1 2 olho no breu 3 4 ARAMIS ASSIS olho no breu 1ª edição 5 Autoria: Aramis Assis Diagramação: Eloah Barreto, Aramis Assis, Ana Maria Pereira Capa: Eloah Barreto e Aramis Assis Ilustrações: Júlia Fagundes, Arquimedes e antigos internos do Hospital Jorge Vaz Fotos: Aramis Assis Revisão: Aramis Assis e Janaína Nunes 6 “Que mal porém tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo.” Clarice Lispector 7 8 Barbacenas em cenas A história da humanidade sempre se manteve permeada de paradoxos quanto à loucura. Ela se mostra reverenciada e cultuada em figuras misteriosas, religiosas e míticas; ou discriminada com a exclusão dos considerados “loucos” da sociedade, chegando até a serem impelidos pela segregação que as correntes e camisas de força os obrigaram. O Iluminismo trouxe, particularmente na França e Alemanha, as grandes instituições de despejo, com loucos, marginais, mendigos e ladrões internados em suas próprias misérias. O doente mental era considerado perverso e sem distinção moral. O manicômio criado por Pinel, no século XVII, para receber esses doentes mentais que viviam misturados a marginais e mendigos, se solidificou por início como um avanço no atendimento psiquiátrico, tornando-se posteriormente um símbolo de repressão ideológica e comportamental. A indústria econômica e seus grupos se apoderaram dessa instituição, então, e passaram a se utilizar dela como instrumento de fabricação de alienados, crônicos socialmente. Em 1903 os primeiros desgarrados e lunáticos chegaram ao de Barbacena para então serem considerados pacientes, ou seja, de indigentes passaram a ser cobaias do insurgente sistema psiquiátrico; já que o serviço de psiquiatria de Barbacena surgiu na virada do século XIX para XX, e se ativou com a chegada dos primeiros doentes mentais. Uma virada de século acompanhada de grandes mudanças sociais, com o ciclo do petróleo, a fotografia, cinema, luz elétrica, greves de trabalhadores pelo mundo, monopólio do café e imigrantes no Brasil, e a psicanálise com os estudos do inconsciente de Freud. O município passa então a ser considerado a cidade dos loucos, 9 evidenciado por uma época em que havia mais pacientes manicomiais que próprios habitantes. Barbacena estendeu laços com a história do Brasil no século XIX, tendo papel importante na Inconfidência, no Dia do Fico, na Revolução Liberal de 1842 e com homens para a Força Expedicionária Brasileira que lutou na Itália. Nessa miscelânea ativa política, Barbacena ofereceu todo o seu apoio a D. Pedro I, quando este estava confuso com sua posição no Brasil, em crise com a Corte Portuguesa, e resolveu permanecer no país indígena, o que lhe resultou a excelência do primeiro imperador do Brasil, chegando a nomear Barbacena no ano seguinte do Dia do Fico, de “Nobre e Mui Leal Vila de Barbacena”. Por essas e outras complacências imperiais, o senador Xavier de Veiga, no final do século XIX, indicou o município a sediar a Capital do Estado de Minas Gerais, com uma Ouro Preto desgastada e sem condições de continuar a ser capital. Indecências do destino a parte, a Serra do Curral, nomeada Belo Horizonte, tornou-se a nova capital em 1897, e Barbacena, aperreada de importantes políticos e fracassada pela perda de status, foi possivelmente presenteada com a criação de um centro para tratamento dos doentes mentais, na época, alcunhados como alienados. Da cidade capital para cidade da loucura. Nenhum cuidado ou atenção era dado aos portadores de doenças mentais, no Brasil, até o século XIX, sendo o primeiro hospital psiquiátrico do país criado em 1841, no Rio de Janeiro. Em Minas Gerais eram os porões das Santas Casas, como de Diamantina, que recebiam os “doidos”; e em 1889 foi inaugurado o Sanatório de Barbacena, que ao mesmo tempo era utilizado como hotel em algumas épocas e casa de repouso para doenças nervosas, um refúgio de loucos e sãos. As terras e o antigo casarão passaram por vários donos até enfim serem propriedades do Comendador Francisco Ferreira e os médicos Gonçalves Ramos e Rodrigues Caldas, inauguradores do sanatório, que rodeado de luxo ainda possuía uma estação de trem da Estrada de Ferro D. Pedro I. O governo estadual criou a Assistência aos Alienados de Minas Gerais, em 1900; após a falência do Sanatório, o governo mineiro adquiriu-o e ali in1 0 stalou em 1903 a Assistência aos Alienados, marco da centralização de todo o atendimento psiquiátrico de Minas Gerais, durante prolongados anos, constando seu primeiro interno como Francisco Gonçalves, internado em 27 de dezembro de 1903, aos 27 anos. Relatos também contam que devido a uma falta de recursos para construir o Hospital Central, seu primeiro diretor, Dr. Joaquim Dutra, indicou a cidade de Barbacena como sede do hospital, se localizando no prédio do sanatório particular já fechado. Barbacena também foi escolhida como “cidade ideal” para a instalação de hospitais, destinados a doentes físico-mentais, devido a seu clima ameno; destacando entre tantos o ex-Presidente Marechal Floriano Peixoto, que em ato de reconhecimento pela recuperação de sua saúde em Barbacena, tornou-se naqueles tempos, divulgador dos benefícios oferecidos pelas condições climáticas da cidade. A estação ferroviária Sanatório, fundada três anos depois da inauguração do futuro Hospital Colônia, em 1892, traz mitos e mistérios sobre o trem que ali passava, o famoso “trem de doido”, já citado por Guimarães Rosa, que possuía várias vagões com grades nas janelas, onde provavelmente os loucos eram postos, trancados e chegavam as dezenas na cidade. Devido à falta de diagnóstico vários mendigos, bêbados e outros indigentes deviam ser jogados junto aos doentes mentais para um passeio no trem de doido, com destino a Barbacena. Em trinta anos a instituição se estabeleceu de forma aceitável, até paulatinamente chegar à superlotação, com os pacientes de diversas regiões que acabavam abandonados em Barbacena. Com essa indecente crescente população, o Hospital Colônia se tornou um reduto de rejeitados, um depósito de vegetais. Cálculos apontam a morte de 60.000 pessoas no hospital. A região de Barbacena tornou-se um reduto de enfermos mentais, com cerca de quatro casas de saúde particulares, o Sanatório Barbacena, o Manicômio Judiciário e o Hospital Colônia, este último que chegou a uma média de 6150 doentes alocados, em determinada época. Concomitantemente a cidade cresceu, abrigando cerca de 100.000 habitantes na virada do século XXI. Denúncias da imprensa, elucidando as péssimas condições de vida no Hospital Colônia, só vieram a aparecer em 1958; e em 1971 o Hospital é 1 1 mostrado como uma estrutura violenta, de instalações precárias e alto índice de mortalidade, sem citar os convênios com as faculdades para o fornecimento de cadáveres, chocando a opinião pública. O cineasta Helvério Ratton criticou o hospital em sem documentário “Em nome da razão”, e o psiquiatra italiano Franco Baraglia comparou-o a um campo de concentração nazista. “Os Porões da Loucura” muito vem a retratar sobre os anos de ditadura manicomial, em que o doente mental era levado para um manicômio para jamais ser lembrado pela família e sociedade, oculto atrás dos muros e atrás de sua própria indigência. O museu da loucura de Barbacena, situado na Fundação Hospitalar do estado de Minas Gerais (FHEMIG), expõe permanentemente essas memórias e fotografias, do repórter do Estado de Minas Hiram Firmino, em um tempo que os corpos dos doentes, já mortos, eram utilizados pelas faculdades de Medicina de Barbacena para estudos. Alguns corpos eram cozidos em latões, defronte a outros doentes, para que a carne desgarrasse dos ossos e fossem oferecidos às faculdades, sem pele nem alma, somente os esqueletos. O Hospital Colônia muda sua estrutura e tratamento, e passa a ser chamado Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, em 1980; mesma década em que o projeto de lei federal, de 1989, propõe o término gradual da antiga estrutura manicomial, acompanhado da substituição deste por outras formas de tratamento, apesar do vocabulário “nosocomia” existir desde as raízes gregas, em que “nosos” se entende por doença e “Komein” significa cuidar, tratar. Somente em 1995 um projeto de lei estadual propõe a reintegração social do doente mental, e determina a extinção progressiva dos manicômios acompanhados por outros métodos de atendimento. Esse movimento antimanicomial esteve presente desde as primeiras manifestações dos movimentos de contra-cultura, da década de 60, juntamente com o movimento hippie e o movimento estudantil europeu. Idéias mais tarde reforçadas pelos referenciais humanistas ocidentais, que priorizavam a liberdade e seu valor nas inter-relações da sociedade. O antigo hospício propiciava como primeira conduta, a reclusão, utilizando vários métodos para o tratamento, como eletroconvulsoterapia (eletrochoque), contenção (uso de correia no pescoço), e a psicofarmatologia, 1 2 presente até hoje. Desde 1900 já se objetivava a recuperação de um doente mental por meio da laboterapia, indicada como uma das terapias mais eficientes no início da psiquiatria, em que já se usava o trabalho agrícola, principalmente, visando uma canalização das energias do paciente em atividades de prazer, construtivas e ocupacionais. Da reforma psiquiátrica do Brasil as liberdades sindicais, as organizações civis, o movimento nacional pela anistia, a redemocratização e abertura político-partidária em muito contribuíram para sua implementação. Encabeçada pelos profissionais da área de saúde mental, divulgadores de novas condutas terapêuticas, a reforma propunha práticas alternativas, que desenvolvam autonomia e capacidade de assumir novas posturas do paciente em relação a sua própria doença, numa expansão além muros. “Abrir uma instituição, o manicômio, não é apenas abrir as portas, mas abrir nossa cabeça em confronto com aquele que nos procura” (Franco Basaglia) Um decreto de 31 de janeiro de 1927 criou o Manicômio Judiciário de Barbacena, somente inaugurado no mesmo dia e no mesmo mês de 1929, ironicamente ou propositalmente a data de meu aniversário, só que dezenas de anos após, ou em 15 de junho de 1929, que depois vim a ler. Um novo decreto trocou o nome para Manicômio Judiciário Jorge Vaz, em 29 de maio de 1956, homenageando seu primeiro diretor. Em 1976, foi realizada uma reforma geral no prédio principal, sem que fossem alteradas ou modificadas suas características de estilo francês, e construído o pavilhão feminino, localizado na área fronteiriça ao prédio principal, destinado somente às recuperandas, com maior numero de leitos e instalações mais condizentes ao seu fim. Após a reforma o estabelecimento se tornou mais gabaritado, e acolher e custodiar um número maior de internos e internas, que até então era de aproximademente 160 homens e 20 mulheres, passando para 200 homens e 50 mulheres. Tudo passou a ser reestruturado, as camas que eram de ferro (catres), muitas das vezes destruídas para servirem de material de defesa, agressão ou de fuga, foram substituídas pelas de alvenaria, os alojamentos e enfermarias ampliados e as celas recuperadas. 1 3 Criou-se um gabinete dentário, o ambulatório e a enfermaria. A cozinha foi ampliada e equipada, os refeitórios azulejados com mesas de alvenaria, banheiros construídos, corredores recuperados, pisos novos, muros de segurança novos e outros recuperados, a área externa foi urbanizada e tetos recuperados. Houve uma grande transformação nos aspectos higiênicos, humano e social, acompanhados pelo aumento de funcionários para cobrir a deficiência em todos os setores, entretanto sem o hospital perder sua finalidade jurídica-custodial. Tendo seu nome mudado novamente, em 1987, para Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz, subordinado à Superintendência de Segurança e Movimentação Penitenciária, esta Departamento da Secretaria de Estado da Justiça e de Direito Humanos de Minas Gerais; o hospital é simplesmente conhecido como Manicômio Judiciário, já dirigido por mais de treze diretores, entre médicos e advogados, e se localiza no antigo Morro da Forca. Tradicional pela lenda de ser o morro onde se executava condenados, conta-se de um tempo que a punição era executada através da execução, pela forca; que o condenado, geralmente negro, assistia uma missa na igreja do rosário e então era conduzido, com orações e com o padre, até o morro da forca, para enfim ser executado. Dr. Jorge de Paula Vaz, médico-psiquiatra formado em Medicina, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi o primeiro diretor-fundador do manicômio judiciário de Barbacena, que acompanhou a instituição em sua instalação e organização inicial, até deixar a direção em 1931 e transferir-se para o Rio de Janeiro, como Psiquiatra e Cientista em Saúde Mental, configurando-se reconhecido em psiquiatria. Além de médico clínico – psiquiátrico e jornalista, era um crítico político e revolucionário. Jorge Vaz faleceu em 1951, constado como um último registro da Família Vaz em Barbacena, último galho desse passado. Considerado Unidade da Secretaria de Estado de Defesa Social, o hospital funciona com Exames Periciais de Sanidade Mental, de Cessação de Periculosidade ou de Dependência Toxicológica, formulando laudos periciais psiquiátricos para a justiça; com a aplicação da medida de segurança e 1 4 guarda para tratamento de pacientes considerados inimputáveis pelo estado, ou seja, sem condições de se imputar culpa pelo crime cometido, devido suas perturbações mentais, contido no código penal. Em seus aposentos o manicômio consegue comportar 161 homens e 54 mulheres em dois prédios que, juntamente com a horta, lavanderia, refeitório, sala de terapia ocupacional, e demais dependências, compõem a Unidade. O paciente que é encaminhado a Tratamento Psiquiátrico permanece o tempo necessário até sua “recuperação”. Vários condenados que apresentaram crises nas penitenciárias, são encaminhados para se estabelecer um tratamento mais adequado ao detento, agora paciente; ou o interno voltará ao local de origem para continuar a cumprir sua pena, agora detento novamente, ou permanecerá no manicômio até sua alta ou término de sua pena. O juiz aplica a Medida de Segurança quando o paciente é inimputável, determina um prazo mínimo, sujeito a prorrogações, de um a três anos para o Exame de Cessação de Periculosidade, até a periculosidade do paciente ser considerada cessada. Liberado do hospital, o tratamento do paciente é continuado, e se necessário em regime ambulatorial. Quando se aplica a Medida de Segurança, a internação do paciente não deve ser compreendida como pena, visto que a pena implica a culpa do indiciado, e o tratamento da Medida de Segurança visa a periculosidade do interno. Dois prédios distintos compõem a unidade, e sua estrutura funcional e administrativa está distribuída por vários setores: direção, secretaria, administração, penal, neurologia, perícia médica/psiquiátrica, psiquiatria/ clínica, medicina/clínica, psicologia, odontologia, enfermaria, farmácia, assistência social, disciplina e controle, assistência religiosa, terapia ocupacional, almoxarifado, copa e cozinha, lavanderia e rouparia, transportes, identificação e manutenção dos prédios. O atual Hospital Jorge Vaz possui Dr. José Maria Fortes Carvalho como diretor Geral, Cláudio José dos Santos como diretor de segurança. O diretor Administrativo é Paulo Cesar Pereira, e Dr. Sebastião Vidigal, diretor de Saúde em Atendimento. A instituição já recebeu visitas ilustres do Presidente Juscelino Kubtscheck e do Dr. Trancredo Neves, porém não internados. 1 5 1 6 Nos Poços Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dós. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê. Caio Fernando Abreu 1 7 1 8 A paciência de Eloah, Catula e Janaína Ao acolhimento de Eliane, Magda, Gustavo, Jack, Meire, Cibele, Paulo C, Manuel e todos navegantes do Jorge Vaz. Ao amor como cura mútua. 1 9 ,arbmos alep los O o l h o n o 0 b r e u2 Fumo de rolo Já havia dois dias que eu estava trocando passagem na rodoviária de Viçosa, adiando minha viagem à Barbacena, desconsiderando o fato de que quando enviei o ofício, todo formalizado, me propunha a começar as visitas em dezembro do ano passado. Abarquei em uma enrolação sem fim. Preguiça de ano velho, vontade de ano novo, quem sabe; ou receio de aventura em universos tão desconcertados, sem melodia, desconectados dos outros por cento do mundo, ou seria um por cento. A realidade, minha, claro, é o corrente desejo do submundo da mente humana, sem egos ou superegos. Acredito que ao final do meu trabalho, sem conclusões exatas já que esse não é o meu objetivo, não terei nenhuma explicação referente à sanidade do homem, tampouco terei compreendido os labirintos da mente de um paciente manicomial, mas aprenderei mais com a convivência com pessoas que julgamos ser tão diferentes, conforto e um sossego pros meus devaneios, um crescimento como ser (ser) humano. E desde agora então inicio e compartilho essa minha desventura aventura. Um leão e uma leoa na entrada, imponentes estátuas de branco cor de gesso, símbolos da virilidade que existe em nós, aquela que desde cedo aprendemos a desintegrar de nossos moralismos, pois nascemos sabendo que não somos animais, somos algo sem nome ou simplesmente evoluído. Nessa receptiva entrada olhei bem fundo nos olhos desses felinos, procurando algum sim, e o que vi foi outro personagem nesse cenário bucólico, uma cobra enrolado aos pés do leão, essa nossa venenosa consciência subindo pelas patas, a não ser por um detalhe sórdido, a cobra havia perdido a cabeça. E com tantas abstrações e pensamentos metafóricos eu nem havia entrado no manicômio ainda e era a minha intacta cabeça que já começava a se perder no doer. 2 1 Sem câmera fotográfica, gravador, filmadora, e demais parafernálias. Eu já sabia. Entrei por corredores vazios de modernidades, um museu com móveis antigos, máquinas de eletrochock e camisa de força emoldurada na parede, cicatriz dos velhos tempos e seus violentos procedimentos sem o uso da química com seus mil compridos e cérebros derretidos. Apertos de mãos, apresentações, e explicações do por que da minha estranha presença ali para os agentes, vigilantes, médicos, diretores e funcionários, já que o manicômio tem um procedimento de segurança similar com o sistema penitenciário. Senti um pouco de frio, gostei, havia dias que eu vivia empapado de suor daquele verão quente de Viçosa, e agora eu me sentia aconchegado nessa cidade de alta altitude, cidade fria cor de cinza, deslumbrado dentro de um antro de psicóticos, em breve pessoas comuns, olhos nos olhos. Dois agentes nos acompanharam, eu e Elisa, minha supervisora no manicômio e grande presença amiga. Fardas, armas, grades e grandes cadeados. Tudo ecoando pelas grades de ferro e a cada passo uma sinfonia de sons surdos pelos corredores cheios de gritos desconhecidos, distantes. Entramos na ala masculina, e passamos pelas celas de isolamento coletivo onde o grau de periculosidade dos pacientes é aceitável para o convívio em grupo. Aquela primeira cena me levou a nostalgias da infância de quando minha comunidade, e eu também ia, visitava o asilo em Bom Despacho. Homens cheirando a hospital, dopados de remédios, cigarros de fumo de rolo e pijamas mesma cor, afundados em camas hibernadas pelos cobertores ou andando de canto a canto repetindo gestos epiléticos, e aquele mesmo olhar de amor besta em suas feições derretendo, como se a pele desistisse da vida e ficasse dependurada no que restou do corpo. Tudo isso, ainda quadro de tinta em movimento, atrás das grades, e eu sabia que era como essa recordação da infância, com exceção da diferença de idade, se é que a maioria me pareceu com aspecto envelhecido, como se já estivessem ali por uma vida inteira. Grandes trabucos de papel enrolavam mal o fumo de cigarro, formando um cigarro com mais ar do que fumo enrolado dentro, quase um pastel, que eram fumados o tempo todo por quase todos; um cheiro de fumo mesclado com doentes que ainda sinto em dias frios. Uns conversavam sem parar e eu não entendia nada, mas na minha espontaneidade forçada, necessária para dias de intenso convívio social, 2 2 conversava com risadas e sílabas arrastadas; outros olhavam desconfiados, coisa de esquizóide com mania de perseguição observando tudo o que acontece; e os demais alheios aos acontecimentos, criando sua própria realidade fora da realidade da sociedade, eles e seu próprio mundo de que eu tanto gostaria de ser núcleo. Várias celas de isolamento coletivo continuavam a encher o corredor de homens aparentemente comuns, curiosos, aniquilados por algum delito cometido em suas vidas. Profeta do tempo e das mudanças climáticas, padre pedófilo que ficou conhecido pela TV da região de Minas, um pistoleiro famoso encontrado pelo programa exibido pela Rede Globo “Linha Direta”, e outras figuras iam preenchendo aquele cenário de fatos homicidas e fatos do imaginário. Passamos pelo refeitório, enfermaria e conheci um corredor escuro, o mesmo a não ser por uma janelinha colocada perto do teto. Reconheci aquele ar rarefeito de celas de isolamento que sempre permeou meu imaginário em noites após assistir filmes sobre a ditadura militar. Em pequenas celas pareadas se encontravam os pacientes isolados, de alto nível de periculosidade, presos em sua própria solidão. Mais carrancudos e desconfiados que os das celas de isolamento coletivo, esses também aparentavam melhor saúde física, mais altivismo, com uma energia aparentemente amortecida, contida dentro daquela pequena cela prestes a entrar em ebulição. O que quase todos internos comungavam era o pedido desesperado para acender seus cigarros, como se fosse o último fumo, último trago da fumaça de encontro ao pulmão. Como é proibido o acesso a materiais cortantes, isqueiros e demais, todos os agentes do manicômio estão sempre preparados com isqueiros nos bolsos. Amanhã eu é que vou levar um isqueiro, quem sabe minha presença soe mais simpatia. Não muita intervenção era um propósito antes da primeira visita ao manicômio, mas só minha presença já bastou, eu já os havia invadido. Caminhando para o pátio do banho de sol percebi pelas janelas gradeadas a figura de um homem nos seus 60 anos, estereótipo de aposentado inquieto, sozinho no pátio e no único pedaço daquele quadrado em que frestas de sol insistiam em adentrar. Descemos o pátio e nos aproximamos dele; indagado 2 3 pelo agente sobre seu crime cometido, a única frase que nos disse e ainda a repetiu foi “eu peguei a menina, levei ela pro mato, beijei ela todinha e depois matei, infelizmente era minha sobrinha”. Por mais abrupto que fosse aquela declaração, não consegui imaginar a cena, tampouco a pequena menina, me prendi ao olhar daquele homem, que se transfigurou ao revelar que o crime cometido foi com sua sobrinha. Um olhar que num primeiro momento era seco e vivo tornou-se frio e morto. Lembrei-me de estudos e suas estatísticas, afirmando que a maioria dos psicóticos comete os delitos dentro da própria família, e a consciência desse ato demora um tempo a aparecer devido ao estado de torpor, ou nunca mais aparece; e deixamos o pátio, o velinho e sua consciência, que come a si mesmo, mas ainda pulsa. Alguns internos têm permissão para realizarem trabalhos dentro da instituição, como faxina e capina, e também realizam trabalhos artesanais na terapida ocupacional, artes que não consegui contemplar, pois estavam trancadas em uma sala e as janelas atacadas de raios de sol ofuscaram meu olhar. Conheci a horta do manicômio, uma grande horta de cuidados e verdes vibrantes, com vários pacientes trabalhando no seu cultivo, feli- zes soltos. Indaguei o agente responsável pelos internos na horta, que é horticultor também, se não era arriscado o seu trabalho, já que não pude deixar de notar enxadas e outras ferramentas de fácil acesso; simpático ele apenas respondeu que havia entregado pra Deus e que ali dentro todos corriam perigo, não é mesmo? Mais apresentações e apertos de mãos; numa instituição fechada como aquela minha presença tinha que ser todo tempo justificada. Eu, um estranho no ninho. Conheci a diretora da ala feminina e nos dirigimos para lá, e dos fortes agentes masculinos agora a escolta era feita por uma única agente feminina. A ala feminina ocupa um espaço menor e se localiza perto da horta, separada da ala masculina que fica no prédio principal com a entrada de felinos ameaçadores; além da ala ser menor o manicômio possui em suas dependências muito mais homens que mulheres em suas dependências. 