ID: 60673557
ENTREVISTA
23-08-2015
Tiragem: 34268
Pág: 16
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 30,90 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 3
Correia de Campos
“Vamos herdar uma dívida
de mais de 1,5 mil milhões
de euros na saúde”
Para o ex-ministro da Saúde, o Governo não salvou SNS da bancarrota, como
apregoa: “É uma completa efabulação.” Macedo, diz, perdeu a ocasião para fazer
duas reformas fulcrais, a da rede hospitalar e a da exclusividade dos médicos
Alexandra Campos
V
oltaria a ser
ministro da
Saúde?
Nem pensar, já fiz
o serviço militar.
Em três anos [foi
ministro da Saúde
no Governo de
José Sócrates],
perdi fisicamente
o correspondente a dez anos de
vida. É muitíssimo duro. E há
gente nova, o Adalberto Campos
Fernandes, o Alexandre Abrantes,
o Manuel Pizarro, a Marta Temido.
O Governo diz que salvou o SNS
da bancarrota, que herdou uma
dívida de 3 mil milhões de euros
na saúde. Acredita nisso?
Isso é uma completa efabulação.
Isso é salvar de bancarrota alguma
coisa? Três mil milhões de euros
são 600 milhões de contos. No
passado, houve muitos anos ainda
com orçamentos muito mais
reduzidos, em que transitavam
de um ano para outro dívidas até
de 800 milhões de contos (4 mil
milhões de euros). Com o PS e com
o PSD.
O programa do PS prevê um
aumento de despesa na saúde?
Sim, isso está assumido no cenário
macroeconómico, até porque
vamos herdar uma situação de
passivo [na saúde] pelo menos de
1,5 a 1,6 mil milhões.
Como chegou a esse número?
Pelas queixas da indústria
farmacêutica, da de dispositivos
médicos e as dívidas dos hospitais.
Há quem o designe como o
ministro das finanças da Saúde.
Concorda?
Acho que essa designação é
ajustada.
Mas, no início, fartou-se de o
elogiar...
O que disse, para quem achava que
ele não tinha preocupações sociais,
foi que isso não era exacto. E tiro
o meu chapéu à contracção da
despesa dos medicamentos [que
Paulo Macedo conseguiu].
Porque é que não fez o mesmo
quando foi ministro?
Por causa dos 18 anos da patente
dos medicamentos. Ele apanhou
em cheio a perda da patente dos
blockbusters [fármacos no topo das
vendas].
Agora há embalagens de
medicamentos que custam
tanto como uma caixa de
chicletes. Não acha que se caiu
noutro extremo?
Não sou especialista em
medicamentos. O doutor Macedo
também imprimiu limitações à
indústria. Teve coragem para o
fazer, mas também contou com
uma indústria permissiva, com
complexos de culpa.
E o combate à fraude?
Isso é uma cantiga. A fraude
sempre se combateu. Se o meu
Governo não tivesse montado um
sistema de conferência de facturas
de medicamentos...
O que ficou por fazer? A
reforma hospitalar?
Aí, [Paulo Macedo] não fez
nada. Não fez a carta hospitalar
e agora os privados estão a
instalar-se em toda a parte, com
as inevitáveis redundâncias. Por
exemplo, o Hospital de Viseu vai
ser com certeza despencado de
profissionais para a clínica que
um grande grupo privado está
ali a instalar. [Nos hospitais,]
não fez um acto de gestão capaz.
Centralizou pesadamente, aceitou
aquelas obrigações pesadíssimas
de não poderem ultrapassar a lei
dos cabimentos [compromissos].
Mas isso foi imposto pela troika,
não foi?
Não foi nada. [Além disso,] com
a suborçamentação, as pessoas
gastam mais do que aquilo que
podiam gastar se tivessem desde o
início um orçamento honesto.
O programa do PS para a saúde,
que ajudou a redigir, não é
pouco ambicioso?
Não. Falamos, por exemplo, na
abertura de 100 USF (Unidades de
Saúde Familiar), em quatro anos,
o que dará cobertura [médico de
família] a 535 mil pessoas. Para isso
são necessários 800 médicos. Mas
fizemos as contas cuidadosamente.
Quanto acha que um médico
deve ganhar?
Os médicos têm um pagamento miserável, tem sido sempre muito baixo, mas antes era disfarçado pelas
horas extraordinárias. Os médicos
devem ter prémios pelo desempenho, como se fez para as USF.
No seu último livro (Saúde &
Preconceito), defende que é um
mito dizer que o sector privado
é melhor do que o público. É o
principal mito na saúde?
