demos pensar nesta diferença de modos de ver que há entre a arte e a ciência. “A ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las”. 28 A ciência utiliza instrumentos, tecnologia, e faz do mundo um Objeto em Geral, destinado a ser apenas aquilo que lhe é permitido ser pelas “operações” que o construíram. Mas Merleau-Ponty vai ainda mais longe nesta reflexão: “Dizer o que mundo é por definição nominal o objeto x de nossas operações é levar ao absoluto a situação de conhecimento do cientista, como se tudo o que existiu ou existe jamais tivesse existido senão a partir de um laboratório”. 29 Por outro lado, ele também denuncia a própria filosofia – a filosofia das ciências -como ele nomeia. Acompanhando o pensamento do filósofo francês admitimos pensar que, se por um lado a ciência constrói um mundo como Objeto em Geral, por outro a filosofia erige-se um Sujeito, que “vê” o mundo como de sobrevôo ou, usando os termos merleau-pontianos, como um puro “olhar desencarnado”, dominando-o por meio da representação constituída pelas faculdades do Entendimento. Afirmar isso, nada mais é que reconhecer o caminho tomado pela filosofia nos últimos séculos, instituindo modelos, sistemas, métodos para se chegar à verdade. A filosofia da Consciência precisa ser reexaminada enquanto projeto de objetivação, podemos mesmo dizer, de coisificação do real. A vontade de apreender o mundo racionalmente nos faz negligenciar o modo como as coisas aparecem para nossos olhos. A pedra não é a idéia que dela construímos, a montanha não é o conceito que dela fazemos, o mundo não é somente objeto de conhecimento – uma representação - como também não é a função das operações mentais do sujeito do conhecimento. O mundo se impõe, se modifica por si mesmo e não depende do nosso saber em relação a ele para ser e se transformar. Mundo e corpo fazem parte do mesmo Ser. Merleau-Ponty sustenta que o mundo não se encontra aos pés da Filosofia para que esta possa dar o seu “ponto de vista”, e por isso mesmo ele se aproxima do artista. Afinal, como diz Merleau-Ponty em O Olho e o Espírito, lembrando uma célebre frase de Paul Valéry: “é emprestando seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura”30. A arte, especificamente a pintura, tem uma outra “urgência”. O artista não trabalha com modelos que lhes garantam o acesso ao objeto. Cézanne desejava pintar a fonte impalpável da sensação porque “a Natureza está no interior” 31. O pintor não manipula as coisas e sim as desloca ou maneja em sua “ruminação do mundo” 32. E, como diz Merleau-Ponty, ele o faz “sem outra ‘técnica’ senão aquela que seus olhos e suas mãos se dão graças ao ver, graças ao pintar” 33 . Ele vê o mundo, não como um Objeto em Geral, pois ele precisa estar no mundo para que o mundo se faça quadro. Se, como diz Válery, o pintor empresta seu corpo para fazer o mundo se transformar em pintura, é porque ele faz do seu corpo algo operante entre as coisas, e não fora delas. O mundo não está fora, mas faz parte do “mesmo tecido” do mundo, e por isso mesmo não posso querer ver o mundo “do alto”, como um soberano, mas sim, ver do meio dele. É oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor faz do mundo pintura. Isto quer dizer que, tal como entendemos em Merleau-Ponty, a percepção se faz não apenas através do corpo e de seus órgãos, mas com ele. O corpo é este entrelaçado de visão e movimento, pois, como lemos em O Olho e o Espírito, “o que seria a visão sem nenhum movimento dos olhos? 34”. É a visão que fundamentalmente guia o corpo no espaço e, à medida que o olhar se desloca para um objeto, ele impulsiona o movimento do corpo até o mesmo. Como escreve Merleau-Ponty: “É verdade que a visão depende do movimento. Só se vê o que se olha. (...) Todos os meus deslocamentos figuram por princípio num canto de minha paisagem, são reportados no mapa do 28 29 30 31 32 33 34 MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Espírito, op.cit., p. 13. MERLEAU-PONTY, M. Ibid, p. 14. MERLEAU-PONTY, M. Ibid, p.15 MERLEAU-PONTY, M. Ibid, p.18 MERLEAU-PONTY, M. Ibid, p. 15 MERLEAU-PONTY, M. Ibid, p. 15 MERLEAU-PONTY, M. Ibid. 16