Em Busca do Que Seja Fazer Estratégia: Direcionamentos para a Pesquisa de Campo
sobre Estratégia como Prática
Autoria: Leonardo Lemos da Silveira Santos, César Tureta
Resumo
Nos últimos dez anos temos presenciado um movimento em direção a inclusão, na agenda de
pesquisa dos teóricos de estratégia, do tema estratégia como uma prática social. Essa é uma
abordagem que vem se consolidando e ganhando espaço na academia, principalmente
européia, desde que Whittington (1996) expôs a sua preocupação com o fato de que ainda
sabemos muito pouco sobre as atividades executadas pelos estrategistas na sua rotina diária do
fazer a estratégia. Nessa perspectiva, se há alguma pretensão de encontrar um significado para
o que seja estratégia, é preciso olhar com atenção para o que fazem os estrategistas (sejam
eles os proprietários, os gerentes de topo, os gerentes médios, consultores, etc). O desafio
estaria, então, em ir além do que as pessoas dizem que fazem (ou do que deveriam fazer) para
desvendar o que/onde/como/quando elas “realmente” fazem a estratégia. Embora durante
nestes anos muito se tenha avançado em termos teóricos, em termos metodológicos ainda há a
necessidade de amadurecimento das técnicas de pesquisa capazes de apreender com
profundidade o processo de estrategizar. Uma revisão dos trabalhos publicados no Brasil, por
exemplo, revela que as entrevistas continuam sendo o instrumento principal de coleta de
dados. Fala-se também de observação, mas, em geral, pelo menos do que se pode apreender
daquilo que foi descrito nos artigos, essa é uma atividade que, além de ser “acessória”, acaba
sendo realizada apenas em ambientes “controlados”. Nesse contexto, o presente ensaio teórico
tem como objetivo principal a proposição de um arcabouço metodológico que possa orientar
novas pesquisas empíricas desenvolvidas sob a abordagem da estratégia como prática no
Brasil. A idéia aqui é propor uma forma de “encarar” o strategizing como uma experiência
vivida e não apenas como uma experiência (re)contada. Com isso, seria possível “enriquecer”
as nossas versões sobre estratégia, strategizing, estrategistas e teorizar sobre a natureza
sempre presente e intrincada desses elementos. Para tanto procuramos estabelecer uma
framework baseada na tentativa de conciliar três “movimentos” – a fenomenologia (como
uma “filosofia interpretativista”), a grounded theory (como “estilo de pesquisa”) e a
etnografia, bem como as narrativas (como uma “forma de negociação” de “dados”). Sendo
assim, o trabalho se desenvolve procurando não só apresentar (ainda que de maneira breve)
cada uma dessas abordagens, mas também articular as interseções e complementaridades que
percebemos entre elas, ressaltando o potencial que em conjunto elas têm para contribuir para
o aprofundamento das pesquisas no campo da estratégia como prática.
1 Introdução
Nos últimos dez anos temos presenciado um movimento em direção a inclusão, na
agenda de pesquisa dos teóricos de estratégia, do tema estratégia como uma prática social.
Um dos primeiros trabalhos, se não o primeiro, a enfatizar explicitamente a necessidade desse
(re)direcionamento foi o artigo de Whittington (1996). O autor faz uma distinção entre as
diferentes perspectivas de estratégia (como plano, política, processo e prática), afirmando que
o foco da última “é na estratégia como uma ‘prática’ social, em como os praticantes de
estratégia realmente agem e interagem” (p. 731). Embora durante estes anos muito se tenha
avançado em termos teóricos, em termos metodológicos ainda há a necessidade de
amadurecimento das técnicas de pesquisa capazes de apreender com profundidade o processo
de estrategizar. Desta forma, o presente ensaio teórico tem como objetivo principal a
proposição de um arcabouço metodológico que possa orientar as pesquisas empíricas
desenvolvidas sob a abordagem da estratégia como prática no Brasil.
Nosso argumento central, em consonância com o que vêm defendendo Chia e Holt
(2006), Chia e MacKay (2007), Carter, Clegg e Kornberger (2008) e Rasche e Chia (2009), é
de que boa parte das pesquisas têm se esquecido (ou se esquivado) de tomar a prática como
“verdadeiro” objeto de análise. Em grande medida, argumentamos que isso se deve a pelo
menos dois aspectos inter-relacionados. Primeiro, pela maneira como se tem definido a
prática. Muitas das implicações das teorias da prática social que vêm sendo desenvolvidas por
autores como Bourdieu, Giddens, Latour, Foucault, Goffman, Taylor, Reckwitz e Schatzki,
entre outros, têm sido, apropriadas apenas parcialmente pela abordagem da estratégia como
prática (CHIA, 2004; CARTER, CLEGG e KORNBERGER, 2008; RASCHE e CHIA, 2009).
The underdeveloped focus on strategy as practice is partly due to an insufficient reflection on
the term “practice” and its sociological interpretation (HELLMANN e RASCHE, 2006, p.3).
Segundo, pela maneira como as pesquisas empíricas vêm sendo realizadas. Uma revisão dos
trabalhos publicados no Brasil, por exemplo, revela que as entrevistas têm sido o instrumento
principal de coleta de dados (e.g. BISELLI e TONELLI, 2006; MACIEL e MACHADO-DASILVA, 2009; AVILA et al, 2009; CANHADA e BULGACOV, 2009). Fala-se também de
observação (participante ou não), mas, em geral, pelo menos do que se pode apreender
daquilo que foi descrito nos artigos, essa é uma atividade que, além de ser “acessória”, acaba
sendo realizada apenas em ambientes “controlados” (e.g. TURETA e LIMA, 2009). Adotar –
ou assumir de antemão - apenas os aspectos “manifestos” (HELLMANN e RASCHE, 2006),
os episódios estratégicos (HENDRY e SEIDL, 2003), as práticas administrativas
(JARZABKOWSKI, 2005), as atividades “visíveis” (formais ou informais) tem levado os
estudos sob o rótulo da estratégia como prática a mistaking the menu for the dish (CHIA,
2004, p.30). O envolvimento necessário do pesquisador com o campo, nesse caso, não pode
se limitar a rastrear e estar presente somente e apenas naquelas atividades consideradas a
priori como “estratégicas”. Tampouco se restringir ao “detalhamento etnográfico” daquilo que
aqueles considerados a priori como “estrategistas” fazem (falam, sentem etc) somente e
apenas quando estão engajados nesse tipo de atividades. Diferente de rotinas, de atividades
humanas visíveis per se, as práticas precisariam ser encaradas como uma espécie de ordergenerating mechanisms (GHERARDI, 2009). Mais do que apenas os doings and sayings
visíveis dos atores per se (SCHATZKI, 2002; GEIGER, 2009; ANTONACOPOULOU,
2008), as práticas precisariam, isso sim, ser tratadas como regularidades histórica e
culturalmente construídas (SCHATZKI, 1996, 2001, 2002). Caberia a nós, portanto,
investigar não apenas what actors do, mas, também, e principalmente, how does it come to
acquire its apparently concrete status? What primary organizing process allows it to take on
the semblance of an ’already constituted entity’? (CHIA, 1995, p.595).