É o principal mito. A competição
só se estabelece com produtos
iguais. Os hospitais públicos
não podem mandar embora um
doente, o que os privados muitas
vezes fazem, ficam com o filet
mignon e deixam o resto.
O SNS está em risco, como tem
sido apregoado?
Não. O SNS está muito ancorado no
imaginário dos portugueses.
No seu livro fala também na
liberdade de escolha...
Já existe liberdade de escolha no
SNS. Vou dar-lhe um exemplo:
nas maternidades. Outro: nas
urgências. Agora, todos os
sistemas têm limitações técnicas,
pela disponibilidade de meios,
pela acessibilidade.
Mas se as pessoas quiserem
recorrer a determinado hospital
não podem, têm que ir ao seu
hospital de referência.
Defendem-se, dão outra morada.
Isso é um estratagema...
Usem e dêem outra morada.
No último Inverno, o caos das
urgências tornou evidente que
muita coisa está a falhar no SNS.
O que motivou este caos?
Quando não são substituídos
médicos nas urgências, quando são
recrutados médicos vindos de uma
pool, quase mercenários vindos em
rodízio...
Mas não foi o grande
responsável pela multiplicação
das empresas de “tarefeiros”
quando era ministro?
Recorríamos [a tarefeiros] só em
casos-limite, nalguns casos era
essencial. [De resto,] não tive nada
a ver com isso.
Tomamos medicamentos a
mais?
ID: 60673557
23-08-2015
Tiragem: 34268
Pág: 17
País: Portugal
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Âmbito: Informação Geral
Corte: 2 de 3
FERNANDO VELUDO/NFACTOS
Maria de Belém deixou
a direita “excitadíssima”
Os médicos devem
ter prémios pelo
desempenho,
como se fez para
as Unidades
de Saúde Familiar
Há um consumo excessivo de
medicamentos. Deseducou-se
a população, levando-a pensar
que médico que não prescreve
é um mau médico, quando o
contrário pode ser um sinal de
que é um excelente profissional.
Este é o resultado de longas
décadas de estratégia da indústria
[farmacêutica].
Afinal, precisamos ou não de
mais médicos?
Precisamos é de não perder
médicos, de evitar esta sangria
de médicos acabados de formar
que vão para o estrangeiro,
de minimizar os conflitos
de interesse, de investir na
exclusividade. Por isso é que é
importante o pagamento por
desempenho, que é o que inibe o
médico de ir para o sector privado.
Houve uma ocasião soberana para
fazer esta reforma, que foi a vinda
da troika, mas perdeu-se esta
oportunidade.
Diz ainda no seu último livro
que há pessoas interessadas em
derrubar o SNS que, ao mesmo
tempo, aparecem a defendê-lo?
Quem são?
Há pessoas que têm sempre o
credo na boca, o SNS na boca, e,
no fundo, acabam por destruir
qualquer hipótese de reforma. A
minha vivência no SNS foi prova
directa disso. Mas não vou falar em
nomes.
Quanto está doente, vai sempre
ao SNS?
Sim, sempre. Mas há uma
excepção. Vou a um especialista
de Dermatologia privado do Porto,
pago através do meu seguro de
saúde de reformado do Parlamento
Europeu.
O que pensa da aplicação de
taxas moderadoras no aborto?
É uma insensatez enorme. É uma
penalização de má consciência,
fundamentalista.
Mas chegou a considerar fazer
isso no seu tempo. Não foi?
Cheguei a considerar essa
possibilidade, mas depois a DGS
chamou-me a atenção dizendo que
fazia parte de um pacote global
de assistência à saúde reprodutiva
da mulher. Não é igual a aborto,
mas sim a luta contra aborto
clandestino.
O que pensa do recente acordo
através do qual o Governo deu
a oito misericórdias 125 milhões
de euros nos próximo cinco
anos para fazer consultas e
cirurgias?
Feito sem concurso, é complicado.
Aliás, se o sector privado for a
Bruxelas queixar-se, ganha. Se as
misericórdias intervêm nessa área
fazem-no como actor do mercado,
têm que se submeter às regras
públicas.
O que está a fazer agora na
política?
Não tenho nenhuma ligação
orgânica ao PS. Não estou a pensar
em cargos no futuro. Estou muito
bem com a minha vida. Dou
conferências e criei uma pequena
empresa de consultoria, mas até à
data quase não tive clientes. Já vou
tarde para me meter no mundo
dos negócios.
