INTERESSE PÚBLICO E INTERESSE SOCIAL
Maria Emília Naves Nunes
Doutora em Direito Processual Civil
Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Jamais os moralistas conseguirão fazer
compreender toda a influência que os
sentimentos exercem sobre os interesses. Essa
influência é tão poderosa como a dos interesses
sobre os sentimentos. Todas as leis da natureza
têm um duplo efeito, em sentido inverso um do
outro.
Honoré de Balzac, in 'Ilusões Perdidas’.
SUMÁRIO - 1. Interesse - 2. Interesse e/ou Direito - 3. Interesse Público e Interesse
Privado - 4. Interesse Público: administração do trabalho - 4. Interesse Público:
administração do trabalho - 5. O Interesse Público e a Ética – 6. A Busca da
Identificação do Interesse Público - 7. Interesse Público como oposto do Interesse
Privado - 8. Interesse Público e Interesse Social - 9. Subjetivação do Interesse
Social - 10. Interesse social, democracia e direitos fundamentais – Referências
Bibliográficas.
1 - Interesse
Como todo trabalho científico precisa expor conceitos,
urge, primeiro, que se demarque o sentido de interesse. Como afirma
Agamben, [...] Na vida dos conceitos, há um momento em que eles perdem
a sua inteligibilidade imediata e, como todo termo vazio, podem carregarse de sentidos contraditórios.[...]1. No seu significado semântico, interesse
é o sentimento que nos leva a procurar aquilo que é necessário, agradável,
aquilo que nos é útil, que nos importa.
Carnelutti salienta que o conceito de interesse é
fundamental tanto para o estudo do processo quanto para o do Direito2 . E
tem razão, pois a força motriz do indivíduo e da sociedade é o interesse.
Por ele, proclamam-se convicções e opiniões. Por ele, luta-se. Sua natureza,
então, detona conseqüências sociais, expurga ou atrai malefícios.
1
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique
Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 88.
2
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Vol. I – traduzido por Hitomar
Martins Oliveira – 1ªed. – São Paulo: Classic Book, 2000.
Ihering nos traduz que o interesse é substantivado pela
necessidade e utilidade de um determinado bem. Nosso interesse pode ser
por um bem imóvel, móvel, ou espiritual, não corpóreo, como a vida, a
liberdade, e a honra. Devidamente interessado por um bem, o indivíduo
luta pelo direito a este, é este um dever consigo mesmo3.
Quando se diz que uma coisa ou uma idéia é algo
interessante, isto se traduz numa importância que atribuímos a esta. Assim,
o interesse assoberbado em relação a algo pode se transformar em paixão,
mas pode também denotar uma questão de sobrevivência. O alimento, por
exemplo, é essencial para que não se deixe de ter vida. Independentemente
de se viver em sociedade; tal necessidade se faz presente, o que nos leva a
entender que o interesse vincula-se ao indivíduo. Por isso, Manoel Galdino
diz que é Idéia alimentada na mente da pessoa que se interessa4 .
Compartilhando
bens
com
outros
homens,
os
interesses de cada um dos indivíduos serão reavaliados, tomam outra
dimensão. Desta forma, contextualizam-se o eu e os demais, fazendo surgir
necessidades que serão presentes e mutáveis. A mutabilidade se exprime
em razão da alteração da posição social do indivíduo e do caráter central da
sociedade a que pertence, com os seus valores materiais e morais. O
mesmo alimento pode ser disputado ou ter diferentes critérios de
importância. Há aqueles que se contentam com o essencial e outros que
transformam este essencial em iguarias diversas. Outra justificativa para a
3
4
Ihering em a “Luta pelo Direito”, no prefácio, salienta que a sua obra destina-se a criar uma
disposição moral prática que conclama ou se torna uma força do Direito. Que não se espere
por um efeito prático, lute-se por ele. Assim, a vida tem validade quando defendida. A paz é
considerada o fim do Direito, mas o meio de conquistá-la é a luta. Para esta luta, como o
Direito não é força bruta, a Justiça segura em uma das mãos a balança e na outra a espada.
Portanto, a ordem jurídica deve conter instrumentos hábeis para atuarem a espada e a
balança. IHERING, Rudolf Von. Luta pelo direito. 6ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense,
1987.
PAIXÃO JÚNIOR, Manuel Galdino da. Teoria geral do processo. Belo Horizonte: Del Rey,
2002, p. 153.
mutabilidade advém da própria evolução do homem ou até de sua
involução enquanto pessoa.
Como
característica
individual,
a
necessidade
confunde-se com o desejo, ou seja, tão forte pode ser um desejo que ele
adquire grau de importância gerando necessidade que é o próprio interesse.
Portanto, as necessidades e utilidades vinculam-se aos
indivíduos e elas se fazem presentes em razão de um contexto, social ou
pessoal. Como a sociedade é cada vez mais complexa, as necessidades
crescem assustadoramente.
Partindo deste raciocínio, a necessidade individual e a
integração do ser social, entender-se-á, então, o conceito de Carnelutti
sobre interesse:
Interesse não significa um juízo, mas uma posição do homem,
ou mais exatamente: a posição favorável à satisfação de uma
necessidade. A posse do alimento ou do dinheiro é, antes de
tudo, um interesse porque quem possui um ou outro está em
condições de satisfazer a sua fome.”5.
Sintetizando tais idéias, não há mesmo um juízo de
valor no interesse. O liame abstrativo da necessidade foi valorado
anteriormente e a importância de um bem, corpóreo ou não, foi o que se
substantivou na necessidade e no interesse. Isto não significa dizer que não
se possam colocar os interesses em ordem valorada. É essa ordem de
valoração que levará o indivíduo a defender o interesse ou a deixá-lo no
plano da mera expectativa.
Manuel Galdino explica que, se um mesmo sentimento
em relação a um bem em um só momento [...] estiver presente na
imaginação de outra pessoa, potencialmente, surgirá um conflito. Portanto,
pode haver interesses divergentes sobre um mesmo bem e isto não resultar
em conflito6.
5
6
CARNELUTTI, op. cit.. p. 55.
PAIXÂO JÚNIOR, op. Cit.. 153-154
2. Interesse e/ou Direito
Chiovenda7 afirma que o interesse é um bem não
garantido pela vontade concreta da lei e que deve ser lícito e o Direito é o
que será apurado como vontade concreta da lei.
Ao discorrer sobre o tema interesse, Maciel Júnior8
lembra a lição de Ihering que define os direitos como interesses
juridicamente protegidos e de que estes, vistos sob o prisma de
concretização pela norma, se tornam garantias. Aliás, tanto Ihering quanto
Josserand reconhecem que [,...] o princípio da finalidade é que rege toda a
construção jurídica, tem caráter eminentemente funcional”9.
Pode haver interesse considerável de um indivíduo a
reclamar proteção e, no entanto, encontrar óbice em razão da proibição do
ordenamento jurídico. Seria o caso, por exemplo, da concessão de um
divórcio antes da existência da norma legal que permitisse esse novo estado
civil. Ora, o indivíduo, conforme sua necessidade, irá buscar proteção
jurídica para seu interesse e pode ser que este já tenha resguardo na ordem
jurídica através da norma ou, se ainda não o tiver e não for contrário ao
ordenamento, poderá obter a proteção do interesse por tutela jurisdicional.
O significado do Direito tem uma conotação
semântica e social maior do que o do interesse. A análise da existência do
interesse percorre o campo da necessidade e da utilidade, enquanto o
direito se insere em dado como [...] uma figura deôntica, que tem um
sentido preciso somente na linguagem normativa10.
7
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Vol. 1 – Campinas:
Bookseller, 2000, p.28 -45
8
MACIEL, Vicente. Teoria geral do direito coletivo. Revista eletrônica da Faculdade Mineira de
Direito – Pucminas www.pucminas.br - data de acesso: 06/02/2005
9
VILHENA, Paulo Ermírio Ribeiro. Direito público e direito privado – Belo Horizonte: Del Rey,
2ª ed., 1996, p. 29.
10
BOBBIO, Norberto A era dos direitos ; tradução de Carlos Nelson Coutinho – Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p.8.