2 Evidentemente, essa é uma temática que exige muito mais do que um artigo para ser
discutida adequadamente. Por isso fizemos uma escolha. Aqui, e agora, optamos por
desenvolver nossa argumentação no sentido de contribuir para o aprofundamento da discussão
sobre o trabalho de campo na pesquisa da estratégia como prática. Nesse sentido, o primeiro
aspecto levantado acima, relativo à necessidade de uma melhor definição do conceito de
prática, ficará em segundo plano. Não é nosso objetivo tratar dele diretamente. De forma
indireta, entretanto, na medida em que formos construindo a nossa proposta de framework
metodológica, vamos também dando algumas pistas sobre nosso entendimento da questão.
Nosso argumento central aqui está baseado na idéia de que - para avançarmos na pesquisa da
estratégia como prática - precisamos levar em consideração mais seriamente as implicações
que as teorias da prática têm para o nosso processo de pesquisa. Para orientar nossa discussão,
o trabalho está dividido em três partes principais. Na primeira delas, fazemos um breve
resgate do que trata a perspectiva da estratégia como prática e introduzimos a discussão
acerca da necessidade de se construir um arcabouço abrangente de pesquisa de campo. Na
segunda parte, subdividida em subseções, procuramos explicitar nossa visão sobre cada um
dos elementos que compõem o arcabouço proposto, bem como, articular as interseções e
complementaridades que percebemos entre eles. Na terceira parte, tecemos nossas
considerações finais reforçando a necessidade de rever nossas abordagens de pesquisa no
campo da estratégia como prática.
Para pesquisar o strategizing como uma prática
Umas das principais contribuições do practice turn (SCHATZKI, KNORR-CETINA e
SAVIGNY, 2001) está justamente em “achatar” qualquer distinção micro-macro insistindo
na primazia de um practice field dinâmico como ponto de partida para a análise social. Micro
e macro são vistos como efeitos secundários estabilizados desse campo (CHIA e MACKAY,
2007). Nessa perspectiva, que nos leva em direção ao que Chia (1995) chama de uma
becoming ontology, fenômenos (e categorias) sociais – como indivíduo, estrategista,
organização, estratégia - não podem ser tomados como certos, como dados na “ordem natural”
das coisas, como entidades fixas e estáveis com uma essência própria. Eles precisam ser
tratados, compreendidos e explorados empiricamente como efeitos sempre efêmeros e
transitórios produzidos “dentro” de um processo de organização das ações, interações e
relações em uma “realidade” emergente, sempre em fluxo e transformação (CHIA, 1995). O
desafio fundamental estaria, portanto, não apenas em identificar quem são os estrategistas
e/ou compreender como eles executam as atividades consideradas estratégicas a priori, mas
também, e principalmente, em tentar explicar porque e como esses atores e/ou essas
atividades – e não outros(as) – emergem como estratégicos e porque e como as outros(as) – e
não esses(as) – são desprezadas?
Apesar dos estrategistas de topo, das atividades estratégicas formais (workshops,
reuniões de planejamento, comitês estratégicos etc) e dos discursos (e ferramentas) associados
a eles terem se mostrado “objetos” interessantes de análise com potencial para dizer muito a
respeito do strategizing nas organizações, uma abordagem “verdadeiramente” prática se
mostra particularmente “poderosa” quando consegue revelar, também, a dinâmica que está
por detrás daquilo que à primeira vista, dentro de um discurso “tradicional” da estratégia, já se
mostra como “estratégico” (CHIA, 2004). Diferente de Jarzabkowski (2003) para quem a
questão central a ser examinada é how top teams do strategy, talvez seja mais “adequado”
perguntar, antes: como é possível que eles – o top team - façam o que fazem, ou, ainda o que
faz com que as atividades deles sejam as estratégicas? (CARTER, CLEGG e
KORNBERGER, 2008). Ao invés de assumir que determinados sujeitos, chamados
estrategistas, são os autores da estratégia, é necessário perceber que é a prática da estratégia
que constitui uma pessoa como estrategista (CARTER, CLEGG e KORNBERGER, 2008).
3 O problema está em começar pelo “objeto” “estratégia” e tentar explicar como ele é
manufaturado. Uma abordagem mais “adequada”, nesse caso, seria esquecer (ainda que por
um momento) o rótulo “estratégia” e olhar para tudo “aquilo” que constitui o processo de sua
reificação, ou seja, para o processo através do qual determinado objeto, conhecimento,
discurso, pessoa, atividade etc se torna digno de receber de forma mais ou menos recorrente
e/ou durável o rótulo “estratégico” (CARTER, CLEGG e KORNBERGER, 2008). Dessa
maneira, para descrever e compreender uma prática, ou seja, uma série de atividades passíveis
de serem reunidas/reconhecidas em um todo coerente, seria preciso responder não apenas a
questão sobre o que é visível? Mas também questões menos explícitas sobre por que isso se
tornou visível? Por que isso é visível em diferentes atores dispersos ao longo do tempo e do
espaço? Por que é possível perceber/reconhecer um padrão nisso que os atores estão fazendo?
