merleau-pontiano evoca a arte como um meio de ensinar a filosofia pensar 14, aceitando esta nova possibilidade de “ver”. Se nos demoramos nestas palavras da citação, notamos que a “descoberta” merleau-pontiana da pintura de Cézanne consiste no fato de que não há corte entre “sentidos” e “inteligência”. Não existe na sua pintura uma norma lógica tirada do pensamento contemplativo. O pintor escapa às alternativas “prontas”, seja de um pintor que vê e posteriormente pinta, seja do pintor que pensa o que pintar e nas pinceladas “pensadas” faz surgir o quadro. Ele (Cézanne) não quer apenas representar as suas experiências. A percepção que Cézanne busca e pinta já são experiência e expressão. Quando o pintor afirma que a Natureza está no interior e que ele pensa em pintura (isto é, pintar é uma maneira de pensar), ele não faz outra coisa senão celebrar o mistério do sensível e do corpo como reflexão. Notemos aqui que não há privilégio do sujeito, da consciência, como antes. O campo da manifestação artística se faz no mundo sensível e no corpo sensível, como ao longo de nosso estudo vamos percebendo. No livro Experiência do Pensamento 15, Marilena Chauí diz que o encontro de Merleau-Ponty com a arte se desdobra em uma ontologia do trabalho da arte. 16 A incansável tentativa de olhar a pintura não vem com a necessidade de falar dela, mas sim, aprender essa “ciência secreta” que desvela o secreto e nos faz compreender o invisível a que, sem ela, não teríamos acesso. Em sua filosofia, sentimos que a pintura tem outra “função” e que o trabalho de quem pinta mostra que é possível “dizer” mais diretamente que com palavras. Que ir às próprias coisas não se limita a falar delas, isto é, às palavras, as quais visam um real já determinado seja pela História, seja pela Sociologia, ou pela Filosofia, mas que é antes de tudo “dar voz” às coisas, ser capaz de revelar o sentido do mundo, estando nele. Ao acumular um sistema de signos, o olhar do artista vem reclamar a presença de um sujeito angustiado, um sujeito que desafia o desconhecido. A arte não pretende explicar o mundo, mas transformar sua imagem e aprofundar seu enigma. Ela tem como tema a essência da linguagem, uma linguagem inquietante e contraditória, cercada de incertezas, que são as próprias incertezas do homem diante de seu destino. Merleau-Ponty reconhece este “ensinamento” despretensioso do trabalho do pintor e admite pensar numa filosofia que trabalhe assim como o artista. Em uma de suas notas de O Visível e o Invisível, ele diz o seguinte: “Meu ponto de vista: Uma filosofia como uma obra de arte, um objeto que pode suscitar mais pensamento que os nela estão contido (podem-se enumerar? Pode-se desmembrar uma linguagem?), que conserva um sentido fora de seu contexto histórico, que não tem mesmo sentido a não ser fora desse contexto”. 17 Nesta surpreendente citação vemos que o filósofo pretende aprender com aqueles que tateiam em torno do objeto, sem já determiná-lo. Ora, como vimos, Merleau-Ponty reconhece que o trabalho da fenomenologia mantém uma íntima relação com o trabalho laborioso de Proust, Cézanne, como ele já afirmava ao final do Prefácio de Fenomenologia da Percepção. E o motivo, como ele bem admite, é que, assim como as artes, a filosofia aspira a apreender as coisas e a história em seu estado nascente. Ele “re-conhece” que uma pintura manifesta a expressão das coisas, e que como dizia Cézanne, “a expressão daquilo que existe é uma tarefa infinita”18. O olhar que o pintor tem para o mundo, Merleau-Ponty o compreende como a “redescoberta” em que o olhar se faz ab14 Quando dizemos que a pintura ensina a filosofia a pensar, queremos enfatizar que não há, na história da filosofia, melhor resposta ao veredicto de Platão no livro X da República que o ensaio O Olho e o Espírito. A pintura alcança com MerleauPonty a mesma potência que a filosofia. Ele nos ensina que a pintura não serve somente como um objeto análogo às disciplinas filosóficas e, sim, que ela uma “igual” da filosofia. Em O Olho e o Espírito, é possível admitir que nenhum saber comanda e que é preciso que a filosofia fique atenta a isso em sua observação da pintura, para não cair na tentação de legitimá-la nem como o saber mais necessário, nem como a ciência capaz de prover a “validação” de todos os nossos conhecimentos. 15 CHAUÍ, Marilena. Experiência do Pensamento. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 16 Esta idéia é também explicitada no trabalho de Marilena Chauí. A partir desta “idéia” podemos acompanhar melhor a incansável tentativa de compreender o pintor e a “ruminação do mundo” que ele realiza através de seus quadros. 17 MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível, op.cit.,p. 188. 18 MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Espírito, op.cit, p. 131.