2 4 Carência. Talvez esse foi o primeiro sentimento que veio das pacientes de encontro ao meu. Cabelos esvoaçantes, mãos agitadas, olhos de quem mendiga uma atenção. Divididas em grandes duas celas de isolamento coletivo, mal nos aproximamos e várias delas se amontoaram nas grades, curiosas sobre minha pessoa, carinhosas para com Elisa, psicóloga de muitas delas. Mas uma mulher menina, cabelos pretos escorregadios, magra e de feições congeladas como se o rosto estivesse anestesiado, congelou também minha atenção. De uma estranha beleza, ela jogou os cabelos de lado, apoiou as mãos uma sobre a outra e perguntou a Elisa sobre o andamento do seu processo, pois havia muito tempo que ela estava ali e desejava muito sair. Esse era o prólogo mais ouvido durante todo o dia, todos queriam informações sobre seus processos, laudos e demais procedimentos para uma quem sabe posterior liberdade, tão almejada de ser conquistada. A voz baixa, lenta e bem articulada dessa moça foi o melhor som de lamento que eu poderia guardar de minha visita; seu olhar totalmente dissimulado a melhor visão de de olhar psicopata, olhos de vítima. Seus gestos delicados como de felino manso, mas mal intencionado, me arranharam as entranhas, trazendo a tona uma repulsa, que me impossibilitou de interagir com aquela mulher, tão perto e tão distante de mim, e não tive dúvidas sobre quão meticulosa aquela forte presença me aferia. Quando nos dirigimos para a segunda cela me precipitei em perguntar à Elisa os delitos que ela havia cometido, e ouvi: “ela tentou matar a mãe e a irmã e ainda pretende finalizar. Ela é muito perigosa”. Sim, eu sabia que a partir de então eu desprenderia cuidados e atenção para aquela menina, personagem pálida do meu livro de memórias. Silvia Lima dos Santos, nascida em Monte Carmelo, Minas Gerais, apresentou várias crises convulsivas na sua infância, tomou Gardenal até seus 22 anos e não teve mais crises. Foi internada uma vez pela mãe, nega uso de quaisquer drogas ilícitas, etilismo ou tabagismo, e se recusa ao tratamento psiquiátrico. Silvia foi internada no Manicômio Judiciário de Barbacena em 2008, em bom estado lúcido, consciência cronológica, demonstrando caráter manipulador, reivindicante e prolixo. 2 5 Graduada em História, Sílvia residia no Rio de Janeiro onde trabalhava. Argumentando saudades de seus sobrinhos viajou a Monte Castelo, e ao encontrar a mãe e a irmã, as tratou com frieza. A mãe foi lhe mostrar o quarto em que deveria se abrigar, e quando se direcionou à janela para abri-la, foi atacada de surpresa nas costas, pela filha, com vários golpes de facas. Silvia só não causou o óbito de sua mãe pela intervenção rápida da irmã, que também acabou sendo atacada por outra faca que Silvia trazia na bolsa. Novamente, só não veio a causar a morte da irmã impedida agora pelo irmão Silvia foi acusada pela justiça de dupla tentativa de homicídio intencionado, já que chegou à residência portando duas facas, e encaminhada para o manicômio judiciário por não possuir condições mentais suficientes para entender o caráter do seu ato e por ser considerada de agressividade elevada. Silvia alegou que desentendeu com a mãe e no calor da discussão a agrediu com a faca; afirma que sempre foi perseguida pela família, já foi expulsa de casa e já a prenderam sem ter feito nada. “Estão mentindo (...) sou doce, educada, procuro fazer amizade”, e ainda disse que a mãe não a deixava viver, por isso a agrediu. Segundo sua família ela sempre fugia de casa, possui mania de perseguição e não fazia tratamento médico porque afirmava não possuir qualquer tipo de doença mental. Silvia negou fazer o exame de corpo delito e pediu o isolamento no nosocômio por não querer ficar com as outras internas, que segunda ela, possuem problemas mentais. Ao chegar à instituição foi considerada com memória bem preservada, apresentando argumentos fantasiosos, articulando-se com sua personalidade calma e perfeccionista, com bom aspecto e aparência física, e atitudes predominantes dissimuladas e viscosas. Considerada pelo prognóstico médico portadora de psicose esquizofrênica, permanece no manicômio por período indeterminado devido a sua alta periculosidade não cessada, e diz que o medicamento não lhe faz diferença, apenas causa sono pesado. “Se eu estivesse em casa e alguém entrasse no banheiro para me ver tomando banho, eu poderia matar em legítima defesa”, disse Silvia ao se referir às agentes de vigília na hora do banho, e ainda conclui “que o Jorge Vaz é um 2 6 hospital muito ruim”. Outras internas me despertaram o interesse, como uma bonita loira de cachos encaracolados. De um transparente astral e uma felicidade quase infantil, ela se insinuava ao vento, como uma adolescente apaixonada, esperando o namorado chegar. Uma frondosa mulher, gorda e forte, até teria me causado medo se não fosse seu rosto todo borrado de cores de maquiagem e um batom além do contorno dos lábios; com a voz engasgada e um sorriso patético, mais parecia uma criança na cena do flagra, tentando esconder a maquiagem da mãe entre as mãos irriquietas. Deitada em um canto, outra mulher, carrancuda e de ossos duros marcando o rosto, aparentava sempre estar ameaçando qualquer vida que invadisse seu espaço; com postura de uma líder senti sua hierarquia no ambiente, a “mulher macha” da cela. Com carinha sapeca tentando convencer outra de sua mais nova peripécia, uma simpática paciente se esforçou para me explicar que estava ali injustamente, pois os espíritos que entravam nela eram os responsáveis pelos seus crimes cometidos. Em matéria de espíritos, ou falta de matéria, até já tentei ler Alan Kardec, mas sou um verdadeiro leigo e prefiro não discutir, os mistérios de nossa existência é o que existe de mais perigoso em nossa essência. A última presença que me atraiu, nem vi seu rosto, tampouco seus olhos de que sempre estimo, apenas uma franja mal-cortada e um beiço retorcido. Acuada em um canto, de cabeça baixa, em movimentos epiléticos com as mãos e os pés, era a menor delas, a mais lunática, perturbada, esquizofrênica; e diante de tantas características acentuadas, me pareceu a mais ilegível, num universo difícil de encontrar. Nas celas individuais femininas nenhuma presença foi-me apercebida, todas pacientes se encontravam deitadas nas camas e encobertas. O único pedaço de vida que vi, além das respirações e roncos ofegantes ressoando, foi metade de uma bunda avantajada que não suportou os cobertores e nem as roupas de baixo; metáfora da podridão do ser humano, escondida pela maioria de nós, despudorada no interior extravasado de outros. Já direcionando pra saída fiquei ansioso, minhas energias se consumiram pelo odor característico impregnado naquelas grades que separam 2 7 vidas. Passamos pela sala de enfermagem com suas caixas transparentes divididas em vários quadradinhos, cada um destinado pra uma paciente, recheados de pílulas vermelhas, rosas, brancas e até azuis. Não visualizei nenhum remédio, calmante ou entorpecente na cor alaranjada, cor de grande estima dos debilitados psicologicamente e emocionalmente. Cor quente, forte, que desperta emoções em corpos fortes de almas fragilizadas. O último traço que fotografei como lastro, um quadro sozinho em uma sala branca usada para acompanhamento psicológico de rotina dos pacientes. Ele se encontrava atrás de uma mesa de atendimento de forma que ficava de frente para as internas quando eram atendidas. Sua beleza não se encontrava pelo fato de ter sido desenhado por um esquizofrênico, que já perambulou pelas dependências do manicômio, e sim pelos traços nervosos rasgados pelo quadro que formam uma mulher forte e sexual, acalentando um filho nos braços, olhando fixo para quem quisesse interrogá-la. Cabelos ao vento, um sorriso largo e dos rastros cor de lápis um caminho vai se delineando por detrás da força viva daquela mulher de grafite, perdendo-se o trajeto em uma bela paisagem colorida, uma tradução da natureza em contornos psicodélicos, pincelados com cores tropicais. Um quadro que, das cinzas grafitadas de uma imponente mãe, transformam-se em arco-íris misterioso da natureza de nossas vidas. A única arte que vi naquele dia, escondida em um quarto indiferente de um hospício. Será que algumas internas já a contemplaram? Será que já se identificaram com os olhos vivos daquela mulher? Quantos “serás” eu ainda formularia ali? Despedi-me das agentes da entrada da ala feminina, e sai do nosocômio com aqueles olhos em mim, olhos que quem diria, eram do próprio artista que os desenhou. Quem sabe por desventura ou sorte inoportuna eu os reconheça um dia. 2 8 Sem inícios nem re-voltas Nesse segundo encontro com esses homens e mulheres desventurados por suas condições psiconeurológicas e deturpados contextos sóciofamiliares, vivi as primeiras restrições de que tanto temia para a produção do trabalho. Apesar de desconhecê-las eu já as sentia pelo sistema de carceragem e todo processo de vigilância do hospital Jorge Vaz. Explicitei minha vontade inicial de acompanhar alguns pacientes para uma possível interação com os mesmos, a fim de que estes, dotados de livre-arbítrio, transcorressem espontaneamente sobre a história e fatos de suas vidas. Porém, a maioria dos pacientes do manicômio possui pouquíssima memória armazenada, ou nenhum resquício da mesma; não detêm consciência cronológica dos acontecimentos passados, ou ficam a deambular em suas falas, afirmando que possuem filhos em um momento, como exemplo, e logo em seguida contradizendo dizendo não possuir nenhum filho. Assim, o número de pacientes já muito foi restringindo pela impossibilidade de se extrair vivências deles, até porque não pretendia e não pretendo pressionar ou forçar essas consciências cicatrizadas, ainda mais dentro do sistema de carceragem hospitalar em que passam seus dias, suas vidas. A continuar as limitações, é intransponível, inseguro e antiético o modo como gostaria de obter esse contato com os vulgos “loucos”, pois além da presença de um agente de segurança, é indispensável a presença do responsável pelo acompanhamento clínico ou jurídico dos pacientes, que também é o responsável por conduzir o diálogo e interceder pelo mesmo; até porque os internos se mantêm acanhados na presença de outra pessoa fora do seu convívio, o que denota desconfiança e retração, omitindo e tro2 9 cando fatos, ou simplesmente se mantendo mudos. Um pouco desmotivado pela minha ingenuidade referente a essas limitações, que eu já deveria ter consciência por se tratar de um manicômio judiciário com grande parte dos internos diagnosticados com alta periculosidade, ainda esbarrei no tempo disponível para coletar esses relatos, devido a curta duração dos atendimentos de rotina e a alternância significativa de dias entre um atendimento e outro, por não poder exigir muito da capacidade e emoção dos pacientes. Somando todos esses percalços à impossibilidade de longa permanência no município de Barbacena e no “Jorge Vaz”, assim e, contudo, desde já deixo claro todas essas barreiras não exploradas anteriormente, por desatino, e vim saber no meu primeiro contato a esse mundo atrás dos muros. Devaneando entre os ventos lacerantes das manhãs de Barbacena, passei entre os felinos da escada sem lhes ceder uma ferroada de olhar qualquer, desci o caminho de pedras e húmus rumo à ala feminina, decidido a acompanhar o atendimento psicológico de Elisa às pacientes. Cortês, sorri inocente e expliquei a minha presença ali para as agentes prostradas na entrada: um hábito repetitivo e chato que tive de aprender a ceder, pois há vários turnos com vários profissionais diferentes que atuam dia sim, dia não, ou raramente no hospício. O entediante, verdade dita, era repetir, em virtude da pergunta unânime, que eu não sou estudante de Psicologia e sim, quem diria, Jornalismo. Sentado ao lado da psicóloga, com bloquinho e caneta sem tampa na mão, pés e pernas sem lugar, ora cruzados, ora na circunferência de noventa graus, pude alongar meus braços ao alto, estralar algumas vértebras irrequietas e bocejar, como quem não está com sono, mas não tem nada a dizer. Mirrada, com o uniforme da instituição lhe saltando os braços, bem maior do que seu corpo, Meire entrou na sala permeada de uma penumbra clara, aquela mesma sala do quadro dos olhos de homem e de mulher, olhos de esquizofrenia. Ela sentou rápida defronte a mesa que a separava da psicóloga, e com as mãos juntas entre as coxas mantinha um sorriso vergonhoso entre as bochechas, malícia de quem se intimida fácil, mas possui muita simpatia pra esbanjar. 3 0 Reli aquele rosto miúdo em corredores crepúsculos, já que Meire era uma das faxineiras do hospital e eu bem a havia notado ligeira com uma vassoura na mão no meu primeiro dia de visita. Devido a seu bom comportamento nos apenas quatro meses de internação, foi-lhe cedida a faxina diária da instituição como ocupação terapêutica. O acompanhamento foi rápido, assim como suas respostas e seus movimentos singelos, porém velozes a movimentar o ar. Ela disse que estava bem e adorava o trabalho, que já havia ficado dois meses internada no manicômio, mas voltou para cadeia de Betim devido a um homicídio praticado, e retornou ao Jorge Vaz. Aquele meio sorriso misterioso elucidava segredos, aquele alguém que está sempre a esconder algo e se orgulha disso. Reservada, ainda disse que era viciada em drogas, digo, só maconha, e saiu que nem pulo de gato magro. Meire Maria da Cruz foi internada no manicômio em abril de 2009, procedente do presídio de São João Evangelista, Minas Gerais. Natural de Guaranésia foi registrada em Marilac, cidades também de Minas. Foi criada pelos pais, garimpeiros, junto com mais quatro irmãos, sendo a segunda filha da família. Começou a fequentar a escola com cinco anos de idade e parou aos oito anos, quando a família mudou para Betim. Meire conta que aos dez anos conheceu um traficante que a engravidou por duas vezes, mas a tia lhe deu uma “pesada” na barriga e estes morreram, assim como ela, só que Deus a deixou viver novamente. Casou-se aos 18 anos pela primeira vez, relacionamento este que durou apenas um ano, ao contrário do segundo casamento que perdurou por 16 anos. Alega nos laudos médicos ter sete filhos, um com o primeiro marido e o restante com o segundo; e logo após afirma que terá um terceiro filho, pois o ex-presidente Bush a pediu em casamento. Meire afirma que já foi internada em Betim, mas seu psiquiatra e psicóloga a liberaram ao descobrirem que seu problema era macumba, “mal que faziam pra mim na feitiçaria, não só pra mim, mas pra o mundo inteiro”. Admite que usou maconha, mas abandonou pois “ela me dava sono e tranquilidade, mas como é crime, larguei”. Trabalhou durante um tempo fazendo propaganda política para o presidente Lula e ganhou uma “montanha” de din3 1 heiro. Ela relata que trabalhava como doméstica quando foi detida pela polícia, na residência que morava com a mãe, e que desde então seus filhos são cuidados pela sogra e sua família. O pai já faleceu e a mãe reside em Betim. Foi flagrada e presa em Nova Lima, Minas, 2001, portando maconha e cocaína, e trabalhando como prostituta; acabou sendo detida novamente após uma fuga da penitenciária. Também foi acusada de tráfico de drogas em 2007 e presa em Marilac. Apresentou, em 2008, suspeitas de ser portadora de distúrbios mentais devido a seus discursos delirantes, proferindo palavras sem nexo, de pouca compreensão e em tom agressivo. Chegou no “Jorge Vaz” apresentando o quadro de Esquizofrenia Paranóide, constando na ficha de dados pessoais: solteira, desempregada e com o primeiro grau incompleto. O exame de sanidade mental mostrou que Meire não é precisa em sua vida pregressa, fala pouco, possui caráter dissimulador, impulsivo e hostil. Apesar de sua inteligência ser considerada normal, apresenta juízo crítico comprometido, estrutura fraca, instável, dificuldade nas relações interpessoais, e com o controle de realidade perturbado. Às vezes seus pensamentos são acompanhados por idéias de grandeza. Meire já esteve no hospital outras vezes, desde 2002; atualmente, controlada por medicamentos, tem permissão para executar tarefas de limpeza dentro do “Jorge Vaz”. Magra demais, entretanto com armas a engordar sua cintura, a agente trouxe à sala a próxima a ser atendida: Luanda, que de lúcida nada tem, com passos pesados que ecoem pelo piso e sobem até a espinha da gente, adentrou no recinto com o corpo tombando pra frente, os lábios a fazer movimentos estereotipados, roçando um no outro, e com olhos esbugalhados de sapo, de quem quer ver além do que a visão já cansou de ver. Completamente deslumbrada de si mesma, deslocada em tempo e espaço, deferiu em cusparadas que estava “lôca” pra sair dali e casar com o “Tiago” de Juiz de Fora, que ele gostava muito dela. Luana afirmou não ter contato com a família há anos por eles não a procurarem, mudarem sem avisar e sem deixar endereço. De voz engasgada e com dificuldade de articular seus pensamentos nada articulados, pediu pra escrever uma carta ao juiz; cedido seu pedido saiu da sala efusiva deix3 2 ando sua energia de toneladas concentradas ali. Sem qualquer consciência da ilicitude do homicídio que cometeu, alucina em suas divagações, literalmente no mundo da lua, por se identificar com ela, afinal, sozinha como a lua. Luanda Inês de Souz é interna do manicômio desde abril de 2000. Caçula de uma prole de onze irmãos nasceu de parto normal em Mercês, Minas Gerais, e interrompeu os estudos na terceira série devido às suas crises nervosas. Desde os oito anos faz tratamento psiquiátrico e apresenta um grave estado mental, presente em suas agressões contra várias pessoas ao decorrer de sua vida. Quando morava com o irmão ficou mãe solteira de uma menina de três anos, filha do qual não se tem notícias e nem com quem mora. Já esteve internada no hospital psiquiátrico de Barbacena por três vezes e nega o uso de drogas e etílicos. Ao ser internada no manicômio judiciário alegou o seguinte motivo “Foi porque eu dava crises de nervo, machucava tudo”. Luana apresenta psicose epilética e não tem condições de retorno ao convívio social, já que apresenta crises convulsivas e agitação psicomotora, uma paciente de periculosidade não cessada. “Eu quero sair daqui se Deus quiser, eu não quero ficar aqui mais não porque aqui é muito ruim demais da conta”, “Quero ir embora pra casa pra mim casar e ver minha filha” Luanda recusa-se a tomar medicação controlada, mas faz uso de Gardenal; nega ter feito algo errado para estar internada, acontecimento em que ela agrediu justo o homem responsável por seus cuidados, pois o mesmo lhe havia negado cigarros já que ela havia fumado o suficiente no dia. A vítima cuidava de Luana, considerada incapaz de entender o caráter ilícito de seus atos. Completamente abandonada pelos familiares que se mudaram e não notificaram o manicômio, Luana é dependente do “Jorge Vaz” e vive sob os cuidados de um curador. Enquanto a psicóloga fazia suas anotações para o laudo dos pacientes, com seus prognósticos e diagnósticos e mais “ósticos”, eu ficava ali tentando dissecar em palavras de asas aqueles rostos de expressões, cheiros e contradições. Em prantos de lágrimas, daquelas que enchem os olhos e insistem em não cair, entrou Márcia, cabelos desgrenhados e rugas afobadas, 3 3 como criança mimada chorando por um capricho qualquer. De sobrancelhas baixas e voz de menina meticulosa repetiu quantas vezes lhe foi permitida o ocorrido no dia anterior, responsável por aquelas doces lágrimas de salgada infantilidade. Ela estava fazendo bandeirinhas, quando ganhou de um funcionário um pote de tinta para os cabelos, que tanto desejava, foi agradecer o presente com um abraço e acabou sendo impedida por uma agente do manicômio. Chorou, chorou e chorou. “Nós inferiores que não temos diproma somos tratados assim; no plantão da agente que me humilhou vou dormir o tempo todo.” Tenaz em suas explicações, da repressão que havia sofrido, acabou por fazer com que a psicóloga encerrasse o atendimento que se tornou melódico demais. Ao levantar e avistar a diretora da ala feminina, Márcia iniciou novamente seu monólogo insistente, debulhando-se em novas lágrimas. Com feições rápidas e sérias, e olhos acostumados àquelas lamentações, disse como avó diz ao neto “Chorar dá rugas e envelhece, se resolvesse eu ia começar a chorar com você”, e pediu que a agente levasse Marta de volta à cela, sumindo entre passos de grande distância com seu jaleco branco esvoaçante, esse típico estereótipo dos profissionais da área médica. Márcia Pires Neto, casada e natural de Abre Campo, Minas, procede da delegacia de Abre-Campo. Foi internada em janeiro de 2010, aos 40 anos, encaminhada para o “Jorge Vaz” para o teste de sanidade mental, que foi enviado ao juiz para decidir os procedimentos para com a indiciada. Consta nos laudos que em julho de 2009, em Abre Campo, os denunciados Márcia Pires e Severino Silva, por motivo fútil, tentaram matar Cássia Mota, utilizando-se de uma faca, somente não conseguindo o homicídio porque o esposo da vítima, Pedro Luís, interferiu em sua defesa e a mesma conseguiu escapar. No mesmo dia os denunciados mataram Pedro, golpeando sua cabeça com um pedaço de madeira e desferindo em seu corpo vários golpes de facas. Em companhia de Severino Márcia adentrou na casa da vitima e começou a discutir com Cássia Mota, por ciúmes de Pedro Luís, que estaria tendo um relacionamento amoroso com a nora das vítimas, Maria da Silva, e também em razão de comentários surgidos de que Severino estaria se apropriando do dinheiro que Maria arrecadara para tratamento de saúde de Cássia Mota. De surpresa Márcia sacou a faca 3 4 que trazia consigo e tentou golpear Cássia, momento em que Pedro interveio. Severino armou com o pedaço de madeira e desferiu um golpe na cabeça de Pedro, segurando-o, momento em que Márcia desferiu vinte golpes de faca contra o mesmo que veio a óbito. Márcia relatou que “o Pedro tava tendo atrito com o Severino”. A paciente afirma ter pais vivos, um casal de filhos e outros dois filhos que são do Severino. O exame pericial de 2010 diz que a paciente tem conteúdo de pensamento pobre, é teatral, e possui fala manipulativa, com mudanças nos tons de voz. Consta ainda de seu comportamento impulsivo e colérico, e sua dificuldade de entender os relacionamentos interpessoais. Diagnosticada como Retardada Mental leve, com transtorno de personalidade histriônica e epilepsia tratada; chegou-se a conclusão que as perturbações de saúde mental de Márcia não têm nexo casual com o delito cometido. Márcia acabou retornando à delegacia de Abre Campo em março de 2010. Olhos tímidos de mulher submissa, complacente com a vida, como daquelas donas-de-casa acomodadas em suas metódicas tarefas diárias de servir quem não lhe estima. Traduzir Lourdes seria como descrever uma velha em sua cadeira a coser seu crochê de anos de solidão e ingratidão. Ela entrou com um ar despistado de mulher vivida, e disse ter muitas saudades dos filhos. Reclamou dos remédios que é obrigada a tomar, cinco por dia, já que nunca os havia tomado antes de entrar no hospital. Depois de um ano e oito meses de prisão e seis meses de internação, essa mãe apenas quer ficar com os filhos: “Estou perdendo o melhor da vida”. De áurea tranquila e unhas cor magenta recém-feitas, enroladas e escondidas pelas mãos bem apertadas, permaneceu a menos ofensiva e talvez a mais inibida em sua loucura, percepção dos meus olhos que não se desviaram daqueles movimentos labiais com um quê de dissuasão. Lourdes Cristina Pereira foi transferida do Complexo Penitenciário Estevão Pinto, Belo Horizonte, em agosto de 2009 para o hospital psiquiátrico e judiciário “Jorge Vaz”, por medida de segurança, enquanto não cessada, integralmente, sua periculosidade. Procedente da comarca de Contagem, Lourdes é natural de Belo Horizonte, nascida em 1963, divorciada, funcionária pública estadual e com o segundo grau completo. 