Também não se pode pretender completa previsão
legal, mas a existência de um sistema dedutivo, do contrário:
Seria necessário: uma rigorosa axiomatização de todo o direito,
unida a uma estrita proibição de interpretação dentro do
sistema, o que se alcançaria de um modo mais completo
mediante o cálculo; alguns preceitos de interpretação dos fatos
orientados rigorosa e exclusivamente para o sistema jurídico(ou
cálculo jurídico); não impedir a admissibilidade das decisões
non liquet; conseguir uma ininterrupta intervenção do
legislador que trabalhe com uma exatidão sistemática(ou
calculadora) para tornar solúveis os novos casos que surgem
como insolúveis, sem perturbar a perfeição lógica do
sistema(ou cálculo)111213.
Telles Júnior explica a diferença entre o interesse e o
direito definindo que o interesse é o objeto do direito, ou seja, [....] aquilo
que interessa – utilidades, vantagens, proveitos – não são direitos, mas
11
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio – Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1979, p. 84.
12
“Parece-nos que o pensamento ou estilo tópico “convive” com um sistema dedutivo, mas não
ocupa o mesmo espaço; ou melhor dizendo, resolve problemas de diferente feição. Viehweg
diz que a tópica no seu aspecto mais importante, constitui uma técnica de pensamento,
orientada para o problema , ou seja, uma técnica de pensamento problemático. Esta técnica
de pensamento difere do modo de pensar sistemático, em que o pensamento deriva do todo,
admitida a validade das regras postas pelo sistema, sendo desnecessário cogitar da
perquirição de um ponto de vista, o qual emerge sempre do sistema mesmo. Para a forma
tópica de pensar há um catálogo de idéias a serem cogitadas, designadas por Viehweg de
catálogo de topói. Ademais, consigne-se que o próprio Viehweg - o qual reviveu este modo
de pensar -, que não é ele incompatível com o método sistemático, (a dogmática tradicional)
na medida em que , a partir de um catálogo topói, se fique habilitado a deduzir.
Outro especialista, Michel Villey, observa que o método jurídico da controvérsia deve ser
distinguido do da dialética, propriamente dita, representativa esta de um instrumento de
busca da “verdade”; realiza-se a “verdadeira “ dialética, ao lado da consideração dos topói,
pela colocação sucessiva de questões até encontrar uma solução que satisfaça à razão.
Na tópica, parte-se de um problema, e, a partir do problema posto, erigem-se as indagações,
com vistas a resolvê-lo. Nesta linha de idéias, o raciocínio mais adequado à identificação das
hipóteses que constituam questões constitucionais dotadas de repercussão geral, pelo
menos antes da formação de um quadro ensejador de uma visão mais acabada, ou, se
delinear esse quadro, a questão dele ainda não constar; será chamado de raciocínio “tópico”
– pois a partir desse quadro, onde existam enunciados, identificadores dos casos já tidos
como portadores de repercussão geral, nestas hipóteses, e, no que proporcionam elas,
enquanto paradigmas, haver-se-á de operar mercê de dedução a partir desses enunciados,
acolher recursos extraordinários que se contraponham a esses.” ALVIM, José Manoel Arruda.
A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral - in Reforma do judiciário: primeiras reflexões
sobre a EC n. 45/2004 – São Paulo: Revistas dos Tribunais, p. 77.
13
WARAT, Luis Alberto.l O direito e sua linguagem. 2ªed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor, 1995, p. 97 – Na esfera da dogmática jurídica, os tópicos podem ser equiparados aos
princípios gerais do direito, que funcionam com um valor de troca determinado pelo contexto
de aplicação. O direito é, desta forma, um pensamento por princípios, em torno dos quais se
ordena todo particularimso das regras e dos atos concretos.
objetos de direito. São bens. São objetos ou bens de que se utilizam as
pessoas que tiverem o direito de fazê-lo “ 14.
Perceptível pelas diversas colocações que o interesse
pode, em relação ao direito, ser considerado primário. Estaria o direito,
desta forma, mais vinculado à aferição de validade do interesse e, às vezes,
significando positivação.
3. Interesse Público e Interesse Privado
Devendo ser o interesse ponto primordial, de grande
valia será a identificação de quando este é público ou privado, sendo certo
que nem sempre tiveram uma mesma conceituação ao longo de nossa
história.
Segundo as proposições de Niemeyer15, em Platão e
Aristóteles se percebe a distinção entre o interesse público e o interesse
privado pela seguinte proposição: o interesse público estaria vinculado ao
elemento racional da alma e na natureza divina que tem; quando há o
interesse público estamos diante do logos (parte racional da alma) e que,
através de participação, transcende e possibilita que os homens vivam
juntos, em paz e na amizade. No entanto, quando os homens são guiados
pela concupiscência e pela paixão, que é o elemento apetitivo da alma,
ocorre a necessidade do homem na exclusividade que em nada contribui
para a vida em comunidade, ainda que seja mister a sua existência para a
auto-preservação. Neste diapasão, o interesse privado tem a tendência de
desorientar e perverter a vida humana. Platão e Aristóteles também
acrescentam que, por este apetite, os homens são incitados a produzirem os
bens materiais, que estão em relação direta com a utilidade individual e não
14
TELLES JUNIOR, Godofredo. Iniciação na ciência do direito. São Paulo: Saraiva 2ed. , 2002,
p. 264.
15
NIEMEYER, Gerhart.O interesse público e o interesse privado in O interesse público Editado por Carl J. Friedrich - Tradução de Edílson Alkmin Cunha: Rio de Janeiro: Edições O
Cruzeiro, 1967, p. 14
com o bem comum. Este ciclo produtivo de riquezas materiais vai gerar
uma interdependência econômica que gera a necessidade de ordem pública.
O comércio, a vida econômica é uma atividade de energia apetitiva da alma
e os bens são mantidos privatisticamente, propriedade privada.
Portanto, na mantença da ordem pública, os Guardiões
da República devem ter a posse dos bens comuns para se manter uma
ordem filosófica de comunidade. Entre estes guardiões não é permitida a
propriedade privada e, assim, podem se dedicar totalmente aos bens
públicos.
De tudo isso, poder-se-á concluir que, nesta perspectiva, o
interesse público vincula-se à ordem racional da justiça (diké) e é guiado
pela consciência racional (noesis), podendo ser denominado dikaio-noesis.
O interesse privado é responsável pela atividade econômica em razão das
forças apetitivas.
A visão grega do destino do homem está ligada à
estrutura política. Com o cristianismo, o eixo é modificado, passando o
destino do homem a ser a salvação individual de sua alma, não podendo ser
encontrado no político ou no público. Somente a Cidade de Deus é o
supremo bem comum. Então, o governo dos homens é limitado pelo Poder
Supremo, uma lei natural. O interesse individual é, então, consagrado como
um fundamento de ordem e uma relação de cada um com Deus. Assim, as
normas morais regulariam as atividades econômicas privadas e os
governantes deveriam sempre demonstrar penitência pessoal. Nesta híbrida
mistura, o interesse individual pela salvação soma-se ao interesse da ordem
pública. É nesta justificativa que a Inquisição se insere, sendo o seu
objetivo a salvação da alma humana. Para São Tomás de Aquino e Santo
Agostinho, o governo tem como dever buscar a paz, a defesa e, sobretudo,
considerar como interesse público a salvação da alma. Para lograr
resultados, o essencial é a conversão; o governo se compromete com a
natureza transcendental do homem e suas leis são advindas de uma
legitimação natural e divina. A participação não é do indivíduo no político,
mas do governo como meio de induzir o indivíduo a caminhar para sua
salvação.
Em Locke16, retorna-se ao conceito de comunidade
política posto por Platão e Aristóteles. A sociedade civil busca a utilidade
privada e o que une os homens é a comunidade de bens. O consentimento
comum inseriu o senso de justiça que será empregado na utilização dos
bens por acordos públicos.
A lei natural17 em Locke é a soma dos
interesses privados. Assim, o cerne da questão pública está em se encontrar
um acordo público que garanta as satisfações individuais. Não estamos
mais na Justiça de Aristóteles, mas numa legalidade calculável,
manobrável, ou regras do jogo18.
