LEO PERES KRAFT
A FAZENDA PÚBLICA E A INTIMAÇÃO PESSOAL
XXXV CONGRESSO NACIONAL DE PROCURADORES DO ESTADO
2009
1
A FAZENDA PÚBLICA E A INTIMAÇÃO PESSOAL
1. DAS PRERROGATIVAS PROCESSUAIS DA FAZENDA PÚBLICA
Pode-se entender o princípio do devido processo legal, previsto no art. 5°,
LIV da CF, como um continente, o qual tem por conteúdo inúmeros outros princípios básicos de
qualquer sistema processual baseado no paradigma do Estado Democrático de Direito.
Assim como os princípios do contraditório, da ampla defesa e do juiz
natural, dentre outros, é elemento indissociável do conceito due process of law o princípio da
igualdade entre as partes.
Decorrente de preceitos constitucionais (art. 5°, caput e LIV da CF) e legais
(art.125, I do CPC), tal princípio está vinculado ao conceito aristotélico da igualdade, segundo o
qual, como se sabe, a isonomia consiste na dispensa de tratamento igual a situações idênticas e de
tratamento desigual a situações desiguais.
Assim, não é o princípio da igualdade óbice a que se dê a determinadas
pessoas um regime jurídico processual pontualmente mais favorável do que o que é aplicável ao
mais das partes, desde que as razões que justificam essa discriminação – fator de discrimen –
sejam razoáveis e amparadas por algum valor reconhecido pelo ordenamento jurídico. Pelo
2
contrário: a finalidade dessas normas não é outra que não, ao favorecer pontualmente
determinado sujeito, promover a igualdade entre as partes, compensando um deficit decorrente de
alguma situação fática identificada pelo legislador.
Essas vantagens dadas pelo Direito a determinados sujeitos em relação ao
regime jurídico processual comum é que são chamadas prerrogativas processuais.
Assim, dentre outros inúmeros casos contidos na legislação processual, é
que a parte representada por advogado dativo ou por curador especial, ao contestar, não tem o
ônus de impugnar especificamente cada fato narrado na inicial (Art. 302, parágrafo único do
CPC). Aqueles que não condições de arcar com as despesas processuais ficam delas
desincumbidos (Lei n° 1.060/50). Apesar de a regra geral impor que a ação fundada em direito
pessoal ou em direito real sobre bens móveis seja proposta no domicílio do réu ( Art. 94 do CPC),
é competente o foro do domicílio ou residência do alimentando, para a ação em que se pedem
alimentos (Art. 100, II do CPC). Da mesma forma, compete também ao foro do domicílio do
autor ou do local do fato o julgamento das ações de reparação de dano sofrido em razão de delito
ou acidente de veículos (Art. 100, parágrafo único).
Ao lado desses exemplos, existem também as prerrogativas processuais
instituídas em prol da Fazenda Pública. E não são poucas. A título meramente enumerativo, a
Fazenda Pública tem prazo em dobro para recorrer e em quádruplo para contestar (art. 188); os
honorários de sucumbência por ela devidos são calculados de forma especial (art. 20, ° 4°); sua
citação é feita de forma pessoal (art. 222, c); nas ações rescisórias, está dispensada de efetuar o
depósito previsto pelo art. 488 do CPC (art. 488, parágrafo único); as despesas decorrentes de
atos praticados ao seu requerimento devem ser pagas ao final, pelo vencido (art. 27); no
procedimento sumário, os prazos do art. 277 do CPC serão, para ela, contados em dobro; via de
regra, as sentenças proferidas contra si estão sujeitas ao reexame necessário. Isso sem contar a
norma do art. 100 da CF, que submete os pagamentos devidos pela Fazenda Pública em virtude
de sentença judicial ao regime dos precatórios.
3
Muito embora essas prerrogativas a muitos pareçam antipáticas, a doutrina
majoritária e a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, ora apoiadas no princípio da
supremacia do interesse público sobre o privado, ora “considerando o vulto dos negócios do
Estado (Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, tomo III/145, 2ª ed., 197
4, Forense) e tendo presentes as dificuldades de ordem material e estrutural que oneram o
desempenho da atividade processual da Fazenda Pública1”, têm-lhes reconhecido legitimidade,
desde que não desbordem dos limites do razoável2.