Se, já foi dado um passo, desde as micro-atividades da activity-based-view
(JARZABKOWSKI,
2003,
2005),
para
a
trilogia
práxis-praticantes-práticas
(WHITTINGTON, 2002, 2006; JARZABKOWSKI, BALOGUN e SEIDL, 2007), agora
parece ser tempo de uma nova revisão. Mais do que nos esforçarmos para (inter)conectar
práxis-praticantes-práticas, transitando pelos diferentes elementos do Modelo que se supunha
Integrativo, o desafio “real”, pelo menos do ponto de vista das teorias sociais da prática,
estaria em compreender a interconexão tomando-a como “unidade de análise”. Ao invés de
nos orientarmos, seja pelo ator/indivíduo/parte (individualismo metodológico), seja pelo
contexto/sociedade/todo (societismo), seria preciso voltar os olhos para a dinâmica da prática
em si como ponto de partida para a análise social (CHIA, 1995, 2004; CHIA e HOLT, 2006;
CHIA e MACKAY, 2007; SCHATZKI 1996, 2002, 2005; RECKWITZ, 2002). Estudar a
prática, entretanto, não é uma tarefa simples e exige uma proximidade grande com os
praticantes (TOMA, 2000) para que possamos aumentar as nossas possibilidades de aprender
acessando as experiências deles (FOOK, 2002; SHOTTER, 2005). Daí a necessidade de uma
abordagem metodológica – a lá Latour e Woolgar (1997) - em que precisamos nos tornar
parte do “laboratório”. A idéia aqui é propor um arcabouço metodológico para investigar o
strategizing como uma experiência vivida e não apenas como uma experiência (re)contada
em entrevistas – com isso, seria possível “enriquecer” as nossas versões sobre estratégia,
strategizing, estrategistas e teorizar sobre a natureza sempre presente e intrincada desses
elementos (SAMRA-FREDERICKS, 2003, p.142). Na Figura 1 apresentamos de maneira
esquemática o referencial metodológico que procuramos desenvolver ao longo do trabalho.
Fenomenologia – como o “movimento filosófico e perspectiva
epistemológica” marcado pela busca do entendimento das experiências
vividas pelo “estrategista” – preocupado com as suas condições de vida
Grounded Theory – como “abordagem metodológica” diante do fenômeno a
ser estudado (a prática da estratégia), preocupada em desenvolver teorias
substantivas a partir das experiências localizadas vividas pelo “estrategista”.
Etnografia – como uma “forma de acesso” aos
bodily doings and sayings cotidianos dos
“estrategistas” preocupada em construir um
entendimento “contextualizado” deles.
Perspectiva empírica – first order findings
Narrativas de prática – como uma “forma de
acesso” às experiências vividas pelo
“estrategista” – suas memórias, sua história e
suas estórias de vida.
Perspectiva empírica – first order findings.
FIGURA 1 – Esquema metodológico de pesquisa
Fonte: Elaborado pelos autores
4 A opção por essa multiplicidade de perspectivas, que é uma característica inerente da
pesquisa interpretativa e qualitativa, reflete aqui a busca por uma compreensão mais profunda
do fenômeno e não pode ser confundida com uma tentativa de reforçar a “validade” do
trabalho – a multiplicidade de práticas metodológicas e a variedade de materiais empíricos em
um mesmo estudo é uma estratégia que acrescenta rigor, “fôlego”, amplitude, complexidade e
riqueza à investigação. Consciente de que é “praticamente” impossível “acessar” todos os
aspectos da “experiência como um todo” [ou de todo o strategizing] e de que,
conseqüentemente, a “visão” do pesquisador é sempre parcial e seletiva, a opção por uma
pesquisa “multimétodo” [etnográfica e narrativa] deve ser “pensada” com o objetivo de tentar
acessar a experiência do strategizing de diferentes formas, de diferentes ângulos (FOOK,
2002) para “maximizar” o número de perspectivas envolvidas no processo de teorização sobre
a prática da estratégia. Uma triangulação que não pode ser confundida como uma ferramenta
ou estratégia de validação, mas como uma alternativa à validação.
A fenomenologia e a experiência prática
Mais do que uma “escola” ou uma tradição filosófica rígida e uniforme, o termo
fenomenologia parece “abraçar” uma grande diversidade de “correntes de pensamento” que
talvez pudessem ser mais adequadamente reunidos em uma espécie de “movimento
fenomenológico” (COPE, 2005; COSTEA, 2000; THIRY-CHERQUES, 2004). Movimento
que começou a se delinear a partir de Edmund Husserl e que foi posteriormente ampliado e
desenvolvido por Alfred Schutz, bem como por Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e
Maurice Merleau-Ponty. A partir do posicionamento ontológico e epistemológico que vêm
sendo delineados até aqui, tendo como eixo central a necessidade de se encarar as práticas
sociais como elementos fundamentais de análise, não é difícil “perceber” que adotamos uma
abordagem calcada principalmente nos preceitos da hermenêutica filosófica inspirada pela
fenomenologia de Heidegger (GADAMER, 1975, 1976; SCHWANDT, 2006).
Ao contrário da fenomenologia transcendental (ou descritiva) de Husserl, a
fenomenologia existencial (ou interpretativa), desenvolvida principalmente pelos trabalhos de
Martin Heiddeger e Merleau-Ponty, enfatiza que a investigação da existência humana não
pode ser feita colocando-se o mundo entre parênteses. Ao tentar descrever o mundo vivido
como um observador “separado” da cena, o pesquisador acaba se afastando demais do
contexto situado/localizado em que a experiência humana é vivida (COPE, 2005). A redução
fenomenológica, nesse caso, não poderia ser alcançada. Não há uma realidade objetiva,
independente esperando para ser descoberta através de métodos racionais/”científicos”. Um
ponto central para essa fenomenologia é, portanto, que não se pode separar o domínio do
subjetivo do domínio do mundo natural “objetivo” – “é impossível separar a experiência de
alguém daquilo que está sendo experimentado” (COPE, 2005, p.166). Nesse sentido, a
preocupação principal da fenomenologia existencial está em estudar os indivíduos no
ambiente em que eles vivem/convivem, ou seja, em descrever o homem como ser no mundo
(human-being-in-the-world), em “dar conta” da experiência humana como ela emerge em
determinado(s) contexto(s), como ela é vivida (THOMPSON, LOCANDER e POLLIO,
1989). Mais do que o estudo das essências, a fenomenologia, para os existencialistas, busca
recolocar as essências na existência. Ao invés de revelar o sujeito puro, busca o sujeito
encarnado, situado no mundo.
