Câmara Municipal de Redondo Prémio Literário Hernâni Cidade 1999 A OLIVEIRA DO BALSAMINO Já o sol estendia uma larga faixa avermelhada, a poente, como oferenda à noite que se avizinhava, quando o Balsamino chegou a casa. Assim que lhe sentiu os passos das botas ferradas no lajedo do terreiro, a Maria José veio da cozinha, secando as mãos no avental. «Esteve cá um home da parte da Junta» - aqui, a mulher parou fitando-o bem no fundo dos olhos. «- Veio avisar que, amanhã, vêm deitar a oliveira abaixo. Vão alargar a estrada, outra vez.» «O quê?!» - o berro de Balsamino varou a mulher. Levava a dor de uma picada de lacrau. Ficou especado na frente dela, de braços e boca abertos. Nos seus olhos luziam o espanto e o ódio. Ela teve medo e correu aos afazeres da cozinha. Como se tivesse levado uma cacetada na cabeça, o Balsamino seguiu-a aos ziguezagues. Com a manápula puxou-a por um ombro, fazendo-a rodopiar na sua frente. «Ó mulher dum raio! Que porqueira é que tu me disseste para ali?» - a mulher permaneceu em silêncio, fungando e secando as lágrimas que lhe apontavam ao canto dos olhos. Ela sabia o que aquela árvore representava para o seu home. Ele preferia perder a mão direita a ver a árvore morta. Aquela oliveira era como uma pessoa de família. A sua perda ia ser como uma morte. Quando o Verão entrava calcinava tudo, via-o trazer todos os dias um balde de água, para a árvore, da poça da ribeira, lá muito em baixo. Quantas histórias de brincadeiras e festas de família, acontecidas debaixo daquela ramaria sempre verde, tinha ouvido contar, e em quantas participara depois de casados! A oliveira tinha sido plantada por um trisavô do seu home. Já tinha dado sombra e brincadeira a infâncias e juventudes de quatro gerações. O Balsamino levantou a manápula aberta, sinalizando paragem. «- Que venham! Que venham, que vão ver como elas mordem!» 2º Prémio Ana Isabel Valagão Fonseca Página 1 Câmara Municipal de Redondo Prémio Literário Hernâni Cidade 1999 Nessa noite não pregou olho. Na manhã seguinte, perfilou-se de sentinela à porta de casa. A dois passos, a oliveira, alheia às coisas enredadas dos homens, oferecia generosamente as suas folhas aos raios solares, absorvida no fabrico da clorofila. O Balsamino olhou-a fixamente, como se não a tivesse visto nunca. O bisavô tinha-a plantado a boa distância do então, caminho, que subia para a serra. Os alargamentos sucessivos do carreiro tinham-na, porém, deixado a uns palmos da valeta. Do outro lado, a mole dum penhasco impunha-se como o pilar dum portal. Investir contra o rochedo saía caro. Tinham optado pelo processo mais fácil. «- Eu seja negro, se não partir o cachaço ao primeiro que se afoite a tocar-te!» gritou o Balsamino para a oliveira, começando a despir o casaco velho que atirou para o terreiro, quando a escavadora apareceu rolando pela estrada. O chapéu preto foi juntar-se ao casaco. O Balsamino ficou coçando a grenha, de olhos fixos no grande aparelho de ferro e aço. O rapaz que condizia a quilo parecia-lhe um licodoce, detrás da vidraça de uma janela. «Que falta de respeito mandarem um “manjerico” destes a um homem como eu!» - pensou Balsamino. Mas o “manjericão daqueles” deixou cair, com o estrondo de um vencedor, a pinça monstruosa da máquina, perto do tronco da árvore. O impacto, repercutindo pela rocha do terreiro, sob os pés de Balsamino, atraiu a Maria José á porta de casa. A máquina, desligada a chave da ignição, deixara de roncar. Foi, precisamente nesse momento, que o Balsamino se acercou do monstro de ferro e aço e, dirigindo um dedo espetado ao nariz do condutor que, achando que aquela unha em riste estava demasiado próxima e porque o tinham avisado que aquele fulano era “ mais bruto que umas casas”, deduziu