Com efeito, a especial proteção que merece o interesse público e as
dificuldades de ordem prática que encontram os representantes do Estado ao defendê-lo em juízo
justificam a instituição de um tratamento diferenciado à Fazenda Pública.
Como bem pontuado por Leonardo José Carneiro da Cunha, “a Fazenda
Pública, que é representada em juízo por seus procuradores, não reúne as mesmas condições
que um particular para defender seus interesses em juízo. Além de estar defendendo o interesse
público, a Fazenda Pública mantém uma burocracia inerente à sua atividade, tendo dificuldade
de ter acesso aos fatos, elementos e dados da causa. O volume de trabalho que cerca os
advogados públicos impede, de igual modo, o desempenho de suas atividades nos prazos fixados
para os particulares”.3
Esclarecidos o conceito, os fundamentos constitucionais e os limites
impostos à criação das prerrogativas processuais da Fazenda Pública, cumpre voltar os olhos ao
objeto específico deste estudo.
1
STF. 1ª Turma. RE 181.138/SP . rel. Min. Celso de Mello. j. 06.09.1994. DJ 12.05.1995. No mesmo sentido: STF.
1ª Turma, RE 196.430/RS. rel. Min. Sepúlveda Pertence. j. 09.09.1997. DJ 21.11.1997.
2
Cf. STF. Pleno. ADI-MC 1.753-1. rel. Min. Sepúlveda Pertence. j. 16.04.1998. DJ 12.06.1998. Na oportunidade, o
STF suspendeu cautelarmente a eficácia do art. 4° e seu parágrafo único da MP n° 1.577-6/97, que ampliavam para
cinco anos, em prol da Fazenda Pública, o prazo do art. 495 do CPC e criavam, também exclusivamente em favor
dos entes fazendários, nova hipótese de cabimento de ação rescisória. A decisão teve como fundamento, dentre
outros, a falta de razoabilidade das prerrogativas criadas pela norma ali apreciada e, via de conseqüência, a sua
incompatibilidade com os princípios da isonomia e do devido processo legal.
3
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 6ª ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 34.
4
2. DA PRERROGATIVA DE INTIMAÇÃO PESSOAL OUTORGADA À FAZENDA
PÚBLICA FEDERAL E DA SUA EXTENSÃO ÀS DEMAIS FAZENDAS PÚBLICAS
Intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e termos do
processo, para que faça ou deixe de fazer alguma coisa (Art. 234 do CPC).
Meio de comunicação dos atos processuais, a intimação pode ser realizada
por diversas formas, quais sejam, pela publicação do ato no órgão oficial (impresso ou
eletrônico), por carta registrada, pessoalmente, por meio eletrônico (que, nos termos do art. 5°, §
6° da Lei n° 11.419/2006, equipara-se à intimação pessoal para todos os efeitos legais) e
mediante a entrega dos autos com vista.
Diversamente do que ocorre com a citação (art. 222), o Código de Processo
Civil não exige que a intimação da Fazenda Pública seja feita pessoalmente. Aplicar-se-ia assim
ao Estado as regras gerais acerca da intimação, na forma dos artigos 236 a 239 do CPC.
A legislação extravagante, todavia, veicula normas acerca da matéria.
Primeiramente, o art. 25 e seu parágrafo único da Lei n° 6.830/80 prevê
que, “na execução fiscal, qualquer intimação ao representante judicial da Fazenda Pública será
feita pessoalmente”, já tendo a jurisprudência pacificado o entendimento de que o dispositivo em
tela tem aplicação também no processo de embargos à execução fiscal (Súmula 240 do TFR).
No que toca aos demais feitos judiciais em que atua a Fazenda Pública, a
Lei n° 9.028/95, em seu art. 6°, confere aos membros da Advocacia-Geral da União , de forma
genérica, a prerrogativa da intimação pessoal, excetuando apenas, em seu parágrafo único, a
hipótese em que a intimação deva ser feita fora da sede do juízo, quando o ato deverá se dar por
meio de carta registrada, na forma do art. 237, II do CPC. O mesmo tratamento foi dado pelo art.
