Câmara Municipal de Redondo
Prémio Literário Hernâni Cidade 2000
A Primeira Vitória do Pequeno José
Andava, há quantas voltas de relógio, a olhá-lo, a tirar-lhe, de alto a baixo, as
avantajadas medidas, grande que nem castelo de cidade ou mais e uma misturação de
espanto, curiosidade e receio o atazanava – espanto, por todo aquele tamanho;
curiosidade, que não sabia como seria ele, visto por dentro e do coruto mais cimeiro
nem, também, porque razão andava toda a gente sempre a falar nele e a puxar, a puxar,
por ele acima; receio, de que alguma coisa houvesse por lá que o levasse a bater
contrafortes no rabo, num adeus-que-me-vou-embora, mais lesto que lebre assoberbada
com serviço de espingarda. Por tudo isto, o Monte havia-se-lhe aferrado no toutiço. Às
vezes, quando as sombras da noite se aquietavam e adormeciam, até o via entrar, pelo
quarto dentro, com umas grandes asas, onde ele depois voava escarranchado. De dia, era
aquele verdinorme – verdimenso, verdemanso – que o não deixava sossegado e, mal se
lembrava dele –
zás…
logo
o
coração
lhe rompia em
desassossegados
descompassos…A Senhora-Professora dissera uma vez que «o Monte esconde tesouros
para os olhos… tesouros de cor. De luz. Ede vistas sobre o Vale e sobre as Aldeias, até
agarrar o céu, lá longe, do outro lado. Havemos, um dia, de lá ir todos…e até de levar
almoço…». Foi desde aí que o Monte nunca mais se lhe varreu e que a vontade de lá ir
se tornou um espinho demasiado desapiedoso que até chegava a ferrar-lhe, como se
fosse pulga ou coisa… Afinal, se toda a gente lá ir, diz…». Nà…, deixassem que não
deixassem, houvesse o que houvesse, o Monte não lhe havia de escapar…
…Até que numa bela noite primaverosa de Maio, decide…, «se, amanhã de
manhãzinha, não fores capaz de lá ir, atão não és aquele home valente que toda a gente
diz…». Deita-se e fica a cozer com os botões, a melhor maneira de o fazer – às voltas,
sem encontrar posição, como se, de-repente, a cama lhe ficasse cheia de picos e tivesse
de arranjar um sitio por entre eles, onde o corpo lhe dormisse. Por fim, cai pelo sono
abaixo e, no outro dia, ainda a manhã dorminhocava aí vai ele, Monte acima, sobe que
sobe, olhos a procurarem os melhores carreiros, coração aos pulos até as pernitas lhe
começarem a refilar e ter de parar um bocadinho. O Sol acendia as cores num pronto-jáestá e o Monte começava a ficar-lhe, cada vez mais à volta e cada vez mais verdilindo.
A olhar, a olhar, para todo o lado, cai e esfola um joelho. Pára e fica a ver aquele
fiozinho vermelho que lhe vai escorrendo, devagar. Esfrega-o, põe-lhe cuspo e ala
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moço: aí vai ele outra vez, Monte acima, com mais desembaraço ainda. Sentia, contudo,
agora, uma coisa nova e estranha… Seria medo?...Medo de cair nalgum buraco?... A
Mãe andava sempre a dizer que «ainda um dia me hás-de cair praí nalgum buraco…»…
Ou de algum lobishomem, daqueles que a Avó contava, filhos de homem e loba, maus
como as cobras, que se atiravam às pessoas e as mordiam todas?... No fim, a Avó dizia