Se, por um lado, a abordagem descritiva tem demonstrado “o seu valor” para “revelar”
a “pura” essência subjetiva de fenômenos que até então eram tratados de maneira incompleta
por outras filosofias de pesquisa, por outro, a abordagem interpretativa é mais “útil e
relevante” quando se pretende examinar as características contextuais da experiência humana
(LOPEZ e WILLIS, 2004). Nessa perspectiva, ao invés de procurar identificar categorias
descritivas puras do “real”, o pesquisador deve procurar direcionar os seus esforços para
5 interpretar os significados construídos histórica, social e culturalmente pelos indivíduos
“sendo no mundo” e para compreender como esses significados influenciam as escolhas que
esses “seres” fazem (LOPEZ e WILLIS, 2004). O foco da investigação com esse caráter está,
também, muito mais naquilo que as pessoas “realmente” experimentam e em significados que
nem sempre são evidentes para os próprios praticantes, do que naquilo que elas
conscientemente sabem (ou refletem) e podem nos contar sobre as suas experiências. Nesse
sentido, a atenção do pesquisador deve estar não na busca por uma suposta “subjetividade
humana pura”, mas sim naquilo que as narrativas das pessoas têm a dizer sobre o que elas
experimentam diariamente no “seu mundo” (LOPEZ e WILLIS, 2004). Essa é uma postura
que requer um esforço “extra” de análise das forças históricas, sociais e políticas que vão
além, mas ajudam a dar forma e a organizar as experiências individuais das pessoas.
Mais do que um método de pesquisa, a fenomenologia interpretativa (existencial ou
hermenêutica) tal como foi brevemente discutida aqui, representa o posicionamento filosófico
que propomos. Permanece, ainda, entretanto, a questão de como fazer isso? Ou seja, de que
método(s) de pesquisa seria(m) mais ou menos apropriado(s) e/ou necessário(s) empreender
para conseguir desenvolver “na prática” esse tipo de compreensão? Tradicionalmente, as
entrevistas em profundidade tem sido o principal método de coleta de dados nas pesquisas de
caráter fenomenológico – sejam descritivas ou interpretativas. É através da entrevista, que o
“pesquisador” obtém uma descrição dos conhecimentos e das experiências do “pesquisado”
relacionados à temática da pesquisa (e/ou a tópicos específicos dela). Essa descrição narrativa
construída pelo “pesquisado”, que traz consigo as experiências subjetivas vividas por ele, é
que constitui o “objeto” de análise do “pesquisador”.
As narrativas de prática
Nos últimos anos é possível perceber um interesse crescente pelas narrativas de
experiências pessoais como forma de iluminar diferentes questões de pesquisa no âmbito das
ciências sociais. O grande número de trabalhos publicados tratando de diversos aspectos desse
tipo de pesquisa (e de conhecimento) é um bom indicador da popularidade que ela conseguiu
(RIESSMANN, 1993; CZARNIAWSKA, 1998; BOJE, 2001; GABRIEL, 2000). No campo
dos estudos organizacionais esse é um movimento que ganhou espaço “dentro” daquilo que
vários autores têm identificado, de maneira geral, como um linguistic turn (ALVESSON e
KARREMAN, 2000; MURPHY e O´BRIEN, 2006). Através das narrativas as pessoas falam
de si e das organizações (RIESSMAN, 1993, 2001), compartilham e disseminam percepções
acerca daquilo que fazem e dos processos e das práticas nas quais se engajam (PATRIOTTA,
2003). Desenvolver uma pesquisa a partir de narrativas implica, portanto, em “olhar” para as
estórias a fim de retornar às formas como as pessoas “conheceram”, de reencontrar as formas
como as pessoas “viveram”. Ricas em detalhes, as estórias têm o potencial de revelar
opiniões, sentimentos e intenções por trás das ações realizadas (postas em prática) pelos
“entrevistados”. As narrativas seriam assim, um meio privilegiado para se capturar o caráter
comum, ordinário, cotidiano do organizing (PATRIOTTA, 2003) de maneira geral, e do
strategizing nas organizações, de maneira mais específica.
Especificamente no que tange à abordagem da Estratégia como Prática Social, Denis,
Langley e Rouleau (2004) e Rouleau (2006), propõem como opção metodológica a utilização
de um tipo específico de estória de vida centrada na experiência no trabalho e na trajetória de
carreira do sujeito – as narrativas de prática. A perspectiva das narrativas de prática tem as
suas origens no trabalho de Daniel Bertaux. Bertaux (1980) propõe o “relato de vida”, ou seja,
a descrição narrativa de um fragmento da experiência vivida pessoalmente em um contexto
específico, como um instrumento metodológico privilegiado para o estudo de um fenômeno
social particular de uma dada realidade sócio-histórica. Isto é, para compreender, como u
6 determinado “objeto social” funciona e como se transforma, qual é configuração das relações
sociais, quais são os mecanismos, os processos, as lógicas de ação que o caracterizam.
Trazer esse tipo de abordagem metodológica para os estudos sobre o strategizing
implica em pedir aos “estrategistas” que narrem as suas experiências enquanto praticantes da
estratégia. Através desse tipo de narrativa, o “entrevistado” reúne crenças pessoais, eventos e
“senso de si” integrando-os em uma estória mais ampla que revela, na percepção dele próprio,
o que houve de (e o que é) mais importante na sua vida no trabalho (ROULEAU, 2006). O
pressuposto é de que um estrategista, ao contar a sua trajetória profissional e as suas
experiências vividas na prática da estratégia, pode fornecer um conjunto de dados profundos
e variados capazes de fornecer subsídios suficientes para se compreender como o strategizing
se desenvolveu ao longo do tempo (ROULEAU, 2006). O strategizing, nessa perspectiva,
estaria vivo naqueles que o vivem (ou viveram) e no transcurso da história que eles vivem (ou
viveram). Para compreendê-lo seria preciso buscá-lo, portanto, na vida dos estrategistas, nas
suas estórias de vida. Ao narrar a sua própria estória dos momentos de strategizing, os
praticantes fornecem detalhes importantes e indispensáveis para entendermos a prática da
estratégia – ali, naquele contexto: (a) revelando as suas condições de vida, (b) explicitando os
doings and saying que eles mobilizaram, (c) descrevendo os personagens com os quais
interagiram e os episódios/atividades dos quais participaram, e (d) falando sobre as
ferramentas/objetos/artefatos que usaram enquanto “estrategizavam” para fazer a estratégia
acontecer (DENIS, LANGLEY e ROULEAU, 2004).
Cabe destacar, entretanto, que ao contrário do que possa parecer à primeira vista, essa
é uma perspectiva que não necessariamente se limita ao nível micro (individual) de análise.