Escreveu, no início do ano,
que o PS tinha que acordar?
Acordou?
Acordar, acordou (risos),
mas entretanto houve outros
acontecimentos. A maioria
conseguiu capitalizar nas décimas.
Quando se bate no fundo, para se
voltar à superfície, começa-se por
ganhar uma décimas, só que eles
transformaram as décimas em
unidades. A partir daí, tem sido a
propaganda bem organizada, uma
tentativa de omissão do passado,
um simplismo condenatório do
PS. [Do outro lado,] há todos os
problemas ligados a uma liderança
nova, uma necessidade de
substituir pessoas e ainda o caso
José Sócrates. Mas é a primeira vez
que se apresenta um programa
económico quantificado.
Disse que na Comissão Europeia
não fomos capazes de bater o
pé. Até escreveu que os nossos
governantes se portaram em
Bruxelas como panhonhas.
Exactamente. Durão Barroso já
passou à história e não ficou provavelmente na história. Fiquei várias vezes envergonhado com ele,
com as suas mudanças de posição,
quando a senhora Merkel dizia
outra coisa... [De resto,] os nossos
governantes calaram-se. Nunca exigiram prolongamento [da dívida]
nem prazos mais confortáveis, nem
juros mais baixos. O que se passa
agora é que, de acordo com as projecções do Governo, vamos chegar
ao fim deste ano ainda com um
maior aumento da dívida pública e
depois o Governo argumenta que
os juros vão baixar para menos de
metade. Ninguém acredita.
O futuro ainda vai ser mais
complicado?
A governação não vai ser fácil,
porque estes sintomas de melhoria
que estão a ser fortemente
amplificados pelo Governo podem
não se concretizar. Vamos ter muito
provavelmente a sorte de o euro
e o petróleo se manterem baixos,
mas ninguém sabe o que vem do
cataclismo da China.
Não está preocupado com as
últimas sondagens para as
legislativas?
O PS está a lutar contra dois
acumulados, mas fica muitos
pontos acima do PSD e muitíssimos
pontos acima do CDS. Sendo o
partido mais votado, a coligação
desfaz-se e o PS ficará uma espécie
de king maker, sempre na situação
de controlar o jogo.
Caso o PS ganhe, acha possível
um regresso ao bloco central?
Em teoria, o bloco central é sempre
possível. Mas no passado isso
foi mais fácil do que será agora,
porque neste momento os dois
programas são muito diferentes, o
do PSD não é social-democrata, é
da direita liberal, houve uma deriva
direitista do PSD, até mais para
além do CDS, que tornou qualquer
acordo posterior mais difícil. O
bloco central foi possível em 1983
porque havia duas pessoas que se
estimavam muito, tinham respeito
mútuo, Mota Pinto e Mário Soares.
O que pensa da candidatura de
Maria de Belém à Presidência?
A doutora Maria Belém escolheu
uma trajectória de colisão
com o PS. Escolheu o dia em
que António Costa dava uma
entrevista importante, sabendo
que iria retirar protagonismo a
essa entrevista. E quem é que
a apoia? São os seguristas, os
excluídos das listas parlamentares,
depois mais uma ou outra pessoa, o
Manuel Alegre. Repare no regozijo
da direita pelo seu aparecimento,
ficou tudo excitadíssimo. Mas não
haja ilusões. Ela sabe bem que um
grande resultado eleitoral do PS
representa a sua retirada e que um
mau resultado do PS representa
mais um pouco de esperança para
se manter até ao fim.
É possível que haja um partido
que junte toda a esquerda?
António Costa tem grande
qualidades de negociador, agora
não sei se consegue fazer isso. Não
tenho uma bola de cristal.
Quantas vezes visitou Sócrates
na prisão?
Três vezes. Da última, encontrei-o
muito bem. Fisicamente melhor,
antes estava mais magro, mais
nervoso. Desta vez, estava
preocupado, emocionandose quando falava da família,
lamentando, por exemplo, não ter
podido acompanhar o filho mais
velho, que vai estudar para uma
universidade no estrangeiro.
ID: 60673557
23-08-2015
Tiragem: 34268
Pág: 1
País: Portugal
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Period.: Diária
Área: 5,70 x 4,85 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 3 de 3
“Vamos herdar dívida
de mais de 1,5 mil
milhões na saúde”
Para o ex-ministro da Saúde
Correia de Campos, o actual
Governo não salvou SNS da
bancarrota, como apregoa:
“É uma efabulação” p16/17
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Vamos herdar uma dívida de mais de 1,5 mil milhões de euros