3 5 Consta dos autos do inquérito policial, que em junho de 2008, Lourdes, de arma em punho escondida para trás, adentrou na residência onde se encontrava sua mãe e a vítima, dizendo exaltada que tinha contas a acertar com eles por motivo de desavenças familiares. A denunciada, por motivo fútil, efetuou dois disparos de arma de fogo contra Jorge Pereira, seu irmão, que não teve direito à defesa, só não lhe causando a morte por intervenção de outro irmão, que a desarmou e atirou a arma no telhado de uma casa vizinha. Após o ocorrido ela tentou fugir, mas foi contida por populares e entregue a polícia. Esperando a última das pacientes do acompanhamento psicológico fiquei a observar, por reiteradas vezes de tédio, o que as pacientes demonstraram não notar, ou que já cansaram de ver: o quadro da mulher de olhos grandes, vivos e hermafroditas. Desconcentrei-me da tela com a energia pesada vinda do corredor silencioso, cheio de passos distintos; entrou no quarto uma mulher de tamanho avantajado, que passou rente a porta, como se a moldura de madeira tivesse sido construída seguindo suas medidas. Com uma presença que desperta receios, daqueles que a gente até abre mais os olhos para não perder nem um gesto ameaçador, sentime pequeno diante àquela força que gera calafrios tensos, já que nem a presença de uma agente magricela, com armas na cintura, seria suficiente se aquele tamanho de mulher utilizasse sua potência retraída. Pois foi que quando sentou na cadeira, com as costas encurvadas, a cabeça encolhida entre os ombros e o corpo mais pesado que a gravidade, desarmei um pouco meus olhos de vigília, e senti naquela carregada energia, que inicialmente me sugou, um sentimento de gratidão por uma alma perdida dentro daquele corpanzil todo. Aparecida se manteve todo o tempo do atendimento em estado de torpor, petrificada naquela posição que nem um guincho a tiraria, apenas os olhos insistiam em piscar e os lábios soltavam com preguiça palavras frias, arrastadas pelo tempo imóvel daquela mulher rocha sísmica. Disse que já esteve no mesmo manicômio outras duas vezes, que não se lembra da sua primeira internação devido ao seu estado de choque, e somente com o uso da medicação, adquiriu um pouco de lucidez e a volta de uma consciência do 3 6 presente e do passado, acompanhada de tristeza. Arrastando a voz naquele tronco, desconjuntado e desproporcional para o assento, falou sobre a irmã, que se encontra em um asilo, e também possui problemas mentais; da mãe que cuida do outro irmão também deficiente mental e do pai, também doente, que é muito nervoso, toma remédios e bebe muito. Nesse relato da sua deturpada família demonstrou, por último, saudades de sua filha com nove anos, que se encontra sobre os cuidados de sua mãe. Um pouco consternado pelo estado apático e ao mesmo tempo repulsivo daquela árida mulher, fiquei curioso para começar a ler os processos e laudos dessas pacientes de personalidades misteriosas. Vi Aparecida sair com o mesmo estado de torpor com o qual entrou, “bicho do mato” agora embalsamado nas minhas entranhas. Aparecida Rodrigues de Assis residia no povoado “Limerão da Serra”, em Santo Hipólito, Minas, junto com seus familiares, quando em outubro de 2007 jogou as duas filhas dentro de um poço. Ela havia convidado as filhas, uma com cinco anos e a outra com seis, para irem ao poço perto da residência, e chegando ao local Sandra as empurrou. A filha mais nova acabou morrendo afogada e a outra foi salva pelo avô materno; durante o ocorrido a denunciada permaneceu na superfície observando as filhas se afogarem, sem nenhuma reação. Considerada doente mental com transtorno depressivo, não teve consciência do ato criminoso que praticou. Separada, Aparecida possui um histórico hereditário com grande parte dos familiares portadores de problemas psiquiátricos. A paciente chegou ao manicômio “Jorge Vaz” deambulando, com fala lenta, arrastada e forte sotaque rural; apática descreveu que, desde criança, ouve vozes pedindo para ela fazer coisas, inclusive jogar suas filhas no poço: “Eu joguei as duas filhas no poço porque estava doente. Eu joguei elas no poço pra elas morrerem e não sofrerem.” Por osmose o entorpecido agora era eu, pelo ambiente hospitalar e ao mesmo tempo penal, pelos corredores frios de ecos que se intercedem, pelos gritos intrépidos de crises nervosas invadindo meus poros todos. Vontade de gritar, vomitar essas experiências amargas concentradas em sons 3 7 histéricos. Despedi das agentes com um sorriso de meia boca, e subi correndo a rampa, entre árvores cor de outono, em direção a ala masculina. Aos pulos passei pelos degraus da escadaria principal, nostalgias de um tempo que nem se alertava para a questão anti-manicomial, e por fim me deparei com os felinos de cara amarrada, olhando pra mim. Senti fome e pensei em partir, acendi um cigarro, sentei ao lado do leão branco e suas patas grossas, e confortei-me; olhei para a cobra sem cabeça, deslocado como vento o sem cabeça agora era eu. Dizem que cigarro disfarça a fome, não sei, mas renovei meu ânimo e enquanto esperava a psicóloga para os atendimentos masculinos, senti o cheiro nauseante dos cigarros de fumo de rolo que os pacientes ansiosamente fumavam, ócios diários e seus subterfúgios. Lembrei que raramente sinto vontade de fumar, deve ser aquele ar manicomial com gosto de cigarro de vovô. Atravessei a enfermaria e entrei em uma sala menor ainda àquela da ala feminina onde há pouco eu me encontrava. O agente, nada magricelo como a agente, mas com um aspecto engraçado pela sua boca de medidas abissais, entrou trazendo sua imponência de segurança bem treinado, conduzindo um jovem não muito mais velho que eu. Leonardo é novato na instituição, com um estado de saúde aparentemente normal, a não ser pela voz um pouco engasgada e pueril. Natural e coerente relatou, sem esforços, que aos 14 anos começou a fumar maconha, convivia com o pai alcoólatra e violento que agredia ele e sua mãe. Foi internado por depressão em 2003, pois sofria muita solidão, falta de amigos e namorada: “Se eu tivesse uma companheira para conversar, fazer planos, sonhar e ter filhos...”. Afirmou ter tido um vizinho “feiticeiro”, responsável pela sua vida ruim, tinha pesadelos e ouvia vozes dizendo para atacar o vizinho, e acabou agredindo-o com facadas. Usou álcool, cola e por último crack, que o deixou muito revoltado e agressivo; quebrou móveis, roubou dinheiro da mãe, que em um tentativa de impedi-lo foi agredida com uma tesoura no pescoço: “Eu não queria matar ela, minha mãe é muito boa pra mim”. Dessas mentes de realidades tão íntegras em suas próprias particularidades, Leonardo talvez fosse o de consciência mais lúcida, aparentemente, 3 8 já que sua personalidade impulsiva parece em muito ter sido potencializada e deturpada pelas drogas. Psicologicamente bem, possui uma característica comum dos esquizofrênicos devido à percepção de vozes internas manipuladoras, ou não seriam manipuladas, partindo da possibilidade dessas vozes serem a manifestação do inconsciente deles mesmos. Leonardo Eugênio é natural e procedente do presídio de Lavras, Minas. Segundo dados fornecidos, pelo próprio periciando, foi criado pelo pai alcoólatra e mãe com quadro de esquizofrenia, juntamente com dois irmãos, sendo ele o mais velho. Em 1997 parou de estudar pelo uso excessivo de drogas, trabalhou em vários “bicos” sendo o último emprego de porteiro, em que pediu demissão com medo de assalto. Ao ser detido não estava trabalhando, disse que quando mais jovem levava uma vida normal, tinha muitas amizades e gostava de festas, mas após os dezoito anos começou a ser internado frequentemente em hospitais psiquiátricos, cerca de seis vezes em sua cidade; sai pouco, gosta de ficar em casa e não tem mais amizades. Disse que quando começou a fazer uso de cola o companheiro que lhe fornecia o explorava sexualmente, depois usou maconha e um mês antes de ser detido havia começado com o crack. Relata que quando não estava bem sentia-se desorientado, desmotivado, ficava lesado com o que lia na Bíblia, pensava até em se matar; mesmo sem usar drogas senti-se assim, só melhora com os remédios. Sua mãe também sofre de transtorno mental, já esteve em hospital psiquiátrico, e o pai está se recuperando de bebida. Afirma ter bom relacionamento familiar. Em seus processos judiciais constam roubo e agressão à sua genitora em agosto de 2008, quando roubou a quantia de cinco reais de sua bolsa, e ao ser surpreendido pela vítima que tentou retirar-lhe o dinheiro a agrediu com o uso de uma tesoura; lesão corporal a facada em uma pessoa em setembro de 2003; e acusado de cometer seguidas tentativas de homicídio em agosto de 2006, quando ameaçou várias pessoas no bairro e teve que ser contido pela multidão. Ao ser interrogado admitiu os atos criminosos sem justificá-los, dizendo ter uma voz falando em sua cabeça para 3 9 ele matar uma pessoa. “Eu estava usando crack uns 23 dias e foi o suficiente para eu começar a roubar dentro de casa, roubei meu irmão e minha mãe, ela não quis me dar o dinheiro e eu machuquei ela com uma tesoura, depois arrependi, voltei e me entreguei a polícia (...) assisti muito filme de terror e isto foi entrando na minha cabeça, achei que tinha que criar pânico, tinha uma voz me mandando eu fazer as coisas e eu ficava desesperado, não lembro o que ela dizia, neste dia peguei uma faca na casa do meu irmão e sai correndo atrás das pessoas”. Foi internado em 22 de janeiro de 2010 no hospital psiquiátrico e judiciário “Jorge Vaz”, aos 26 anos. Quando chegou ao nosocômio mostrava-se calmo, deambulando, lúcido e coerente, com alucinações auditivas, vozes de comando, e nexos afetivos comprometidos. Relatou que estava com a cabeça confusa com os ensinamentos da Bíblia que costuma ler muito. Recebeu visitas e faz contato telefônico com seus familiares. Diagnosticado com esquizofrenia paranóide, transtorno mental agravado pelo uso de drogas, tem noção da gravidade de seus atos e de sua enfermidade. Desde minha chegada eu ouvia curiosidades sobre o “pistoleiro” internado no manicômio, que havia perdido o dedo indicador, arrancado da mão direita por um delegado, como punição por seus homicídios para que o mesmo não mais utilizasse o gatilho. Além de ser arcaico, não achei o método muito prático já que o pistoleiro podia aprender a utilizar a mão esquerda, ou quem sabe outro dedo da mão direita. Esperando o próximo paciente na sala de acompanhamento eu já nem lembrava a minha curiosidade de conhecer esse pistoleiro. Assim, o próximo interno entrou miúdo na sala à frente do agente, tão miúdo que parecia uma conchinha côncava abatida pelo tempo. Sentou encolhido em sua senilidade tão acentuada que nem seu rosto deixou transparecer, e eu logo pude reconhecer aquela identidade tão oculta por uma marca indescritível em sua mão direita, a falta de um dedo. José, de um olhar difícil de concretizar e palavras perdidas por um tempo carcomido de fatos tão abruptos quanto inconscientes, se encontrava ali tão indefeso pela sua condição física, tão inocente pelos seus traquejos bestiais, que eu poderia jurar que ele veio de um asilo com seus cheiros de 4 0 urinóis que enrolam a traquéia. As únicas modestas palavras que conseguiu gesticular foram de estar bem e o desejo de ir pra São Paulo. Esse pequeno velhinho, totalmente desconectado da realidade e da sociedade, pela retrocessão que todos esses anos o obrigaram a se omitir, ainda possuía uma única marca que poderia lhe lembrar de um passado inconsciente: a falta de um dedo que lhe vomitava a ilicitude de um ofício, um emprego, que ele jamais conseguiu restituir após ser impedido. Aquela imagem de um homem incrustado sobre uma cadeira foi a lembrança mais frágil daqueles dias de minha auto-internação, em que eu pude entender que a virilidade, mesmo leonina, não dura pra sempre. José Bonifácio, nascido em 1949, analfabeto, solteiro e antigo lavrador, foi internado em outubro de 1972, aos 25 de idade, no manicômio judiciário de Barbacena, talvez o mais antigo paciente do “Jorge Vaz”. Natural de Mandaguari, Paraná, em 1971, entrou na casa de uma de suas vítimas matando-a com uma foice e aplicando-lhe três golpes de faca de cozinha na barriga. Ali mesmo na cena do crime, na fazenda Coromandel, em Minas Gerais, Orlando preparou comida no fogão pisando na poça de sangue da vítima, marcando de sangue seus passos pela casa. Cognominado como “O monstro do portal do triângulo”, José se tornou foragido da justiça pelo rosário de crimes cometidos pelo triângulo mineiro e outras regiões, vários deles encomendados. No seu histórico criminal constam diversos crimes como os homicídios contra Maria Conceição e Manoel Borges, na fazenda “São José”, Paranaíba; em Canápolis matou Antenor e Antônio, tentou contra a vida da esposa e filho do último, e ainda contra um desconhecido que passava pelo local; matou Renivaldo em uma estrada; tentou assassinar João Mercês e Mirtes numa fazenda; matou Orlando e sua mulher em Capinópolis; praticou dois assassinatos em Tupaciguara, e a tentativa de homicídio contra um desconhecido. Também preso por furtos, Orlando teve uma espetacular fuga da cadeia pública de Araxá. Diagnosticado como autista lacônico, com alta periculosidade e anormalidade psíquica, José é um paciente com péssimo contato interpessoal, que não responde pergun4 1 tas, sem condições de fornecer dados sobre sua história pessoal e doença mental. Desorientado globalmente, com nível mental e cultural reduzido, possui impulsos primitivos, atitudes bizarras, prognosticado como abúlico apragmático, ou seja, demente. José, ou o famoso “pistoleiro”, se tornou uma preocupação para a promotoria de justiça quanto à sua liberação e retorno à sociedade, não devido à possibilidade do mesmo voltar a praticar crimes, pela sua incapacidade física, mas uma preocupação com o seu futuro, já que o interno é um sério caso de abandono familiar. O mesmo não tem as mínimas condições de auto-subsistência e de contato social que o favoreça se colocado em liberdade após 38 anos de internação, sendo que ainda permanecem sinais de periculosidade no paciente. A psicóloga anunciou, quase que num cochicho, que o próximo a atender seria o padre Orlando. E assim o foi que, com uma saúde invejável contrastando com a debilidade de José, Orlando, com todas as faculdades físicas e mentais aparentemente em perfeito estado, sentou e notou minha presença que há muito era ignorada pelos internos, que sempre me colocavam do outro lado do muro que constroem em torno de si ou são obrigados a construir. Cumprimentou-me gentilmente, com um ar de tamanha serenidade que eu não duvidaria de um pedido futuro para sua beatificação, se não fossem os incidentes que o levaram à prisão. Retirou a leveza de sua face, como quem troca de figurino atrás das cortinas, e acentuou uns traços de homem sofrido ao se lamentar pelo pai, que se encontrava em coma, e pelo pedido de liberação, não aceito, para passar a data comemorativa e religiosa de 25 de dezembro com o mesmo. Presenciei, com uma placidez conivente com a da psicóloga, o anúncio da morte recente do pai de Orlando. Amenizar uma morte é como acentuála, e pude perceber com que tamanha objetividade à pessoa comunicada, mas com uma humanidade sincera a um processo compartilhado por todos da perda e desapego de uma pessoa amada, que a psicóloga transcorreu durante aquele anuncio funéreo. Lágrimas falsas ou sinceras, não importam, o maior sofrimento é quando corta por dentro; e preferi não julgar aquele 4 2 choro de tentações, aquele sofrimento aparentemente vitimizado, translucidamente amargurado. Abatido, Orlando não quis tentar o pedido de liberação para ir ao enterro do pai, por vergonha admitida da escolta de agentes que o acompanharia e seria vista pelos familiares. O paciente nos contou a revolta de seus onze irmãos que o abandonaram e não concordavam com o deslocamento do pai, até Minas, para acompanhar de perto seu processo na justiça; finalizando seus desabafos pediu notícias da irmã, deficiente mental, que está aos cuidados da madrasta. Nesse encontro de sintonias desconcertadas com um homem de comportamento tão natural, não me senti confortável, tampouco compreendi naquela límpida transparência uma sanidade submergida. Dissimulação, instituições de poder e seus privilégios para uma diminuição moral e penal, ou apenas um homem normal: indagações que rodearam minha tentativa frustrada de conceber aquele homem com um possível passado distorcido de sua lucidez ali emergida. Orlando Lanni, natural da cidade Rio do Sul, Santa Catarina, foi preso em Mariana, Minas Gerais, acusado de pedofilia, e internado no manicômio “Jorge Vaz” aos 46 anos, em 2002, procedente de Ouro Preto. Atuava como padre da Igreja Católica, com curso superior completo, e chegou à instituição com ideação suicida, menos-valia de si mesmo, arrependimento, choro fácil, e com boa orientação de tempo e espaço. Nos seus processos consta que utilizando de sua condição de sacerdote e da relação de afeto para com as pessoas, praticou vários crimes de pedofilia seguidos da oferta de pequenas quantias de dinheiro; como quando convidou Felipe de dez anos, no distrito de Barroca, para ir pescar com ele. Praticou sexo oral com a criança, lhe deu um real e ainda alertou: “é segredinho nosso, heim”. Orlando repetiu essa mesma conduta outras duas vezes com Felipe, no mesmo mês de 2002, dando ao menino pequenas quantias de dinheiro. O pai achava proveitosas as saídas, pois o filho alegava que gostaria de ser padre, até descobrir o ocorrido. Felipe, criado com poucas condições financeiras no meio 4 3 rural, sem a mãe, e carente de afetos pelo pai, afirmou que “ele não é má pessoa, só tem esse defeito”. No mesmo ano o assédio sexual ocorreu com Marcelino, também de dez anos, com os mesmos procedimentos, fazendo sexo oral com a criança, oferecendo cinco reais e alertando: “Nosso segredo”. Dois dias depois efetuou novamente o mesmo ato sexual com o garoto, dando-lhe três reais. Prognosticado com transtorno de preferência sexual – pedofilia, Orlando já foi acusado de estar gozando de privilégios indevidos no Manicômio Judiciário. Ele foi destaque na mídia da região após ter sido preso, o que possibilitou a abertura do seu processo criminal com as novas acusações de pedofilia que surgiram. Ele alegou que tudo que aconteceu foi exagerado pela mídia, mas que Deus o mantém de pé, e completou ainda que as pessoas não entenderam sua forma de demonstrar o amor de Deus nas pessoas. Após o anúncio da morte do pai disse sentir muito seu falecimento, pois o pai veio de Santa Catarina, abandonando toda a família, para ficar com ele em Minas após a prisão, e os irmãos não compreenderam a atitude do pai. “Só o amor de um pai pode fazer isto”, finalizou. Os psicóticos visivelmente normais é os que mais me assustam e excitam, esse medo e desejo do desconhecido, sensações e suas antíteses. Orlando era o último do acompanhamento e se retirou chorando dizendo que ia tentar se ocupar mais; foi direto para uma cela isolada, conduzido pelo agente, para ficar mais a vontade com suas lágrimas. Caminhando entre vasos de samambaias pude respirar enfim um ar corrente que entrava pelas janelas dos corredores, que mais pareciam um amontoado de venezianas, quando me deparei com a sala de arquivos da instituição, ao lado direto do corredor, onde se encontravam os processos e históricos criminais dos internos. Ali, nessa sala, se encontravam mapas de tesouros desses navios coloniais, vindos de terras distantes para outras mais distantes ainda, que afundaram para o escuro dos oceanos onde a realidade humana ainda não conseguiu se permitir entrar. O que eu ia descobrir era que bem ali, naquela sala de gavetas gigantes, havia mapas sim, mas sem cruzetas de saída e 4 4 chegada, apenas caminhos e suas voltas tortas, processos eternamente em processo. Ali, naquela sala ao lado de um altar com flores de plástico e uma santa enorme que nunca soube o nome, e esqueci-me de perguntar. 4 5 4 6 Pulga de gato no corpo da gente As manhãs invadiam frias as casas de Barbacena, um refresco pra minha cabeça, já que nos últimos verões esse tal de aquecimento global, com todo esse papo eterno e furado de consciência ambiental, anda fritando meus miolos. Apesar das alterações climáticas que também ocorriam no meu cérebro, aquela cidade de tons pratas e manhãs de fino sol dourado me fizeram bem, com suas tardes nubladas de tédios e noites úmidas de estrelas que não demoravam a acender o escuro breu do céu. Nessa manhã eu já havia incorporado toda aquela rotina de uma cidade coberta de cinzas por um passado tão medonho, com aquelas igrejas cheirando a arquitetura gótica e medieval; e aquelas esculturas de traços retos e negros e retorcidos, em uma praça abandonada, desconcertando as artes tradicionais para uma falta de sentido que desperta o nebuloso em nós. Acordei melancólico espirando alergia de pêlos de gatos, que inundavam aquela casa de energia viva, casa de uma grande mulher, forte como seu trabalho, que em muitos desperta o fraco. Impregnada por aqueles cheiros de cigarros de fumo de rolo, desde criança passeia por aqueles corredores cheios de vida e morte, acompanhando todas as mudanças manicomiais do “Jorge Vaz”. Sua mãe, antiga funcionária do manicômio judiciário de Barbacena, levava-a com seus irmãos pequenos para o trabalho, prova viva na entrada do manicômio, em uma foto grande, tingida de preto e branco, de vários funcionários em posições importantes, clichê de fotografia antiga, juntamente com as crianças de uma das funcionárias. Hoje não podia deixar de retratar um pouco a história de um dos personagens da história do manicômio, tão encarcerada a essas mentes psicopatas quanto essas mentes estão para si mesmas. Grande profissional que acompanhei nos meus primeiros dias de vivência, que muito contribuiu para 4 7 a realização do meu trabalho com sua personalidade viva, seu acolhimento, e seu trabalho além de psicóloga no manicômio. 4 8 Bafo de Cerveja Amanheci desconfortável, sentindo desejo de algo que não se vê, vontade de casa, de colo de mãe, de namorar, sei lá. Passei a tarde consumido pela ressaca advinda da noite anterior: tive que extravasar e liberar um pouco de energia em bares sujos de esquina. Fugas e suas justificativas, mas pelo menos por algumas horas esqueci o motivo de minha presença invasiva nessa cidade cheirando a loucura, querendo despertar a minha ainda adormecida. Lembrei de minha mãe que tanto insistiu para que eu tirasse essa idéia absurda de minha cabeça de retratar o manicômio de Barbacena, não que ela achasse inconcebível a escolha desse tema como projeto de monografia e conteúdo de um livro reportagem, é que ela persistia na teimosia de que eu era muito sensível para conviver em um ambiente como este, e que essa experiência iria me afetar de alguma forma. Medo de mãe vidente precavendo o filho de futuras perturbações. A verdade é que depois de tanto meses folheando livros sobre psicopatia e suas implicações, eu sentia a necessidade de fechar esse ciclo do qual eu havia delineado: ser presença diante dessas vidas nubladas de obscuridades. E percebi que um novo ciclo se iniciou: ser presença e ser humanidade diante dessas vidas perpassadas por tragédias e anomalias. 4 9 5 0 Papiros Apesar dos espirros provocados por gatos, misteriosos felinos, de certo me sentia feliz por estar em uma casa misturada de animais e enrolado em um cobertor, ato que há muito não fazia. O manicômio nessa manhã estava com cara de quem acordou cedo; bebi água e café, fui ao banheiro, e entrei na sala metáfora ao lado da santa e suas flores plastificadas. Após cumprimentar, me apresentar e explicar minha presença hostil aos novos funcionários, por mim desconhecidos, que aumentavam com os dias, pude observar aquelas enormes gavetas de alumínio de escrivaninhas, emparedadas uma ao lado da outra, cheias de chumaços de papel formando livros de processos, que uma funcionária baixinha às vezes usava um banquinho pra alcançar. Entre dezenas de assinaturas e carimbos de decisões judiciais e prognósticos de atestados médicos, escolhi da Sílvia pra começar, aquela menina de cara de pó arroz do meu primeiro dia de visita à ala feminina, que despertou meu interesse e sem me agredir, o fez com o seu olhar. Talvez pelo seu eu estereotipado de menina normal e carismática, e não de louca bestializada, era o processo mais interessante para se aventurar. Estereótipo costuma ser a primeira imagem de uma personalidade se quisermos, inutilmente, tentar decifrá-la. Por horas fiquei a revirar processos e mais processos inacabados, abertos para as histórias que ainda haveriam de acontecer, mastigados pelo tempo e pelas concepções humanas moralistas. Papéis e mais papéis, alguns amarelados pelo tempo, ou destituídos de sentimentos. Procurei me ater aos processos dos internos que despertaram meu interesse, e daqueles que fizeram o acompanhamento psicológico do qual também acompanhei. Não foi fácil colher as informações; entre documentos, carimbos, ofícios, transferências, laudos, exames médicos e pedidos de diversos departamentos da justiça, perícia e saúde, descobri que os pacientes estavam mais 5 1 presos àquelas folhas burocráticas do que ao próprio manicômio. As informações se repetiam, contradiziam e até mesmo não existiam, e ainda tive que transcrever todas as informações colhidas, em meio à agitação da sala penal, que vira e mexe desviava minha difícil concentração. Instituições de segurança, suas restrições e eu simplesmente com saudades de uma máquina de xerocar papéis. 