Contribuindo com as idéias de Locke, Adam Smith19
vai imputar ao governo a função auto-reguladora para harmonizar as
atividades apetitivas do indivíduo, “Mão Invisível”, governo bom e
economia suficiente. Não há participação do indivíduo, seus interesses
individuais estarão limitados e regulados por esta “Mão invisível”. Stuart
Mill20 afasta essa mão e coloca a liberdade como cerne; não há limitações,
e sim, conveniências que devem ser observadas. O conceito de interesse
16
AZAMBUJA, op. Cit.. P. 60 - Sobre Locke: Preconiza a democracia como a melhor forma de
governo e só admite a monarquia desde que o rei não tenha faculdade de fazer as leis, que
devem ser elaboradas pelos representantes eleitos do povo. O Poder Legislativo é órgão
supremo do estado, mas tem poderes limitados pelos direitos naturais dos cidadãos, que
podem dissolver o Parlamento e devem resistir às autoridades tirânicas. A base do governo,
diz Locke, é o consentimento dos cidadãos.
17
NIEMEYER, Gerhart, op. cit.. p. 18.
18
NIEMEYER, Gerhart, op. cit.. p. 18.
19
Adam Smith nasceu em 1723, era escocês e filho de uma família de classe alta.Segundo
este autor, o valor de um bem é medido pela quantidade de trabalho e daí desenvolve a sua
teoria econômica nas trocas e na produção. O Estado neste modelo deveria intervir para
construir uma racionalidade econômica, identificando os interesses individuais e destes
entendendo os sociais.SMITH, Adam - A Riqueza das Nações: investigação sobre a natureza
e suas causas – introdução de Edwin Cannan; apresentação de Winston Fritsh, tradução de
Luiz João Baraúna – São Paulo: Nova Cultural, 1985.
20
Suart Mill era inglês e dedicou-se às idéias empíricas -. Conhecido por defender o
utilitarismo, que significa que nossas ações devem ter por fim último a felicidade de um
número maior de pessoas. MILL, Stuart. Sobre a liberdade. Petrópolis. Vozes. 1991.
público vincula-se em obter condições de bem estar, ou hedononomia
(hedoné – prazer e nomos – regra, governo) como dito por Niemeyer21. Há
nesta visão um socialismo impregnado da concepção de utilidade privada
e da satisfação do consumidor.
Já no Estado Moderno, em razão da universalização
do sufrágio, que garantiu a inserção das mais variadas classes sociais no
panorama político, o interesse público vai seguir a classe dominante que
lograr êxito nas eleições, ter-se-á uma “fragmentação de interesses”, como
informa Marçal Justen22.
4. Interesse público: administração do trabalho
Anteriormente se afirmou que o interesse público teria
diferentes conotações na história.
Muito vinculada à questão da
acumulação de bens, a teoria de Marx se dirige à origem desta para colher o
interesse público e, assim:
O proletariado se valerá do poder político para ir despojando
gradualmente a burguesia de todo o capital, de todos os instrumentos
de produção, centralizando-os em mãos do estado, isto é, do
proletariado organizado como classe dominante e procurando
aumentar por todos os meios e com maior rapidez as forças
produtivas.
A violência é parteira de toda sociedade que traz em suas entranhas
outra nova23.
Diversa é a contribuição posta por Marx24, para quem
a produção privada não pode ser entendida como um assunto privado. Ao
21
NIEMEYER, Gerhart, op. cit.. p. 21.
JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e personalização do direito
administrativo. Disponível em: wwww.justenfilho.com.br. data de acesso: 08/07/2006.
23
MARX , Kal. - O capital p. 791
24
LOWY, Michael. Método dialético e teoria política. Tradução de Reginaldo Di Piero – 2º ed –
Rio de Janeiro: Paz e Terra ,1978, p . 69 - O autor faz a seguinte leitura da obra de Marx: O
capitalismo produz não somente a miséria física do proletariado mas também a sua
escravidão, sua ignorância, seu embrutecimento e sua degradação moral. Ele lhe rouba o
tempo necessário à educação, ao desenvolvimento intelectual, às relações sociais. Pela
divisão manufatureira do trabalho ele divide o homem, estropia o trabalhador sacrificando
suas capacidades múltiplas, mutila-o a ponto de reduzi-lo a uma parcela de si mesmo;”dividir
um homem, é executá-lo, se ele mereceu uma sentença de morte: é assassiná-lo, se ele não
a mereceu. A divisão do trabalho é o assassinato de um povo. O capital provoca a
degradação das relações familiares transformando os pais em mercadores de seus próprios
filhos. Enfim, ele transforma o operário em engrenagem da máquina e em escravo
assalariado, submetido ao despotismo mesquinho dos proprietários.
22
invés de a razão ser o homem, como posto por Aristóteles, o trabalho é que
é o homem e é através deste que ele realiza seus objetivos de vida e suas
relações com a natureza imanente. Por conseguinte, se o trabalho for
enfeixado na propriedade privada, esta forma privatística termina por
separar o homem do homem. O ponto nodal é a transcendência da
propriedade privada, voltando o homem ao seu modo social de existência.
A ordem, portanto, será baseada na ordem do trabalho coletivo e de suas
ocorrências. Para Marx, o interesse público é notadamente que as
condições de trabalho estejam socializadas, sendo, então, a sua matiz a
administração do trabalho. Sua visão de socialismo está vinculada ao
trabalho público. Não é a satisfação da necessidade individual a finalidade
da atividade pública, mas de alguma forma deve estar prevista no processo.
Lenin25 traz para as idéias do marxismo a necessidade
da luta. O interesse público deve estar voltado para a mutação do falso para
um mundo real futuro. Tal luta deve ser conjunta e assumida pelo governo
de forma partidária; seria a polemonomia(polemos – luta / nomos – norma
–governo).
A existência do acesso aos meios de produção deve
ser vista como interesse público, garantindo que o homem, através do
trabalho, possa acumular, para si e não para outrem, os bens materiais. A
25
LOWY, op. Cit.. P. 139 – Lenin, liberto do limite imposto pelo esquema pré-dialético – a
passagem para o socialismo é objetivamente irrealizável – se ocupa agora das condições
político-sociais reais para assegurar “passos para o socialismo”. Assim, no seu discurso no
VII Congresso do Partido Bolchevique(24-29 de abril), ele coloca o problema de uma forma
realista e concreta: “é necessário falar de atos e de medidas práticas... não podemos ser
partidários de introduzir o socialismo. A maioria da população na Rússia é formada por
camponeses, de pequenos proprietários que não podem de nenhuma maneira desejar o
socialismo. Mas que poderiam contrapor à criação em cada cidade, de um banco que lhes
permitiria melhorar a sua exploração? Eles nada podem dizer contra. Devemos preconizar
essas medidas práticas entre os países e fortalecer neles a consciência dessa necessidade”.
Introduzir o socialismo significa, neste contexto, a imposição imediata da socialização total,
por cima, contra a vontade da maioria da população. Lênin, em compensação, se propõe a
obter o apoio das massas camponesas para algumas medidas concretas, de caráter
objetivamente socialista, tomadas pelo poder soviético(com hegemonia proletária). Com
algumas nuances, essa concepção defendida desde 1905 por Trotsky: “ a ditadura do
proletariado apoiada pelo campesinato” que efetua a passagem ininterrupta da revolução
democrática à revolução socialista.
privatização dos meios de produção é contrária ao interesse público. É
dever do Estado, em nome do interesse público, buscar a publicização dos
meios de produção e daí haverá uma sociedade de iguais, sem disparidades
no acúmulo de bens.
5. O Interesse Público e a Ética
Na abstração do que seria o interesse público, os
dirigentes, ou qualquer daqueles que tenha poder de decisão, concretizarão
por suas ações o que será entendido por interesse público, já que no
desempenho de suas atribuições estarão agindo como o Estado. Não se
pode olvidar, neste exercício do abstrato para o concreto, a valia da éticaem
que se pautaram as diretivas.26
Griffith27 explica que, na visão de Bentley, o interesse
público é algo que não existe. As decisões são sempre proferidas para
atender a grupos sociais e são, de qualquer forma, impingidas.
Griffith28
considera
que
são
tão
amplas
as
possibilidades de se conceituar o interesse público, que ele pode ser tido
como sinônimo de bem-estar-geral. O que, em verdade, representa uma
categoria mais ampla, no qual o interesse público estaria incluído nas
sociedades pluralistas, nas ações ou atividades governamentais.