As narrativas de prática, como apontado por Bertaux (1980), incorporam diferentes
“variáveis” contextuais, na medida em que as pessoas, ao recontar a sua própria estória, fazem
referência a “detalhes” que perpassam diferentes níveis de análise. O relato de vida, portanto,
comporta não só um testemunho do vivido, mas também, sempre, uma dimensão social que
nos permite compreender não um determinado indivíduo, mas um objeto social, fragmento de
uma realidade sócio-histórica (LASLETT, 1999). A contextualização é o pano de fundo
necessário, a trama em que os relatos de vida se inserem e se enquadram, adquirindo
significado. Não importa o quão exaustiva é análise de um “texto”, ela será sempre
incompleta se não fizer referência ao contexto sócio-histórico em que se insere. É preciso,
portanto, ir além do “texto do narrador” para poder realmente interpretá-lo. Nesse sentido, o
indivíduo que conta a sua história ou dá o seu relato de vida não constitui, no nosso caso, ele
próprio, objeto de estudo. O relato é que constitui a matéria-prima do conhecimento
sociológico que busca, através do indivíduo e da realidade por ele vivida, apreender as
relações sociais nas quais a sua dinâmica se insere. Dessa forma, seria necessário nos mover,
durante o processo de análise, do detalhe da narrativa, para o contexto social, e vice-versa, até
conseguirmos fazer todas as conexões necessárias ao processo de teorização.
Sendo assim não seria relevante, partirmos para um tipo de desenho de pesquisa que
agregasse à interpretação das narrativas (textos, ou discursos) produzidas pelos “pesquisados”
uma análise mais “íntima” do contexto de produção dessas narrativas? (HANSEN, 2006).
Cientes de de que a tentativa de estabelecer relações entre texto e contexto não é algo que se
possa chamar de novidade (FAIRCLOUGH, 1995; PHILLIPS e BROWN, 1993), não seria
interessante pensarmos na necessidade de empreendermos um esforço etnográfico como meio
para “agregar valor” aos insights que o foco no texto e na linguagem vem nos
proporcionando. Se, por um lado, concordamos que os discursos (text and talk) são um
elemento fundamental da/para a constituição de uma cultura, de uma prática, por outro,
fazemos coro com a idéia de que os elementos discursivos não são o único “ingrediente”
utilizado pelas pessoas para “construir significados”, para “interpretar o mundo” e para “dar
forma às suas ações” (HANSEN, 2006; BARRY, CARROLL e HANSEN, 2006;
7 SCHATZKI, 2002). Há outros elementos não-discursivos que estão presentes nas
organizações e são também essenciais para a construção de sentidos. Se, por um lado, os
discursos podem “representar” (para os realistas) e/ou “construir” (construcionistas) os
entendimentos organizacionais, por outro, há sempre um contexto no qual, e através do qual,
esses entendimentos são ordenados, decretados, interpretados, postos em prática (HANSEN,
2006; SCHATZKI, 2002).
Trazer à tona, contextualizar e descrever conceitualmente esse conhecimento tácito ou
cultural – que para além da linguagem está também imbricado nos artefatos, nos rituais, nos
lay-outs, na decoração, no uso de objetos - tem sido a preocupação central do que chamamos
aqui de movimento etnográfico. Um movimento, aliás, que – não sabemos muito bem porque
– parece que vem sendo deixado de lado desde que os estudos organizacionais foram
“invadidos” pelo linguistic turn. Toda peça de teatro tem um roteiro, mas ela vai além dele –
enquanto a análise do discurso se indaga sobre o roteiro, a etnografia procura “assistir” a
peça (HANSEN, 2006, p.1063). O argumento que defendemos aqui é de que a inclusão e a
“devida” análise do contexto (simbólico e natural) de produção dos discursos (text and talk) via uma abordagem etnográfica - pode contribuir, e muito para a nossa compreensão do
“comportamento humano” (HANSEN, 2006) em geral, e do strategizing de maneira
específica. É, talvez nesse mesmo sentido, que alguns autores começam a sugerir abordagens
metodológicas híbridas que misturam as narrativas com outros métodos. Soin e Scheytt
(2006), por exemplo, argumentam que as narrativas não devem ser tomadas como fontes
únicas de dados empíricos, mas sim utilizadas em conjunto com métodos etnográficos.
Gubrium e Holstein (1999) destacam que a partir da etnografia seria possível perceber
detalhes escondidos do “viver” que não aprecem nas narrativas. Bate (1997) também critica o
uso apenas do texto – em detrimento do contexto - como “material empírico” e defende a
necessidade de se aprofundar o caráter etnográfico dos estudos organizacionais É difícil
imaginar que seja possível chegar a conclusões profundas sobre a humanidade com base
apenas em respostas dadas a perguntas abstratas em um ambiente controlado ao longo de
entrevistas (ainda que) muito bem planejadas, estruturadas e conduzidas pelo pesquisador. A
crença “cega” nesse tipo de abordagem epistemo-metodológica tem convertido boa parte dos
nossos trabalhos de campo em quick and dirty jobs (…) “thick description” invariably turns
out to be “quick description”, yet another business case study or company history, a pale
reflection of the experientially rich social science envisaged by early writers (BATE, 1997,
p.1150). O contato prolongado com o campo tem se limitado a uma série de flying visits e a
idéia de uma long-term stay tem sido cada vez mais deixada de lado. A journey into the
organizational bush is often little more than a safe and closely chaperoned form of
anthropological tourism (BATE, 1997, p.1150).
A etnografia e a prática
De maneira geral, a etnografia é a descrição de uma cultura ou parte dela,
possibilitando o entendimento do outro e de sua vida social cotidiana. Para tanto, ela é
realizada de maneira que o pesquisador viva de forma intensa e por um longo período de
tempo (geralmente não especificado) no meio daqueles que serão estudados (VAN
MAANEN, 1988), possibilitando entender os mecanismos dos processos sociais, sua estrutura
de funcionamento e como tais processos, estrutura e atores estão envolvidos (VIDICH e
LYMAN, 2000; ROSEN, 1991). O trabalho de campo, que normalmente envolve uma
combinação de observação direta e entrevistas em profundidade, permite que o “ponto de
vista nativo” sobre as experiências e práticas cotidianas seja enriquecido por informação
visual e emocional – ethos – que permeia a situação (ROCHA, BARROS e PEREIRA, 2005).