17 da Lei n° 10.910/2004 aos procuradores do Banco Central e aos integrantes da carreira de
5
Procurador Federal, responsáveis pela representação das demais autarquias e fundações de
Direito Público federais4.
Aos procuradores da Fazenda Nacional foi dado tratamento ainda mais
favorável. Consoante o art. 20 da Lei n° 11.033/04, a sua intimação deverá ser pessoal, mediante
a entrega dos autos com vista.
Como se vê, todas as pessoas jurídicas de Direito Público da esfera federal
foram contempladas com a prerrogativa processual da intimação pessoal. A legislação federal,
todavia, restou silente quanto aos Estados, Distrito Federal, Municípios e suas autarquias e
fundações de Direito Público.
Em vista dessa omissão, seria lícito concluir que essas pessoas não
contariam com essa prerrogativa?
A jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiça entende que
sim, decidindo pela desnecessidade de intimação pessoal dessas pessoas jurídicas de Direito
Público. Argumenta-se que os artigos 6° da Lei n° 9.028/95, 17 da Lei n° 10.910/2003 e 20 da
Lei n° 11.033/2004, não fazem menção a elas e que, “para o bom andamento do Poder
Judiciário, seria dispendioso e demandaria tempo a intimação pessoal em cada Estado e, pior,
em cada Município deste gigantesco país”.5
A 1ª Turma daquela Corte, todavia, em recente julgado, trilhou o caminho
oposto, assentando a aplicabilidade do art. 6° da Lei n° 9.028/95 aos municípios6.
4
Muito embora a exceção do parágrafo único do art. 6° da Lei n° 9.028/95 não esteja prevista na redação do art. 17
da Lei n° 10.910/04, a jurisprudência do STJ vem entendendo ser ela aplicável também ao Banco Central e as demais
autarquias federais. (STJ. 2ª Turma. REsp 709.322/MG. rel. Min. Castro Meira. j. 07.06.2005. DJ 05.09.2005)
5
STJ. 6ª Turma. AgRg no Ag 970.341/BA. Rel Des. conv. Jane Silva. j. 07.10.2008. DJ 20.10.2008. No mesmo
sentido: STJ. 2ª Turma. REsp. 78.175. rel. Min. Adhemar Maciel. j. 24.04.1997. DJ 01.09.1997; STJ. 1ª Turma.
AgRg no AgRg no REsp 489.226/MG. rel. Min. Luiz Fux. j. 14.09.2004. DJ 30.09.2004; STJ. 1ª Turma. AgRg no
EDcl no AgRg no REsp 779.432/MA. rel. Min. José Delgado. j. 17.10.2006. .j. 17.10.2006. DJ 07.11.2006.
6
STJ. 1ª Turma. REsp 785.991/RJ. rel. Min. Luiz Fux. j. 04.03.2008. DJ 07.05.2008.
6
Há, ainda, no seio do STJ, uma terceira corrente, conciliatória das demais,
no sentido de que “nas instâncias ordinárias, é imprescindível a intimação pessoal da União,
dos Estados, do DF e dos Municípios, embora essa providência seja dispensada no âmbito do
STJ”. 7
Ao meu ver, não se justifica a dispensa de um tratamento diferenciado à
Fazenda Pública Federal em detrimento dos Estados, Municípios e suas entidades de Direito
Público.
Com efeito, os fundamentos que justificam a instituição da prerrogativa em
tela para a Fazenda Pública Federal, vistos acima, podem ser invocados com a mesma
propriedade pelas Fazendas Estaduais e Municipais. Não há, assim, um fator de discrimen
razoável que justifique o tratamento desigual entre esses entes.
Ademais, além de violar o princípio da igualdade, a interpretação restritiva
dos artigos 6° da Lei n° 9.028, 17 da Lei n° 10.910/2003 e 20 da Lei n° 11.033/2004, tal como
adotada pela jurisprudência majoritária do STJ, fere frontalmente o pacto federativo, consagrado
nos artigos 1° e 18 da Constituição da República.
