Público x Estatal
Helenilson Cunha Pontes
Coube ao jurista italiano Renato Alessi, nos anos cinqüenta do século passado, promover e difundir a
inconfundível separação entre os conceitos jurídicos de interesse público primário e interesse secundário ou
estatal. No Estado de Direito, o interesse público confunde-se com os direitos e valores protegidos pela
Constituição, enquanto o interesse secundário ou estatal revela o interesse da própria Administração Pública,
enquanto ente sujeito a direitos e deveres.
Esta clássica distinção entre, de um lado, interesse público ou interesse da Constituição, e de outro, interesse
estatal, por vezes ainda é desconhecida de muitos agentes encarregados do munus administrativo na área
pública, sobretudo na esfera dos conflitos tributários, onde o interesse estatal aparece consubstanciado no
desejo de sempre arrecadar mais tributos.
Como a tarefa de arrecadar tributos no Estado de Direito sofre o limite intransponível da Constituição, toda a
função administrativa a ela pertinente deve obediência ao interesse público definido pela Carta Política. O
interesse estatal de arrecadar só existe no espaço autorizado pelo interesse público reconhecido pela
Constituição. Esta é a razão pela qual a Administração Pública na defesa de interesses estatais não pode
atropelar o interesse público constante da Constituição.
No Estado de Direito a instituição encarregada de decidir, em última instância, qual o interesse público
protegido pela Constituição é o Poder Judiciário. Nenhuma pretensão do Poder Público, ou seja, nenhum
interesse estatal pode conflitar com o interesse público constitucional na dicção que dele fazem os Tribunais
Superiores. Esta questão, aparentemente apenas de valor teórico, assume contornos concretos quando se
analisa a função de controle de validade de lançamentos tributários (autos de infração) desempenhada pelos
Tribunais Administrativos Fiscais.
Alguns Tribunais Administrativos Fiscais vêm se negando a reconhecer a inconstitucionalidade de exigências
fiscais, mesmo diante de sucessivas decisões dos Tribunais Superiores, notadamente do Supremo Tribunal
Federal e do Superior Tribunal de Justiça, proclamando a invalidade de normas tributárias que fundamentam
autos de infração, sob o argumento de que não estão obrigados a acatar decisões judiciais em seus
julgamentos.
A negativa de aplicar precedentes dos Tribunais Superiores implica manifesta inversão de valores, na medida
em que significa colocar o interesse estatal acima do interesse público definido na Constituição. E mais: ao
assim decidir, o Tribunal Administrativo expõe o Poder Público à inconveniente situação de promover uma
execução fiscal perante o Poder Judiciário de um crédito tributário marcado por uma ilegalidade já reconhecida
judicialmente em outros casos.
O resultado desta obliqüidade administrativa será expor o Erário à provável condenação em honorários
advocatícios. Ao fim e ao cabo, o afã de defender o interesse estatal de arrecadar mais tributos redundará em
prejuízo à sociedade e enriquecimento dos advogados que patrocinarão os interesses das empresas que
sofreram esses ilegítimos lançamentos fiscais.
É inaceitável que no atual estágio de amadurecimento das instituições e do relacionamento entre Fisco e
contribuinte a Administração Tributária ainda pretenda colocar o seu interesse arrecadatório acima do
interesse público definido na Constituição, sob o argumento formal de que não está vinculada legalmente a
decisões judiciais proferidas em favor de outros contribuintes.
A ausência de previsão legal estabelecendo a vinculação administrativa aos precedentes do Poder Judiciário
revela-se absolutamente desnecessária. Basta a declaração constitucional que o Brasil constitui um Estado
Democrático de Direito para obrigar todos, repita-se, todos os agentes públicos a pautarem suas ações pelos
interesses públicos definidos pela Constituição. Negar esta premissa é mais do que confundir o interesse
estatal com o interesse público, é reduzir este ao arbítrio daquele.
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