26
“A definição do interesse público, portanto, implica uma decisão estatal envolvendo um certo
grau de discricionariedade, com a escolha de um entre vários interesses concorrentes. Essa
tarefa, em muitas ocasiões, é realizada pelo Judiciário, como ocorre na adjudicação de
interesses difusos e coletivos. O problema, no entanto, reside exatamente nos limites da
discricionariedade dessa decisão, sob pena de, sem um núcleo mínimo de significado, o
interesse público ter como único critério a competência da autoridade que a proferiu. Sob
uma perspectiva exclusivamente processual, o interesse público não se diferencia do ato da
autoridade competente, sem qualquer importância para qual seja seu conteúdo.”SUNDFELD,
Carlos Ari. Direito processual público: a fazenda pública em juízo. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 52.
27
GRIFFITH, Ernest S. Os fundamentos éticos do interesse público. in Interesse Público –
Editado por Carl J. Friedrich - Tradução de Edílson Alkmin Cunha: Rio de Janeiro: Edições O
Cruzeiro, 1967, p. 25.
28
GRIFFITH, op. cit.. p.26
Nestes termos, para Griffith29 é necessário que se
verifique se estas ações se pautam pela ética ou não. Na opinião do autor, o
positivismo jurídico inseriu-se na ciência social e concretizou a idéia de
que este interesse público está no caráter processual legítimo, e se escudam
nisto os juristas e políticos para afirmarem como atributo dos atos
governamentais a constitucionalidade. De outro lado, segundo Griffith, os
economistas deram o caráter de livre escolha ao interesse público e as
ações governamentais devem ser pautadas nestas escolhas. Enquanto
interesses e enquanto públicos, a concepção dos economistas se aproxima
mais do conteúdo funcional do que seria público e do que seria interesse.
Prossegue Griffith30 em sua análise e diz que a
sociologia vai diagnosticar o interesse público nos costumes sociais que
estejam em vigor, havendo uma relativização ética.
Não há como
padronizar este interesse público. Também ele não pode ser padronizado
dentro de uma mesma sociedade, já que ela é constituída de vários grupos
nos quais os costumes são diferentes. O tempo e a evolução social darão
aos costumes mutabilidade, o que significa mais um complicador para a
definição do interesse público. Contudo, a identificação deste valor – o
costume – já é de grande valia, ainda que ele seja relativo e não absoluto.
Portanto, na conclusão de Griffith, os juristas
apresentam um aspecto meramente positivista e formalista; os economistas,
a visão atomista de preferências pessoais; e, por fim, os sociólogos trazem
as questões relativistas e efêmeras.
Após estas preliminares, cabe a verificação da ética
neste interesse público e de qual ética se fala. No jusnaturalismo31, a ética
do interesse público residirá na existência da natureza biológica,
29
30
31
GRIFFITH, op. cit.. p.26
GRIFFITH, op. cit.. p.29
GRIFFITH, Ernest S. op. cit.. 28 e 29..
psicológica e social do homem, inserida como fim da norma e não como
meio. Para os comunistas partidários, a ética é dogmática e não discutida, o
maior objetivo é o que deve ser alcançado: o triunfo do proletariado.
No cristianismo32, a ética se vê pautada pela
submissão da hierarquia das demais normas ao amor ao próximo, bem
absoluto. E como valores subsidiários que objetivam o bem-estar-geral: o
respeito pela personalidade, os objetivos humanos do poder, a integridade
na discussão, o ponto de vista funcional da atividade, o comportamento
responsável e a obrigação de servir. Por este viés, a ética cristã será medida
pela intenção e isto depaupera as considerações das conseqüências dos atos.
Pela visão apresentada por Griffith, já que os
economistas consideram o interesse público como a busca de melhores
resultados por uma opção entre escolhas, eles imprimem na ética a resposta
finalística, de resultados, considerando este mais importante que os
motivos. O melhor resultado, quando obtido, será, portanto, a ética, pois a
conseqüência natural é o bem-geral.
Na mesma linha de raciocínio finalista está a
conceituação de interesse público dada por Jeremias Bentham33 na
formulação da doutrina política utilitarista34, concebida sob o argumento de
que a escolha da maioria é, conseqüentemente ou correspondentemente,
ligada ao bem geral, ao interesse público.
Na teoria marxista, em conjugação com Lênin, a ética
vai ser gerada dentro da hierarquia partidária, seguir-se-á uma linha do
partido e, neste sentido, dogmática, como já afirmado.
Para se obter ou atingir o interesse público sob a
ótica da ética cristã, é necessário que se desenvolva uma sociedade em que
32
GRIFFITH, Ernest S. op. cit. 29.
GRIFFITH, Ernest S. op. cit.. 29.
34
O interesse da comunidade é idêntico ao valor encontrado na soma dos interesses de todos
os membros da sociedade.
33
os valores doutrinários possam realmente existir, sendo que a moralidade
não pode ser imposta, já que é uma postura. Para tanto, desde a infância, o
indivíduo estaria inserido em uma sociedade de ambiente sadio, no qual
estejam garantidas: a alimentação, a educação, a possibilidade de
desenvolvimento das aptidões artísticas e intelectuais, a proteção, a saúde.
Crescendo o indivíduo em um ambiente assim, pode-se perquirir a
responsabilidade dele para com a justiça social.
Numa sociedade de valores éticos35, a liberdade é a
pedra fundamental e os indivíduos serão motivados à busca do interesse
público, não como intenção, mas como conseqüência. O discernimento
para encontrar o interesse público gera a ação efetiva em busca da
implementação de uma sociedade que se dirige ao bem geral.
Será
fundamental para o sucesso desta sociedade que[...] o público seja imbuído
de interesse público36.
6. A Busca da Identificação do Interesse Público
Ao distinguir o interesse público do privado, Minor37
se apóia no critério da conseqüência do comportamento dos representantes
do povo. Os interesses objetivam, num primeiro momento, atingir
conseqüências diretas que são a existência de ações de políticas públicas.
Mas quando estas conseqüências não podem ser controladas e verificadas
diretamente, elas se transformam, então, em conseqüências indiretas que
35
Para se conceituar os valores éticos de uma sociedade, entendo estes como uma virtude
cívica, busca-se o apoio de Catherine Audard que sintetiza as quatro condições para
existência de virtudes cívicas descritas por Rawls :” 1) possuir uma “sensibilidade” moral e
desejar cooperar com os outros, se as bases desta cooperação forem eqüitativas; 2) aceitar
as obrigações e as compulsões acarretadas
por esta cooperação; 3)reconhecer a
necessidade da liberdade de pensamento e de consciência, em virtude das dificuldades da
razão(burdens of reason); 4)reconhecer que um outro indivíduo, ainda que defenda opinião
diferente, em conformidade com o fato do pluralismo, sua posição é igualmente
razoável.AUDARD, Catherine. Ética pública, moral privada e cidadania. In MERLE, JeanCristophe; MOREIRA, Luiz. (Org.) Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003.p. 261.
36
GRIFFITH, Ernest S. op. cit.. 31
37
MINOR, Willian S. O interesse e o supremo compromisso . in O interesse público – Editado
por Carl J. Friedrich - Tradução de Edílson Alkmin Cunha: Rio de Janeiro: Edições O
Cruzeiro, 1967, p. 38.
terão somente aspecto político, no qual há vários grupos e multiplicidades
de interesses atendidos e que ocuparão o espaço que medeia o povo e o
governo, [....] as máquinas políticas urbanas, as sociedades econômicas, os
conluios comerciais e militares e outros grupos especiais . Para Minor38, é
necessário
encontrar
o
senso
comum
através
da
previsão
das
conseqüências, responsabilidade que caberá tanto ao povo, quanto aos seus
representantes.
Minor
39
aponta que as sociedades constituídas não
conseguem fazer prevalecer o interesse público e, que a maioria dos
doutrinadores das ciências sociais, justificam que os grandes responsáveis
pela não adoção de um público são a diversidade de grupos e a economia.
Neste sentido, Minor40 apresenta cinco erros na tarefa do homem de
encontrar o interesse público.
O primeiro erro, na visão de Minor41, que pode ser
constatado é a incapacidade de compreensão da formação de políticas
públicas e de leis inteligentes. Ocorre que, no início, os representantes do
povo tratam as suposições como arbitrárias e se esquecem da validação
destas enquanto hipóteses que necessitam da confirmação por instrumentos
de pesquisa e que transcorrem de forma sempre corretiva através desta
análise.