5 2 Boné de Maria Cheguei ao “Jorge Vaz” cedo, desgostoso por querer viver mais a vida daqueles personagens fora das celas, tão vegetais dentro delas. Ansioso por uma história narrada viva, querendo ser mais interno, mais intenso, mais próximo, pedi a Elisa que fizesse um acompanhamento psicológico diferente, que focasse na história de vida ainda presente nos pacientes, sem necessariamente invadi-los. Eliane disse que me ajudaria chamando dois pacientes possíveis de uma melhor desenvoltura à memória cronológica dos acontecimentos de suas vidas. Dessa vez, sem muita segurança, com o agente distraído conversando com outros funcionários no corredor, Antônio entrou desconfiado, mas com um sorriso bobo nos lábios. O reconheci da visita à lavandeira nos fundos do manicômio, quando me deparei com dois homens sentados, com suas cabeças afundadas sobre os ombros, como se fatigados pelo dia de trabalho ou meramente observando o tempo se desenrolar. Só cheguei a perceber que um deles não era funcionário do manicômio e sim um interno devido ao seu sorriso bobo sem mostrar os dentes; o mesmo sorriso que entrou na sala e sentou simpático na minha frente. A psicóloga pediu que Antônio tentasse relembrar sua história pessoal e nos relatasse; relapsos de acontecimentos que transcrevo aqui acrescentando, retirando e trocando algumas palavras para melhor compreensão; e na primeira pessoa, para que a distância exercida pelo seu condicionamento no hospital não seja transcrita para o papel. “Quando eu era pequeno fugia de casa, meu pai criava abelhas e batia em mim e na minha mãe, meu irmão ficava só olhando. Eu não respondia meu pai quando ele me batia e uma vez meu irmão bateu nele. Eu ia pra APAE e tomava remédio em gotas; lá era clamo, mas tinha muita tortura e eu não aprendia nada. Quando nasci teve ausência de oxigênio no parto que me causou problemas de cabeça. Tenho oito anos de internação e nunca recebi 5 3 visitas, só uma ligação de uma prima. Quando meus pais morreram eu estava na cadeia de Guaxupé, chorei o dia inteiro. Fui parar na FEBEM porque roubava; quando eu era menor de idade cheirava cola, fumava maconha, bebia muito, e ficava viajando com chá de cogumelo. Meus parentes quase me estupraram ou me estupraram, não me lembro direito; fui na delegacia e nada adiantou. Ficou na minha cabeça uma vontade de vingar, e aconteceu o crime com a Letícia: eu não conseguia arrumar serviço, tomei dois comprimidos e dois copos de pinga, ai deu branco e não tive mais percepção. Eu escutava vozes, via assombração em forma de homem, mulher e bicho. Eu converso com Deus, tenho fé nele. Minha cabeça dá sempre umas ferroadas, tenho muitos pesadelos e sonhei com Nossa Senhora da Aparecida, ela tava enorme e chorando do meu lado. Não queria contar isso não, era segredo, ela chorou por mim.” Durante o relato de Antônio, com algumas informações desconcertadas que eu ordenei com cuidado pra não perder sua fidelidade, Elisa fez algumas perguntas para que ele não se perdesse e outras por curiosidade, como o porquê de um grande sinal na sua testa, indagação que ele não soube responder. Pude perceber ao final do testemunho farpas da sua personalidade como uma certa crítica, ao demonstrar com suas feições e trejeitos arrependimento pelo crime citado, e uma censura interna ao negar e omitir fatos de sua vida. Antônio levantou, pegou o boné que havia retirado quando entrou na sala, como sinal de respeito, submissão, ou apenas costume, agora já amassado pelas mãos nervosas, e saiu sereno, aliviado, aparentemente feliz como quem acabou de revelar um grande segredo. Antônio Soares dos Santos, vulgo “Tõe”, nasceu em Guaxupé em 1977, Minas Gerais. Em 1996, na zona rural, perguntou a uma mulher desconhecida o caminho que iria percorrer até sua casa, e ela de forma inocente o respondeu. “Tõe” seguiu a mulher e a emboscou, passou um cinto pelo seu pescoço, despiu-a e praticou sexo por diversas vezes com a vítima imobilizada. Após as relações sexuais a afogou no córrego “Japi” e abandonou o corpo no córrego, que foi localizado vários metros além do local do crime. Quando adolescente foi internado na APAE para tratamento 5 4 mental, por causar a morte de uma criança de oito anos, também após o ato sexual e com o emprego do mesmo meio de morte. Ele dizia que escutava vozes constantes falando em matar e brincar de carrinho. “Eu matei ela com uma correia, quando passei a correia nela, rebentou a correia, ai eu puxei ela dentro da água. Ai eu comecei a dar risada, só isso”, “Deu um negócio branco em mim, e eu tava usando comprimido e tinha tomado um gole de pinga”. Essas foram algumas justificativas após o crime de 1996, em que Antônio procurou o detetive, confessou espontaneamente, acompanhou os policiais até o local dos fatos e explicou tudo minuciosamente, alegando que os fatos estavam perturbando sua cabeça e que não queria matar a vítima, mas havia tomado remédios e brigado com o pai. Ele ainda disse: “Eu perdi pai e mãe e queria que o juiz me desse uma chance. Eu arrependi muito”. Após a confissão Antônio alegou que sempre que deseja praticar sexo fica a procura de moças para praticar o ato à força, que lembra ter feito com uma garotinha, que toma remédios diariamente e vive em desentendimento com a família, pois não consegue emprego. Acrescentou que enquanto pratica sexo com uma mulher tem vontade de matála, e sabe que não é correta esta atitude, mas acredita que o Gardenal e os outros remédios o encorajam. Em novembro de 1996 um carcereiro fez uma comunicação ao diretor da cadeia pública de Guaxupé, constando que o detento Antônio é portador de problemas de ordem psicológica por apresentar comportamentos anormais, como ingerir as próprias fezes após fazer suas necessidades fisiológicas, bater a cabeça nas paredes do xadrez, e ser “useiro e vezeiro”, ou seja, mania de introduzir o dedo no ânus colocando-o na boca em seguida. Outro boletim informou que ”Tõe” queima os próprios braços com cigarros e se morde até causar lesões. De 1989 a 1995 Aparecido esteve internado na FEBEM de Minas Gerais. Segundo o laudo da instituição o interno possuía comportamento educável, explosivo, impulsivo, malicioso, manipulador, com deficiência emocional, dificuldade de atenção, sem cooperação e criatividade bloqueada. Ainda consta seu caráter bissexual, baixa 5 5 auto-estima, várias tentativas de suicídio, tentativa homicida por enforcamento, atos sexuais sob pressão e fugas da Unidade. O laudo aponta seu meio sócio-familiar inadequado e baixo nível sócio-econômico, a figura da mãe como protetora e do pai distante e violenta, por isso a necessidade de atendimento psicopedagógico, psiquiátrico e neurológico. No período em que esteve na FEBEM, consta que antes de sua internação a mãe se encontrava como mendiga pela cidade, alienada à realidade, e o pai alcoólatra tornando o ambiente familiar hostil. Antônio foi internado no “Jorge Vaz” em maio de 1999, e possui um irmão já internado no hospital. No exame de sanidade mental encontrava-se calmo, com lucidez de consciência, déficit intelectivo e abstrativo, idéias delirantes e conteúdo pobre de pensamento. Disse que ouvia vozes, mas estas cessaram; que tem um filho, mas não sabe a idade dele; já foi na APAE, mas fugia pra nadar; “tenho a cabeça fraca”. Foi classificado como Retardado Mental e atualmente apresenta bom comportamento nosocomial, permitindo-o trabalhar na lavanderia da instituição. O laudo de Antônio demonstra condições de retorno ao convívio sócio-familiar, mas ele prefere permanecer no manicômio. Simpatizei com a figura de “Tõe” e seus humildes trejeitos. Li, ávido, todo o seu processo que constava de muitas informações, e consegui vivenciar um pouco seu percurso por essa transitória vida. Senti-me aliviado por mesmo ter lido a descrição detalhada, inclusive com fotos dos seus crimes, ter permanecido com o mesmo sentimento agradável de quando o conheci no acompanhamento. Acredito que estou conseguindo diminuir distâncias e a compreender que caminhos são mais que encruzilhadas. Internalizei a história de “Tõe”, não de maneira curiosa, mas deixando minha sensibilidade aflorar, quase que amigavelmente. Menino bobo que chegou a essa terra de amargos contextos, já com problemas mentais, de encontro a encruzilhadas que o fizesse canalizar de forma destrutiva sua incapacidade mental de discernimento do real. Passível de julgamento? E a lua crescendo nessa noite mística, vou guardá-la com um pisco. 5 6 5 7 5 8 Amor de ninho Noite estranha nessa serra de homens que Deus se esqueceu. Pesadelos malogrados com meu irmão; deve ser saudades megalomaníacas dessa pureza infantil que há tanto eu já perdi. Sem muitas apresentações e apertos de mãos, eu de fácil adaptação já me sentia invisível andando por aqueles corredores congelados de dor. Dando continuidade ao acompanhamento do dia anterior, Elisa chamou desta vez para o atendimento uma mulher, ironicamente Telma Müler. Estereótipo de prisioneira, focinho de detenta, essa foi a primeira impressão daquela mulher de costas curvada, não pela coluna torta, mas por olhos acanhados que não querem encontrar outros olhos, e se abaixam carregando a cabeça, pescoço e tronco. Entrou com os pés quase unidos e passos de frenesi, porém curtos em sua distância, um Charles Chaplin pósmoderno. Após Elisa pedir para espontaneamente ela relatar os momentos vivos de sua vida, aquela mulher negra, de baixa estatura, cabelos curtos e braços parrudos de fortes, mostrou-se confusa, passou a mão na cabeça, sorriu com vergonha, mas desatou a falar com uma desenvoltura que eu ainda não havia presenciado em nenhum paciente. Momentos lembrados, falados e cuspidos, que reproduzo aqui com mudanças literárias convenientes, mas na mesma intensidade com que foram contados. “Eu tinha cinco anos quando minha mãe morreu, ela bebia muito. Eu tinha oito irmãos, quatro mulheres e quatro homens, hoje somos só oito. Minha irmã me criou, a Eliane, e meu pai trabalhava na linha de ferro. Fui pra escola com seis anos, mas não guardava tudo na cabeça, e sai na terceira série para trabalhar com café, eu “panhava” e capinava. Meu pai era violento, e se meus irmãos não acudiam ele até nos esfaqueava. Pedi dinheiro ao meu pai e bebi pela primeira vez com sete anos. Bebia dois litros de cachaça por dia e não conseguia trabalhar. Morei algumas vezes na rua mas não usava drogas. Cheguei a adoecer, tive delíri5 9 os e fui internada em Araxá, perdi o nome do remédio que tomava e parei de comprar. Bebia tanto que um dia fui parar na cadeia com 31 anos, hoje tenho 38. Minha primeira vez na cadeia foi por tentativa de homicídio; era um homem, ele morava comigo, mas botou fogo nas minhas roupas. Avisei ele pra não ir atrás de mim, mas ele veio e deu um soco na minha barriga, então esfaqueei ele. Não fugi e a polícia me achou, eu tinha bebido e ofereci a faca para a polícia, mas eles pediram para jogá-la no chão. Fui sentenciada por dois anos e meio na cadeia de Araxá; cumpri dez meses, pois tinha bom comportamento e a pena foi diminuída. Eu já tinha esfaqueado outras pessoas; eu estive na cadeia outras vezes por quatro tentativas de homicídio. Quando matei vim parar aqui: eu fui receber um vale gás, comprei dois litros de cachaça, e um homem me acompanhou até em casa; ele pirraçou, não quis ir embora, disse que ia morar comigo e deitou na cama do meu filho. O homem disse que eu ia dar a ele uma nova morada e dei foi um monte de pauladas na cabeça dele. Eu tive seis filhos, o juizado de menores me tomou cinco deles. Tenho dois netos e meus filhos pagam pensão deles. Ninguém me visita e me telefona aqui, ninguém da minha família gosta de mim, tenho só a minha casa para voltar a morar. Só trabalhei com serviços de roça, já me prostitui por motivo de bebida, mas não para me manter. Hoje tenho saúde boa, estou bem, tem mais de dois anos que não bebo; uma vez bebi um gole, só um pouquinho. Depois de ir embora daqui vou mudar de vida, procurar uma igreja de crentes, não por mais bebida na boca; mas tenho vontade de beber ainda, não vou negar. Tem noite que durmo variando, minha cabeça fica rodando, e esqueço coisas e nomes de pessoas.” Telma perguntou se havia terminado, sorriu lerdo como de costume, e saiu apressada a pegar o balde e o pano de chão com o qual estava limpando os corredores. Pouco depois a encontrei no corredor, estava determinado a cumprimentá-la e quem sabe estabelecer algum diálogo que fosse natural, mas ela se apressou em virar para o próximo corredor com o rodo dançando ligeiro no chão, não deixando brecha para qualquer simpatia ou conversa, com aquele sorriso matreiro de sempre. Achei cômica aquela cena e a figura de Telma, com aquele riso pregado na testa que parece nunca querer sair. Mais tarde me foi relatado mais histórias sobre essa moça adulta, que já trabalhou como ajudante de 6 0 pedreira e participou na construção da própria casa, que ainda possui; casa que era destinada pra ser “o ninho de amor” dela e sua parceira, mulher no qual tinha um relacionamento na época, mas acabou não dando certo. Telma Müler da Cunha nasceu em vinte de agosto de 1970, em Campos Altos, Minas. Filha de pai desconhecido foi presa em flagrante na data de 29 de maio de 2008, por homicídio considerado cruel e por motivo fútil. Solteira, com a quarta série de instrução, alcoólica, sem renda e com seis filhos, consta nos laudos que Telma afirmou ter mantido um relacionamento afetivo por cerca de três anos com a vítima, mas não sabia seu nome; que na manhã do ocorrido os dois beberam mais de um litro de cachaça, mantiveram relação sexual, e discutiram pelo motivo da saída da vítima de sua casa. Como Jesus insistia em permanecer, Telma aproveitou que ele estava deitado, impossibilitado de defesa, e desferiu cinco golpes contra a sua cabeça com um pedaço de madeira, causando a morte de Jesus Aparecido da Silva, de 62 anos, vulgo “Paranaíba”. Telma esclareceu que ela mesma mandou avisar a polícia através de sua irmã: “pedi pra telefonar pra cadeia pra tirar o corpo de lá”, e confessou o crime esclarecendo que o pedaço de madeira ficava na casa como instrumento de defesa: “os golpes foram mesmo para matar”. A polícia encontrou a porta da cozinha aberta e o homem de aparência idosa, negro, com vários ferimentos na cabeça. Telma foi localizada na rua com as mãos ainda sujas de sangue, não ofereceu resistência, e disse que nunca havia sido agredida pela vítima. A denunciada respondeu que sua ocupação era o trabalho doméstico, que sobrevive com o dinheiro do vale-gás, que possui outros registros policiais, pois já cometeu dois homicídios e uma tentativa de assassinato, e nunca ficou internada em clínica de tratamento para doentes mentais. Em interrogatório na comarca de Campos Altos Telma disse já ter matado outro homem, ser ajudada financeiramente pelos parentes, ter dado a única filha para adoção, melhor dizendo, teve seis filhos e deu cinco para adoção. Consta nos antecedentes pessoais relatados por Telma que ela é a terceira filha de oito irmãos, que quando bebia 6 1 demais ficava de ressaca e caia no chão. Fez exame em Araxá que acusou uma mancha no seu cérebro, e depois de moça passou a apresentar episódios de héteroagressividade, agredindo quem a irrita. Já esteve em Araxá por problemas de delírios na cabeça. Nunca se casou, mas tem dois filhos e dois netos. “Casamento é bobeira”, disse. Ao ser internada no hospital psiquiátrico e judiciário de Barbacena, em sete de agosto de 2009, aos 38 anos, o exame de sanidade mental indiciou afetividade pobre, crítica diminuída, boa orientação cronológica, impulsiva, instável, desejo de domínio e de afirmação. Ainda consta sua personalidade limitada às relações interpessoais, figuras materna e paterna internalizada de forma negativa com angústia e ansiedade frente às mesmas, imatura com dificuldade de controle, afirmando ser certo matar alguém que a incomode. Disse querer matar um mendigo que lhe deu um murro na boca. Foi diagnosticado que Telma é portadora de transtorno de personalidade emocionalmente impulsiva, com transtorno mental e comportamento decorrente do uso de álcool, tornando-se inimputável por falta de capacidade psíquica de compreender o caráter criminoso do seu ato. Fiquei a desenrolar e enrolar mechas dos meus cabelos com os dedos fatigados de páginas envelhecidas: eu queria é algo novo, que fosse inteiramente livre e firme, mas novo; algo que tivesse uma força superior conectada, que não tivesse essa tal passividade diante da vida; e novo. Pedi Mariana, a funcionária baixinha, para guardar aquele amontoado de papeis, digo processos, pois não queria mais continuar a lê-los, apesar de que era meu último dia nessa primeira visita, e eu tava que nem bicho doido pra espremer ao máximo aquelas 24 horas pra que eu me sentisse mais vivo, ou seria produtivo? O que importa é que vesti minha impaciência e indiferença num momento necessário egoísta, e tratei de me recolher daqueles aposentos. Sai assoviando liberdade adquirida e deixei meus pensamentos martelados a pregos naquelas histórias de homens, desde sempre cerceados à liberdade. 6 2 Pensei em planos e encontros, e fluiu sincero do meu inconsciente consciente, essa minha voz interior, que num encontro comigo mesmo em um lugar que seja vida e vida, eu possa amadurecer minhas intolerâncias e indiferenças, tão arraigadas que nem cobra enrolada em pé de leão, e voltar a um tal de Jorge Vaz com uma luz que brilhe diferente e espalhe todas as cores que formam a negra cor, arco-íris em chamas, para que eu seja mais melodia quando voltar, pra que eu seja novo e faça novo. 6 3 6 4 NV 6 5 6 6 Entrada do Manicômio Judiciário de Barbacena (MG). Enganando com psicologia Comete crimes qualificados Se vai ser condenado a muitos anos de cadeia, demonstra sintomas de alucinação. Simula desmaios, e o profissional afirma que ele tem problemas mentais. O juiz no seu pedantismo pede o laudo. Ele finge perante os médicos, e Os médicos declaram insanidade mental. Toma medida de segurança, vai para os Hospitais Psiquiátricos, finge mais algum tempo. Logo depois demonstra melhoras, então fica muito pouco tempo preso. Depois volta às ruas e pratica crimes piores. Quem é o doente? O sistema. Então, pare e medite nestas palavras. Aí, verá onde está a psicologia. JPC 6 7 O dia 13/08/95 Pouca alegria, Muita tristeza, Muito sorriso, Mas só na base do sofrimento. Papai estou escrevendo esta, Para lembrá-lo de todo O sofrimento que passei. O senhor deve saber que nesta data Maravilhosa, não me esqueci de você. Apesar do sofrimento, sou uma mulher feliz. Vocês me abandonaram, Mas eu não abandonei vocês. Por que gostam de mim? Eu só queria os carinhos. Vocês não me puderam dar, né? Hoje me sinto velha, a negra da família. Se era isso que queria, aconteceu. Um dia minha alegria vai ser compartilhada. Lembro-me como se fosse hoje. Quanta fome já passei, Quantos restos já pedi pelas casas, Quanto frio eu passei, dormindo nas calçadas. Será que o senhor se lembra? Eu, aquele toquinho de gente. Quando me jogou pela porta afora, Eu tinha apenas sete aninhos. Mas lhe agradeço por ter feito isso. O mundo é feito pelas linhas tortas, E hoje estou com vinte e nove anos. Felizes são as minha irmãs. Então, vou terminar. O senhor não me deu amor; Nem carinho. Feliz dia dos pais para o senhor. Da filha sofredora, Muralha da Solidão CJC 6 8 6 9 Camisa de força exposta na instituição. 7 0 Galinha e Leões Mais de três meses correram, que nem as horas dos dias escorrem pelas mãos, desde minha visita ao hospital psiquiátrico e penitenciário, e meu trabalho ficou parado que nem as águas de um lago. Quisera eu dedicar meus dias somente à escrita desse livro reportagem, construir um diálogo e um vínculo com os internos e funcionários para reconstruí-los de forma humanística e justa nessas páginas, porém implicações diversas me impediram de realizar um trabalho com maior tempo de vivência, mas não de enriquecêlo com as experiências internas e externas que ainda consegui colher nesse começo do mês de maio, em Barbacena, quando deixei a academia, suas normas monográficas, citações de autores ilustres e regras da ABNT, para invadir de novo aquele velho mundo em descobrimento, “o Jorge Vaz”. Dentro de um ônibus cheirando a urina, cheguei no dia anterior, a uma cidade mais fria do que minha temperatura normal do corpo podia suportar, agasalhado que nem esquimó do pólo norte, e me ajeitei na quitinete de um amigo. Amanheci encolhido em posição fetal, afetado pelos mil sonhos ou pesadelos (não consegui definir), que só não me acordaram suado por que o frio já havia congelado meus medos. Fui caminhando até o manicômio já familiarizado com a cidade de cores agressivas, que agora tão perto do inverno tinha o céu coberto por nuvens frias. Identifiquei-me na entrada e subi aqueles degraus de felinos viris que agora não mais me intimidavam, e sim criavam naquele ambiente mitológico, tons de poesia. Encontrei Elisa que havia terminado um atendimento psicológico, reiteramo-nos um do outro, e dividi meus novos anseios de relatos de vivências dos funcionários com os internos, personagens também dessa história manicomial. 7 1 Foi então que conheci seu Olavo, homem calmo e tranqüilo como sua aguçada surdez, que com sua espiritualidade e história dentro da instituição prometeu-me contribuir com esses relatos. Também conversei com a diretora da área feminina; o diretor administrativo; e claro a própria Elisa, criança ainda viva dentro de uma instituição, que por detrás de muros e grades, muito tem a dizer. Desta vez não esqueci o isqueiro, já no bolso, e foi por essa lembrança que amigavelmente, e sem salas de acompanhamento psicológico, consegui conversar com Geraldo Emerson. Imitando os trejeitos de uma galinha, ele se aproximou pedindo prolixamente um “fogo”, e eu distraído igual grilo verde demorei a entender seu pedido. Acendi um trabuco de cigarro de rolo enrolado em jornal velho, e ele começou a falar, reafirmando as falas no mínimo duas vezes, que entrou no Jorge Vaz em 1984 e queria muito voltar a Governador Valadares, não queria mais ficar ali, “é muito ruim ficar preso”. Rascunhei sua fala num papel, e ele utilizando da expressão “ô primo”, esticando o pescoço tentando ler, me pediu inúmeras vezes para repetir o que estava escrito. Já cansado de reler disse que não ia mais repetir, e Geraldo, com cara de menino que perdeu o pirulito, se justificou dizendo que não sabia ler. Perguntei o que aconteceu para ele estar ali todos esses 26 anos e ele relatou por diversas vezes o seguinte ocorrido “Em Governador Valadares, na Rua Chile, tava eu e o Brás dentro de casa, minha mãe entrou e pegou eu de porrada, e o Brás fugiu. Minha mãe batia muito em mim e eu dei uma pedrada nela, e matei ela. A polícia chegou e disse que eu tava preso porque matei minha mãe. Chorei sozinho arrependido. Morreu 15 horas minha mãe; ela cuspia em mim”. Preocupado porque tinha que voltar ao trabalho na horta, começou a repetir movimentos indecisos de vai e vêm com o corpo, averiguando com olhos ansiosos ao redor do pátio se tinha alguém nos olhando, e ainda disse ligeiro algumas palavras, pedaços de sua vida: “Meu pai e irmã moram em Santa Rita, na roça” e “Eu ia na discoteca no sábado com a Penha, mas tudo com respeito, sabe?, sem maldade”. Pediu o isqueiro pra ele, eu neguei, e saiu correndo, os braços abertos ao vento, com uma das mãos segurando uma sacola cheia de alface dentro. 