A descrição precisa ser realizada a partir de experiências dentro do contexto analisado, já que
os eventos que ali ocorrem só podem ser entendidos quando localizados nos espaços de sua
8 produção (HAMMERSLEY, 1992). Esse encontro etnográfico é que propicia ao pesquisador
uma oportunidade única e uma maneira diferente de olhar para a realidade de um grupo de
pessoas. Mais do que estudar pessoas, a etnografia permite ao pesquisador aprender a partir
delas e apresentar realidades alternativas, descrevendo-as em seus próprios termos
(SPRADLEY, 1979; BATE, 1997). No relacionamento com a nova cultura, manter uma
postura de aprendiz ajudará o pesquisador a adquirir conhecimento relevante da experiência
proporcionada pelo campo (CLIFFORD, 2008). Assim, se de um lado o pesquisador se
mantém na postura de estudante, de outro, os informantes são seus professores (SPRADLEY,
1979).
Especificamente no que diz respeito à pesquisa da estratégia como prática, Rasche e
Chia (2009) destacam que apesar de alguns trabalhos terem procurado adotar uma perspectiva
etnográfica (JARZABKOWSKI e WILSON, 2002; ROULEAU, 2005; SAMRAFREDERIKS, 2003) ainda são poucos aqueles que efetivamente utilizaram a observação
participante como elemento fundamental. A maioria das pesquisas empíricas se baseia em
dados produzidos via entrevistas, diários e participação em episódios estratégicos as a guest
(RASCHE e CHIA, 2009, p.725). No Brasil, o cenário não é diferente (e.g. AVILA et al,
2009; CANHADA e BULGACOV, 2009; TURETA e LIMA, 2009; SOUZA, 2009). Se, por
um lado não se quer aqui defender a observação participante como o único método, por outro,
consideramos que ela seja, no mínimo, um complemento necessário às outras possibilidades
metodológicas. Rasche e Chia (2009) apontam algumas boas razões para isso. Segundo estes
autores a adoção do método etnográfico permitiria ao pesquisador conviver com os
estrategistas, aprender sua linguagem e participar de suas práticas e rituais, observando
situações e atividades cotidianas em diferentes cenários e níveis (dentro e fora da
organização). Se a pesquisa segundo a abordagem da estratégia como prática é realmente
sobre the ‘everyday doings’ within the process of strategy-making (p.726), permanecer no
campo por um longo período de tempo e empreender observação participante aumenta
consideravelmente as possibilidades de o pesquisador conseguir notar mesmo os menores e os
aparentemente mais insignificantes goings-on do strategizing, incluindo o surpreendente, o
marginalizado, o desconhecido. Permite que ele se aproxime dos aspectos não formalizados
do fazer estratégia: the everyday problem-solving, the opportunistic making-do’s and the
ingenuity and guile displayed at every level in the organization (p.726). Dá a ele condições de
descrever (e teorizar sobre) a complexidade da prática da estratégia revelando elementos
sobre os quais ainda conhecemos pouco: the interplay of strategists’ body movements,
emotions and artefacts used (p.726). Só assim o pesquisador conseguiria “experimentar” as
everyday strategy practices e não apenas ouvir falar sobre elas (CHIA e RASCHE, 2009,).
Boa parte dos trabalhos etnográficos, entretanto, tem sofrido diversas críticas em
relação à sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento teórico – seja pela extensão ou
pelo refinamento de teorias existentes, seja pela construção de novas teorias fundamentadas.
Segundo essas críticas, os etnógrafos parecem estar tão preocupados em produzir “boas
descrições”, em reproduzir o “campo” com detalhes, e em transmitir a “voz dos nativos” em
sua autenticidade não contaminada com visões externas – ícones da chamada etnografia
clássica - que pouco esforço tem sido feito para desenvolver conceitos “formais”, com um
nível maior de abstração, capazes de compor uma estrutura teórica mais “robusta”. (SNOW,
MORRILL e ANDERSON, 2003; KATZ, 2001, 2002; HAMMERSLEY, 1992; PRUS, 1987;
LOFLAND, 1995; FINE, 2003; MAGNANI, 2003). Apesar de, em geral, fornecerem todos os
subsídios necessários para o desenvolvimento um conjunto de conceitos “teóricos” aplicáveis
para além de um contexto específico, parece que boa parte dessas pesquisas nos tem permitido
apenas acumular um sem fim de ilhas de dados dispersas (PRUS, 1987). Ao que parece, não
raramente, ignora-se a tarefa de desenvolvimento de teorias ou trata-se dela como se fosse
uma caixa preta (SNOW, MORRILL e ANDERSON, 2003).
9 Caixa preta que parece estar relacionada com um “momento intermediário” entre o
que Van Maanen (1988) chamou de primeiro (de coleta de dados) e segundo (de produção do
texto etnográfico) momentos da pesquisa etnográfica. Esse “momento intermediário” em que
deve (ou deveria) ter lugar o processo de análise dos dados é, normalmente, deixado de lado,
menosprezado, negligenciado. Que sempre há algum tipo de análise, não resta dúvida, mas a
maneira como ela é desenvolvida, na maioria dos casos, permanece descrita de forma
relativamente vaga e desarticulada. Essa é uma lacuna que se nota, inclusive, nos livros texto
sobre etnografia. Há muito material escrito sobre diferentes aspectos relacionados ao primeiro
ou ao segundo momento - como negociar o acesso ao campo, como estabelecer e manter
relações com os pesquisados, como escrever um diário, quando deixar o “campo”, ou ainda
sobre diferentes estratégias e estilos literários para apresentar o texto etnográfico; mas muito
pouco se fala sobre os procedimentos de análise dos dados, sobre como o pesquisador – em
um momento intermediário - transforma os seus dados “brutos” de campo em sua narrativa
etnográfica final (SNOW, MORRILL e ANDERSON, 2003).
A opção por uma grounded inquiry
Tomando-se a compreensão como um processo produtivo e não meramente
reprodutivo, isto é, como um processo que em geral nos leva (ou que deveria nos levar) a
estabelecer um novo conhecimento do mundo em que vivemos, advogamos pela necessidade
de procurar um estilo de pesquisa que nos permita ir além da “simples” descrição (ou
reprodução) do que os estrategistas (sejam eles quem for) para tentar construir (ou produzir)
uma “nova teoria” capaz de trazer novos desafios ao conhecimento estabelecido e/ou de abrir
novas possibilidades de ação nas organizações brasileiras. De certa maneira, estamos
interessados em contribuir para o “rompimento” da visão de que no Brasil ainda há muito
pouco esforço de construção de teorias “locais” (BERTERO, CALDAS e WOOD JR., 1999).
A grounded theory é um “tipo” de pesquisa qualitativa e, como tal, guarda muitas
semelhanças com outras abordagens, notadamente as de caráter etnográfico e narrativo.