A distinção ente as hipóteses descritivas e as
normativas seria o segundo erro apresentado por Minor42. São inúmeros os
meios da pesquisa científica que poderiam contribuir para a descrição do
que é público. Percebe-se que pouco se tem preocupado em descrevê-lo,
em entender a natureza do público, limitando-se a sociedade a normalizá-
38
MINOR, , Willian S . op. cit.. 39.
MINOR, , Willian S . op. cit.. 39.
40
MINOR, Willian S. – op. cit. p.41 a 53.
41
MINOR, Willian S. – op. cit. p.41 a 53.
42
MINOR, Willian S. – op. cit. p..41 a 53.
39
lo; outrossim
despreocupam-se com as conseqüências de suas
implementações, ou seja, as ações ficam no plano abstrato e não irão prever
os efeitos.
O terceiro erro, como diz Minor43, situa-se na não
existência de correlação das hipóteses descritivas e as normativas. Ocorre
uma bifurcação entre as Ciências e a Filosofia. E somente uma filosofia,
em todas as formações, poderia apontar para um caminho com maior
propabilidade de sucesso na empreitada, incluindo-se o estudo da
matemática, da lógica etc. Evitar-se-ia a busca de um fim transcendental
desvinculada de seu contexto concreto.
O apego aos princípios em sua conceituação
propagada, o conceito que não mais se discute nem se investiga, que não se
interpreta, é considerado como um quarto erro. Assim, se esquecida a sua
interpretação enquanto instrumento, o interesse público se transforma em
norma de valor concreto e não de valor abstrato, como deveria ser. Tornase dogma e desconsidera-se o processo histórico. O ordenamento jurídico
pode, assim, se transformar em uma espécie de misticismo irracional,
inviabilizando a crítica. É preciso que haja a interpretação do interesse
público através dos princípios, e se estes forem [...] aceitos e usados como
instrumentos aptos para orientar os indivíduos e as instituições, são
chamados de políticas. A aceitação ulterior pelo costume, pela tradição e
pelo processo legal transforma a política em leis.44
O quinto e último erro, colocado por Minor45, está
ligado à qualidade moral que está na intenção da lei. Não basta que a lei
seja posta, mas é essencial a credibilidade do homem nela, o que se dá pelo
senso emotivo do senso comum, significando que o comportamento
humano é mais emotivo do que cognitivo. Desta forma, se a lei não
43
MINOR, Willian S. – op. cit. p.41 a 53.
MINOR, Willian S. – op. cit. p. 43.
45
MINOR, Willian S. – op. cit. p.45.
44
contiver a informação moral, não será capaz de conduzir emocionalmente
ao senso comum.
Diante da tumultuada consideração do interesse
público e da imperatividade de resguardá-lo, Minor explica que as
sociedades fixam cinco recursos para tal finalidade.
A punição é o
primeiro deles, gastando os poderes públicos seus esforços para uma
fiscalização voraz e autoritária. O segundo guia-se pela ilusão,
apresentando ao povo um determinado interesse como público, pela
transformação dele em objeto de propaganda. O engano não pode
prevalecer por muito tempo, e, fatalmente, sem a devida comunicação de
interesses, a falência do público é inevitável. A concessão, como terceiro
recurso, traduz-se em verdadeiro perigo, mas diante do aumento da tensão,
ela oferece uma saída. Aliada, ou como similar instrumento, está o quarto
recurso, a barganha, válida só quando ocorrer igualdade entre as partes. Na
expectativa de controlar o conflito de interesses, encontra-se a persuasão
pessoal realizada por pessoas individuais, tornando-as ilegítimas para o
papel de representantes do povo. Retóricos políticos. Também a persuasão
social é utilizada na medida em que os canais que possibilitam a interação
democrática refazem ou não escutam devidamente aquilo que se pode
auferir da sociedade.
E, por fim, tenta se instaurar um processo de
neutralização, que não deixa emergir os conflitos existentes na sociedade.
Portanto, considerando os erros e os recursos
descritos, é possível concluir que há dificuldade na tarefa de identificar o
interesse público, pois ele estará envolto em validades, das opções
legislativas e de políticas públicas, e pressupostos que nem sempre serão
reais.
7. Interesse Público como oposto do Interesse Privado
A teoria utilitarista de Jeremias Bentham, citada por
Griffith, afirma que o resultado da soma dos interesses privados é o
interesse público. No entanto, sob tal perspectiva, Pennock46 convida para
uma reflexão sobre a inviabilidade desta consideração.
Primeiramente, Pennock47 afirma que nem sempre está
o interesse público confinado nos interesses daqueles a quem se dirigem,
até mesmo por não terem uma consciência dele, ou seja, não haverá
interesse onde existir alguém que não saiba da sua existência, que não sinta
a necessidade.
Quando se fala em interesse público, para Pennock48,
tem-se em vista mais do atingir e beneficiar aqueles que hoje convivem na
sociedade, pois objetiva-se alcançar também os que ainda nem nasceram,
uma relação com a posteridade, com o futuro.
E, também, considerá-lo como a somatória dos
individuais, segundo Pennock, é esquecer que o gozo49 do interesse público
não é restrito, enquanto os interesses privados podem sê-lo e só deixarão de
sê-lo quando este mesmo gozo só for possível socialmente. Assim, deve ser
o interesse público considerado como um estímulo para a consciência e a
deliberação, o que afasta a mera percepção de somatória de interesses
privados.
Se este interesse público não pode, portanto, ser a
somatória de todos os interesses privados. deve ser considerado como um
receptáculo de padrões, ao qual se chega pela ponderação dos valores e
das reivindicações dos interesses privados. Assim, há relação entre o
interesse privado e o interesse público, sendo o primeiro subsídio e um dos
fatores para se diagnosticar o segundo.
46
PENNOCK, J. Roland. A unidade e a multiplicidade: uma observação sobre o conceito – in
Interesse público – Editado por Carl J. Friedrich - Tradução de Edílson Alkmin Cunha: Rio
de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1967, p. 182 e 183.
47
PENNOCK, J. Roland. op. Cit.. p. 183
48
PENNOCK, J. Roland. op. Cit.. p. 183
49
A colocação de gozo pelo autor refere-se à satisfação da necessidade. Desta forma, o
apetite por se ter bens, como colocado por Niemeyer na distinção de Platão e a satisfação da
necessidade descrita por Iheringe por Carnelutti como uma força motriz, também ensejam
essa mesma idéia deste gozar, de satisfazer-se.
Mazzilli50 salienta que a clássica dicotomia, nos países
de tradição romana, entre o interesse público e o interesse privado passa
por sérias críticas. A primeira delas é no sentido de identificar o interesse
público como possível de abarcar os interesses sociais; e, a segunda, pela
classificação nova de uma categoria intermediária que os interesses não são
propriamente estatais e nem meramente individuais.
8. Interesse Público e Interesse Social
Estado51 e Interesse são conceitos que tiveram, ao
longo da história, uma relação muito próxima. Foi através da apropriação
do conceito de interesse que o Estado construiu o seu sentido, ou seja,
associou a sua existência à segurança de bem-estar de todos, do interesse
geral. Tal raciocínio pode ser extraído do contrato social de Rousseau52
quando afirma que [...] Enquanto vários homens reunidos se consideram
com um só corpo, eles têm uma só vontade, que se refere à conservação
comum e ao bem-estar geral. A crítica a esta teoria contratualista, sob a
ótica marxista, reside na deterioração da sociedade por conflitos de
interesses, devendo o Estado ser um garantidor do interesse colocado como
o bem comum, essencialmente relacionado à produção de bens e,
conseqüentemente, ao meio que é o trabalho.
Após a Revolução Francesa, o conceito de interesse
público abarcou a subjetivação ao Poder Estatal. Ocorre a separação da
sociedade civil e do Estado, transformando-se os anseios sociais em uma
50
MAZZILLI, Hugo Nigro - A defesa dos interesses difusos em juízo - São Paulo: Saraiva 18
ed., 2005. p. 46.
51
“A palavra Estado vem do latim status, que significa estar firme, em situação de permanente
convivência. Aparece pela primeira vez em 1513, na obra O príncipe, de Maquiavel, usada na
Itália sempre como referência a cidades independentes, como, por exemplo, Firenze, estando
vinculada à idéia de política.