7 2 Geraldo Emerson Coelho nasceu em maio de 1962, filho de pai desconhecido. Com primário incompleto, antigo trabalhador braçal e solteiro, chegou ao hospital psiquiátrico e judiciário, aos 45 anos, submetido aos exames de sanidade mental, que o diagnosticou como portador de um episódio esquizofrênico agudo e considerou-o sujeito inimputável pelo crime de homicídio contra sua mãe. Considerado com alta periculosidade e verborrágico, tem períodos que se mostra melhor, menos delirante, com bom comportamento, freqüentando a área externa onde executa tarefas como cuidar do jardim e lavar carros. Em outros períodos já se mostra excitado, muito delirante, confuso, desconexo, com muita alucinação e irritabilidade fácil, entrando em atritos. Não recebe visitas, mas familiares fazem contato com o serviço social do nosocômio. Possui o juízo crítico comprometido, pouca noção de sua enfermidade, de sua situação e da gravidade do ato cometido. É um paciente instável, sem condições de retorno ao convívio sócio-familiar, estando bem adaptado ao hospital. Segundo a sentença da comarca de Governador Valadares, Geraldo Emerson teria em julho de 1984, no interior da casa em que morava com a mãe e a irmã, utilizando de uma foice, agredido, após uma discussão, a vítima Dalva Coelho, sua genitora, causando-lhe a morte. A autoridade policial impôs provisória medida de segurança, e vislumbrou sinais evidentes de loucura e alta periculosidade no indiciado. No relatório de ocorrência policial consta que José aplicou três foiçadas, duas acima do crânio, e ainda apanhou uma pedra de quatro quilos e a desferiu na altura do estômago da vítima. Na época do matricídio, em 12 de julho, Geraldo se encontrava com 22 anos, e a mãe, também portadora de doenças mentais, só veio a falecer em 19 de julho. Em 1985 ficou decretado a internação provisória do indiciado no manicômio Jorge Vaz pelo prazo de dois anos, que se estende até hoje. Geraldo já havia sido internado várias vezes para tratamento psiquiátrico com delírio abundante e alto déficit de inteligência. 7 3 7 4 Aquarela de louco Ou eu estou ficando paranóico ou as manhãs frias de Barbacena estão cada vez mais dilacerantes. Dificuldade pra levantar foi o mínimo quando me vi no espelho, com um cabelo tão sujo que não resisti, me joguei debaixo do chuveiro tremendo até os ossos dos pés. Sai apressado para o hospital preocupado com o horário, “que seja doce”, pensei, e diminui o passo. Ainda faltavam muitos processos para olhar, muitas pessoas para abordar, muito material didático para recolher, muito enriquecimento pra um livro que não fosse apenas um trabalho para conclusão de um curso superior. Decidi acompanhar o atendimento do seu Olavo, assistente jurídico judiciário do hospital, que pelos cabelos brancos ainda lembra-se de quando os dormitórios e corredores do “Jorge Vaz” mais pareciam uma masmorra, cheirando a óleo das latinhas cheias de estopa queimando sem parar, chamas para os cigarros dos internos. Mais para um assistente espiritual do que jurídico, mandou o agente chamar o primeiro paciente, e fez o atendimento ali mesmo na sala penal, cheia de processos e funcionários perambulando de um lado ao outro. O setor jurídico ou penal, que alcunhei como sala dos processos, era vivo de pessoas indo e vindo, papéis espalhados e empilhados por mesas e cadeiras, telefonemas, fofocas e risos dos funcionários do “Jorge Vaz”, que freqüentavam aquela sala com freqüência, ambiente de trabalho, encontros, bate-papos, e um cafezinho de um minuto e meio. Entrou segurado pela blusa, algemado e com o semblante de tênue ansiedade. Renato Silva, incisivo no balançar vertical da cabeça, ficou a repetir prolixamente que “sim, senhor, entendi”. Disse que já havia mais de três anos que não via Olavo, que estava com saudades e sempre reza pra ele. Justificou-se muitas vezes dizendo que seus atos não foram por maldade, 7 5 que já usou muitas drogas e tudo que aconteceu foi pressão psicológica; que não quis fazer o exame pericial porque acreditava que só alguns teriam que se submetê-lo, mas os agentes o informaram que todos deviam fazer, “eu não sabia doutor”. Tentei compreender o que eram aqueles desenhos bizarros por todo o seu braço, mas não consegui identificar nenhuma daquelas tatuagens, que não representavam nada a priori pra mim e povoavam os braços daquele homem mirrado. Fiquei curioso por aqueles desenhos cravados no corpo, que deviam conter muitas histórias e fatalidades: tatuagens também falam. Renato lamentou o fato de estar preso a mais de três anos e o seu caso ainda não ter se resolvido, “tô num caminho da vida muito ruim, falei pro meu pai que vou entrar numa igreja evangélica, todo dia faço minhas orações pedindo a Deus do fundo do meu coração”. Durante o atendimento se mostrou lúcido e saudável, porém um desespero lhe saltava os olhos, vontade de ser canarinho, e tentava gesticular, perguntar e falar tudo sobre o seu processo no tempo que lhe restava, pois Olavo já havia pedido ao agente para levá-lo de volta ao dormitório, e ele ainda insistia em continuar ali, com as algemas em cima da mesa. Olavo argumentou que está tentando unificar seus vinte processos na justiça em um só para facilitar seu caso, mas que nada mais podia fazer a não ser esperar; colocou suas mãos em cima das dele e fez sua oratória que se repete nos próximos atendimentos, dizendo para ele ser bom com seus irmãos, pois é uma criatura perfeita de Deus, que a religiosidade nos dá força, e outros sermões mais. O paciente saiu como entrou: pálido, procurando uma resposta com seu movimento irrequieto da cabeça e dos olhos, e segurado na blusa pelo agente, claro, sem esquecer de dar um sorriso forçado que seu Olavo sempre pede aos seus pacientes: “Cadê meu sorriso?”. Pedido este muito engraçado, que sem ser forçado, me fez rir. Criança ainda aprendendo a viver, esta foi minha primeira e eterna impressão naquele menino tão novo quanto seu sorriso bobo, tão bonito quanto seus olhos claros, tão inocente quanto seu chinelo arrebentado e por ele arrastado. Josimar entrou com a tez leve, semblante maciço, cabelos encaracolados pintados a ouro, olhos azuis, lindos traços pueris e uma algema 7 6 o atando, quase um anjo de filmes bíblicos ou ator de comerciais de desodorante. O agente com cara de desdenho cochichou no meu ouvido que a mãe dele o havia levado para internação no manicômio, bêbada, há uns dois anos atrás. Josimar, sem mesmo ter sentado, pediu com sua pequena boca um clipe para ajeitar seu chinelo que estava arrebentado. Com uma voz bestial, lenta e de poucas palavras, segurou o chinelo na mão que tremia, e fez o pedido novamente, agora com um olhar vago e triste. O agente, afirmando que não podia usar arame, pegou um pedaço de plástico e amarrou a alça do chinelo que havia soltado. Silêncio, e após o chinelo voltar de encontro ao pé, essas poucas palavras “tem tempo que não vejo minha mãe (...) to com febre e doente” foram choramingadas com preguiça. Foi ai que percebi aquele jeito puro de falar combinado com seu lábio purino, desenhando o espaço entre o nariz e a boca com aquele traço cicatriz, mais uma marca, mais um charme, menino angelical preso por rodelas de metal. O agente interrompendo, ficou forçando Josimar a falar que não estava tomando os remédios corretamente, e ele com cara de criança envergonhada e sorriso pregado de lado, apenas suspirou dizendo “eu não lembro, tava pirado”. Não satisfeito, o agente insistiu no assunto dizendo que o remédio é pra ele dormir e que justo o remédio dele é o mais caro. Olavo, meio incógnita diante daquela situação que envolvia o agente e o paciente, resolveu começar a pronunciar, disse suas frases de apoio, frases de auto-ajuda, e um “cadê meu sorriso?” pra terminar. E antes de Josimar se retirar, com o mesmo andar tolo, o agente ainda conseguiu cochichar que o paciente estava bonzinho porque ele havia tomado os remédios, pois do contrário “a coisa desanda”. Josimar Araújo Gonçalves nasceu em julho de 1984, natural de Passos, Minas Gerais, e procede do presídio da mesma comarca. Internado em abril de 2008 no nosocômio para exame de sanidade mental e tratamento mental, consta nos laudos de 2009 sua idade de 25 anos, solteiro, primeiro grau completo, com profissão de serviços gerais. Tabagista, nega alcoolismo, e possui família constituída por mãe e oito irmãos; seu pai já falecido por suicídio utilizado do meio de 7 7 enforcamento. Em setembro de 2008 o próprio denunciando relata que foi preso por invasão de domicílio: “eu mexi no cadeado da oficina, fiz arrombamento em uma casa, levando um ventilador, pulseira e mochila. Eu participei de outros roubos, mas já paguei todos eles. Eu roubava por aventura, à toa.” Exame psíquico diagnosticou no paciente evidência de transtorno esquizoafetivo, tipo depressivo, e com ideação suicida, considerado desorientado no tempo e no espaço, com crítica comprometida, humor deprimido e prazer diminuído; permanece em tratamento psiquiátrico temporário desde junho de 2008 na instituição, sem condições de retorno ao convívio sócio-familiar. Do próximo paciente não tenho muito a lembrar, a não ser palavras e gestos desconexos. Entrou e saiu que nem veraneio, e só me foi legível na hora de sair, quando pediu seu radinho de volta, que por algum motivo desconhecido lhe havia sido tirado. Ferreira Maria, sem dentes, senilidade acirrada, e de medidas tão grandes quanto sua desorientação, sentou pesado e saiu perdido no tempo e no espaço, completamente retardado. Demonstrou não entender nada do que se passava, e com sua epiderme exteriorizando deliquencia, respondeu com um monossilábico e arrastado “é” a pergunta do invasivo agente: “Você come três marmitas por dia, não é?”; e foi-se lento no andar, sem mesmo eu conseguir guardar seu olhar, asilado em sua cabeça, nos pés, e no cansar. Chegou o anúncio de que o próximo interno não iria comparecer ao atendimento, pois não possuía condições de entendimento, até porque não conseguia nem se pronunciar. Olavo decidiu ir até a entrada das celas masculinas para tentar falar com o paciente e no caminho fiquei inteirado de que Osmar de Souza já havia sido liberado da instituição, mas a família não possuía condições de recebê-lo. Olavo disse que ele já estava há 48 anos preso pelo estado e no mínino 35 anos dentro do “Jorge Vaz”. Chegamos na entrada das celas onde se encontrava vários agentes e um interno apoiando e escorando José, pois nem locomover este conseguia. Em um evidente estado de torpor, Osmar estava sendo controlado por medicamentos para não ter ataques epilépticos. Olavo, inultimente, proferiu sua palavras, e do outro lado das hastes de ferro, parado como poste, Osmar não falava nada com nada, tanto que eu até acreditaria que ele nem havia 7 8 percebido a presença de Olavo, a não ser pelo momento em que empunhou o braço com a mão fechada em direção a ele, ação logo repreendida por um dos agentes; fato que confesso ironicamente achar engraçado, imaginando o pedido clichê que dessa vez não ocorreu: “cadê meu sorriso?”. Osmar saiu puxado depois de um grande esforço para retirar seus pés, enraizados naquele chão frio, que ele já havia se acostumando a se fundir, fazendo da sua total falta de orientação e discernimento um subterfúgio pelo tanto tempo ali internado, já que sua única casa é o Jorge Vaz. Osmar de Souza Azevedo é natural de Coração de Jesus, Minas, e procede da penitenciária de Juiz de Fora. Nos relatos consta tentativa de homicídio contra seu irmão, em março de 1995. Submetido a exame de sanidade mental no hospital de toxicômanos de Juiz de Fora, foi diagnosticado como portador de desenvolvimento mental retardado e epilepsia, portanto considerado inimputável. Esteve concedido à liberdade provisória em 2005, quando neste período em que esteve livre há relatos de problemas de comportamento na sua cidade, existindo até um abaixo assinado solicitando sua reinternação, ocorrida no mesmo ano. Foi internado em março de 2007, aos 42 anos, solteiro, analfabeto e lavrador, por medida de segurança de tempo indeterminado até cessar sua periculosidade. Osmar continua apresentado nos exames freqüentes crises de agitação, hostilidade, com agressividade héterodigida, tendo sofrido também algumas crises convulsivas; costuma possuir contato pobre, sem dizer nem responder nada, sem queixar ou reinvidicar-se. Não executa tarefas praxiterápicas por não ter condições para tal, não recebe visitas e não há registro de contatos no serviço social de seus familiares. No exame psíquico, dos laudos de 2010, não teve condições de comparecer à sala de entrevista devido a seu quadro de agitação, tendo sido examinado em seu isolamento, ameaçando agredir quem se aproximasse da grade. Os laudos apresentam a discussão de que o periciando continua apresentando sintomas de sua doença mental, que contraindica seu retorno ao convívio sócio-familiar e evidencia sua periculosidade não cessada. 7 9 As algemas unindo as duas mãos chegavam sempre à frente, depois o resto do corpo, trilhando os tristes caminhos conduzidos por essas trancas de aço, procurando alguma direção que ainda reste um perdão. Vi primeiro suas mãos gordinhas que os laços de metal ainda não conseguiram esconder; baixo e gordinho, com um boné na cabeça e um beiço de mágoa de menino, mais parecia um bebê gigante do que um homem ou menino. Manuel José já chegou com sua voz aguda de choro, com a língua enrolada e uma péssima dicção, pronunciando depressa as palavras, grunhidos desesperados, pedindo pra ver sua mãe e ir pra casa. Fiquei penalizado com aquela inocência aparente, demente e frágil, exposta em uma sala cheia de olhares e suas pessoas. Homem sangrado por uma pinta preta tatuada acima e a direita da boca, marca cravada na penitenciária em que permaneceu antes de chegar ao Jorge Vaz, significante de sua condição de traidor de algum grupo, chefe, facção ou sei lá, o famoso “X9”. O agente, sempre acrescido de novas informações, relatou que já tentou tirar a pinta com todo tipo de material e não conseguiu nenhum resultado, só mesmo com sessões de laser. Assim, fixado naquela simples pinta, congruente de todas as cicatrizes das conturbadas relações humanas, imaginei a nudez diária de que Manuel José era exposto, com aquela pinta no rosto, que denotava medo, traição, angústia e uma possível morte em alguma cela ou num canto de rua. Ficou pouco tempo, não deixava Olavo dialogar com ele, apenas implorava de pé para ir embora, e depois de sentar um pouco, saiu com passos curtos e gordos carregando um ponto negro de morte ou de falta de compreensão. Manuel José de Castro é natural de Itajubá, Minas Gerais, e procede da mesma comarca. Consta no inquérito policial de julho de 2001 que Manuel, agindo com crueldade, desferiu inúmero golpes de enxada contra Bruno Raimundo Evangelista, levando-o a óbito. Denunciado e vítima bebiam pinga, ocasião em que Bruno retirou-lhe o boné, desferindo-lhe ainda um tapa no rosto e no peito. Descontente com a agressão José utilizou-se da enxada e cometeu o homicídio. Ainda em dezembro de 2001 o denunciado, armado com uma faca, desferiu três golpes contra Frederico Magalhães, não chegando a consumar o crime devido ao pronto socorro prestado. Apurou8 0 se inimputável por ser portador de sanidade mental, alegando ter se irritado com o fato da vítima ter lhe tirado o boné. O paciente foi internado em junho de 1994 por medida de segurança, para exame de cessação de periculosidade, aos 36 anos, com primeiro grau incompleto e profissão de servente. O laudo de abril de 2010 diagnosticou em Manuel dificuldades de audição, fala pobre, quadro de afeto comprometido, humor lábil, boa relação dentro do hospital, e muito pueril em suas atitudes. O paciente, portador de HIV positivo, possui crises convulsivas e quadro compatível com retardado mental. Com alta periculosidade e sem grau de entendimento do certo e errado, em razão de sua deficiência mental, deve ser mantido sobre internação no hospital. Logo após o encontro com Manuel José, Olavo e sua espiritualidade, disse que “pra nós que temos certa idade e estamos muito sensíveis, é triste e duro ver isto”. Reformulei a frase na minha cabeça articulando que nem precisa de senilidade, apenas um pouco de sensibilidade, ou seja, humanidade. Lúcio Santos e seu astral chegaram animados, sentando com um sorriso grande nos lábios, como que ansioso por um encontro amigável. Pra alguns internos aquele momento é um corte na solidão. Com seu nariz gordo e a boca torta não parou de discorrer palavras, tentando naqueles poucos minutos exacerbar tudo o que tinha pra falar. Estava elétrico pelo trabalho que havia terminado na horta, altivo e feliz com seu trabalho, um ânimo vivo que nos outros atendimentos desse dia eu não havia incorporado. “Eu to feliz, não tô sentindo nada, não tô com dor de cabeça, não sei por que estou aqui preso.” Olavo olhou fixo nos olhos dele e disse calmamente que ele não está numa prisão, mas em uma casa de custódia, pra ter um pouco de paciência com o seu processo que dependia de seu comportamento. Com aquela evidente falta de dentes e uma cicatriz protuberante na testa, disse que só queria ir pro seu sítio, pra sua mulher, seus filhos, estes últimos que nunca iam vê-lo. Olavo teve que insistir para o guarda levá-lo de volta, mas este queria persistia em ficar, e arrastando seus chinelos com suas meias furadas no calcanhar, falou que enquanto não toma seu Gardenal não consegue dormir. 8 1 “Cada caso é um caso deixando na gente um tormento”: Olavo pra finalizar. Com a cabeça arqueada a frente do corpo, dentes extremamente estragados e amarelados, careca e com uma branca barba mal-feita, esse bizarro homem com uma aparência não muito agradável à nossa estética convencionalmente estipulada, sentou grosseiro acompanhando a gravidade, com a coluna torta caindo pra frente, deixando o corpo se abandonar, cansado de ver o mundo na horizontal. Completamente retardado mental, Marcilio João Neto não demonstrou nenhum interesse e entendimento ao que Olavo lhe falava, apenas mantinha os olhos baixos e as mãos tensas a expulsar suor. Todo aquele aspecto assombroso se desmanchou num sorriso frágil, bobo e vergonhoso, entre duas mãos colocadas sobre as bochechas, no último pedido de sorriso ouvido naquele dia. Saiu sem pronunciar nenhuma palavra, apático em um estado de transe. Acatei como plausível de explicação àqueles curiosos homens, tão abestados, a fala de Olavo: “Depois de tanto tempo presos, uma saída da cela se torna um choque” e imaginei se a voz de Marcilio seria tão agressiva quanto sua aparência. Marcilio João Neto, aposentado, nasceu em maio de 1971, natural de Fortuna de Minas, e procedente da comarca de Pitangui, Minas. Foi pego em flagrante, em janeiro de 2007, por homicídio no interior de sua residência, utilizando-se de uma barra de ferro e um pedaço de pau. Marcilio desferiu vários golpes contra a cabeça de Leandro Costa, o qual já se encontrava desmaiado, causando-lhe a morte. No dia dos autos o denunciado e a vítima fizeram uso de bebida alcoólica, se desentenderam por causa de um copo de pinga; pouco depois a vitima desmaiou, momento em que o denunciado valeu-se de sua absoluta impossibilidade, e causou-lhe o óbito. A testemunha Heloísa Cardoso afirmou que Marcilio não queria que a vítima bebesse de sua pinga, para sobrar mais para ele, pois tinha pouca pinga na garrafa; que o réu e a vítima eram muitos amigos: “onde um estava o outro estava junto”, e não soube explicar a atitude do réu. A delegacia de polícia da comarca de Pitangui pediu, em 8 2 fevereiro de 2007, a solicitação de uma instituição destinada a presos portadores de deficiência mental; que o detento Marcilio preso em virtude da prisão em flagrante, na cidade de Papagaios, constantemente vem perturbando o sossego dos demais presos, que o amarram nas grades da cela, alegando que somente deverão retirá-lo se uma solução for tomada. No exame de corpo delito de junho de 2007, João disse que não se lembra de ter matado ninguém, que se medica com Gardenal, que não estudou e os pais não o colocaram na escola, por isso já deu uma surra na mãe. O interno afirmou ter se casado duas vezes, que matou a primeira esposa com uma facada debaixo do braço, enfiado a faca até o cabo, devido a uma traição, alegando não ter nascido pra ser corno. Contou ainda ter três filhos com a esposa falecida, que moram com a avó materna, e possuir treze anos quando se casou. Marcilio relatou gostar muito de mulher, que sempre tinha duas ou três freqüentando a sua casa. O hospital de toxicômanos juiz forense diagnosticou o paciente portador de transtorno mental, devido lesão cerebral e epilepsia, considerado parcialmente inimputável. Internado no manicômio em julho de 2007, por medida de segurança, o exame de sanidade mental de 2010 consta afirmações de Marcilio, onde diz nunca ter feito uso de drogas, e a negação que esteja preso referindo à prisão como “lá em casa”. Chegou à entrevista dizendo não saber o porquê de estar ali, negou o homicídio e fica a ameaçar os familiares pronunciando “que vai acertar o passo deles, pois eles que o mandaram para cá.” Ainda no exame, Marcilio confirma ouvir vozes que lhe dizem para fazer coisas ruins; portou-se falante, prolixo, desorientado no tempo, ameaçador, contraditório, confuso, agressivo verbalmente, com nexos afetivos comprometidos, alucinação auditiva e déficit intelectual. Compareceu a entrevista usando boné com pouca noção da gravidade de seu ato e de sua enfermidade. Tem se mostrado com melhor relacionamento e comportamento nosocomial. Foi discutido que Marcilio João apresenta ainda sintomas psicopatológicos, com atitudes ameaçadoras, que requerem tratamento a nível hospitalar, portanto sem condições de retorno ao convívio sócio-familiar. 