A instituição de prerrogativa exclusiva de um dos entes federativos, em
detrimento dos demais, sem qualquer razão que justifique esse tratamento diferenciado,
desequilibra a relação entre essas pessoas políticas, as quais, nos termos da Constituição,
deveriam estar em pé de igualdade.
Tome-se como exemplo situação cotidiana, em que o Estado litiga contra o
INSS. A autarquia federal, por ser representada por procuradores federais, teria a prerrogativa da
intimação pessoal, na forma do art. 17 da Lei n° 10.910/04, enquanto o Estado, Ente Federativo,
seria intimado pela mera publicação do ato processual na imprensa oficial. Nada há que justifique
esse tratamento desigual.
7
STJ. 2ª Turma. REsp 984.880/TO. rel. Min. Herman Benjamin. j. 18.12.2008 DJ 13.03.2009.
7
Como bem explicita Hélio do Valle Ferreira, “entendendo-se lícita a
prerrogativa dada aos procuradores da União, não se encontra justificativa para excluir, do
mesmo regime, os demais advogados públicos, mormente em se considerando que não existe
hierarquia entre os entes que compõem o arcabouço constitucional brasileiro. O gigantismo da
União não justifica a limitação da vantagem, pois sua estrutura administrativa é
proporcionalmente maior”.8
Não é plausível o argumento de que a extensão da prerrogativa da
intimação pessoal às Fazendas Públicas Estaduais e Municipais seria óbice ao “bom andamento
do Poder Judiciário”, uma vez que “seria dispendioso e demandaria tempo a intimação pessoal
em cada Estado e, pior, em cada Município deste gigantesco país”9
De fato, a prerrogativa do caput do art. 6° da Lei n° 9.028/95 só existe
quando a intimação deva ser feita na sede do juízo. Nos demais casos, consoante o parágrafo
único do mesmo dispositivo legal, a intimação deve se dar por meio de carta registrada, na forma
do art. 237, II do CPC. Note-se que, em diversos julgados, o STJ entendeu que tal exceção aplicase também ao art. 25 da Lei n° 6.830/8010, que exige a intimação pessoal da Fazenda Pública nas
execuções fiscais, e ao art. 20 da Lei n° 11.033/0411, que prevê a mesma prerrogativa, mediante a
entrega dos autos com vista, aos procuradores da Fazenda Nacional.
Logo, a extensão da prerrogativa em análise aos Estados, Municípios e suas
entidades de Direito Público não demanda a intimação pessoal em cada Estado e em cada
Município deste “gigantesco país”, uma vez que a própria legislação já elimina tal inconveniente
ao prever a carta registrada como meio de intimação fora da sede do juízo.
Ademais, a objeção tende a desaparecer a medida em que for sendo
implementado o sistema de intimação por meio eletrônico, nos termos do art. 5° da Lei n°
8
FERREIRA, Hélio do Valle. Manual da Fazenda Pública em Juízo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 35.
STJ. 6ª Turma. AgRg no Ag 970.341/BA. Rel Des. conv. Jane Silva. j. 07.10.2008. DJ 20.10.2008.
10
v.g, STJ. 1ª Turma. AgRg no REsp 837.189/RS. rel. Min. Luiz Fux. j. 09.09.2008. DJ 29.09.2008; STJ. AgRg no
Ag 1.019.358/GO. rel. Min. Eliana Calmon. j. 12.08.2008. DJ 08.09.2008.
11
v.g, STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp 1.037.419/RS. rel. Min. Humberto Martins. j. 18.12.2008. DJe 16,02.2009; STJ
1ª Turma. EDcl no REsp 946.591/RS. rel. Min. Denise Arruda. j. 18.03.2008. DJe 28.04.2008.
9
8
11.419/2006, uma vez que, nos termos do § 6° desse mesmo dispositivo, “as intimações feitas na
forma deste artigo, inclusive da Fazenda Pública, serão consideradas pessoais para todos os
efeitos legais”.