Autores franceses, ingleses e alemães acabaram usando a palavra até para se referir a
propriedades rurais, mas só no século XVI, quando passou a indicar sociedade política, é que
começou a ser utilizada mais intensamente, adquirindo sentido próximo do atual. BRUNO,
Reinaldo Moreira. Direito Administrativo. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.3
52
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social: princípios de direito político. Trad. J. Cretella
Jr. Ages Cretella – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 31.
questão política. Em período anterior, o interesse público era o próprio
interesse do rei, justificado pelas monarquias absolutistas que concebiam a
legitimação por desígnios de Deus. E, no Direito Romano, ser cidadão era
uma glória, um atributo que não permitia a distinção entre o público e o
privado. O interesse de Roma era o próprio interesse de seus cidadãos, o
interesse da Justiça.
É mister que se esclareça a conceituação de interesse
público e a de interesse social, que não comportam, em sua gênese, a
confusão com a própria personificação do Estado. A doutrina não aborda
de forma exaustiva a questão. Porém, é certo que o interesse geral é o mais
importante. Por vezes ele é tratado como social, em outras, como público.
Mazzilli53 explica com propriedade que [...] hoje a expressão interesse
púbico tornou-se equívoca, quando passou a ser utilizada para alcançar
também os chamados interesses sociais, os interesses indisponíveis do
indivíduo e da coletividade, e até os interesses coletivos, os interesses
difusos etc.
Então,
diante
desta
falta
de
delimitação
ou
impossibilidade de realizar a distinção do interesse público estatal e o
social, alguns autores, como Renato Alessi54, Carlos Alberto de Sales55,
propõem a divisão do interesse público em primário e secundário. O
interesse público primário engloba o bem geral. O interesse público
secundário encarna o modus operandi que os órgãos da Administração
imprimem na execução do interesse público.
53
MAZZILLI, Hugo Nigro.A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente,
consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses – São Paulo: Saraiva,
2005, p. 46.
54
ALESSI, Renato. Sistema instituzionale Del diritto amministrativo italiano. 1960, p. 197-8.
interesse público compreende o interesse público primário e o secundário: não há confundir o
interesse do bem geral (interesse público primário) com o interesse da administração (interesse
público secundário), pois este último é apenas o modo como os órgãos governamentais vêem
o interesse público.
55
SALES, Carlos Alberto de. Legitimidade para Agir: Desenho processual da atuação do
ministério público, in Ministério Público, Instituição e processo.Coordenador Antonio Augusto
Mello de Camargo Ferraz, 2ª ed., Editora Atlas, p. 245.
Na atualidade, o Estado também se sujeita à ordem
jurídica e, sendo ente de personalidade jurídica, também tem necessidades.
Eduardo Garcia de Enteria56 define bem o Estado nas democracias
modernas, dizendo que ele não é mais o absolutista nem o meramente
liberal, é o Estado de Direito, que se sujeita à lei e ao direito. Assim, o
mesmo Estado que intervém é também o que se autolimita, ligando o seu
poder a uma técnica de legalização. Ao pretender satisfazer as suas
necessidades, esta pessoa jurídica de direito público pode encontrar óbice
frente aos demais ou a um outro ente, quer de personalidade jurídica ou
física.
Alguns simplificam a questão na afirmativa de que o
interesse do Estado é sempre o interesse público. Contudo, tal raciocínio
desconsidera que a pessoa jurídica ganha vida pelas ações daqueles que a
dirigem. Neste sentido, leciona Edgar Bodenheimer:
É igualmente inadmissível igualar o bem comum ao interesse
de um místico organismo coletivo, personalizado numa
entidade independente. Uma vez que essa entidade só pode agir
através de seres humanos, essa concepção de interesse público
encontra as mesmas objeções que devem ser reduzidas à
condição discutida no parágrafo anterior. A grande maioria de
indivíduos pensantes rejeitará indubitavelmente o ponto de
vista segundo o qual o comando das autoridades dirigentes
deva ser considerado como um reflexo automático do bem
público 57.
Slaibi Filho é mais contundente contextualizando a
questão ao afirmar que [...] a congruência entre o interesse estatal foi
corolário necessário no Estado Liberal de democracia representativa ou
56
ENTERIA, Eduardo Garcia de.Democracia, jueces y control de la administracion. 2ªed.
Madrid: Civitas, 1996, p. 34-40.
57
BODENHEIMER, Edgar. Prolegômenos de uma teoria do interesse público. in Interesse
público. Editado por Carl J. Friedrich - Tradução de Edílson Alkmin Cunha: Rio de Janeiro:
Edições O Cruzeiro, 1967, p. 211.
indireta[...].58 Na opinião do autor, o interesse público é o que é defendido
pelo Estado e não o pertencente ao Estado.
Considerando o texto legal, a dita sociedade brasileira,
personificada juridicamente através da REPÚBLICA FEDERATIVA DO
BRASIL, tem os objetivos elencados a cumprir e pelos quais existe.
Enquanto esta existir, diferentes necessidades podem surgir para que se
cumpra e satisfaça os objetivos a que se propôs. A importância das
necessidades se afere pelo grau de comprometimento que elas enraízam na
consecução dos objetivos, relevando-se ou não em importância. O resultado
deste processo de aferição é o que se pode conceituar de interesse social. E
como afirma John Rawls59 [....] o Estado deve ser entendido como a
associação constituída por cidadãos iguais.[...]. Portanto, o interesse social
não é o de uma classe, mas o que se dirige aos cidadãos igualitariamente
considerados.
Poder-se-ia dizer que toda pessoa jurídica, de direito
público ou privado, é uma ficção legal60. Carneluttti adverte que nem seria
ficção e, sim, uma organização formada pelo Direito e [...] não se deve
confundir realidade com simplicidade: as coisas compostas são tão reais
quanto as coisas simples, posto que real não é cada uma das partes e sim
também a combinação de cada uma das partes no todo.[...]”61. No mesmo
caminho, aponta Planiol62 “[...] a idéia de personalidade fictícia é
concepção simples, mas superficial que oculta a persistência até o presente,
da propriedade coletiva, ao lado da propriedade individual.”
58
SLAIBI FILHO, Nagib. O interesse como fundamento do direito. livro de Estudos Jurídicos/
coordenadores: James Tubenchlak e Ricardo Silva Bustamante, Rio de Janeiro: Instituto de
Estudos jurídicos, 1991, p. 9.
59
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. tradução de Almiro Piseta, Lenita M. R. Esteves- São
Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 230.
60
O Professor Edgar de Godoi da Mata Machado, em seu livro Elementos da Teoria Geral do
Direito, aponta como seguidores de uma teoria da ficção Savigny, Ihering,Windscheid, entre
outros.A teoria da realidade tem expoentes como Clóvis Bevilaqua, Schwarz - p 310-311.
61
CARNELUTTI , op. cit.. p.83
62
PLANIOL, Marcel Fernand .Tratado practico de derecho civil francês. Le mist – p. 58.
Por arremate à questão, registre-se a lição do mestre
CARNELUTTI63:
Se houvesse unicamente necessidades que pudessem ser
satisfeitas por meio de interesses individuais, cada homem
poderia viver isolado dos demais. Mas a experiência mostra
que não acontece assim, sobretudo se se considera a trama dos
interesses imediatos com os mediatos, que permite apreciar
imediatamente quão é limitada à série dos interesses
estritamente individuais em comparação com as de
necessidades fundamentais do homem, e quão limitada seria a
satisfação das necessidades do homem se vivesse sozinho. A
este propósito, as aventuras de Robinson Crusoé podem ser de
útil lembrança.
Exatamente, a existência de interesses coletivos explica a
formação dos grupos sociais. Os indivíduos se agrupam, porque
a satisfação de suas necessidades não pode ser obtida
isoladamente com respeito a cada um. A determinação dos
interesses coletivos é, portanto, função dos grupos sociais, que
se constituem sem outro objeto que o desenvolver esses
interesses.
O interesse, portanto, pode ser coletivo, só a
necessidade é individual. É a busca das necessidades que gera o interesse.
A solução do conflito entre a prevalência do interesse
público ou do interesse social, dentro de um Estado Democrático de
Direito, se dará pela primazia do interesse social. Já não se vive na polis,
não há súdito nem sonhador de uma revolução. Há cidadão e este quer o
respeito à Constituição e aos DIREITOS FUNDAMENTAIS nela
inseridos, os quais deverão sempre limitar o Estado.
Têm sentido as
palavras de Touraine quando diz que A democracia não reduz o ser
humano a ser apenas um cidadão; reconhece-o como indivíduo livre que
também faz parte de coletividades econômicas e culturais64.