Entretanto, é preciso ter em mente que ela é diferente. Ela tem como objetivo principal a
construção de teoria. Tradicionalmente, nos estudos de caráter etnográfico e narrativo, por
exemplo, o objetivo e o resultado têm se concentrado na produção de descrições densas.
Todavia, quando é feita a opção pela grounded theory e, conseqüentemente pela construção
de teorias sustantivas, escolhe-se fazer um trabalho com objetivos e resultados diferentes
(CRESWELL, 1998). É preciso ir além da descrição. Existe, portanto, uma tensão a ser
enfrentada pelos grounded theorists entre a necessidade, por um lado, de construir conceitos e
categorias em um nível maior de abstração (de teorizar) ao mesmo tempo em que, por outro
lado, não pode perder de vista que é preciso manter a teoria compreensível para os
participantes, ou seja, diretamente relacionada à vida, à experiência e à prática deles (MILLS,
BONNER e FRANCIS, 2006; BANDEIRA-DE-MELO e CUNHA, 2006). A teoria, assim,
tem que ser fundamentada nas experiências vividas, mas, ao mesmo tempo, não pode
simplesmente replicá-las. Precisa manter uma conexão clara e direta com os dados dos quais
se originou, mas não deve se limitar à simples descrição das estórias que os informantes
contaram (GOULDING, 1998). O pesquisador não pode construir teorias sem “abstrair”
idéias dos dados e explicá-las teoricamente, por meio de conceitos e/ou categorias que dêem
um sentido mais profundo para aquilo que se pode “ver” na superfície dos dados. Quando
utiliza a grounded theory, o pesquisador tem a obrigação de abstrair os dados e de pensar
teoricamente, ao invés de descritivamente, sobre eles (GOULDING, 1998, p.55). Apesar de a
grounded theory nutrir – desde as suas origens - certa simpatia pelos pressupostos e técnicas
da fenomenologia, o foco dos grounded theorists não está nas experiências subjetivas
individuais per se. Os grounded theorists se esforçam para atingir a slightly higher level of
abstraction, higher than the data itself (SUDDABY, 2006), procurando “mover-se” sempre
10 desde as experiências “puras, originais” subjetivas dos sujeitos até categorias teóricas mais
gerais e mais abstratas.
Dessa maneira, a construção (ou a produção) de uma teoria fundamentada constitui-se
em um esforço contínuo que o pesquisador se vê obrigado a constantemente empreender
“idas” e “vindas” entre o nível teórico, “objetivo”, conceitual, mais abstrato, bem
“organizado” em categorias e relações entre elas, e o nível empírico, “subjetivo”, dos dados,
mais “concreto”, mais “desorganizado”. Nesse caso, a teoria vai sendo desenvolvida durante o
processo de pesquisa em si e “emerge” como um produto da interação contínua entre análise e
coleta de dados (GOULDING, 2002), do diálogo reflexivo permanente entre pesquisador e
“pesquisados” (ALVESSON e SKÖLDBERG, 2000), entre intérprete e “texto” (GADAMER,
1975, 1976). Dados e teorias, portanto, na nossa concepção, não são “descobertos”, como a
expressão original the discovery of grounded theory que intitula o livro de Glaser e Strauss
(1967) pode dar a entender, mas sim produzidos como aponta a grounded theory
interpretativista inicialmente “sugerida” por Strauss e Corbin (1998) e a grounded theory
construtivista “desenvolvida” por Charmaz (2006). Como Mintzberg (1979, p.582) já
apontava 30 anos atrás, não há uma correpsondência one-to-one entre dado e teoria, os dados
não geram teoria, apenas os pesquisadores fazem isso. Podemos reivindicar, no máximo, que
interpretamos uma “realidade” a partir do nosso entendimento acerca das nossas próprias
experiências e das experiências (re)contadas, narradas, vividas pelos nossos “informantes”
(CHARMAZ, 2000, p.271).
A grounded theory enquanto abordagem metodológica se apresenta, portanto, como
um “guia” para se “colocar em prática” uma pesquisa de caráter qualitativo hermenêutico cujo
objetivo esteja centrado na construção de uma teoria. Ela não se preocupa em formatar o
produto final, mas sim em orientar o processo de investigação, de “descoberta” (CHARMAZ,
2006, p. 129). Enfim, ela serve como um meio para aprender sobre um mundo que nos
interessa e constitui um estilo de pesquisa para desenvolver teorias que nos permitam
entende-lo. Uma das principais “forças” da grounded theory está, assim, no conjunto flexível
de estratégias analíticas que coloca à disposição do pesquisador para que ele possa construir
junto com os seus pesquisados um entendimento interpretativo acerca do “mundo empírico”
vivido/experimentado por eles (CHARMAZ, 2000). Nesse sentido, a idéia é usar as diretrizes
da grounded theory como um instrumento, uma ferramenta, um meio, uma forma de
manipular os meus dados e conduzir a minha pesquisa, não como uma máquina que vai fazer
todo o trabalho para mim (CHARMAZ, 2006, p.115). (...) grounded theory (…) represents a
general way of generating theory (or, even more generically, a way of having ideas on the
basis of empirical research (ATKINSON, COFFEY e DELAMONT, 2001, p.150). Sob essa
perspectiva, inclusive, talvez seja mais adequado utilizarmos o termo grounded inquiry ao
invés de grounded theory para nos referirmos à abordagem metodológica que procuramos
sugerir aqui.
Trata-se, portanto, não de um esforço para eliminar uma “tensão fenomenológica
interpretativa” entre o particular/narrativo/etnográfico e o universal/teórico, mas de
reconhecê-la e de procurar lidar com ela, de tentar encontrar um “estado ótimo de tensão”.
Mesclar a disciplina do estilo grounded theory com os insights das posturas narrativas e
etnográficas pode ajudar na busca desse equilíbrio dinâmico entre aproximação e
estranhamento. Enquanto a adoção de um estilo grounded theory auxilia o pesquisador a lidar
com a “riqueza” dos dados “de perto e de dentro” que obtém através das narrativas e da
etnografia, de forma mais focada, sistemática e integrada permitindo que ele amplie as
fronteiras analíticas e a sofisticação teórica do seu trabalho “de campo”, uma postura
narrativa-etnográfica certamente colabora de maneira decisiva para humanizar a grounded
theory, para reduzir a distância entre a teoria fundamentada e “a realidade que a fundamenta”
aproximando os pesquisadores do contexto e dos informantes da pesquisa de modo que ele
11 possa entender as experiências não só a partir de como as pessoas falam sobre ela, mas
também de como elas são “realmente” vividas (TIMMERMANS e TAVORY, 2007).