No que toca ao art. 20 da Lei n° 11.033/2004, que, como já se disse, prevê
que os procuradores da Fazenda Nacional devem ser intimados pessoalmente, mediante entrega
dos autos com vista, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão proferido em
08.03.2005, sinalizou contra a exclusividade daquela carreira no que diz respeito a tal
prerrogativa, haja vista a falta de justificativa para a exclusão dos demais advogados públicos.
Com efeito, no julgamento do EDcl no REsp 531.308/PR12, assim se manifestou a relatora,
Ministra Eliana Calmon, no voto condutor do acórdão:
Observa-se que o dispositivo legal agride o princípio da igualdade das
partes, mesmo se consideradas aquelas que, por lei, são tidas como
especiais, tais como Ministério Público, Defensoria Pública, AdvocaciaGeral da União, ou no geral, a representação das Fazendas Públicas,
incluídas na expressão as autarquias e as fundações públicas, federal,
estadual e municipal.
A quebra da identidade e da igualdade, em privilégio para a FAZENDA
NACIONAL, apenas, agride a Carta Maior na medida em que só se torna
possível a obediência ao devido processo legal quando se observa o
princípio da igualdade das partes. E a igualdade, que se constitui como
princípio do processo, não vai ao ponto de exigir igualdade formal, e sim,
substancial. Daí o reconhecimento quanto a diferenças de certas e
determinadas partes, como sói e acontecer com a Fazenda Pública.
Entretanto, o que não pode ser admitido é haver diferença entre as
Fazendas, em privilégio exclusivo para a FAZENDA NACIONAL, sem
que esteja explicitada na Constituição a natureza de tal privilégio.
12
STJ. 2ª Turma. EDcl no REsp 531.308/PR rel. Min. Eliana Calmon. j. 08.03.2005. DJ 04.04.2005.
9
Evidentemente, o mesmo raciocínio pode ser estendido às prerrogativas
previstas nos artigos 6° da Lei n° 9.028/95 e 17 da Lei n° 10.910/04.
Ocorre que, no aresto acima transcrito, ao invés de concluir pela extensão
da prerrogativa aos advogados da União, aos procuradores federais e às demais Fazendas
Públicas, a 2ª Turma, em face do tratamento desigual apontado, entendeu de maneira
diametralmente oposta, concluindo pela inconstitucionalidade do próprio art. 20 da Lei n°
11.033/2004 e suscitando incidente de inconstitucionalidade perante a Corte Especial do STJ13.
Semelhante solução foi ventilada em sede doutrinária por Hélio do Valle Ferreira, muito embora
não tenha o autor manifestado sua adesão a esse entendimento.14
A questão passa por dilema bastante conhecido no âmbito da jurisdição
constitucional, como bem explica Gilmar Ferreira Mendes:
“Tem-se uma exclusão de benefício incompatível com o princípio da
igualdade se a norma afronta ao princípio da isonomia, concedendo
vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem
contemplar outros que se encontram em condições idênticas. Essa
exclusão pode verificar-se de forma concludente ou explícita. Ela é
concludente se a lei concede benefícios apenas a determinado grupo; e
explícita, se a lei geral, que outorga benefícios a certo grupo exclui sua
aplicação a outros segmentos. Abstraídos os casos de exigência
constitucional inequívoca, a lesão ao princípio da isonomia pode ser
afastada de diversas maneiras: pela supressão do próprio benefício; pela
inclusão dos grupos eventualmente discriminados ou até mediante a edição
de uma nova regra, que condicione a outorga de benefícios à observância
de determinados requisitos decorrentes do princípio da igualdade”.15
13
O referido incidente de inconstitucionalidade até hoje não foi julgado.
Ob. Cit. p. 35/37.
15
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva,2004. p. 242/243.