ser útil não ficar tão perto e encolheu-se no fundo da cabina. «- Salta cá para fora. Manjerico de caca» - gritava o Balsamino, fisgando-o por um braço arrastando-o para o terreiro. O pobre rapaz assemelhava-se a um pardal na garra dum milhafre. «- Tu vês aquela rocha?» - apontava-lhe com o indicador da mão livre o penhasco do outro lado da estrada. «- É além que vão ter que se dar ao trabalho sabes? Não é aqui!» O rapaz olhava, ora para o penedo ora para os olhos faiscantes do Balsamino. «- Vês?» - o 2º Prémio Ana Isabel Valagão Fonseca Página 2 Câmara Municipal de Redondo Prémio Literário Hernâni Cidade 1999 Balsamino voltava a agitar-lhe o dedo em frente aos olhos. «- Um minuto, ouviste?» O rapaz tentava afastar o pescoço com a retaguarda, mas o braço do Balsamino era uma tenaz acerada. «Um minuto é o que te dou para te pores daqui para fora!» E largou-o. O rapaz vendo-se livre saltou para a cabina. A máquina voltou a roncar. O Balsamino deixou-se ficar no terreiro, até que a viu perder-se na curva, ao longe. Depois do almoço, um automóvel azul metalizado parou no terreiro. Desceram três homens. O Balsamino viu os três indivíduos apinocados, de gravata e tudo, junto ao veículo. Um deles era o presidente da Junta de Freguesia. Homem enérgico e zeloso dos interesses da terra, a que chamava sua, expôs em breves e concisas palavras a surpresa que o Balsamino lhe “brindara” com a sua atitude descabida para com um empregado da autarquia. O Balsamino ouviu o sermão sem entender patavina, tal o nível da diatribe e, dizendo que voltava já, entrou em casa. Passados segundos, voltou com umas botas nas mãos. «- Se vocemeceia quiser dar-se ao trabalho de trepar comigo àquela pedra,» apontava o morro do outro lado da estrada - «eu mostro a vocemeceia uma boa maneira de alargar a passagem em três tempos, porque tocar na árvore, nem pense!» - e levantou o dedo no ar. Mas o presidente negou-se a tal empresa. «Ah, não quer ir ver?! Pois saiba que além acima há uma brecha de quase um palmo de largura e uma fundura de dois metros, a todo o comprimento da berma de cá. Com uns quilos de pólvora, é um ar. Depois é só tirar as pedras…» O presidente da Junta de Freguesia encolheu os ombros e foi-se achegando ao automóvel azul metalizado. O presidente da junta nunca viu na sua vida tinha amado uma árvore, por isso disse, dando o assunto por encerrado: «- Amanhã está cá a máquina.» O Balsamino correu a buscar a barra de ferro atrás da porta. A Maria José ouviu o tinir da tranca de ferro na soleira e veio cá fora. Já o seu home fazia soar a barra, com toda a sua força, sobre a rocha do terreiro, berrando que, se lhe aparecesse ali o tal “manjerico”, com o 2º Prémio Ana Isabel Valagão Fonseca Página 3 Câmara Municipal de Redondo Prémio Literário Hernâni Cidade 1999 “aranhiço de ferro”, lhe partiria os vidros e as chapas com aquela barra e os três homens se refugiavam no automóvel, um deles dizendo que a G.N.R viria patrulhando a escavadora, quando a Maria José decidiu meter-se à serra. Aquilo estava a ficar feio e, antes que o seu home fizesse alguma loucura e fosse preso, o melhor era ela fazer o que tinha pensado. Pela vereda, pinhal acima, a mulher subiu acreditando que só a Virgem Maria podia salvar a oliveira. Quando regressou, viu o seu home andando ao longo do terreiro, de cá para lá e vice-versa, com as mãos no fundo da algibeira e mudo como um chaparro. Boa não andava ele a cozinhar… De tempos a tempos, parava a olhar a árvore, e seguia caminhando, soltando grunhidos incompreensíveis. Aquilo estava mesmo a ficar preto. Dirigindo-se para a cozinha, encomendou-se à Virgem do Alto. Pronto o jantar, o Balsamino negou-se a comer fosse o que fosse. Já na cama, sentiu-o dar