Se, por um lado, corremos sempre o risco de impor aos nossos “informantes”
categorias que não lhe dizem respeito, vindas do pesquisador ou de uma teoria exterior a eles,
por outro, pode ser igualmente arriscado tentar compreender a realidade apenas segundo as
categorias “nativas”. Aprender a lidar com esse impasse implica em reconhecer que no
encontro entre pessoas que se estranham – pesquisador e “nativo” – e que fazem um
movimento de aproximação é que se pode desvendar sentidos ocultos e explicitar relações
desconhecidas. O objeto do conhecimento é, portanto, aquilo que nenhum dos dois conhece a
priori e que, por isso mesmo, pode surpreender (CARDOSO, 1986, p.103). Nessa
perspectiva, o pesquisador passa a ser visto como um sujeito que, através do encontro com o
outro, entra em contato com o universo dos “nativos” e compartilha os seus horizontes, não
para permanecer lá ou mesmo para simplesmente captar e descrever a lógica da sua visão de
mundo, mas para, numa relação de troca, comparar suas próprias representações e teorias com
as representações e teorias “nativas” e assim tentar sair com um modelo novo de
entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente (MAGNANI,
2003; JAIME JÚNIOR, 2003). É na sensibilidade para o confronto ou o diálogo entre teorias
“acadêmicas” e “nativas” que está o potencial de riqueza do nosso esforço enquanto
pesquisadores (PEIRANO, 1995).
Considerações Finais
Para compreender a prática da estratégia, é necessário irmos além da “varanda das
nossas casas” de modo a nos aproximar do trabalho “real” de construção das estratégias. Do
ponto de vista da pesquisa empírica, adotar uma abordagem “verdadeiramente” prática
implica na necessidade de irmos além daquilo que nos contam os “estrategistas” para poder
mostrar como a história da organização, as mediações culturais, a socialização dos indivíduos,
os maneirismos, os objetos e artefatos, a incorporação da inteligibilidade prática conformam
“predisposições” e conseqüentemente o caráter e a direção estratégica das organizações. O
“trabalho de campo” deve, assim, procurar “revelar” as atividades estratégicas através do
engajamento no seu contexto “real” e não somente através de relatos. Estes, apesar do seu
valor incontestável, nem sempre, refletem o que “acontece de fato”. Conseqüentemente, mais
do que apenas estudar a prática e considerar os praticantes como “pesquisados”, é preciso
envolver-se com eles e transformá-los em co-autores da pesquisa. Para capturar esse
movimento que reside na prática da estratégia em si, é necessário que cultivemos uma
sensibilidade às menos visíveis, mas detectáveis propensities and tendencies que emergem
“em meio” às situações humanas cotidianas. Lidar com essas questões envolve uma tentativa
de “sondar”, de “aprofundar”, de “esquadrinhar” memórias, estórias passadas, disposições
culturalmente conformadas de pensar/agir (encontrar um caminho) de maneira consistente
com um estilo de engajamento (DREYFUS, 1991), um habitus (CHIA, 2003; CHIA e HOLT,
2006) uma inteligibilidade prática, forjada em meio às condições de vida (SCHATZKI, 1996,
2002) dos estrategistas.
Assim, para apreender as condições de vida e compreender as atividades humanas no
âmbito da teoria da prática, seria preciso adicionar novos instrumentos ao nosso arsenal de
pesquisa. Para podermos ter alguma “chance” de “acessar” o “verdadeiro” caráter do
strategizing, seria necessário desenvolver uma compreensão mais empática (a sympathetic
grasping) da lógica interna da prática da estratégia, o quê só pode ser feito “seguindo” a
aparente consistência rotinizada (padronizada, orquestrada, organizada) da “lida, da labuta
prática” absorvida pelo (e no) dia-a-dia dos praticantes, e não só através de razões e
significados retrospectivos oferecidos por eles próprios. Essa é uma abordagem que pede um
novo olhar sobre os aspectos não ditos, não articulados e até inconscientes do “fazer
12 estratégia”, bem como uma “abertura” a detalhes e eventos aparentemente insignificantes.
Todos esses elementos devem ir sendo, aos poucos, “catados aqui e ali, reunidos, bricolados”
com muita paciência e sensibilidade a partir dos praticantes, pelo pesquisador, que não pode,
entretanto, ao mesmo tempo, tirar os olhos do contexto histórico-cultural no qual se
desenvolve a inteligibilidade dessa prática. Trata-se, portanto, de olharmos não para a
estratégia “pronta e acabada”, mas para estratégia em construção (...) incerteza, trabalho,
decisões, concorrência, controvérsias, é isso o que vemos quando fazemos um flashback das
caixas-pretas certinhas, frias, indubitáveis para o seu passado recente (LATOUR, 2000,
p.20, 31). Apesar do quadro rico, desconcertante, ambíguo e fascinante que pode assim ser
“revelado”, poucas pessoas “de fora” já penetraram nas atividades internas do strategizing e
depois saíram para explicar, a quem continua do lado de fora, de que modo tudo aquilo
funciona.
Uma leitura mais atenta do trabalho pode revelar que nosso argumento principal, ou a
linha mestra do nosso raciocínio, tem o viés da grounded theory ou, mais do que isso, com a
preocupação de levar os nossos trabalhos para além da “simples” descrição. Essa “inclinação”
pela “teorização” se deve à percepção de que se, por um lado, muitos bons trabalhos de
caráter descritivo já foram realizados no Brasil, por outro, poucos tem se “atrevido” a encarar
o desafio do desenvolvimento teórico – seja pela extensão ou pelo refinamento de teorias
existentes, seja pela construção de novas teorias. Assim, decidimos entrar, à nossa maneira,
no debate sobre novas epistemologias e metodologias ainda pouco tradicionais para a
compreensão da estratégia como fenômeno social constituído por ações cotidianas. Dessa
maneira, direcionamos os nossos argumentos tentando estabelecer uma “lógica” de pesquisa
que permitisse construir teorias preocupadas em efetivamente dialogar com a “realidade” dos
sujeitos pesquisados; em tratar os estrategistas em relação uns com os outros e com o mundo
próprio deles; em redescobrir o papel não só da linguagem, mas também, dos artefatos, dos
rituais, do corpo, na “vida vivida” cotidianamente.
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