14
10
Trata-se, ainda no dizer do Ministro Gilmar Mendes, de hipótese de
inconstitucionalidade relativa, quando “inconstitucional não se afigura a norma ‘A’ ou ‘B’, mas
a disciplina diferenciada das situações”.16
Examinando o tema, Luís Roberto Barroso também prevê três soluções
para a situação em tela, sendo elas a declaração de inconstitucionalidade por ação da lei que criou
a desequiparação, a declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial da lei, com ciência
do legislador para tomar as previdências necessárias, e a extensão do benefício à categoria dele
excluída. Em seguida, faz as seguintes observações sobre tais alternativas:
“A primeira solução, embora encontre amparo na ordem constitucional,
traria o inconveniente de universalizar a situação desvantajosa, ao invés
de beneficiar os excluídos. É claro que, se a desequiparação fosse pela
criação de um ônus para determinada categoria, e não um benefício, a
declaração de inconstitucionalidade seria solução indiscutível. A segunda
possibilidade já foi acolhida no Brasil em sede de ação direta de
inconstitucionalidade, mas sem fixação de prazo para o legislador. A
terceira enfrenta dificuldades relativamente a princípios como separação
de Poderes, legalidade, orçamento e reserva do possível. A posição
tradicional da jurisprudência no Brasil é a de rejeição de pleitos dessa
natureza com base na Súmula 339 do Supremo Tribunal Federal, que,
todavia, abriu uma controvertida exceção a sua própria jurisprudência”.17
Percebe-se que toda a perplexidade que envolve o tema deve-se, como bem
notado por Luis Roberto Barroso no trecho acima citado, à dificuldade encontrada pelo intérprete
em dar eficácia ao princípio da igualdade quando se tem, de outro lado, óbices relativos “a
princípios como separação de Poderes, legalidade, orçamento e reserva do possível”.
16
Idem. p. 244.
BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,
2006. p. 37/38.
17
11
Com efeito, no mais das vezes em que o Supremo Tribunal Federal
enfrentou a questão, o fez sob o foco em situações relativas a isenções tributárias ou à
remuneração de servidores públicos, matérias submetidas ao princípio da legalidade fechada e
com sérias repercussões orçamentárias, o que, salvo em casos excepcionais, impede que a
isonomia ofendida pela lei relativamente inconstitucional seja restaurada por meio da extensão do
benefício aos sujeitos injustamente dele excluídos.
Não é o caso, contudo, dos dispositivos legais aqui tratados. A par de a
matéria não estar sujeita ao princípio da tipicidade fechada, a extensão da prerrogativa de
intimação pessoal às Fazendas Públicas Estaduais e Municipais não sofre quaisquer limitações de
ordem orçamentária, não sendo a ela óbice, pois, o raciocínio do qual derivou a Súmula n° 339 do
STF.
Portanto, mormente considerada a razoabilidade da prerrogativa, não
parece ser o caso de se sanar a desigualdade criada pelos artigos 6° da Lei n° 9.028/95 e 17 da
Lei n° 10.910/03 e art. 20 da Lei n° 11.033/04 por meio da declaração de inconstitucionalidade
desses dispositivos, como aventado no EDcl no REsp 531.308/PR, mas sim mediante a sua
interpretação extensiva, ou analógica, a fim de incluir em seu âmbito de aplicação as Fazendas
Públicas Estaduais e Municipais.
Assim, também os Estados, Municípios e suas autarquias e fundações de
Direito Público devem ser intimadas pessoalmente de todos os atos do processo, ressalvada a
hipótese do parágrafo único do art. 6° da Lei n° 9.028/95.
Com essa mesma ressalva, quando estiverem litigando em causas fiscais –
nas quais, a nível federal, a representação da União cabe a Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional – a intimação pessoal dos Estados e Municípios18 deve ser feita mediante entrega dos
autos com vista.
18
Ressalvado o meu posicionamento pessoal, não é possível estender essa prerrogativa às autarquias e fundações de
Direito Público, haja vista o raciocínio que orientou a edição da Súmula n° 620 do STF: “A SENTENÇA
PROFERIDA CONTRA AUTARQUIAS NÃO ESTÁ SUJEITA A REEXAME NECESSÁRIO, SALVO QUANDO
SUCUMBENTE EM EXECUÇÃO DE DÍVIDA ATIVA”. Muito embora contra esse entendimento possa se invocar o
12
3. PRERROGATIVA DE INTIMAÇÃO PESSOAL DA FAZENDA PÚBLICA E A
COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE DOS ESTADOS-MEMBROS
A par da legislação federal acima examinada, vários Estados-Membros
possuem legislação prevendo a sua prerrogativa de intimação pessoal19.