voltas, insone. Depois, exausta, desfiou um rosário de Avemarias. E foi rezando que adormeceu. Nessa noite, foram despertos, alta madrugada, por um estrondo. A casa estremecia nos alicerces, como abanada por uma mão gigante. Os pratos e os copos repenicavam nas prateleiras do guarda-loiça. Levantaram-se, assustados. Enquanto a mulher acendia o candeeiro, o Balsamino abriu a janela e olhou para o exterior. A estrada tinha desaparecido debaixo dum monte de pedregulhos. A parede de pedra desabara para cá da fissura e esboroara-se. «- Bendita seja a Santa Virgem Maria!» - exclamou o Balsamino, vendo o penhasco desfeito! Só ela me podia ajudar! A casa continuava a tremer. Mas o sismo foi amortecendo nos abalos e, depois de algumas réplicas de menor ênfase, atingiu o fim. 2º Prémio Ana Isabel Valagão Fonseca Página 4 Câmara Municipal de Redondo Prémio Literário Hernâni Cidade 1999 «- Bendita seja a Virgem Maria, que nos ajudou!» - repetia o Balsamino, de mãos postas. «- Se alguma coisa certa disseste, nestes últimos dias, essa foi uma delas» - respondeulhe a Maria José. «Que queres tu dizer com isso?» «- Ora, tu nem te deste conta de que eu, ontem à tarde, subi à serra e fiz uma promessa à Santa Virgem. Devo-lhe tantas velas como a altura da nossa oliveira…» O Balsamino quedou-se com os olhos presos nos da mulher. O Alentejo á assim: solitário e humano; humilde e crente; cismático e devoto. E a Virgem Maria anda na alma alentejana como a palavra amor num livro de poemas. As pedras foram retiradas e a estrada alargada, segundo as conveniências de todos. O facto da promessa foi conhecido. O homem que vendia velas achou demasiadas as requeridas pela Maria José. Por outro lado, alguns pastores que acontecia apascentarem os rebanhos por aquelas bandas da serra, descobriram a mulher ajoelhada diante de velas que se iam consumindo, paulatinamente, num nicho improvisado, com lascas de pedra. A notícia correu. Amigos do Balsamino encarregaram-se de confirmar, junto dele, os casos ouvidos, aqui e além… Passei, esta manhã, junto à casa do balsamino. Lá estava a oliveira verde e vistosa, frente ao terreiro. Uma pessoa de família… A meia falda havia um desvio talhado entre rochas. Estacionei o automóvel. Ao lado duma grande azinheira descobri um bloco de pedra, onde alguém tinha pintado a branco: «Salvé Virgem Maria Mãe de Deus”. Um outro que achou o dístico incompleto tinha acrescentado: “E dos pobres”. Tinham construído um caramachão para acoitarem os doentes. Vinham de muitas léguas de distância, ali, para rezar e fazer promessas. Muitos traziam parentes enfermos ou lesionados em acidentes. E oravam põe eles e com eles. E faziam votos pelas suas melhoras e queimavam velas. Os tocos que restavam viam-se sobre as pedras, em redor da azinheira. Lá estava o nicho da maria José. 2º Prémio Ana Isabel Valagão Fonseca Página 5 Câmara Municipal de Redondo Prémio Literário Hernâni Cidade 1999 Talvez a história da menina que vira, uma tarde de Primavera, uma bela Senhora de branco, no alto daquela azinheira, fosse verdade. Talvez a menina não fosse esquizofrénica, como o padre da aldeia, pessoa de saber e crédito, tinha concluído, depois da entrevista indagadora que lhe fizera, sobre a aparição… Mistérios… Mas uma verdade era sólida. Em muitos pontos parecidos àquele, por todo o Alentejo, e em árvores como aquela, corria fama de que a Virgem se tinha feito visível. E aceitos os factos ou não, romarias, procissões, promessas e orações seguiam-se a esses lugares tidos como santos pelo povo. O Alentejo é assim: solitário e humano; humilde e crente; cismático e devoto. E a Virgem Maria anda na alma alentejana como a palavra amor num livro de poemas. 2º Prémio Ana Isabel Valagão Fonseca Página 6