sempre, que não havia lobishomem, que aquilo era tudo histórias a brincar… A Avó
sabia brincar ao faz-de-conta… A Avó sabia brincar… a Avó sabia tudo. Por isso é que
nunca falava: só dizia!... E o mor das vezes era com os olhos, com a cara, com as mãos
e eram palavras novas e clarilindas…A Avó era mesmo uma descoitada: não estragava
as palavras a falar. A Senhora-Professora era outra…mas não se lh’acomparava… a
Senhora-Professora tinha de se pôr primeiro a chamá-las… tinha primeiro, de abrir os
braços, estender as mãos, baixar os ouriços dos olhos, como quem dorme, ou como
quem sonha… e sorrir, sorrir… só assim é que elas vinham, todas riscadinhas a lápisde-cor, com muito Sol a morder-lhes as revirações e os acentos… A Senhora-Professora
também era uma descoitada, porque dizia as coisas sem partir as palavras aos fanicos e
depois as pintavva, a sorrir, a lápis-de-cor e a Sol, mas a Avó ainda era mais, porque a
Avó nunca deixava queimar as palavras ao lume… a Avó sabia que as palavras não
eram para se deixar queimar ao lume e por isso é que nunca precisava de as chamar:
elas é que vinham… Era só acender nos olhos aqueles bulícios-ainda-de-menina e
pronto: aí vinham elas – as palavras clarilindas… Uma vez ia com ela… e estavam os
dois indo, quando de repente, lhe salta uma pedra ao caminho. Depois o chão começou a
subir-lhe, muito depressa, direito ao nariz e vai a Avó joga-lhe a mão e zás: o chão
parou… A Avó mandou parar o chão e o chão parou. Bastou dizer-lhe com a mão que
parasse e logo ele se foi abaixo A Avó tinha as palavras na mão e fazia o queria delas…
A Tia é que não… a Tia, mal chegava – zás: logo começavam elas, numa correnteza
desvagarosa, a coxear, a tropeçar, troc-laroc, treco-lareco, aos baldões arrepelados, até
toda a gente se escapulir devagarinho… A Tia dizia que tinha de falar assim, muito
depressa, se não esquecia-se… A Senhora-Professora dizia que a Tia era boa pessoa,
coitada, mas o que tinha ea um grande todavia: as palvras não se lhe aguentavam na
cabeça nem pra dizer ai Jesus… e depois saíam, assim, a trote, ao deus-dará. A Avó
também dissera uma vez «olha lá Ó Zé…entre esta tua tia e as palavras deve haver
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alguma coisa…Nà!...De certeza que tem de haver uma questão qualquer… E assim
nunca mais se entendem…»A Avó tinha razão…«é que as palvars, lá entrar,
entravam…, mas, ou não atinavam com o sítio ou não sei… e pronto: mal entravam,
logo saíam que nem foguete, sem tempo para dizer ao Jesus, quanto mais pra descansar
um cisquinho…» A Senhora-Professora dizia que a Tia, coitada, era boa pessoa, só que
era um bocadinho atrasada mental, que era uma raça duma doença tão danada que nem
com chás ia…«Tu e a tua Avó é que não!... Vocês saíram-me, mas é, uns
grandecíssimos adiantados mentais!...» Ficou calado a pensar, a ver se percebia e vai a
Senhora-Professora e diz-lhe «deixa lá, não te rales, que isso até é bom…são os
adiantados mentais que fazem pular o mundo prà frente e esse é que ficam na
História…» e que ele, um dia, também havia, de ser um deles… Seria verdade?...