Com
base
nessas
legislações,
já
há
inclusive
reconhecimento
jurisprudencial20 da necessidade de os Estados contemplados serem intimados pessoalmente,
como, v.g, fazem ver os seguintes acórdãos:
Agravo de instrumento interposto contra decisão que deixou de receber
recurso de apelação interposto pelo Estado Agravante por considerá-lo
intempestivo. Decisão que tomou como termo inicial da contagem do prazo
para interposição do apelo a data da publicação da sentença no Diário
Oficial. Procuradores do Estado que têm prerrogativa de intimação
pessoal (LC 15/1980, art. 44, IV), devendo, na hipótese, ser considerado
como termo inicial do prazo a data em que a Procuradoria do Estado
retirou os autos em cartório, suprindo a necessidade de intimação
pessoal. Apelo tempestivo. Provimento do recurso para determinar o
recebimento e regular processamento do apelo interposto pelo Estado
Agravante.21
Processo civil - Embargos de declaração - Agravo de Instrumento Ausência de intimação pessoal da Fazenda Pública - Nulidade do acórdão
princípio da igualdade, a tese perde força na medida em que lhe falta o argumento acerca do princípio do pacto
federativo, uma vez que, no ponto, o tratamento legal dado às administrações indiretas Federal, Estadual e Municipal
é a mesmo.
19
v.g, Lei Complementar n° 27/96 do Estado de Sergipe , art. 88, VI; Lei Complementar n° 15/80 do Estado do Rio
de Janeiro, art. 44, IV; Lei n° 8.207/02 do Estado da Bahia, art. 58, III; Lei complementar n° 07/91 do Estado de
Alagoas, art. 81, VI.
20
Cf. Provimento n° 22/2008 da Corregedoria do TJAL e o Provimento n° 09/2009 da Corregedoria do TJSE.
21
TJRJ. 15ª Câmara Cível. AI n° 29105/2007. rel. Des. Galdino Siqueira Netto. j. 26.08.2008.
13
n.º.I - As intimações dos despachos, decisões e sentenças nos processos em
que seja parte o Estado de devem ser pessoais; II - In casu, resta claro que
a intimação do Estado foi feita através de publicação no Diário da Justiça,
pelo que deve ser anulado de ofício o acórdão ora embargado.22
A objeção que se poderia fazer a essas legislações é que a Constituição da
República, em seu art. 22, I, outorga à União competência privativa para legislar sobre direito
processual. Assim, as leis estaduais que prevêem a necessidade de intimação pessoal da Fazenda
Pública Estadual estariam invadindo a competência legislativa da União, sendo, portanto,
inconstitucionais.
Ocorre que, não obstante a norma do seu art. 22, I, a Constituição da
República também outorga aos Estados-Membros e ao Distrito Federal competência legislativa
concorrente para legislar sobre procedimentos em matéria processual (art. 24, XI).
Não é tarefa fácil delimitar com exatidão as fronteiras entre o campo do
direito processual e o afeito aos procedimentos em matéria processual. O Supremo Tribunal
Federal, muito embora já tenha se pronunciado algumas vezes sobre o tema23, o fez de forma
casuística, não tendo elaborado uma regra geral que permitisse ao intérprete verificar com
segurança os limites da competência legislativa privativa da União e os da competência
concorrente daquele ente federativo, dos Estados-Membros e do Distrito Federal.
A própria distinção entre processo e procedimento não é das mais simples,
gerando há longa data polêmicas de ordem doutrinária. Segundo a corrente mais aceita no Direito
Brasileiro, “o procedimento é, nesse quadro, apenas o meio extrínseco pelo qual se
instaura,desenvolve-se e termina o processo; é a manifestação extrínseca deste, a sua realidade
fenomenológica perceptível. A noção de processo é essencialmente teleológica, porque ele se
22
TJSE. 2ª Câmara Cível. EDcl 0297/2004. rel. Des, Marilza Maynard. j. 13.09.2004.