Importa é que se perquira se as intenções daqueles que
são agentes do Estado, ao praticarem suas ações, tiveram por objeto as
necessidades e utilidades advindas de uma função a que se propõe ou se
foram embasadas em face de um atributo pessoal de seu(s) representante(s).
Com uma análise da vinculação necessária entre os objetivos de um Estado
63
64
CARNELUTTI, Francesco op. cit.. P; 57 e 58
TOURAINE, Alan Alain.O que é democracia. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 38.
Democrático de Direito e verificação da atuação de seus órgãos, pode-se ter
por conclusão um interesse social. Existindo somente uma necessidade
privatística do órgão, sem um conteúdo social, haverá somente o interesse
de um ente. Desvirtuando a atuação deste ente para atender ao interesse de
seu representante, tem-se um interesse ilegítimo, ilegal, não resguardado,
portanto, pela ordem jurídica. Tal interesse ilegítimo foi lastreado em um
poder ilegítimo. Neste tema, Duguit leciona que:
O Estado não é pessoa coletiva soberana, mas, muito
simplesmente, uma sociedade na qual um dos vários indivíduos
chamados governantes possui o poder político, isto é, um poder
de coerção irresistível; o exercício deste poder é legítimo, se
tende a realizar os deveres que se impõem aos governantes65.
Os direitos do povo ou do corpo político não podem ser
transferidos ou entregues ao Estado. De outra parte, enquanto o
Estado representa o corpo político (nas relações exteriores
destes com os outros corpos políticos) o Estado é uma entidade
puramente abstrata que não é nem uma pessoa, nem um sujeito
de direitos. Os direitos que lhe são atribuídos não são direitos
que ele possua como próprios; são direitos do corpo político, ao
qual se substitui idealmente esta entidade abstrata, e que é
realmente representado pelos homens aos quais confiou o
encargo dos negócios públicos e que são investidos de poderes
específicos66.
Na
modernidade
política,
deseja-se
um
comprometimento social com a democracia, que, segundo Touraine, não se
estabelece somente com a limitação a um poder estatal arbitrário e que não
possui como gênese este Estado:
Na modernidade política, devemos distinguir dois aspectos. Por
um lado, o Estado de direito que limita o poder arbitrário do
Estado, mas sobretudo ajuda-o a se constituir e enquadrar a
vida social pela proclamação da unidade e coerência do sistema
jurídico; esse Estado de direito não está necessariamente
associado à democracia; pode combatê-la, tanto quanto
favorecê-la. [....] A democracia não surge do Estado de direito,
65
Duguit. Lençons du droit public général, p. 140 et seq. Foi no seu velho L’Ètat, lê droit objectif
et la loi positive, e na primeira página do livro que Duguit afirmou: “Queremos fazer, antes de
tudo, obra negativa, mostrar que o Estado não é esta pessoa coletiva investida de um poder
soberano, imaginado pelo espírito inventivo dos publicistas...”. Voltou incessantemente ao
tema, em todas as suas obras posteriores (ef. Traité de droit constitucionnel, p. 345 et seg. t.
1).
66
MACHADO, Edgar de Godoi Mata. Elementos da teoria geral do direito – Belo Horizonte:
Editora UFMG. 4ª edição. p. 336.
mas de apelo a princípios éticos- liberdade e justiça – em nome
da maioria sem poder e contra os interesses dominantes 67.
Leonel68, ao descrever o processo coletivo, estabelece
a distinção entre interesse público e interesse social. Quando há interesse
público primário, há interesse geral, social, de todos os membros da
coletividade. O interesse público primário é, portanto, metaindividual. Na
presença de interesse público secundário, encontraremos aquele que é
inerente à Administração Pública, ao Estado, de sua titularidade, enquanto
pessoa jurídica de direito público.
Mancuso entende que, num sentido amplo, o interesse
social é:
[...] o que consulta à maioria da sociedade civil: o interesse que
reflete o que esta sociedade entende por “bem comum”; o
anseio de proteção à res publica; a tutela daqueles valores e
bens mais elevados, os quais essa sociedade espontaneamente
escolheu como sendo mais relevantes. Tomando-se o adjetivo
“coletivo” num sentido amplo, poder-se-ia dizer que o interesse
social equivale ao exercício coletivo dos interesses coletivos. 69
Poder-se-ia dizer que o interesse público, em sua fiel
acepção jurídica, seria composto pelos individuais indisponíveis e os gerais
ou sociais. Contudo, eles se referem estritamente à sociedade e com isto,
melhor técnica se afere do Constituinte por considerar o interesse social,
atribuindo a sua guarda à Instituição do Ministério Público, termo que diz
mais do que interesse público e é menos comprometido com os eventuais
conteúdos semânticos de determinados momentos políticos, sociais e
históricos. Este interesse social carrega o caráter de indisponibilidade e é
indissociável do processo democrático, já que o seu objetivo é o bem
comum. Além disto, os direitos fundamentais, que têm como espectro o
indivíduo, não deixam de contextualizá-lo na sociedade.
67
TOURAINE, op. cit.. p. 36-37.
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais,2002, p. 90.
69
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos – conceito e legitimação para agir. 5ª
edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 27.
68
Nítido está que a função ministerial não comporta a
defesa do Estado enquanto pessoa jurídica de direito público, sendo que,
até frente a este, deve opor-se para defender os interesses sociais, a ordem
jurídica e o regime democrático. Além do que, lhe é vedado a consultoria
jurídica e a representação de entidades públicas.
Como bem coloca Marcio Túlio Viana, mesmo as
piores ditaduras possuem constituições em que são inseridos os “mais belos
princípios”, o que, no entanto, não elimina o risco de a legislação ordinária
ou os órgãos administrativos se encarregarem de inviabilizá-los. Tomando
por base a assertiva, concebe-se que a luta pela efetivação de tais princípios
é a verdadeira defesa do interesse social. E conclama:
É chegada a hora, portanto, de regrar a própria regra: o deve
ser, que ela é, deve ser mais do que tem sido, baixando ao
mundo dos desabrigados, dos despossuídos e dos envenenados
de toda ordem: pelo ar e pelas águas, pelos barulhos e pelas
comidas, pelas tristezas e pelas misérias.[...]70.
Ninguém poderá se esquivar do compromisso com a
cidadania. Esse compromisso toma agora a feição de responsabilidade com
a própria sobrevivência e pela paz. Para cumpri-lo, é essencial que se
façam críticas e constantemente se procure o sentido do interesse público
adotado.
Nesta sociedade, moderna ou pós-moderna, o Direito é
o instrumento da luta e da conquista. Para J. Elias Dubard de Moura
Rocha, poderá haver uma ineficiência da tutela jurisdicional dos interesses
coletivos nos nossos tribunais:
Se a iuris dictio brasileira negar-se a assumir a sua vocação
conciliatória que a faz de “uma zona de mediação tensionada,
não por exortação do devenir, mas sim, pela vocação que lhe é
conferida pelo próprio sistema normativo da iusfundamentação
– tão caros aos que fazem dos fóruns seu cotidiano de vida -,
perderá, a iuris dictio, como vem perdendo, sua utilidade como
zona de tensão mediada e, quando a justiça burocratizada perde
70
VIANA, Marcio Túlio. Para tornar efetivo o direito ambiental. artigo publicado na Revista do
Ministério Público do Trabalho 3ª Região, vol, 3, 1999- Belo Horizonte: Procuradoria , p. 125
e 126.
a utilidade, a ordem é substituída pela anomia, e a barbárie
sobrepõ-se à civilização.
O cidadão brasileiro tem pressa. Pressa na satisfação de
necessidades adjudicadas por declarações solenes de direitos.
Até onde se aguardará não se sabe. O que se sabe, ou até onde
se pode saber, é que a luta pelo reconhecimento deu lugar à
“Era dos Direitos”, mas também à “Era dos Extremos” que
irrompeu numa violência sem precedentes, não somente pelas
crenças ideológicas e a tecnologia bélica, mas sobretudo, pela
necessidade de se pretender conter o incontível processo
dialético das liberações humanas.71
Portanto, a atenção aos interesses sociais e a
devida
realização destes tornam-se emergentes e urgentes. É imperativo que as
tensões provenientes de grupos, seus conflitos de interesses, sejam tratadas
e devidamente consideradas. Ou então, como coloca Raffaele De Giorgi: É
provável que, neste final de século, as idéias terminem tão cansadas
quanto os homens que as viveram.72
9. Subjetivação do interesse social
A subjetivação do interesse social decorre da
investigação de sua real sintonia com a sociedade. Por vezes, o sujeito do
direito não é o evidenciado, torna-se mascarado e com isso perde a feição.