Como raio é que isso, atão, havia, um dia, de poder ser? Parecia-lhe assim uma
coisa um bocado fora de mão… uma coisa do outro lado… lá muito ao longe…A Avó,
sim, agora ele… Ele às vezes até perdia palavras clarilindas!... …E quando se perde
uma palavra clarilinda nunca mais a gente a agarra… As palavras clarilindas nunca se
podiam perder e a única maneira não era a gente andar praì a jogá-las ao ar … a única
maneira era a gente agarrá-las, muito bem agarradinhas ao papel, e atão, sim… é que
elas nunca mais fugiam! O pior é que ele ainda só sabia arrumar no papel muito
poucachinhas palavras clarilindas e assim não dava… A Senhora-Professora disse que
para o ano já ele era capaz de fazer ditados e tudo… atão é que ia ser… A SenhoraProfessora estava sempre a dizer coisas… e lá ia percebendo-as…, agora aquela coisa
do «adiantado mental» é que ainda lhe andava às voltas no bestunto à précura do seu
lugar dela…Tamém não percebia lá muito bem aquilo de «ficar na História»… pela
maneira como ela dizia, devia ser uma coisa boa…, mas a verdade é que era a primeira
vez qie ouvia falar em semelhante lugar e não sabia nem onde ele ficava nem como se
podia ir pra lá… Seria por via de tudo isso que a Senhora-Professora o deixara entrar na
Escola? A principio ela dissera que não… que só com quatro anos era mesmo
impossível. Podia vir, lá de Lisboa, um senhor qualquer coisa e pôr-se a ralhar… Aos
seis é que era…A Mãe tinha lá ido pedir «Ó Senhora-Professora veja lá se m’aceita o
cachopo... é que ele é memo arraçado de coelho maltês: nunca pára quedo… A gente
abala de manhãzinha e só torna à noite… não o pode levar… e depois ninguém quer
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ficar com ele, porque é muito desinquietoso…tenho medo… ainda um dia se me vai cair
praì nalgum poço…» A Senhora-Professora ficou um bocado calada e depois disse
«Bem…vamos a ver!..., Olhe, traga-mo cá um dia destes para eu falar primeiro com
ele… e depois logo se vê...»… E assim foi…Um dia, a Mãe levou-o e deixou-o lá ficar
sozinho, um ror de tempo, a falar com a Senhora-Professora. No fim, ela pôs-lhe a mão
na cabeça e disse muito séria, «bom… diz lá então à tua mãe que sempre podes vir, mas
olha que tens de te portar bem, ouviste?... Se te portares mal, tens de te ir
embora…Agora vê lá…» Então fechou os olhos… Palavras tão clarilindas nunca tinha
ouvido… e como ele gostava de ir prà Escola… Depois a Senhor-Professora avisou-o
que tinha de arranjar um caderno, um lápis, uma borracha, um livro e lápis-de-cor, «…
olha!... E já agora diz lá, também à tua mãe que não se esqueça de te mandar o
almoço…» Agora é que ia ser como os outros rapazes que ele via passar, de
manhãzinha, com a mala e o cesto na mão… Então perguntou-lhe « Ó SenhoraProfessora, e posso trazer o pião?» e ela disse «podes» e ele tornou: «e as biscócias
para armar aos pássaros?» e ela respondeu «isso, não?... Então tu julgas que isto aqui
é algum campo ou alguma horta ou quê? Deixa, mas é, os passarinhos sossegados, a
brincar… Não se deve fazer mal aos passarinhos, ouviste?...» E foi assim…
A falar com os seus botões, chegara ao coruto quase sem dar por isso… Olha,
então, a toda a volta e fica espantasiado… «Espantástico!», grita, e o grito repete-seuma, duas mil vezes – pelas dobras todas da serra. A princípio, assusta-se. Nunca tal
ouvira… até parecia mesmo que o estavam a chamar de todos os cantos do mundo…
Depois solta-se-lhe o riso, em gargalhadas reboludas e desabotoadas… Os montes todos
a falar com ele, a arremedá-lo, como se estivessem a brincar. Então volta a gritar – um
ror de vezes…- e os montes sempre a responderem-lhe. Coisa assim, nunca tal vira… E
as gargalhadas a rebolarem, a rebolarem, ribanceira abaixo… Depois fica a olhar para
todos os lados, a ver tudo de-repente, dá novo grito: «Eia, as aldeias todas ao mesmo
tempo!...» Aquilo era demais… Lá estava o céu, a toda a volta, azultando, tal e qual
como se fosse um grande telhado sobre a terra. Enxerga então a sua aldeia … «lá está
ela! Lá está ela! É aquela! É aquela, a mais fundeira!...» e que bonita que ela não era
vista dali, tão pequenina, que mais parecia uma aldeia de brincar… O Sol bate-lhe agora
de chapa, com força, até os olhos se lhe fecharem, cheios de luzinhas… Está
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esfusilirante… Entretanto, chega-lhe a sede. Procura então uma nascentezinha
qualquer… Tinha ouvido dizer que o Monte estava cravadinho delas e com água bem
fresquinha, mais leve que o algodão… Olha que olha, lá descobre uma, donde corriam,
Monte abaixo, carreirinhos de fios de água… Exclama, dedo apontante, …«Uma fonte!»
