lei – resolve roubar, matar e viver eternamente num projeto de vingança ao Governo e aos aliados deste, Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 5 passando por cima de todos e vitimando a muitos para saciar a própria sede de vingança e, com isso, dar continuidade à tradição do cangaço no sertão nordestino. No meio desse fogo cruzado se encontra o povo do interior sergipano, representado na obra como uma massa de pessoas desfavorecidas ou desvalidas, mas contraditoriamente forte e sobrevivente do horror das lutas travadas Nordeste a fora. Essa gente não conta com a ajuda do Governo nem com a proteção dos cangaceiros e, em decorrência disso, é a grande vítima do cenário da guerra travada no cenário enfeitado pelos pés de jurema, palma e macambira. Neste cenário, são vítimas de variadas torturas, pois, quando “o bando de Lampião e a volante do governo agora deram pra esta zona do Aribé. Enquanto se perseguem e se chama em porfiadas e sangrentas brigas” (OD, 1996, p. 125) absurdos acontecem, conforme são representadas no folhetos e no romance. Os cangaceiros “vão também esfolando a região, a saque, morte e desonra, metendo o pau na pobreza desvalida. Furam olhos, arrancam unhas, decepam os quibas e a metade da língua” (OD, 1996, p. 125). Quer na forma, quer no conteúdo, a presença do cordel em Os desvalidos revigora os dois aspectos teóricos: o da história e o da memória, na medida em que não se contrapõem ao cordel, mas se entrecruzam com ele num discurso construído por um narrador que tenta recuperar as vozes populares e, por conseguinte, a história oficial e a não oficial, os causos e as memórias sociais de uma gente testemunha ocular do ciclo do cangaço em Sergipe. Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 6 A representação de histórias vividas, em parte, numa releitura da história oficial é de singular importância em Os desvalidos, uma vez que o narrador dessa obra tanto funciona como um intermediário de experiências quanto como um colecionador de vivências de um povo, à medida que se movimenta, ou melhor, muda de ótica, durante todo decurso narrativo, para oferecer ao leitor várias perspectivas pelas quais a história do cangaço está sendo contada. Assim, o narrador-onisciente de Os desvalidos constantemente sede lugar a dois personagens-narradores, testemunhas personificadas na figura de Coriolano (o povo) e de Lampião (o cangaço). Coriolano e Lampião são, segundo Aldair Smith de Menezes (2011), respectivamente, os narradores da primeira e da segunda parte da obra. Particularmente, este é um efeito obtido com o trabalho de Dantas com a memória: dar voz na ficção às testemunhas diretas e indiretas de sua história. Quer como personagem do povo, quer como chefe do cangaço, quer ainda como narradores de suas histórias e memórias, o que é dado ao leitor são versões possíveis sobre o terror vivido pelos sergipanos no tempo do cangaço. O narrador de Os desvalidos é aquele que, inicialmente, dentro de uma proposta benjaminiana, parece procurar intercambiar experiências, porque as próprias experiências transmitidas de boca em boca, retiradas da tradição oral de uma comunidade são mais ricas do que as catalogadas nos livros da história oficial, pois “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorrem todos os narradores” (BENJAMIN, 1994, p. 128). Sabe-se que Francisco Dantas é filho de Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 7 Riachão do Dantas, Sergipe, onde viveu a maior parte de sua vida. Também se sabe que a principal marca de suas obras é esse interior sergipano (configurado em Riodas-Paridas) e o eixo Sergipe/Bahia/Alagoas. O narrador de Os desvalidos é aquele que funciona como a personificação de um sujeito-autor, antena do mundo, captando as experiências de uma comunidade, a configuração do interior sergipano e dos estados circunvizinhos. Nesse caso, o texto literário parece funcionar como uma mediação com a sociedade representada, à medida que coloca em perspectiva a cultura de um povo, no sentido mais amplo de hábitos, costumes, valores, vivências e relatos de experiências (WILLIANS, 1979). Tudo, enfim, funcionando como uma autêntica representação do imaginário social de uma gente que se inscreve na história e nas produções culturais que reconstroem o mosaico de suas experiências. Dantas também dá voz ao algoz da trama que aparece para dar o testemunho direto de sua história: “E dizer que eu, Virgulino Lampião, o brabo! (OD, 1996, p. 153) representado, ora na figura de um assassino frívolo, ora na forma humanizada. O cangaceiro é um homicida impiedoso na execução de mais uma vingança, quer à volante, quer aos coronéis que apoiam o governo “paguei ao Petronilo o preção estipulado daquela cara fazenda, só pelo merecimento de meio dedalzinho de formicida-tatu no feijão envenenado! Coronel de cocô de galinha choca! [...] também daí a pouco tudo pega fogo. Toma satanás! (OD, 1996, p. 153) e Lampião, nesse episódio, mais uma vez, confirma a sua fama de “cão da peste”. Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 8 Num contraponto à personificação do demônio, a imagem do cangaceiro humanizado também aparece, mediante a rememoração de quadros da vida conjugal, o amor devotado a sua mulher, ou ainda, realizando o parto de Maria Bonita e, uma semana depois, cuidando do umbigo da filha recém-nascida. Essa humanização de Lampião está representada num episódio marcado por um momento ímpar da trama, quando o cangaceiro “pôde enfim, com as próprias mãos, fazer o parto dela [...] Não demorou um tico de nada, e logo sai o chorinho da bitela de uma menina-mulher” (OD, 1996, p. 189). Quando observada de perto, essa passagem é interessante, pois surge num episódio narrado, ora com a frieza do cangaceiro aconselhando Maria Bonita a não se apegar à filha porque criança não pode morar num cangaço e cangaceira não tem o direito de ser mãe, ora com o sofrimento de Lampião ao narrar a decisão para ele inevitável de entregar a filha em adoção a um vaqueiro e esposa. Num raro momento, o cangaceiro desabafa: “Ai,meu povinho, dói na alma o sujeito não poder botar no próprio filho o nome de família, por medo de vingarem no inocente a má fama que pegou devido aos tiroteios do pai! Esta menina derradeira, dei ao vaqueiro Zé Sereno pra dona Aurora criar” (OD, 1996, p. 189-190). É dentro dessa perspectiva do humano e do inumano que o leitor pode inserir os personagens de Os desvalidos, pois a figura do assassino cruel construída por Coriolano é apenas um lado da moeda; no outro está a imagem do pai e do homem apaixonado que emerge do testemunho do cangaceiro sobre si próprio. Ao ceder Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 9 lugar aos testemunhos de outrem, o narrador construído por Dantas é aquele que se fragmenta e, com isso, assume outras formas, como a do algoz Lampião e a dos abandonados à própria sorte, conforme se observa nas reflexões de Coriolano, uma das ópticas narrativas da trama: “De algum modo precisa apaziguar o pânico que começa a alastrar vadiando a cara de Coriolano [...) o homem tem poder de fogo, tem oração forte! Se manga a te do governo”(OD, 1996, p.173). O movimento da ótica narrativa e o relato dos personagens, por vezes, entremeados à rememoração de quem conta as memórias funciona como marcas da existência tanto de memórias sociais quanto de memórias individuais no mesmo texto ficcional. Não que uma não esteja inserida na outra, mas a narrativa simula a interface das memórias e a apropriação daquela por esta memória. Isso ocorre no momento em que se resgatam experiências vividas, pois, nesse inatante, a memória individual está atravessada pela memória social da qual ela própria faz parte (HALBWACHS, 2006) e, com isso, a memória individual participa da memória social e com ela se confunde. Muitas das lembranças individuais de alguém têm origem no contexto social e familiar nos quais se vive (BOSI, 2007). Sendo assim, a memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, porque por muito que se deva à memória coletiva, é a memória individual que recorta (BOSI, 2007), seleciona e atribui uma subjetividade às vozes e aos causos que brotam da sociedade e dos quais cada pessoa conscientemente ou não é portadora. Noutras palavras, os relatos que se ouve da Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 10 família, dos amigos e da comunidade em geral formam um arquivo e constituem uma memória que, sendo individual e intransferível, também é fruto das experiências de outros e da vivência de muitos. Nesta narrativa de Dantas, o leitor também percebe a presença da memória histórica, cuja característica básica é o seu caráter exterior, externo. Da mesma forma que a memória social absorve elementos da memória individual, a memória histórica recebe ajuda da memória autobiográfica (interna, pessoal), haja vista a histórica ser muito mais abrangente e extensa que aubiográfica (HALBWACHS, 2006, p. 73), pois se serve de dos testemunhos dos outros para compor e recompor o quadro da vida cultural. No processo de composição do texto literário, Dantas se serviu da memória autobiográfica enquanto espectador, provavelmente impressionado, dos causos contados no interior do estado sobre a saga de Lampião. Mas também se serviu da memória histórica, dos registros, da narrativa documentada nas páginas da história oficial. De modo semelhante, o narrador de Os desvalidos caminha no rastro dessas duas rememorações, fazendo uso de testemunhos orais e escritos, bem como das impressões que o cangaceiro deixou por onde passou. Sobre esse aspecto, a intenção inicial – mas não concretizada por Coriolano de escrever sua versão sobre a história do cangaço – representa uma tentativa de recolher testemunhos e de não deixar a memória se apagar. Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 11 Daí o narrador construído por Dantas constantemente ceder lugar ao testemunho daqueles que viveram e sofreram as próprias experiências, fazendo-os partícipes e narradores dessas memórias, tais como Coriolano e Lampião. Testemunhos recolhidos por Coriolano e vivenciados tanto por este como por tio Felipe, primeiro como comerciantes, depois como caixeiros-viajantes, o que os fazem conhecer as duas faces do recolhedor de causos do alto-sertão e coloca-os na condição de expectadores e atores das próprias histórias. Como expectadores são testemunhas do combate travado entre volante e cangaceiros; como atores de suas histórias se veem na posição de coadjuvantes das batalhas travada no sertão sergipano e nordestino, o que se percebe no episódio em que “Coriolano apertou a mão de Zerramo, num trato de vago encontro futuro: ainda não era desta feita!” (OD, 1996, p. 92). Embora o personagem tenha pensado que o próprio fim não chegaria naquele momento, com uma ar de premunição, um medo visceral anunciava o que em seguida aconteceria quando “ Virou a rédea da nova montaria para o norte, e se largou em busca de Propriá, vindo a topar no caminho uma tropa de cachimbos que ia socorrer uma volante encurralada por gente de Lampião” (OD, 1996, p.92). No estado de pânico oriundo da experiência de uma situação limite, Coriolano, Felipe, Zerramo e Maria Melona testemunham o desenrolar da saga de Lampião, com o próprio testemunho e com o depoimento dos outros, pois toda memória é fruto de testemunhos. Sobre esse aspecto, toda memória é testemunhal, Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 12 pois “a testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios olhos, a testemunha direta” (GAGNEBRIN, 2004, p. 93), mas seria também quem ouve a narração da experiência do outro (cf. GAGNEBRIN, 2004). Testemunho também prestado, quer por Lampião, como um contraponto, a outra versão dos fatos da narrativa, quer pelo frenesi das outras memórias das quais por vezes Coriolano é portador, fruto da notícia da morte de Lampião guardada na memória social. Contudo, com traços de impressões individuais sobre os fatos narrados, conforme o leitor observa no relato sobre a morte do próprio Lampião: “pouco a pouco o pessoal se ajunta mais animando num cardume de gente que desemboca de dentro das esquinas e se encaminha para o coreto” (OD, p.12). Isso com o intuito de testemunhar “o sangue dessa festiva degola, a vida em Rio-dasParidas agora ressuscitasse, voltando a seu normal, enfim desobrigada do zarollo rei enfuriado que cobrava suas justiças acima da lei dos homens, e também da lei de Deus (OD, 1996, p.12). A condição social da qual Lampião primeiro foi vítima, depois algoz e posteriormente mito, dentro e fora da ficção, não tiraram as impressões controversas que esse personagem do cangaço deixou na história e na memória do agreste e do sertão nordestino. Justiceiro, anti-heroi, bandido e lenda são faces dos testemunhos e das memórias dessa época do cangaço, que pouco antes da morte, em Os desvalidos, o cangaceiro desmitifica a própria figura, ao explicar uma de suas façanhas, quando fugiu de uma emboscada da volante e todos “ficaram de boca aberta , jurando a todo Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 13 mundo que outra vez Lampião se fizera encantado. Por isso tinham visto um vultão batendo asa e avoando!” (OD, 1996, p.193). Admirado da própria imagem em construção na cultura, o cangaceiro complementa “Pois sim! Eu é quem sei a dureza que foi varar, depois de meia noite, a mataria e os espinhos sem deixar rastros, descendo os mais afadigados pendurados no cipó” (OD, 1996, p.193). De modo que, segundo a História, a saga de Lampião chega ao fim, assassinado juntamente com o seu bando em Angico, sertão de Sergipe. Segundo as memórias presentes na ficção de Os desvalidos, a notícia de sua morte foi comemorada pelos moradores do sertão pelas memórias que ajudam a contar a história nesta obra compondo, na opinião de Regina Zilberman (2007), a rica vertente memorialista da qual Francisco Dantas faz parte. Referências Bibliográficas ANDRADE, Carlos Henrique Salles. Corda, cordel, cordão: aventura e poesia de mãos dadas. In: SILVA, João Melchiades Ferreira da. 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