STF. Pleno. ADI-MC 1.285/SP. Rel. Min. Moreira Alves. j. 25.10.1995. DJ 23.03.2001; STF. Pleno. ADI 1.916 –
MC/SC. rel. Min. Nelson Jobim. j. 11.02.1999.DJ 26.10.2001; STF. 2ª Turma. AI 210.268 AgR/SC. rel. Min. Marco
Aurélio. j. 28.08.1998. DJ 30.10.1998; STF. Pleno. ADI 2.257/SP. rel. Min. Eros Grau. j. 06.04.2005. DJ
26.08.2005. STF. Pleno. ADI-MC 4.161/AL. rel. Min. Menezes Direito. j. 29.10.2008. DJ 16.04.2009.
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caracteriza por sua finalidade de exercício do poder (no caso, jurisdicional). A noção de
procedimento é puramente formal, não passando da coordenação de atos que se sucedem.
Conclui-se, portanto, que o procedimento (aspecto formal do processo) é o meio pelo qual a lei
estampa os atos e fórmulas da ordem legal do processo”.24
O direito processual, dessa forma, versaria aspectos da relação jurídica
processual, enquanto a matéria procedimental diria respeito acerca da forma em que se revestem
os atos processuais. Não foi outra a conclusão do Ministro Eros Grau, relator da ADI-MC n°
2.257, em seu voto:
“Assim, a competência legislativa concorrente dos Estados-Membros deve
se restringir à edição de leis que disponham sobre matéria procedimental,
isto é, sobre a sucessão coordenada dos atos processuais, no que se refere
à forma, ao tempo e ao lugar de sua realização, e com o cuidado de não
usurpar a competência da União para legislar sobre normas de caráter
geral”.25
Não parece absurdo, pois, sustentar que a forma das intimações processuais
é matéria procedimental, e não processual, haja vista que se refere não à relação processual em si,
mas meramente à forma com que essa relação se expressa.
Logo, as legislações dos estados que, ao complementarem as normas gerais
estabelecidas pela União, disciplinam a forma específica em que a Fazenda Pública Estadual deve
ser intimada, conferindo-lhe a prerrogativa de intimação pessoal, manifestam o exercício da
competência concorrente dos Estados-Membros outorgada pelo art. 24, XI da CF.
Com essa tese anui Arruda Alvim, que, em seu Manual de Direito
Processual Civil, afirma que “ normas procedimentais não gerais seriam as que estabelecessem
24
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral
do Processo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 277.
25
STF. Pleno. ADI-MC 4.161/AL. rel. Min. Menezes Direito. j. 29.10.2008. DJ 16.04.2009.
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novas formas de citação ou intimação, normas respeitantes a cartas precatórias, as cartas de
ordem etc”.26
São válidas, pois, as normas legais estaduais que conferem aos Estados a
prerrogativa da intimação pessoal, devendo ser observadas pelo Poder Judiciário27 dentro do
território desses entes federativos.
4. CONCLUSÕES
01) Por força do princípio da igualdade e do pacto federativo, a prerrogativa de intimação pessoal
conferida à Fazenda Pública Federal pelos artigos 6° da Lei n° 9.028/95, 17 da Lei n°
10.910/2003 e 20 da Lei n° 11.033/2004 aplica-se às Fazendas Públicas Estaduais e Municipais.
02) São válidas as leis estaduais que, no exercício da competência concorrente prevista pelo art.
24, XI da CF, prevêem a prerrogativa de intimação pessoal para a Fazenda Pública Estadual.
26
ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Parte Geral. v. 1. 6. ed. São Paulo:Revistas dos Tribunais,
1997.
27
Cf., acerca da aplicação no âmbito da Justiça Federal das legislações estaduais sobre procedimentos em matéria
processual, ALENCAR, Luiz Carlos Fontes de. Procedimentos estaduais em matéria processual e os feitos da
Justiça Federal. In Revista CEJ v. 2. n°. 5.mai/ago 1998.
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