e lá vai a correr. Enche a colher da mão com aquela aguinha tão brilhosa e clarilinda e
bebe uma vez e outra, até não haver mais vezes… O Monte estava uma festa que só
visto… O Monte também era um descoitado, porque sabia falar com o Sol, com as
Ramas, com as Nascentes e com os Passarinhos, sem desencaminhar as palavras nem ter
de as engaiolar para elas não fugirem… No Monte, as palavras eram todas clarilindas e
andavam por ali à solta, sem ser preciso fugir… Senta-se, por fim, numa pedra e ali fica,
a olhar mais uma vez, para todo aquele Vale. Lá estava, ao fundo, sua Aldeia… A sua
Aldeia que já bom tempo era passado que dela viera… Que horas seriam?... Melhor
seria que voltasse. Não que estivesse com medo. Podia-se lá ter medo dum Monte
daqueles, tão descoitado que só tinha Passarinhos que saltavam e cantavam à sua volta,
numa brincadeira, tão divertida, que mais parecia o jogo do agarra, mas em que aqueles
marotos nunca se deixavam agarrar…
Começa, enfim, a descer. Tinha conseguido. E vinha contente que nem caçapo
tremelgueirinho… tão contente como o Piruças da Mãe, quando apanhava a jeito, uma
arvorezinha nova… Que belo dia! Aquilo é que tinha sido mesmo um dia… o melhor da
sua, o primeiro que cosera sozinho com os seus botões, sem dizer nada a ninguém e sem
ninguém o mandar… Agora era preciso descer lesto que já deviam ser horas pró
jantar… Já fazia um bocado que o Sola ia empinante… e tamém já estava com uma
fome que só visto… Enquanto desce, vai desenhando as caras deles… A Mãe, toda
danada, «atão r’paz dum dianho onde raio te meteste tu que ninguém te enxergou?» e
zás, zás – lá iam aquelas mãozadas, direito ao rabo… Depois, o Pai…«deixa lá o
artista!» e a Mãe a chorar… «pois é!... Deixa lá o artista, deixa lá o artista e ainda um
dia destes se vai sumir praì nalgum buraco…».
Era a Mãe. Primeiro, eram aquelas mãozadas que ela tão bem sabia acertar…
mas adi a bocado, já não era nada com ela: já só eram beijinhos… Ela era assim, mas
como ele gostava dela… mais ainda, que da Avó e do Pai. A Mãe só tinha era aquele
todaviazinho: o medo dos buracos… Por fim, a Avó… havia de abrir, primeiro, aqueles
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olhos, que até parecia memo dois pinhos de água fundeira e quieta de que ele não
gostava nada, mas depois dele contar tudo, atão sim, é que lhe iam vislagrimar os olhos,
aqueles tais bulícios de que ele, isso sim, tanto gostava… E depois, ainda outra vez o
Pai… ia sentá-lo nos joelhos e dizer, como ele costumava… «mas que grande malandro
que tu me havias de sair!» e, no fim, todos a rir, a cara cheia de palvras clarilindas,
acabariam por dizer como de costume… «o raça do cachopo!...»
… E, no outro dia, havia, de contar tudo na Escola, à Senhora-Professora e aos
outros rapazes…- que temem já fora ao Monte… E sozinho. E que bem lá vira, todas as
aldeias do Vale ao mesmo tempo… E o Monte a falar palavras clarilindas com o Sol,
com as Nascentes, com as Ramas e com os Passarinhos… E se viesse alguém e se
pusesse… «Atão, ó Zé!...Onde raio te meteste tu, onte, r’paz… que a tu Mãe, andava,
praì, toda escabecinada, a précurar por ti por toda a banda?!...» Havia, de meter as
mãos nos bolsos, espetar a barriga prà frente, como os homens, e de dizer, como eles
diziam… «Atão…fui ao Monte!»
Contador
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