8 3 Já entorpecido dessas várias mentes confusas serem atendidas, por um assistente jurídico penitenciário, sem nem ao menos saberem de que serve um assistente jurídico, fiquei foi inerte com a visão desses homens desorientados portando uniformes de cores iguais. Fui encher os corredores com o barulho do meu tênis arrastando meus pés sufocados, bebi um pouco de água tão fria quanto Barbacena e decidi voltar à sala penal para indagar Olavo sobre acontecidos vividos por ele dentro da instituição, já que há tanto tempo se movia por aqueles corredores. Olavo e uma dificuldade de memória me relataram alguns lastros: por volta de 1976 e 1978 a repartição era bem diferente, com poucos funcionários e muitos pacientes, que usando de artifícios faziam verdadeiras armas, conhecidas como “chuchu”, para se defenderem e fugirem, como o cabo da colher de alumínio e da escova de dente. Ele relembrou as comemorações no pátio que sempre terminavam com a fuga de algum interno, mas este sempre era recuperado. Quando na época da vacinação geral contra meningite, ele era chefe de disciplina no manicômio, e muitos pacientes não queriam a vacina, cismados de que esta era uma injeção letal; Olavo insistiu muito com um dos pacientes, Célio, para tomar a vacina, e este reagiu sendo preciso muito esforço para lhe aplicar a dose. No outro dia os agentes da instituição alertaram Olavo para se precaver, pois Célio havia cismado que era ele quem havia obrigado a injeção letal, e poderia agredi-lo; porém tudo terminou bem quando Olavo se dirigiu à cela de Célio, lhe mostrou seu braço com a marca de vacina, e disse que se a injeção fosse letal os dois iriam morrer, pois ele também havia tomado. Não consegui extrair mais nada de Olavo, que muito cansado pelo dia de atendimento ou mesmo pelo tempo, se justificava que não estava conseguindo lembrar muito no momento. Atenta às falas carregadas de nostalgias de Olavo, Mariana, que passava os dias a perambular pelos quatro quantos da sala penal, abrir gavetas e carregar processos, relatou-nos o boato sobre o crime da nova paciente do hospital: Valesca, que antes de entrar no hospital cometeu homicídio contra sua avó, alegando que enquanto jogava vídeo-game um vírus invadiu sua cabeça, obrigando-a a matar. Explicação deturpada, até mesmo engraçada, 8 4 já que o crime foi cometido com um canivete, segundo Andréa, que já se encontrava no bolso dela quando a mesma jogava o game. Não quis me interessar por mais histórias do “Jorge Vaz”, meus pensamentos já estavam a desandar. Peguei meus pertences e sai do setor jurídico sem muitas despedidas, e me encaminhei até a diretoria para conseguir qualquer material sobre o histórico da instituição, quando das tantas portas de ferro que eu já havia visto hoje portas de asas me foram abertas. Entrou leve na diretoria, com suas roupas tons pardos, costuradas em crochê, contrastando com aquela cidade de tons agressivos, igrejas góticas e hospitais psiquiátricos. Rebeca foi logo se apresentando como terapeuta ocupacional do manicômio, e eu empolgado pelo seu trabalho e sua simpatia pedi para acompanhá-la em seu trabalho. Como os pacientes liberados para a Terapia Ocupacional, que passo a chamar aqui de T.O, realizavam-na no turno da manhã, e já estávamos entre a manhã e o vespertino, Rebeca convidou-me para conhecer a sala em que funcionava a T.O, e que no outro dia eu poderia acompanhá-la. Mesmo faminto, senti que esse encontro e suas conseqüentes descobertas que estavam por vir, acrescentaria luzes a um trabalho tão denso de solidão e sombras, e compartilhei do astral de Rebeca caminhando por corredores de um lustre sem fim. Chegamos a uma grande porta de metal com uma pequena abertura que eu rápido reconheci quando lá estive no inicio desse ano, fui apresentado às dependências do manicômio, e me deparei com esta curiosa porta, fiquei nas pontas dos pés para ir além da pequena janela de grades, incrustada na porta, e o que vi foram alguns artesanatos sem muita vida. Acuados em um canto estes pareciam tão pequenos que nem transpiravam arte; grande engano meu, pois ao transpor aquela porta com seu graúdo cadeado, agora em maio, o hospital se encheu de cores e sorrisos, justo neste corredor em que eu já havia me naturalizado pelas idas e vindas. De encontro a uma larga mesa retangular, povoada de vários artigos de artesanato, papéis coloridos, materiais recicláveis, pedras de bijuteria, origamis, colas e até mesmo tesouras espalhadas pela mesa e por mãos famintas, vi surgir peças de artes que eu mesmo desconhecia a simplicidade com 8 5 que eram construídas. Rebeca trabalhou no nosocômio de 1986 até 1987 e voltou ao hospital psiquiátrico e penitenciário por meados de 2001, quando começou a funcionar a prática da terapia ocupacional em um antigo dormitório em reforma, antes queimado por um dos internos. Ela me explicou que a psicologia usa do verbal para diagnosticar um paciente, enquanto que a terapia usa da atividade artística manual para avaliá-lo em suas decaídas ou melhoras. Quando você se expressa em alguma arte não tem como negar seu interior: você mostra mais seu interior que o exterior. “A fala mente e a arte mostra o que o paciente realmente está sentindo.” Indagada sobre os pacientes que iluminaram aquela sala e que ainda são vivos em sua memória, Rebeca num piscar de pensamento apontou para a parede lateral em que se encontrava uma grande pintura cobrindo toda ela, uma paisagem em cores quentes com coqueiros tortos balançados pelo vento, árvores com cipós retorcidos, um pequeno corte de mar sombreado pela lua e um sol inacabado sem cor ao alto, com o branco da parede ao fundo. Rebeca relembrou com grande nostalgia e carinho de Franco de Abreu, que deu cor àquela parede em outubro de 2002. Diz ter sido um homem de características e físico interessante, de Juiz de Fora, estudante até o terceiro ano de arquitetura na Unicamp, responsável por vários crimes de abuso, sendo procurado até pelo extinto programa da Rede Globo responsável por divulgar e procurar foragidos da lei, o “Linha Direta”. Na época da pintura estava acontecendo uma reforma na sala de T.O, Rebeca convidou Franco para pintar a parede como processo de terapia, ele começou a pintar em uma segunda-feira e só não terminou a arte porque foi liberado do manicômio, na sexta-feira da mesma semana. “Eu não liberaria ele”. Sobre o processo de criação, segunda Rebeca, o paciente folheou algumas revistas de viagem e resolveu pintar uma paisagem; ao ser colocado várias cores a sua disposição para a escolha de qual usar, Franco não conseguia usar a tinta azul e verde, cores essas transmissoras de tranqüilidade, paz e equilíbrio. Entretanto, ele abusou das cores laranja, vermelho e amarelo, que denotam um estado inquieto da mente do paciente. 8 6 Quanto aos elementos do quadro, Franco colocou o sol e a lua na mesma paisagem, evidenciando confusão mental, além dos cipós caindo das árvores simularem cordas amarradas, conotação clara ao suicídio apontada por Rebeca, que minha visão ainda não havia metaforizado. Rebeca ainda relembrou o prêmio estadual de desenho de combate a drogas, ganho por Franco enquanto ainda estava internado; desenho que não tive acesso por ter sido enviado a Belo Horizonte, mas de difícil esquecimento devido à placa de premiação exposta no corredor principal do “Jorge Vaz”. Depois da desinternação Franco foi preso em flagrante pela polícia quando participava de um assalto no Rio de Janeiro, foi transferido para sua comarca de origem, Juiz de Fora, e amanheceu morto poucos dias depois na penitenciária. O motivo da morte ainda é um mistério, lamenta Rebeca, pois na época do seu falecimento foi identificado como suicídio, porém Franco era jurado de morte na cidade. Rebeca disse ainda sobre sua fissura com o número 9, analogia aos noves meses de gestação; fato concomitante com sua relação estranha e doentia com a mãe, que lhe trazia até jóias de ouro no manicômio, e com seus delitos cometidos antes de ser detido. Perguntei curioso sobre esses crimes, e Rebeca disse que não tinha muito conhecimento sobre, preferia um distanciamento dos delitos dos internos para que não se distanciasse dos mesmos, “Até comecei a ler o processo de Franco, mas na primeira acusação já desisti, não queria mais saber.” Franco de Abreu Nunes é natural de Juiz de Fora e procede da mesma, onde foi preso por crimes em épocas distintas, bem como internação em clínicas psiquiátricas. No final de junho de 1997 iniciou um relacionamento com Lidia Noêmia Pereira, que perdurou por cerca de onze meses. Inicialmente era extremamente carinhoso e amigo, até que no final de julho de 1998 passou a demonstrar ciúmes, agredindo a vítima com chutes e socos, afirmando que ela o estava traindo. Trancou-a por horas no interior do seu veículo privando-a de sua liberdade, chegou até a agredir um ex-namorado da vitima. Em novo encontro chegou a enforcá-la até que fizesse uma confissão de traição fictícia; em outro encontro, Lidia sofreu graves agressões físicas e morais, fotografias e filmagens da mesma nua, bem como ameaças à sua família se ela o denunciasse. Gislene Oliveira namorou Franco por dois anos. Em fe8 7 vereiro de 1998 o mesmo passou a mantê-la em cárcere privado, espancou-a e a fez comer e beber sua urina; o denunciado ainda colocou a cabeça de Gislene dentro do vaso sanitário dando descarga, passou fezes pelo rosto e cabelos da vítima, após obrigando-a a comê-las. No inicio de 1999 começou a ter outro relacionamento amoroso com Talita Dutra, após alguns meses de namoro, já em maio de 1999, o denunciado mudou por completo seu comportamento ao se dirigir à residência dela e a agredir, arrastando-a pelos cabelos até dentro do carro por ele utilizado. Franco seguiu para sua residência e as agressões físicas foram intensificadas, por socos e chutes; Talita passou a ser forçada a revelar o nome do homem com quem o traía, sendo imposta a cárcere privado, inclusive algemada, mediante violência e ameaça de comer suas próprias fezes. Após dias a colocou no porta-malas e usando de extrema brutalidade e crueldade constrangeu a vitima à prática de ato sexual, sempre apontando um revolver em sua cabeça, afirmando que sentia prazer em vê-la comer fezes. Mostrava para ela o espelho para que visse o sangue escorrendo de sua boca, e como estava feia. Libertada para retornar à sua residência, Franco ainda ameaçou praticar atos contra sua vida e de seus familiares caso confessasse o que ele lhe fez. Rosa Aparecida de Carvalho namorou por cerca de dois anos Franco, quando o mesmo a manteve em cárcere privado no interior do seu veiculo e do seu apartamento, espancando-a com o argumento de que ela o estava traindo. Introduziu sua cabeça no vaso sanitário, desnudou-a e a levou para o banheiro, tapou boca e nariz da vitima e passou a sufocá-la; em outra agressão feita colocou um saco plástico em sua cabeça para que confessasse os nomes dos homes com que o traía. O processo de Franco consta de outros casos, como do taxista assassinado no qual manteve no porta-malas e subtraiu-lhe dinheiro; seu corpo foi encontrado dia após, momento em que se descobriu que o taxista era o motorista que fez a mudança de Rosa para Barbacena, logo após o ocorrido. Outro caso se refere ao casal Violeta e Evandro, que no ano de 1997 mantiveram sexo grupal, inclusive filmado, com Franco; quando resolveram acabar com os encontros este passou a constrangê-los ameaçando 8 8 mostrar ao filho do casal fotos e filmagens. Chegou a interceptar o filho do casal com arma em punho, obrigandoos a continuar naquela conduta sexual. Internado em março de 2002 no manicômio judiciário “Jorge Vaz”, Franco estava com 39 anos, solteiro, curso superior incompleto e profissão na área de informática e desenho. Os últimos exames do paciente no hospital constam conduta de bom comportamento e relacionamento, considerado sua periculosidade cessada, com providências para continuação dos tratamentos psiquiátricos, considerando que o paciente possui familiares que lhe dispensem todos os cuidados e apoio. Franco recebia visitas constantes dos familiares, foi transferido para a penitenciária de Juiz de Fora em outubro de 2002, por ordem judicial, para cumprimento de pena; presídio em que veio a falecer pouco tempo após a transferência. Outra pintura saltava àquelas paredes, de braços abertos um grande Cristo envolto em rajadas amarelas, com uma grande auréola acima de sua cabeça e o coração destoante, arrancado do peito. Rebeca, com uma risada que treme todo o corpo e vai subindo pelo da gente, lembrou-se da interessante paciente, Alessandra, proveniente de Senador Firmino, que se ofereceu para pintar a parede já com a imagem escolhida. No meio da pintura, a interna jogou o cigarro que fumava fora e, segundo dizem, nunca mais voltou a fumar; foi liberada três meses depois do término da pintura, e se tornou evangélica. Zacarias. Um nome que já pairava no ar nos dias em que permaneci no manicômio, uma figura eternizada, inclusive em vários presídios por onde passou. Muitos me haviam falado dele, apenas o citando como o homem da “ciranda da morte”. Quando Rebeca começou a se lembrar de Zacarias, minha audição inflamou e fiquei atento a história da infância, contada por ele à Rebeca, e agora recontada por mim: quando criança sua madrasta obrigava ele e seu irmão a pedirem dinheiro nas ruas, e se voltavam sem um tostão eram chicoteados. Assim, começou a roubar entre os cinco e seis anos para dar o dinheiro a madrasta, acabou fugindo de casa ainda criança e desde então se acolheu no mundo da marginalidade. Rebeca se lembra de algumas mordomias oferecidas a Zacarias no 8 9 manicômio, devido a uma ameaça de morte feita pelo mesmo contra a filha da diretora. “Ele tinha um caderninho preto com o nome das pessoas que pretendia matar ou mandar matar”, e teve seus dias de fama na mídia quando foi responsável pela morte de presos em presídios. Zacarias acabou morrendo dentro da instituição, com idade avançada e as duas pernas amputadas. Zacarias Mendes, solteiro, nascido em julho de 1955, é natural de Recife, PE, e procede de Belo Horizonte. Preso em 1982, por homicídio, sem profissão e com instrução primária, provocou em 1997 várias mortes em presídios, conhecido pela sua famosa “ciranda da morte”. Várias testemunhas presenciaram os assassinatos, mas “na cadeia nós somos cegos, surdos e mudos”, afirmou um detento. Foi internado em junho de 1983 e reinternado em junho 1985 no “Jorge Vaz”. No laudo médico de 2001, consta que Zacarias, já com 46 anos, teve alterações psico-afetivas desde a tenra infância que em muito o afetou. De uma família de cinco irmãos, segundo suas próprias palavras, sempre foi espancado pelo próprio pai, aos quinze anos foi para São Paulo, começou a fazer uso de drogas e em seguida começou a assaltar. Afirmou que “se me tratar bem eu dou minha roupa, se me tratar mal eu fico revoltado, e se puder matar, eu até mato”, “Quando eu matava os caros eu ficava frio como eu estou aqui. Os próprios bandidos queriam ser mais do que eu, eu os matava para mostrar que era superior”. Zacarias alega ter cometido 226 assaltos, cinco latrocínios, quatro crimes dentro da cadeia, e afirma que “se eles me verem na rua ou eu mato eles ou eles me matam. A minha carreira é só do crime. Minha vida é roubar de quem tem dinheiro. Pedir eu não vou mesmo porque eu não sou mendigo. Eu chegando na rua eu vou é assaltar. Eu não penso em ter profissão. Eu não tenho mais chance de recuperação, o resto da minha vida é o crime.” O exame psíquico do mesmo ano o diagnosticou com lucidez de consciência, ansiedade psicótica, com grau exacerbado de destrutividade, onde em sua realidade interna o que mais ocorre é a predominância do instinto de morte e fantasias agressivas inconscientes: “Quase todo dia eu sonho que 9 0 eu estou matando alguém”. O periciado ainda apresentou fixação homossexual sadística e homicida, derivada de uma fixação infantil e uma figura agressiva primitiva do pai. Os laudos ainda apresentam que as frustrações ocorridas na infância do periciado, através da rejeição do ambiente familiar pouco afetivo e distante, fizeram prevalecer nele maior instinto de morte, e com má influência do ambiente social o mesmo tornou-se um criminoso de altíssima periculosidade, que só desperta culpa persecutória e não a culpa depressiva. Zacarias não gostava de sair da cela por nada, nem banho de sol, “gosto de ficar no meu canto entendeu camarada” disse a um agente. Com as duas pernas amputadas, o interno faleceu em março de 2002, nas dependências do “Jorge Vaz”. Ao falar de Rafael Campos, o garoto esquizofrênico portador de HIV positivo, minha memória o trouxe de quando Elisa falou sobre ele e suas peripécias. Rebeca disse que Rafael se mantinha constantemente desnudo dentro das celas, se auto-mutilava, e não deixava ninguém se aproximar dele, espirrando sangue nos agentes com o intuito de contaminá-los. “Ele vivia com uma cordinha no pescoço tentando se enforcar”, contou Rebeca, que lembrou serena do dia em que mandou chamá-lo para T.O e pediu os agentes para retirar suas algemas, por não admiti-las em sua sala. Desde então, Rafael iniciou suas atividades terapêuticas com bom comportamento, ganhou a incumbência de monitor da T.O, cessou as automutilações, passou a se alimentar corretamente e diminuir seus delírios. Ele dizia que haviam colocado um chip na sua cabeça e o estavam construindo para ser um robô, por isso ganharia um dinheirão, mas como não queria o dinheiro iria dividi-lo com sua mãe e Rebeca. Após anos de relação de confiança que construiu com Rafael, Rebeca batalhou para a sua liberação não concedida. Rafael entrou em forte estado de depressão e se suicidou depois de dois anos dentro da instituição. Rafael Campos de Lima, de pai ignorado, nasceu em julho de 1973. Natural de Passos, Minas Gerais, procede de Governador Valadares. Consta nos laudos de 2003 que Rafael foi internado, em fevereiro de 1998, para exame de 9 1 sanidade mental, aos 29 anos, solteiro, com primeiro grau incompleto e mecânico; transferido para a comarca de origem em junho do mesmo ano. Reinternado em março de 1999, submetido a tratamento psiquiátrico, foi transferido em junho do mesmo para a penitenciária de Juiz de Fora. Novamente internado em janeiro de 2000 para tratamento psiquiátrico, foi transferido em junho de 2001 para a penitenciária de Governador Valadares, e em outubro reinternado pela última vez no “Jorge Vaz”. Rafael chegou ao manicômio com tatuagens por todo corpo, afetividade comprometida, manipulador, impulsivo, fazendo greve de fome, recusando medicação oral, ameaçando auto-agressão, mas aos poucos passou a apresentar bom comportamento. Informou o motivo de sua internação: “foi porque eu joguei bosta nos guardas lá na penitenciária de Umaí, aí eles mandaram eu pra cá.” Preso em 1993, por roubo e furto qualificado, foi condenado a 15 anos e quatro meses de detenção, em Passos. Nos autos do inquérito consta que em maio de 1997, portando um revólver de brinquedo, marca “bereta”, Rafael subtraiu de uma padaria cerca de 200 reais, fugindo em seguida. Em novembro de 1991 defronte a um cemitério, o réu e outros denunciados imobilizaram uma vitima e subtraíram-lhe a quantia de 80.000 cruzeiros; anteriormente a vitima chegou a pagar bebidas para os indiciados. Flagrado portando “canabis-sativa”, com fortes indícios da droga se destinar a comercialização, Rafael relatou: “fui preso por furto e assalto, lá em Passos(...) Eu fiz isso para comprar droga.” Conta que sua mãe ficou grávida dele por um estupro e que teve depois outro filho, que com quatro anos levou uma tamancada da mãe na cabeça, estudou até a terceira série e com a idade de dez anos passou a fazer uso de drogas, depois cocaína injetável, pelo qual contraiu o vírus da AIDS aos 18 anos. O periciado disse que passou a roubar objetos em casa e na rua, nunca fez tratamento psiquiátrico e possui vários envolvimentos com a justiça. No histórico do paciente consta sua família de alcoólatras e toxicômanos; que sua mãe engravidou aos dezessete anos, uma gravidez indesejada e rejeitada. Rafael foi criado e deixado sob os cuidados de seus avós maternos, 9 2 muito rígidos, e aos dois anos perdeu o avô, figura paterna. Começou a ser uma criança irritada e ansiosa, sempre indisciplinado na escola. Aos 11 anos a avó veio a falecer, figura materna, e o paciente iniciou o uso de drogas e furtos na rua. Sempre que era preso pela policia apanhava muito, conforme relatos mãe, que mandou o filho trabalhar em São Paulo, junto com o padrasto, mas ele acabou preso aos 18 anos, por porte de drogas, e condenado a oito meses de detenção. O parecer social fez um apelo pedindo cuidados para com Rafael, que desde o útero materno sentiu a forte rejeição a que era acometido, possuiu condição sócio-econômica desfavorável e falta de direcionamento adequado. Rejeitado na escola, cresceu muito só, fragilizou-se, e se auto-puniu por seus anseios e necessidade de ser considerado pessoa. Diagnosticado portador de Transtornos Mentais impulsionados por drogas, associado a transtorno de personalidade emocionalmente instável, tipo bordeline, Rafael suicidou em abril de 2007, por enforcamento, dentro da instituição manicomial. O novo paciente apresentado, pelas lembranças da terapeuta, era Murilo Galvão, jovem da alta sociedade de Belo Horizonte, estudante de administração, usuário de drogas, preso por parricídio. Rebeca recordou a estranha relação simbiótica de Murilo com sua mãe, que veio residir em Barbacena para acompanhar o tratamento do filho, e conseguiu a permissão de praticar sessões de masoterapia no filho, aos domingos e de portas fechadas, fato que trouxe desconfiança quanto aos dois manterem relações sexuais, e justificou a posterior proibição das sessões. Muito rebelde Murilo agredia os agentes, e não lhe concedido a participação na T.O devido aos materiais tóxicos, acabou conseguindo que outros pacientes levassem cola pra ele na cela. Com a chegada de um novo agente penitenciário estudante de psicologia, que Rebeca demonstrou muito estima por se mostrar diferenciado, Murilo teve a oportunidade de ajudar na decoração de uma festa surpresa oferecida a uma das funcionárias, pois esse agente o convidou junto com mais um interno para a confecção dos enfeites. Ao chegar com Murilo na T.O, Rebeca não gostou da escolha do 9 3 agente, e com o olhar pacífico ele transmitiu a vontade de dar uma chance para Murilo, que eles deviam tentar; olhos de quem sente correspondidos pelos de Rebeca, que se surpreendeu com o envolvimento do menino com os enfeites, e sua habilidade com o artesanato, arte que afirmou nunca ter feito. Murilo mudou o seu comportamento na Unidade, realizou vários trabalhos na T.O, e por lá permaneceu por mais dois anos até sua liberação da instituição, quando retornou a Belo Horizonte, voltou a cursar administração, a morar com a mãe e a irmã, e fazer tratamento psiquiátrico. Murilo Galvão Costa é natural de Salvador, Bahia; solteiro, com ensino superior incompleto, procede da cidade de Ribeirão das Neves, Minas, e da comarca de Ipatinga. De pais separados, o pai era residente de Ipatinga, a mãe morava em Salvador e mudou-se para Barbacena após a internação do filho. Murilo foi internado em maio de 2006, proveniente de outra instituição prisional desde o fato criminoso contra seu pai, em junho de 2005, seguido da tentativa de ocultação de cadáver. Em agosto de 2005 Murilo disse não confirmar as declarações, por si prestadas, no auto de prisão em flagrante, que na noite dos fatos foi obrigado a matar seu genitor porque este queria lhe estuprar. Conta que acordou com uma fita plástica na boca e uma faca em seu pescoço, que foi obrigado a fazer sexo oral com as mãos amarradas para trás, e no momento em que o pai ia introduzir o pênis em seu ânus conseguiu se desvencilhar da amarração, iniciando uma luta que acabou por desferir uma facada no pai e o asfixiando por enforcamento, causando seu óbito. Murilo disse não saber o porquê da atitude do pai, que não estava alcoolizado, que já teve vários casamentos com mulheres e nunca teve tendências homossexuais. No exame pericial do denunciado constou ideação de autoextermínio, atitude paranóide, total indiferença afetiva aos fatos. No exame de sanidade mental do “Jorge Vaz” Murilo informa que sua mãe não gosta dele, por isso tentou matá-la também durante visitas da mesma ao hospital, em que chegou a agredi-la. Não se lembra da morte do pai, porém afirma que “com a lata tecnologia da medicina ele pode não ter morrido”, evidenciando sua confusão mental. 9 4 O réu alegou fazer uso de drogas desde os 14 anos, cerca de três “baseados” por dia, álcool etílico e cocaína. Murilo pedia que lhe arrumassem a tabela periódica dos elementos químicos para estudar, e segundo a mãe o pai já quis interná-lo, que ele se encontrava calado e com atitudes estranhas no fim de semana antes do parricídio, porém o filho dizia não ter problemas. Nos autos do processo consta que o pai procurando orientar e corrigir o denunciado a respeito da situação de dependência química passou a ser agredido até a morte; na tentativa de ocultar o cadáver por incineração foi surpreendido pelo tio. Segundo o exame de sanidade de toxicômanos de Juiz de Fora, Murilo é portador de um transtorno psicótico induzido por drogas à época do fato criminoso, e por isto considerado inimputável. Durante todo o período de internação demonstrou atitudes bizarras, forçando vômitos constantes. Consta nos laudos de junho de 2009, no manicômio judiciário, que o sentenciado, aos 24 anos, se mostrou calmo, com bom comportamento, atuante nas atividades de T.O e com hábito de leituras, “encontra-se com quadro psíquico estabilizado, sem qualquer alteração de conduta, bom comportamento interpessoal”. O laudo do hospital afirma as visitas familiares e sua boa assistência, que Murilo diz não pretender usar mais drogas “só o choque do que aconteceu me fez mudar de idéia”, com disposição de retornar a BH, residir com sua mãe e completar o curso de administração de empresas. Consta seu juízo crítico com noção da gravidade do seu ato, educado, orientado globalmente e com inteligência normal. Assim, foi liberado para desinternação condicional, com restrições como recolher-se a morada até as 20:00 horas, não freqüentar reuniões públicas, espetáculos e diversões publicas; e no decurso de um ano restituir-se a medida de segurança caso não seja cumprida as estabelecidas condições. Rebeca ainda trouxe a memória outros internos que lhe demonstram ou demonstraram estima; como o arquiteto já liberado Thiago, preso por matar a empregada, alegando o complô entre ela e sua mãe para matálo ser o motivo do crime. Thiago desenhou em uma parede das celas um engenhoso trabalho arquitetônico para outro planeta, com números e me9 5 didas exatas, infelizmente não mais visível. Rebeca acredita que o paciente queria mesmo era matar sua própria mãe, mulher da alta sociedade, que sempre lhe sufocou com sua proteção e cuidados excessivos. Thiago Pereira Gonçalves, arquiteto com nível superior, procede e é natural de Belo Horizonte. Internado em março de 2000 com 35 anos, solteiro, cometeu crime de homicídio contra a empregada doméstica de sua residência, encontrada pela genitora de Thiago caída com uma faca cravada no abdômen, em abril de 1999. O denunciado foi preso em flagrante e permaneceu 15 dias em um cadeia, transferido para o instituto Raul Soares até ir para o hospital psiquiátrico e judiciário de Barbacena. No relatório de abril de 2000 do instituto Raul Soares o acusado negou ter matado a vítima Regina, e fez uma construção delirante se colocando no lugar da vítima, supondo que era um complô de pessoas de sua família (mãe, padrasto) que queriam matá-lo envenenado através da empregada, colocado seu ato como legítima defesa. Thiago tem um histórico de dependência de drogas (maconha, cocaína e crack) e conduta sexual pedófila. Já era semi-inimputável por tráfico de drogas e responde processos anteriores por sedução de menores. Ainda consta no instituto que o paciente manteve alucinações auditivo-verbais, sempre procurava rapazes mais jovens na enfermaria para se relacionar sexualmente, e buscava de forma impulsiva drogas, até pulando o muro. Submetido ao exame de sanidade mental no hospital de toxicômanos de Juiz de Fora, diagnosticou-se Thiago como portador de uma Psicose Esquizofrênica com uso de droga secundário, por isto considerado inimputável por ser inteiramente incapaz de entender e auto determinar-se. Submetido a exame pericial em 2004, apresentou elevada periculosidade, sem condições de retorno sócio-familiar, e permaneceu em isolamento, por vontade própria, pois preferia não ter contato com os demais. Em 2005 aceitou melhor as teraupêticas, com bom comportamento, mas com quadro delirante e humor instável, às vezes hostil quando se refere a sua mãe, que segundo ele se alia a pessoas estranhas e fica a impedir que seja executado seu alvará de liberação. 