No entanto, sempre que houver um interesse haverá um sujeito.
Para Carnelutti73, o interesse, como já afirmado, não
tem um significado valorado de alguma coisa; ele retrata uma posição, uma
condição ideal de satisfação de uma necessidade.
A titularidade do
interesse fica clara, sua subjetividade. E [...] não há interesse sem
interessado [...]74.
Atribuindo um liame psicológico entre o sujeito e um
determinado objeto ou bem, Leonel explica que existe esta valoração já que
71
ROCHA, J. Elias Dubard de. Interesses coletivos: ineficiência de sua tutela judicial. Curitiba:
Juruá, 2003, p. 185-186.
72
DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Fabris
Editor, 1998, p. 35.
73
CARNELUTTI, op. cit.. p. 55.
74
CARNELUTTI, op cit.. p. 81.
[...] o interesse liga a pessoa a determinado bem da vida, tendo em vista o
valor a ele atribuído pelo sujeito, em decorrência de utilidade
representada pelo referido objeto75.
Leonel prossegue fazendo a distinção entre o interesse
simples e o interesse legítimo. Para o autor, quando a relevância do bem
não ultrapassa o limite psicológico, não tendo relevância social, haverá
simples interesse. Encontrando respaldo social para este interesse, o
ordenamento resguardará a sua proteção e será um interesse legítimo.
Das afirmações surge uma dúvida: seria então o
interesse social metaindividual, público ou privado? A resposta é
considerá-lo como de conotação pública ou social e não de ligação direta
com um só sujeito que pudesse estabelecer um detentor desse interesse e
daí, então, classificá-lo como público ou privado. Porém, o interesse não é
um direito e dele se distingue. A subjetividade do interesse nem sempre é
individual. É bem explicada por Carnelutti a questão quando afirma que o
interesse é primeiro uma necessidade e, assim:
Todas as necessidades são individuais. A necessidade é uma
atitude do homem, no singular; não existe necessidade da
coletividade como tal. Quando se fala de necessidades
coletivas, emprega-se uma expressão translatícia, para
significar necessidades que não são sentidas por todos os
indivíduos pertencentes a um determinado grupo”76.
O mestre ainda traz mais lume à questão quando
esclarece a importância dos interesses coletivos, pois, se todas as
necessidades pudessem ser satisfeitas por meros interesses individuais, não
seria necessário que o homem vivesse em sociedade. É a composição das
necessidades fundamentais que limita as necessidades individuais. Os
interesses individuais são vistos por sua modalidade, vinculada ao objeto
mediato; e os interesses coletivos serão classificados sempre por sua
finalidade (da família, da sociedade do sindicato, do município, do Estado).
75
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p.90.
76
CARNELUTTI , op. cit.. p. 56.
“Subjetividade
Mauro
de
Jurídica”,
faz
Almeida
uma
Noleto,
importante
em
reflexão
seu
livro
sobre
o
desenvolvimento da cultura jurídica moderna:
[...]teve como implicação o abandono do sujeito, enquanto
referencial ontológico e cognitivo, e, com ele a capacidade de
se pensar a atividade criadora de novos direitos que se
constroem nas lutas pela ampliação dos espaços de cidadania,
convertendo-se o afazer jurídico em idolatria da heteronomia e
do mito da neutralidade77.
Sob o prisma do sujeito social, é preciso entender que
a regra pela regra e o homem sem o social fazem com que desapareça o
espaço da cidadania. Porém, entendendo o sujeito e respeitando-o, a técnica
se alia à política.
O bem-estar geral é a meta de uma sociedade
democrática e, nesta, devem ser resguardados todos os interesses, quer
públicos quer privados, desde que a aferição entre o sacrifício entre um e
outro seja aferido pela preponderância dos Direitos Fundamentais. Com
propriedade, José Antônio Pimenta Bueno afirma que:
Estes dois direitos ou interesses, estas duas sociedades política
e civil, são ambos filhos da razão esclarecida e complexa
natureza social, ambos têm igual e mesmo fim, a felicidade de
todos e de cada um. A diferença está somente em proceder-se,
segundo refletida natureza de cada um deles, do todo para os
indivíduos ou dos indivíduos para o todo. É, certamente,
necessário não só que a comunidade, mas também que cada
indivíduo seja feliz; é o bem-ser destes que compõem o bemestar geral. (grifo)
Se se fosse sacrificar os interesses individuais ao só bem-estar
geral, findar-se-ia pelo sacrifício de grande ou de maior parte
da sociedade, e desse mesmo pretendido bem-ser geral 78.
Deixando de conceituar como sendo interesse social, e
sim, como necessidade, Moura Rocha79 reflete que, em verdade, existem
77
NOLETO, Mauro Almeida. Subjetividade jurídica - A titularidade de direitos em perspectiva
emancipatória . Porto Alegre: Fabris Editor, 1998, p. 35.
78
BUENO, José Antônio Pimenta. op. cit.. p.6-7.
79
ROCHA, J. Elias Dubard Moura.Interesses coletivos - ineficiência de sua tutela judicial.
Curitiba: Juruá, 2003. p. 98 – Por um lado,a adjudicação de necessidades à sociedade em
geral ou a um grupo especificamente refere-se a uma abstração pelo fato de que [...] se
refierem a ciertos tipos o conjuntos de necesidades. Uno pone necesidades parecidas em u
mismo grupo y crea una identidad libre de diferencias.”, contudo, o sujeito contextualizado e
concreto é em si mesmo diferenciado em sua identidade pessoal, como também , na sua
própria contextualização, e qualquer tentativa de um modelo normativo, seja universal, seja
em uma categoria ou classe de indivíduos, será sempre irreal e, até mesmo, em alguns
casos arbitrária.
carências pressupostas, como o alimento, a saúde, a educação, o lazer etc,
que justificariam a adjudicação80 de necessidades a um grupo determinado
ou não. Adverte também que não seria possível ao ordenamento jurídico
imaginar todas estas necessidades, já que elas também emergem de uma
contextualização social, política e histórica.
10. Interesse social, democracia e direitos fundamentais
É compromisso de uma sociedade democrática a
promoção de todos os meios e garantias para a correta ilação da expressão
cidadania. E, também, essencial é a distinção do que importa como
interesse social, quer na existência dos conflitos entre grupos ou na
representatividade coletiva.
Neste sentido e para melhor denotar a importância do
interesse social, poder-se-ia imaginar a hipótese de uma implantação de um
conjunto habitacional para famílias de baixa renda em determinada área de
preservação. A prevalência de um interesse social pelo outro poderá ser
aferida pela supremacia da dignidade humana enquanto valor a ser
perquirido. Assim, o núcleo da organização constitucional que é o ser
humano estará atendido. Neste viés, Marçal Justen diz que:
[...] nem sequer há um modo prático de descobrir o interesse
da
“maioria” do povo. É que não existem maiorias
permanentes, que tenham interesses comuns. Não existe um
conjunto homogêneo de interesses privados ao qual se possa
atribuir a condição de interesse da maioria. Na sociedade
moderna, há uma pluralidade de sujeitos, com interesses
contrapostos e distintos.
Isto conduziu à consagração de um entendimento traduzido nas
palavras de Cassese, no sentido de “não existe o interesse
público, mas os interesses públicos, no plural’.81
Trata-se, portanto, de necessidades como carências pressupostas desde uma delimitação
de categorias ou classe de indivíduos mais ou menos extensas as quais, a despeito de suas
diferenças concretas, identificam-se pelo simples fato de pertencerem a tal ou qual categoria
ou classe, e se adjudicam carências que levam à concretude das necessidades.
80
As ações governamentais que têm por base a garantia da habitação, da educação, a fixação
de um valor de salário mínimo etc são exemplos destas adjudicações.
81
JUSTEN FILHO, Marçal, op. cit., p. 43.
Arremata o autor que, para a aferição do interesse, não
se trata de um exercício de técnica, mas de um exercício de ética, pelo qual
se verifica a natureza dos valores e das necessidades envolvidas.
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