9 6 O paciente manteve, ainda no laudo pericial, juízo crítico comprometido, sem noção de sua enfermidade e da gravidade de seu ato; fez planos de associar a seu padrasto em um escritório em BH para fazer assessoria de serviços de arquitetura, e se referiu a um pequeno piano que a mãe lhe trouxe onde executa seus dotes musicais. O mais recente exame apresentou ainda sintomas de sua doença mental, com isso deve continuar seu tratamento em alguma instituição psiquiátrica hospitalar, em ambiente com segurança, mas que ao mesmo tempo possa ter um melhor convívio para ser avaliado o seu grau de integração social. Thiago é formado nos EUA, inteligente e muito ligado a arte e cultura; assim foi vislumbrado a possibilidade de uma estabilização vir a ser construída através de trabalhos artísticos e gráficos, desenvolvidos por ele com grande habilidade. O paciente foi transferido para um hospital particular em Brasília, DF, em setembro de 2005, por ordem judicial. Geraldo Fernandes é um interno surdo, mudo, sem conhecimento da língua de sinais e libra, que desperta a comoção e atenção de Rebeca; ela defende sua liberação por desenvolver um perfeito convívio com ele, que mantêm um comportamento bom e estável no hospital, não oferecendo riscos algum. A terapeuta diz que o perito vem uma vez ao ano no manicômio e consta que a periculosidade de Fernando não cessou, deixando-a indignada, vontade de ver penas soltas, já que basta a própria bolha absorta que flutua o paciente. Geraldo Fernandes da Silva é natural de Francisco Badaró, Minas, procedente de Minas Novas. Foi internado no “Jorge Vaz” em dezembro de 2006, aos 27 anos, solteiro, analfabeto e sem profissão. Já esteve internado na mesma instituição em janeiro de 2004 por dois anos e sete meses, pelo crime de estupro a uma senhora em julho de 2001. Exposto a um exame pericial apresentou agressividade, mau relacionamento com as pessoas, irritabilidade fácil, rebelde às normas, e recusa a higienização às vezes. Atualmente foi diagnosticado como portador de desenvolvimento mental incompleto, e cumpre medida de segurança por tempo indeterminado, não tendo sido informado o motivo de sua reinternação, apenas constado que ainda não 9 7 havia cessado sua periculosidade, mesmo conseguido alta em julho de 2006. Geraldo só consegue se comunicar por gestos manifestando desejo de ir embora; ele continua sem receber visitas, mas o serviço social tem feito contatos com a família. No exame de 2009 permaneceu sentado em atitude calma e indiferente à entrevista, relatado a dificuldade de contato devido a sua surdo-mudez, e pelo pouco que o mesmo consegue informar, sem condições de pesquisa de sua memória, pensamento e orientação. O paciente possui pouca noção do certo e do errado, impulsivo, agressivo e agitado, e que todos esses fatores impedem seu retorno ao convício sócio-familiar. O material de risco utilizado na T.O, principalmente tesouras, encontra muita resistência por parte dos agentes para a realização do trabalho terapêutico. Rebeca disse nunca ter sido agredida, que nunca constou o sumiço de nenhum material ou tesoura da sala, e elucida a necessidade de confiança e assistência doada aos internos, para que estes confiem em seu trabalho e em si mesmos. Com uma imensa gula de viver aquelas histórias e seus interlocutores, suas mentiras e realidades, o que eu precisava era de um prato de comida e um pouco de sol lambendo a cara. Abraço despedido e agradecido a Rebeca e seu trabalho, certo de que no outro dia eu a veria novamente na sala de T.O, rodeada de artesanatos, luzes e pacientes. Deixei todo aquele trágico universo pra me deixar sem preocupações em uma quitinete do sufoco, um refúgio de todo dia após sair carregado daqueles cigarros e energias do manicômio: uma pequena casa de um novo amigo, me ensinando a ouvir, quando escutou atento o ocorrido nesses ligeiros, mas intensos dias de desmanche por dentro. 9 8 9 9 1 0 0 Bunda de vagalume Nessa região de desencontradas correntes de ar, hoje o auto-encontro foi meu. Já é tarde, bebi algumas cervejas, e inicio com letras um dia sem muros, grades ou máscaras; de contatos que renovam a alma, há tantas esquecida no congelador, procurando respostas em processos mortos abandonados a mercê de morcegos, num quarto revestido a mofo de pacientes já liberados ou mortos. A convite da Rebeca passei duas horas com internos na terapia ocupacional, uma enriquecedora vivência que abriu novas concepções para que eu não fosse só palavras, mas também toque. Vi Silvia, menina fantasma da minha memória, que ainda mantinha o mesmo semblante pálido, agora ensimesmado, construindo com atenciosas mãos delicadas peças de origami, que de tão pequenas até dificultavam o manejo: dois cisnes que se encontravam com os bicos formando um coração. Naquela frágil peça percebi o carinho com que era feita, mais que um momento de distração, a desconstrução de uma agressividade impulsiva transpondo-a em uma minimalista peça de arte, tão linda como Sílvia se tornou pra mim a partir desse dia. Presunçoso, este menino do sorriso lerdo, que eu até tentei fugir, mal percebeu minha presença e se colou a mim, com mil gracejos, trejeitos de garoto que aprendeu a se virar por vielas sem lei. André logo percebeu minha invasão e se aproximou interrogando-me e zoando, forçando eu repetir meu nome por seguidas vezes e dizer quantos nãos fossem necessários para seus pedidos intermináveis, enquanto eu ainda tivesse algum objeto na bolsa: “me dá seu isqueiro?”, “me dá sua caneta?”, “me dá seu cigarro?”, sempre acompanhado do seu discurso de homem pobre e sem luxo. Como eu também não possuía nenhum álibi para dar qualquer tipo de objeto aos internos, argumentei isso a André por várias vezes até ele sossegar o facho. 1 0 1 André Leal Fortes nasceu em fevereiro de 1984, natural de São Paulo, estudou até a quinta série e tem dois filhos. Acusado em março de 2009 de homicídio, a secretaria da segunda vara criminal de Uberaba requisitou-o ao hospital psiquiátrico “Jorge Vaz”, onde ainda permanece, para realização de exame de sanidade mental, em junho de 2008, aos 25 de idade, solteiro, profissão de tapeceiro, sabendo ler e escrever. O denunciado foi preso em flagrante delito, em outubro de 2006, Uberaba. Consta que ele foi encontrado por testemunhas que presenciaram o homicídio da vitima Severino Fontes, e teriam visto quando o conduzido passava pela rua e deu um empurrão na vitima, que caiu no chão, apossando-se o autor de uma pedra, do tamanho de um tijolo, e desferindo cinco ou seis pancadas na cabeça da vitima, que veio a óbito no local. André confessou o homicídio quando encontrado no posto relatado pela testemunha, com marcas de sangue nas roupas, e disse que a vitima o teria agredido com um tapa no rosto, em um bar nas proximidades onde ocorreu o fato. Adereços era o que não faltava no seu figurino, que se destacava em meio a tantos uniformes de mesma cor, vestidos por corpos tão distintos e distantes, uniformizados em um mesmo ambiente. Gerson, um senhor já velho, tinha um óculos maior que seu rosto, amarrado a uma corrente de pedrinhas vermelhas enfileiradas com esmero, que lhe assegurava o objeto preso ao pescoço, mas que sempre o acompanhava pregado ao rosto. Nem vi seus olhos, só assisti as pulseiras e colares surgirem de suas mãos. Os óculos, escuros como a pele de Gerson, pareciam atrapalhar seu artesanato, entretanto era gracioso ver este senhor com um “x” de esparadrapo branco, pregado na lente direita dos óculos: olho direito dotado de pouca visão ou escondendo algum tesouro. Pedrinhas de cores e brilhos variados preenchiam pequenos colares que lhe envolviam o rosto, um charme de alguém acostumado àqueles uniformes sem graça. Empolgado pelas fotos que comecei a tirar das mãos artesãos dos pacientes, Gerson abriu rápido o armário e tirou uma toca de crochê que havia feito, trabalho realizado apenas com os dedos e a linha esticada, sem nenhuma agulha ou ajuda. Depois de algumas fotografias de suas tocas, não pude deixar de notar Gerson e sua maestria em ajudar as outras internas, 1 0 2 especialmente Lourdes, que vidrada em suas explicações, se esforçava para preencher um colar de pedras. Lourdes ainda se comportava como uma metódica antiga dona de casa, quando a conheci no acompanhamento psicológico dos primeiros rabiscos, na ala feminina. Gerson Nazário de Lourdes é natural de Barbacena e procede da mesma. Foi internado em abril de 1983, solteiro, com profissão de cozinheiro, considerado portador de psicose confusional com uso de drogas, e foi desinternado em 1987. Cometeu homicídio e lesões corporais e sofreu reinternação em 1990; novamente desinternado em 1998 fugiu da casa de seu pai um mês após a liberação, em Varginha, e foi reinternado em 2005. No laudo de 2009, aos 46 anos, Gerson mostra-se sempre frio emocionalmente, também quando fala da família, impulsividade agressiva, com pouca noção dos atos cometidos e pouco senso de crítica. Faz toucas na terapia ocupacional e faxinas simples pela instituição. Os laudos constam que o paciente continua apresentando sintomas psicopatológicos, que necessitam de controle a nível hospitalar, não tendo condições de retorno sócio-familiar por possível reincidência de crimes. Séria ao lado de Gerson, com cabelos máquina zero e feições duras, truncadas por olhares certeiros que não querem ser vistos, mas querem ver, e logo se abaixam acompanhando a cabeça, Marialine tecia paciente sua peça de crochê. Aproximei sem assunto e sem perguntas de importância, apenas para estar mais próximo, e ela correspondeu com a mesma falta de importância, levantou os olhos e disse apenas ter algumas filhas, que há muito não as via. Marialine Pereira de Carvalho, presa por crimes de tráfico ilícito, procede do complexo penitenciário feminino Estevão Pinto, Belo Horizonte, para tratamento psiquiátrico temporário. Flagrada preparando algumas porções de crack, foi condenada pela comarca de BH, em agosto de 2009, à pena de cinco anos e três meses de reclusão. Internada em março de 2010 no manicômio, constou no exame que a interna encontrava-se calma, dando continuidade ao tratamento, sem condições ainda para alta. Nascida em abril de 1983, solteira, natural de Prado, 1 0 3 BH, o relatório psiquiátrico diz que ela poderá voltar à sua comarca de origem e continuar seu tratamento e sua sentença na mesma. Rodopiei pela sala a registrar origamis de tamanhos e formas diferenciadas, quando Roberto me interrompeu excitado mostrando e explicando aos cuspes seus dotes de marceneiro, personificados em pequenas camas de madeira, acolchoadas com espuma e cobertas por um pequeno lençol preto. Com uma protuberante barriga e aquela fala boba, de que eu já havia me acostumado a dialogar, Roberto mostrava frenético sua coleção de camas, com as mesmas proporções, que iam sendo colocadas uma a uma sobre a cadeira ecológica feita de garrafas pets para secar a cola. Padre Orlando estava indiferente do outro lado da mesa, a dobrar e colocar em sacolas pequenos pedaços de papéis, provenientes das tampas das marmitas, que encaixados e enfileirados um sobre o outro serviam para a construção dos origamis; ofício que André dominava muito bem e ensinava marrento aos internos e a mim, além de me mostrar vários vasos, cisnes, caxetas e outras peças que montava com facilidade. Foi então que conheci Jeane, que como eu estava aprendendo a construir a base de um cisne com as proezas e o orgulho simples de André. Jeane não portava uniforme e tão pouco tinha aspecto de paciente, curioso da sua presença vi a sigla APAC grande em sua blusa, instituição de recuperação e introdução dos presos de volta à sociedade, já de meu conhecimento pela APAC também existente em Viçosa. Logo comecei a dialogar e simpatizar com aquela moça barbacenense, de cabelos pretos e corridos, que estava conhecendo o hospital e a terapia ocupacional para um futuro trabalho ali. Secretária da APAC em Barbacena, Jeane trabalha há três anos com a terapia de laboterapia com presos em Barbacena e está muito interessada em trabalhar com Rebeca na TO; ela contou-me suas experiências com presos nas visitas a várias cadeias de vários estados, e outras coisas mais, enquanto encaixávamos papéis dobrados formando um grande cisne, que eu me esqueci de pedir de presente à Rebeca, pra que eu sempre lembrasse que estamos todos encaixados e conectados com algo maior que nossa humilde passagem. Acompanhando e ajudando o trabalho minucioso e delicado de Sílvia, 1 0 4 Israel Cardoso, de costas curvadas, boca torcida, rosto marcado por traços intensos, e encoberto por uma toca, utilizava da mesma delicadeza e atenção de Sílvia aos cisnes enamorados, que os dois construíam com a mesma afeição, distantes do resto da sala e unidos por sintonias que eu desconhecia, e fui saber mais tarde que eram o novo casal de namorados do manicômio: não há grades que não se amam. Geraldo dobrava as pequenas peças de origami estatizado, não com a indiferença de Orlando, mas dotado de um tédio que até me entediava, em sua forçada bolha marcada pela surdez e mudez, e sua falta de comunicação que me agoniava por querer me comunicar. O menino, que Rebeca tanto quer ver liberado, se mostrava ali indefeso em seu trabalho e oculto em seus pensamentos, num vazio de expressões que só o toque poderia falar. Foi então que eu li na blusa de Jeane que “As coisas só tem significado depois que as conhecemos”, e num reflexo de tempo quis ser espelho pra naquele menino refratar. O silêncio é excesso de sentimentos. Desdobrando-me em aprender aquelas dobraduras, fiz uma de não muito sucesso, Jeane disse “joga pro bonde” e minha cara de quem nada entendeu a fez explicar que, entre os presos, se usa essa expressão pra designar algo que deve ser jogado fora. Empolgados, Andre e Jeane desataram a falar gírias básicas mais usadas em presídios, já que eu me interessei tanto pelo “bonde”. Alguns internos foram interagindo e opinando surgindo as seguintes expressões: “taxi” – chinelo “pena” – caneta “boi” – banheiro “catatau” – bilhete, mensagem “guela” – colher “taça” – copo “capa” – grade “copo” – parte intima masculina “giz” – cigarro “luva de pé” – meia “vaquinha” – leite 1 0 5 “moca” – café “fruta amarela ou macaca” – banana “joga o jato” – jogar de uma cela a outra pela grade um pet contendo dentro algum objeto ou mensagem “dragão ou brasa” – isqueiro “praia” – chão de cela “jegua ou burra” – carro “pápápá ou radinho” – celular “salve” – olá “chorona” – carta “buzentão ou Jack” – estuprador “quêto” – cortina “jungo” – coisas que a família leva aos preso “chuchu” – arma construída com restos de materiais “treta” – negócio “palito” – cigarro “bandeco” – marmita “pagar janta” – levar marmita até a cela “correu” – agente ta vindo à cela “campana” – espelho “tela” – visualizar o que acontece na cela ao lado por um espelho “homi da capa preta” – juiz “bate cinza” – cinzeiro “é quente” – bom, firmeza “ir pra pedra” – solitária “açúcar” – cocaína “café” – maconha “cripton” – crack “donzela” – gay “chinelão” – steack “zoião” – ovo “tia ou teresa” – acender algo quando vai ao banheiro da cela para abafar o mau cheiro, como papel higiênico enrolado. André disse ainda que quando é horário de almoço nas celas é proibido ir ao “boi” ou espirrar. Curioso pelo assunto que fez da sala um coro, até com Orlando gritando lá do outro lado e Israel levantando o rosto, quis mais gírias e não consegui nada, com alegações de não se lembrarem, a não 1 0 6 ser as que são usadas como códigos e, portanto, nada de serem divulgadas. Reli as palavras que havia anotado, reconheci algumas como “brasa”, “treta” e “correu”, de meu uso também fora das grades. Distrai-me com o crochê de Gerson, e quando me sintonizei, Orlando estava ao meu lado ajoelhado conversando com Jeane, tão rápido que eu jurei ele ter teletransportado. Fui paciência e ouvidos, e retrato aqui as lembranças, desabafos e nostalgias que Orlando, com as pálpebras caídas, dirigia a Jeane e a partir de minha intromissão, também a mim. Criticou a reunião dos bispos da Igreja Católica que resolveu punir severamente a pedofilia, mas de não destituir o pedófilo de seu sacerdote; disse que o mais difícil será quando ele sair da prisão devido ao preconceito, “fica a marca na testa da gente”. Relembrou com um humor que parecia adormecido, de difícil contenção, do amigo também padre que estava em meio a um relacionamento sexual, em uma diocese, quando chegaram vários jovens para um encontro, e ele a pedido do amigo ajudou a mulher a pular o muro, mulher que Orlando não se lembra do rosto por causa do escuro, mas que se lembra do peso devido à dificuldade para levantá-la, e as gargalhadas espalharam pela sala que nem bolhas de sabão. Ele guarda esse momento vivido como herança e aprendizado, já que acabou substituindo o padre após descoberto o caso amoroso com a mulher, inclusive casada, e mandado para outra paróquia afastada e isolada, segundo Orlando uma forma de punição. “É uma violência tirar uma criança dos pais e colocá-la no meio de um monte de crianças, privadas até da masturbação.” Orlando transbordando lembranças e lágrimas, empolgado com nossa atenção, jorrou vários comentários e confissões sobre a instituição católica, a pedofilia e sua infância, deixando evidente quando falava sobre pedofilia, mas não pronunciando a palavra propriamente dita. Afirmou ter sido muito abusado quando criança na família e na igreja, que a pedofilia é um fator genético, já que o avô também foi preso pelo mesmo motivo. A pedofilia é muito mais presente do que os escândalos focados com exagero pela mídia, afirmou Orlando que argumenta conhecer a instituição por dentro, “a igreja tem que mudar, pois quem define as leis são velhos. 1 0 7 Tem a pedofilia em conventos que ainda não foi mostrada, e a maioria das meninas são da roça e tem medo de falar.” Meio aéreo, ouvi quando Rebeca anunciou o término da T.O, e os agentes começaram a levar os internos de volta aos seus quartos celas; Orlando se apressou na língua e conseguiu finalizar “Nesses 15 anos de igreja é tanta história. O diretor disse que eu devia escrever um livro.” Alguns pacientes se despediram e André não se esqueceu de pedir meu isqueiro como presente; mas minha atenção estava num abstrato livro sobre a biografia de um sacerdote, pedófilo. A sala ficou vazia, assim como as verdades e incertezas de Jeane, Rebeca e minhas, que ainda sentados na mesa, agora sem os pacientes que a tornava maior e mais silenciosa, ficamos um bom tempo a discutir sobre a dificuldade de compreender as brutalidades que essas mãos tão cheias de arte já praticaram. Rebeca, atravessada pelas relações próximas travadas com os pacientes, explicou existir a doença mental e o distúrbio mental, este último despertado por algum fator estressante que o desencadeia, como um parto, vício em drogas, acidente, e outros traumas. Já a doença mental é um fator presente desde o nascimento da criança, possivelmente genético, já que a maioria dos doentes mentais possui familiares portadores dessa doença, seja vivos ou genealogias do passado. O doente mental que sofre um distúrbio mental passa por um processo crítico que o torna alheio a si mesmo podendo extrapolar sua angustia de uma maneira violenta e destrutiva, acentuado por um contexto familiar e cultural desfavoráveis. Essas explicações diminuíram dúvidas, mas reformularam e criaram novas, me quebrando em dois, sangrando a criança que ainda existe em mim. E a genética, o que teria a dizer sobre a psicopatia? Preciso de raios divinos que me expliquem, me ludibriem. Discutimos sobre Orlando e seus lamentos confessionados. Até onde acreditar nessas recordações como um relato fiel ou como criações do pensamento para diminuir sua pena moral, como uma criança marcada por uma violência que justifique o ato exercido pela mesma criança, agora adulta. Expus o fato da maioria dos internos do “Jorge Vaz” ser proveniente do meio rural e possuir baixa condição financeira, similaridade que poderia vincular algo, mas que Rebeca logo refutou já que os doentes mentais são provenientes de todas as classes e regiões, porém os de classe elevada se escon1 0 8 dem ou são internados pela família em clinicas particulares. Fiquei com medo das ambigüidades, medo das palavras, medo das letras não serem livres, das palavras não significarem nada. Convicto da cor vida que a terapia ocupacional passou a me pintar, da leveza com que os felinos que guardam o manicômio passaram a me olhar, também minhas objetividades entraram em contraponto, e eu sai revirado por tantas questões que me afugentavam o espírito, um avesso da alma. Fui embora com o sorriso doce e convidativo de Rebeca, ávido pela minha presença novamente na TO, convite obviamente não negado: me senti pleno nesse pouco pedaço tempo em que pude conhecer os pacientes sem jaulas no olhar, sentimento que Jeane compartilhou muito bem: “Pra mim essa é a parte mais importante do hospital.” E fiz da corrente na portaria da entrada que pulei ao ir embora: canção. À tarde voltei ao manicômio, sempre utilizando diferentes caminhos com um mesmo destino, aquele prédio antigo e sombrio. Um pouco de sono, mas um pouco alerta pra alguém que conheceu uma sala cheia de vidas amputadas, ansiosas por claridades, como as janelas da TO que deixavam os raios de sol serem mais presença como em nenhum outro aposento do hospital. Era a sala mais transparente, luz de noite e luz de dia, e eu contente por conhecer essa terapia. Fui à sala dos encontros, a penal, e não agradei muito Mirtes nemMariana com o meu pedido dos processos de vários ex-internos que conheci com Rebeca. Os processos dos internos que já faleceram dentro da instituição ou foram liberados são denominados processos mortos e ficam guardados em uma sala no fundo do “Jorge Vaz”. Mirtes disse que iria trazer alguns processos, mas outros ela iria pedir outra pessoa pra buscá-los, pois eram muito antigos e se encontravam em uma sala escura de morcegos. Até me ofereci pra ir procurá-los, imaginando o teatro de morcegos sobrevoando minha cabeça e os processos mortos, cena morta por Délcio, um funcionário que trabalhava no turno da tarde, que foi quem trouxe os processos que faltavam. Encaminhei toda a tarde a devorar aqueles morcegos em papéis amarelados cheirando há um tempo em que a instituição ainda nem era considerada um hospital psiquiátrico. Por páginas e pági1 0 9 nas comidas por traças e com letras datilografadas por antigas máquinas, revivi histórias e personagens penais que se repetem e se sucedem, seres humanos e suas conturbadas mentes, resistentes ao tempo e suas evoluções psiquiátricas e tecnológicas. 1 1 0 Que seja poesia e cicatriz Despertei mais cedo do que outros dias e sem a poluição sonora do despertador. Vontade de sentir ao máximo o Jorge Vaz e seus personagens. O dia, ainda desfocado pela neblina e cheirando a orvalho da madruga, se alastrava pela cidade amanhecida. Cheguei mais íntimo ao manicômio, sensível a cada olhar, temor das lembranças daqueles dias ficarem guardadas e escondidas num livro amarelado em uma biblioteca desconhecida. Subi os degraus leoninos, cumprimentei a todos com uma simpatia que eu ainda não tinha, e fiquei a deglutir aqueles mortos processos que eu transcrevia com vida, esperando a TO e suas mãos de fadas iniciar. A grande porta com sua pequena janela estava trancada. Tive que fechar os punhos e bater forte para que alguém lá dentro da sala não me fechasse o entrar. Acanhado, tentando fazer da minha presença pouca atenção, notei uma sala mais abarrotada de homens e mulheres, mais acalorada que no dia anterior. Rebeca e sua energia, visível em sua áurea, ocupavam toda a sala e os pacientes, empolgada em empolgar. Vi Jeane com sua blusa azul da APAC, já rodeada por André e seus cisnes multicores. Congelados em outra dimensão, se encontravam na mesma posição e envolvidos na mesma tarefa do dia anterior, Gerson com seus colares coloridos e seus óculos a tino, juntamente com sua fiel aprendiz Lourdes, e Marialine sentada pesada na cadeira a coser ensimesmada seu crochê. Sílvia e Israel continuavam seu artesanato no conjunto namoro, os delicados cisnes de bicos colados que agora montados ganhavam uma base em formato de coração e aquarelas dos pincéis. Reconheci o menino Leonardo, sentado de lado, a dobrar aqueles intermináveis papéis origamis, o mesmo do acompanhamento masculino de janeiro, a não ser por sua cara, 1 1 1 mais desmontada. Novos pacientes perambulavam pela sala, novos personagens que não iam parar de crescer. Ainda desnorteado pela primeira presença na terapia ocupacional, Lucas Barros, que há pouco tempo estava internado no manicômio, captava lentamente cada canto da sala com um fiasco preguiçoso do olhar, depois se perdendo com olhos de desalento; quando pela interferência de Rebeca que lhe perguntou o que gostaria de fazer, pediu papel, lápis preto e outros com cores. Foi ai que me aproximei da pequena mesa que Lucas começava a apontar alguns lápis, examinando-os, puxei um banco feito de retalhos de couro e sentei. Percebendo ou não minha carapaça, Lucas continuou sua avaliação dos lápis separando-os e apontando-os cuidadosamente. Perguntei seu nome, a resposta veio com desinteresse e ele começou a rabiscar um coração mal-feito no papel em branco. Resolvi deixá-lo fluir seu desenho, mas foi ele então que me interrompeu curioso a respeito do significado da tatuagem cor de sangue no meu braço direito. Expliquei-lhe que correspondia a um símbolo da paz e ele, despertado de alguma letargia, mas com a mesma falta de brilho e movimento no olhar, começou a conversar comigo, sem mesmo eu conversar. Lucas, que parecia nem ter se aproximado dos seus dezoito anos, disse que é tatuador e adora desenhar tatuagens, mas nem sempre foi assim. Desde novo o menino possuía um desejo enorme de aprender a desenhar, porém não tinha muita vocação, e decidiu fazer um pacto com o diabo para aprender esta arte; desenhou o pentagrama em um cemitério e colocou uma vela preta em cada uma de suas cinco pontas, realizou seu pedido, e desde então começou a desenhar como profissional. Porém o pacto arruinou sua vida, ele foi testemunha de um homicídio, no qual não realizou nenhum ato para impedi-lo, que o traumatizou e o persegue, na lucidez alucinada do dia e nos sonhos acordados da noite. Mais aprumado disse amar o estilo musical Metal, já eu disse que não, mas o ouvi citar algumas bandas pra soar dele mais amabilidade por mim. Em tom soberbo disse ser “metaleiro”, que desde novo andava em cemitérios pelas madrugadas, usava crucifixos invertidos dependurados no pescoço, 1 1 2 e que possui um pentagrama na coxa esquerda. Ele me mostrou a tatuagem na coxa, que mais parecia um rabisco de caneta preta, sem delineamento e cor; desenho provavelmente feito por ele mesmo que eu não quis perguntar. Contou-me mais detalhes do crime que atuou como co-autor, mas depois se arrependeu, “Meus amigos metaleiros mataram um caminhoneiro na minha frente. Eu morava com minha esposa e minha mãe, tivemos que mudar pra roça depois disso”. Indaguei do porquê de ter participado, ele apenas disse que o motivo era algum tipo de vingança, mas não sabia que terminaria em homicídio e não conseguiu intervir. Acreditei ser este o motivo de sua prisão, que nas palavras do próprio Lucas foi por tráfico de drogas. Durante os minutos que estive vigilante às palavras de Lucas, o mesmo não se desvencilhou de seu desenho, antes um coração com traços malfeitos que se transmutou em um gentil coração alado, que começava a voar e ganhar cores. Lucas ainda disse que o juiz também queria prender a sua mãe e que ficou indignado, “ta doido, minha mãe é tudo pra mim”. E aquele menino magrelo, de ossos protuberantes acentuando seu rosto à de uma caveira, começou a entrar em catarse no seu desenho, que eu admiti estar ficando belo. Fui saindo devagar, já me sentindo incomodado por incomodá-lo, ele me olhou percebendo a saída discreta e disse com palavras de olhar morto: “Também desenho revistinha em quadrinhos. Quero sair daqui e voltar a tatuar”. Foi eu que não consegui dizer nada, mas sorri com os lábios fechados e não duvidei que Lucas sairia logo da instituição deixando alguns desenhos pra outro curioso contemplar. Não notei nenhuma presença de doença mental nele, e sim o trauma que o atormentava e ainda circulava em suas veias, querendo fugir pelo olhar. Mas se ia voltar pra casa acredito que tão cedo Junior não o faria, ele ainda possuía uma pena a cumprir pra penosa justiça. Lucas Frederico da Silva foi preso em 2007, solteiro, sem ocupação definida, estudante até a oitava série. Natural de Teófilo Otoni, Minas, nasceu em 1998, e foi condenado porque em abril de 2007 trazia consigo 115 buchas de maconha. Lucas declarou medo de conviver com outros prisioneiros, e manifestou vontade de pintar tecidos. O prontuário de Lucas traz ainda relato de medo, angústia e auto-agressões com arranhões, ele diz ver a alma do caminhoneiro que assistiu ser assassinado; sendo assim 1 1 3 sugerido o acompanhamento psicológico/psiquiátrico em clínica especializada. O paciente foi transferido da penitenciária da Teófilo Otoni para o hospital psiquiátrico e judiciário Jorge Vaz, para tratamento psicológico temporário. Atraído pelas jovens almas que enfeitavam a sala de TO, sentei ao lado de Viviane, rainha da desnuda alegria. Todo o tempo a rir de algo, nem que seja de si mesma, ela riu que só criticando a Valesca, a tal paciente novata, que por infortúnio já estava associada ao vírus do vídeo-game, pra outros do computador, não sei, resolvi não prolongar. Ela disse que Valesca era a “coelha” da ala feminina, ou seja, ladra de qualquer que seja o objeto, e de repente Viviane se jogou no chão, começou a imitar um falso desmaio que Valesca havia simulado há pouco tempo. Riu e riu de Valesca, que segundo ela é ainda mais engraçada pelo seu avantajado tamanho que a deixa destrambelhada. Felicidade, nem que da boca pra fora, assim senti Viviane, que com uma jovem virilidade conservava três estrelas tatuadas no pescoço e brincos nas orelhas e na sobrancelha. Por ironia, o nome de sua filha tatuado com letras maiúsculas e de um tamanho fácil de observar, no seu braço direito, deixava-a mais cômica por se iniciar com a letra “i”: “ISTEFANI”. Ela disse ter mais dois filhos, e com um sorriso quase sedutor pegou na minha barbicha, dizendo que seria liberada na próxima segunda-feira, justo no dia do seu aniversário de 26 anos. Motivo ou não do seu excesso astral, o que Vivi não sabia ou sabia, mas de qualquer maneira viria a saber, assim como eu o soube, era que ela seria liberada da medida de segurança do manicômio para continuar a cumprir pena pelo crime 157 na penitenciária de origem, por não ser considerada agente inimputável em seu diagnóstico. Foi ela mesmo que me contou o seu crime e que o número 157 se refere a assalto a mão armada. Várias internas seriam liberadas no inicio da próxima semana da medida de segurança, como Viviane e Marialine, consideradas conscientes de seus atos, e voltariam às suas comarcas de origem para cumprirem suas penas. Viviane Amorim Assis, solteira, nascida em maio de 1984, procede da penitenciária feminina Estevão Pinto, Belo Horizonte, onde foi matriculada em setembro de 2009 con1 1 4 denada a pena de sete anos e onze meses. Doméstica, natural de Pedra Azul, Minas, foi internada em janeiro de 2010 para tratamento psiquiátrico temporário. No relatório psiquiátrico de fevereiro consta que suas crises convulsivas estão controladas com tratamento. Viviane disse que seu filho Jonathan, oito meses, foi envenenado por ela mesma, que o pai do bebê comprou o veneno de rato e mandou que ela fizesse o serviço. Ela colocou o veneno na comida e deu para o bebê, depois levou a criança para o hospital onde a criança acabou não resistindo e faleceu. A paciente, epiléptica, estava com 17 anos e disse não ter tido consciência do que fez: “se fosse para voltar atrás não teria cometido o crime”. Está em tratamento medicamentoso e laboterapia. O relatório psiquiátrico de maio de 2010 constou seu quadro psicopatológico compensado e que a paciente manteve bom comportamento na unidade hospitalar, portanto poderá voltar à comarca de origem e continuar seu tratamento na mesma. Cansei um pouco dessa alegria elétrica e desassossegada de Vivi, e vasculhei com o olhar quem eu ainda desconhecia. Ao lado de Gerson, com alguns colares de miçangas atadas ao pescoço, que se tornaram epidemia pela sala, estava Janaína, estática na mesma posição desde que cheguei, só não sei se na mesma alucinação. Gerson se esforçava para ensiná-la a montar os colares, que já preenchiam o pescoço até dos funcionários, como a atenciosa Solange, auxiliar administrativa do hospital que ajudava Magda no atendimento da TO. Janaína não se mostrava nada habilidosa e ia concretizando o oficio com desinteresse, por distração, mas se mostrava vaidosa nos pedidos, que não vinham na voz, que Gerson a adornasse com mais um colar. Deixei-a em seu mundo particular para entrar naquele homem taciturno que brotou num estalo de dedos na sala, se ajoelhou ao lado de um agente e começou a exibir suas tatuagens a Jeane. Célio tinha tatuado no braço direito o nome do antigo programa “Linha Direta”, inclusive com as cores fieis ao nome. A tatuagem, advinda de sua detenção e prisão pelo programa, lhe dava entre os presos uma posição de status, afinal foi procurado por todo o Brasil pela mídia. 1 1 5 Ainda em seu braço esquerdo era nítida a frase que Jeane ficou tentando decorar: “Deus dá, mãe cria e nóis mata”, que muito me lembrou Zacarias da “ciranda da morte”, e quem sabe, Célio seria sua reencarnação. Rebeca se mostrou irritada com a presença de Célio e pediu para retirá-lo, pois este não possuía permissão de participar da TO; antes de sair Célio insistiu que queria freqüentar a TO, pedido insinuado pelas feições de Rebeca que demoraria a ser atendido. Célio José dos Santos, lavrador, nasceu em junho de 1969 em Barbosa Ferraz, Paraná, e procede da comarca de Monte Carmelo, Minas, e do hospital toxicômano Padre Wilson Vaz da Costa, de Juiz de Fora. Sem dúvidas das provas da materialidade e das provas da autoria, Célio, em dezembro de 2003 , no interior de sua residência, produziu as vitimas Marieta Severo Pinto e Sandro Junior Pinto, a golpes de foice, sendo uma de apenas dois anos. O denunciado prestou declarações a policia civil em dezembro de 2004, alegando que trabalhava na fazenda Santa Juliana, propriedade de Paulo Dias, cidade de Nova Ponte, Minas, e morava em uma residência no local. Célio negou ser o autor dos crimes, afirmando que Carlos Dalmonte, amásio da vítima Marieta, foi o autor dos homicídios. O indiciando relatou em detalhes como as vítimas foram mortas, imputando ao senhor Paulo toda a culpa, e não deixou dúvidas de que foi o autor, principalmente pela idade elevada de Paulo, sem condições físicas de praticar tamanha atrocidade, e por várias testemunhas que o viram em companhia de Marieta e seu filho, seguindo em direção a sua residência, no dia do crime. Por óbvio Paulo negou as declarações do acusado, muito abatido e emocionado com o ocorrido, salientando que cuidava das vítimas como se fossem seus filhos. Outro fato nas declarações do réu demonstra a falsidade de suas afirmações, quando disse que Paulo, após ter atingido com dois golpes de foice Marieta, o pediu que lavasse a foice e a colocasse no vaso sanitário, e que depois arrastasse o corpo de Marieta até o banheiro. Célio relatou que enquanto arrastava o corpo de Juliana, o autor se dirigiu até onde estava criança e a golpeou 1 1 6 também com a foice; afirmação contraditória já que se a foice havia acabado de ser lavada e colocada no vaso, como ela foi utilizada para atingir a criança, sendo que após o crime a foice foi encontrada limpa e dentro do vaso sanitário. As afirmações de Célio foram consideradas frutos de sua imaginação, e os peritos concluíram que o denunciado apresenta transtorno de personalidade anti-social, considerado perturbação de saúde mental do ponto de vista psiquiátrico. Foi considerado incapaz de experimentar culpa e de aprender com a experiência, com propensão marcante para culpar os outros, e alto grau de periculosidade. Comprovado ser o réu perigoso, e diante do risco que o mesmo impõe a sociedade, foi requerido sua internação em novembro de 2009, no hospital psiquiátrico e judiciário “Jorge Vaz”, por medida de segurança. Logo após Célio se retirar da TO outros internos também foram saindo, pois o horário da terapia tinha acabado. Eu, mais rápido que todos os passos, sai não deixando nem um rastro, uma despedida, uma abstração ou um abraço. Voltei ao nosocômio no turno da tarde e visualizei ao longe vários homens dentro de uniformes com as cabeças brilhando ao sol, homens ofuscados que se tornaram incandescentes naquele momento de banho de raios. Rodeados pelos agentes penitenciários, alguns quase dormiam e outros se esticavam tal como lagartixas imóveis em cima de muros, pelando a quente. Tirei uma foto com o olhar, precisava guardar nostálgico aquela fotossíntese mútua, para que eu sempre lembrasse que as energias do astro revivem até lagartixas. Mais uma tarde eu prolonguei a revirar processos impregnados de morcegos que eu não via, mas os sentia rodeando essa consciência minha, hora ativa, hora apática, hora viva, hora sonâmbula, mais na maioria das horas, lampião que não cessa de esperar respostas. Senti que, nessa segunda temporada no manicômiofalta, tudo me foi e se tornou novo, mas faltava algo, alguma ausência que eu queria descrever em minhas palavras que nem o Jorge Vaz com sua sala de Terapia Ocupacional, com seus inesquecíveis pacientes e funcionários, nem a Barbacena fria cheia de corpos quentes, preencheram essa lacuna, tampouco me deixaram 1 1 7 à vista uma pista. Os mistérios humanos não nasceram para serem desvendados, mas existem para serem explorados, e eu bem que tentei em mim incorporá-los. Confesso que ao começar meus relatos desse último dia manicomial subiu-me pelas ventas uma frustração difícil de explicar. Depois de tantos dias observando, analisando, interiorizando, sentindo, vivenciando, explorando o manicômio de psicóticos apáticos ou efusivos, notei que as letras formando palavras, formando frases, formularam pensamentos carregados de apatia ou de tons efusivos. Acredito que consegui representar o que vi, mas não consegui ir além do que essas almas desgarradas ou não do corpo conseguem ir. Juntei o que restou do meu desalento desassossegado ao revirar noites a escrever sentimentos que nada podem contribuir para dar a esses homens presos, sangrados de vida, e aos “livres” que foram estraçalhados por este sangue, uma liberdade não física, mas moral; uma liberdade que transcenda as instituições de controle e liberte as consciências humanas. Aprendi que não aprendi a lidar com as fatalidades humanas, muito menos a criar soluções para compreendê-las, saná-las ou diminuí-las. Com um gosto amargo na boca, deixei o Jorge Vaz e seus tripulantes lunáticos para entrar em um ônibus lotado de passageiros com mochilas, maletas, sacolas de compras, celulares, filhos dependurados pelos braços, mp3, mp4 e mp5. Marionetes do teatro social e eu vestido de palhaço, pensei pensando em parar de pensar. Procurei a poltrona de número 27, louco pra sentar logo, deitar a poltrona no máximo ângulo que conseguir, e fechar os olhos esquecendo-me de raciocinar; e por mais ironias que me surgem e que não consigo me desarraigar, justo no meu banco se encontrava uma bíblia aberta em alguma página, que em um primeiro momento pensei em ler excitado, e na impulsividade dum gesto rápido fechei esse bendito livro sagrado, considerado por todo o universo os escritos mais lidos por toda a humanidade, e coloquei-o no assento ao meu lado. Finalmente fechei as pálpebras, não os olhos, imaginando em quais bíblias eu encontraria as escrituras sagradas de que eu tanto precisava, para seguir no caminho de qualquer que seja força superior, de que eu tanto almejava para diminuir meu tormento; e nem percebi quando o dono da bíblia sentou-se ao meu lado, colocou o livro no colo com uma bufada de 1 1 8 quem não gostou do que eu fiz, e começou a roncar. O ônibus começou a se locomover e locomover meus órgãos, que sempre ficam a remexer nessas viagens entre serras mineiras; lembrei de vários internos do manicômio e os vários livros que poderiam surgir a partir de suas sensibilidades e memórias, um trágico real. Abri os olhos, e em um desses únicos momentos da vida em que ela se resume em um único momento, vislumbrei escrito em um muro velho de uma casa velha “Cada dia traz em si uma eternidade”, pintado nas cores azul e vermelho, tipo nome de vereador em época de propaganda política, e acreditei ser esta a melhor citação academicamente falando, que definisse o que senti e compartilhei no manicômio. Finalmente pude sossegar minha alma despedaçada em mil estilhaços, entrecortada por tantas outras almas, que diferentes da minha, continuam ocultas no alto do antigo Morro da Forca, no novo eterno amigo Jorge Vaz. E me deixei ser silêncio com o que veio, arrancou um pedaço, e não ficou. 1 1 9 1 2 0 Enquanto estudante, cidadão, filho, irmão, neto, primo, sobrinho, amigo, namorado, vizinho, animal, ser humano, ser vivo, luz e cosmos, quem dera elevar o homem enquanto ser divino que pudesse sanar suas deficiências e emoções doentias, quem dera resolver os problemas ambientais e sociais da humanidade, quem dera reviver fauna e flora, quem dera dividir todas as artes e descobertas, quem dera fazer do sofrimento gratidão, fazer do sangue flor, fazer dos deuses todos nós, fazer da magia união, fazer das diferenças compreensão, fazer das vivências amadurecimento, fazer das criaturas da terra uno, fazer da essência liberdade, fazer do academicismo expansão, para que todo compromisso seja social, para que toda dor seja madura, para que todo louco seja são, para que todo são seja loucura, para que todo dia seja eterno, para que toda ação seja com o coração, para que todo silêncio seja inundação por dentro, para que toda mão seja duas. 1 2 1 1 2 2 NV 1 2 3 1 2 4 Sala utilizada para Terapia Ocupacional. 1 2 5 Artesanato construido pelos internos. 1 2 6 “Na minha ela é a e cabeça bailarina, é assim que o começa termina” MSB ema po- e 1 2 7 1 2 8 Sumário 1 Fumo de Rolo 2 Sem inícios nem re-voltas 3 Bafo de cerveja 4 Papiros 5 Boné de Maria 6 Amor de Ninho 7 Galinhas e Leões 8 Aquarela de Louco 9 Bunda de vaga-lume 1 2 9 1 3 0 Nota do Autor Eu, Aramis Sebastião de Assis, sou Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Gabriel Garcia Marquez, Florbela Espanca, Julio Córtazar e Guimarães Rosa. Aquariano, de 1988, nasci e cresci livre em Bom Despacho, cerrado mineiro, correndo no mato e nadando em córregos, sem computadores e videogames. Em 2008, junto com um casal de amigos barbacenenses, viajei de Viçosa a Barbacena montado em uma bicicleta velha amarela; após dois dias, próximo a cidade ainda desconhecida, o frio lacerante e a sensação de energias pesadas aguçou minhas percepções e curiosidades a respeito do município: cidade das rosas, mas cidade sem cor, que respira a psiquiatria e um passado de manicômios e descasos. Como estudante de Comunicação Social, pela Universidade Federal de Viçosa, resolvi escrever um livro-reportagem, como trabalho final de conclusão de curso, que pelo meu olhar retratasse o cotidiano do Manicômio Judiciário de Barbacena, um hospital penitenciário de difícil acesso e com pouco material referente ao mesmo; um relato que mesclasse sensações pessoais e as informações contidas nos processos judiciários e laudos médicos dos internos do hospital, utilizando-me da linguagem literária e técnica. Os nomes dos funcionários e internos foram trocados em respeito ao sigilo de identidade; vários processos dos pacientes, agora personagens do livro, se encontravam em estudo para laudo pericial, portanto não pude ter acesso. Foram Realizadas, em 2010, duas visitas temporárias no manicômio “Jorge Vaz”, entre os dias 21 e 28 de janeiro, 10 e 14 de maio, que em muito me arrebatou o coração e alimentou minha compreensão. 1 3 1 Glossário Abúlico - Indivíduo com ausência de vontade. Agente Inimputável - Havendo nos autos documentos que ora apresentam o agente como inimputável, ora como semi-imputável, a lógica é a asolvição podendo ser tratado em regime ambulatorial. Agressividade Heterodirigida - A criança tem seus gritos interiores e o comportamento depressivo é um destes gritos; ela não só chuta e xinga como se machuca, arranca os cabelos e morde-se; baixa auto-estima demonstrada por timidez e dificuldades de se posicionar perante o grupo; sentimento de rejeição; condutas grosseiras e malcriação. Alucinação Auditiva - Geralmente são referidas vozes, dirigidas ou não ao sujeito que vivencia a experiência, com maior ou menor hostilidade. Audição dos próprios pensamentos ou sons do mundo cotidiano Alucinação Auditivo-Verbais - O que o sujeito percebe não é outra coisa que sua “linguagem interior”. É “ouvir de dentro para fora”. Mas com a característica toda especial de que o alucinado não reconhece como própria, sua “linguagem”; não conseguindo identificá-la como proveniente de seu eu pessoal. Autista Lacônico - O autismo é uma alteração cerebral que afeta a capacidade da pessoa se comunicar, estabelecer relacionamentos e responder apropriadamente ao ambiente, podendo apresentar inteligência e fala intactas ou retardo mental. Laconismo é a quantidade de fala diminuída, mas em velocidade normal. Pode chegar ao discurso “monossilábico” (responde apenas “Sim”, “Não” etc.). 1 3 2 Epilepsia - Doença que se caracteriza pela recidiva de episódios convulsivos, como produto de uma lesão estrutural a nível cerebral ou, às vezes, sem comprovação de lesão prévia. Esquizofrênia - Psicose Esquizofrênica, “mente dividida”, uma doença da personalidade total que afeta a zona central do eu e altera toda estrutura vivencial. Culturalmente o esquizofrênico representa o estereotipo do “louco”, um indivíduo que produz grande estranheza social devido ao seu desprezo para com a realidade reconhecida. Agindo como alguém que rompeu as amarras da concordância cultural, o esquizofrênico menospreza a razão e perde a liberdade de escapar às suas fantasias, um prejuízo tão severo que é capaz de interferir amplamente na capacidade de atender às exigências da vida e da realidade. Usualmente o paciente com esquizofrenia mantém clara sua capacidadeintelectual. Esquizofrênia Paranóide - A mais comum e também de melhor tratamento. O paciente que sofre esta condição pode pensar que o mundo inteiro o persegue, que as pessoas falam mal dele, têm inveja, ridicularizam-no, pensam mal dele, elas têm intenções de fazer-lhe mal, de prejudicá-lo, de matálo, etc. Trata-se dos delírios de perseguiçã, delírios de grandeza, acompanhados de alucinações, aparição de pessoas mortas, diabos, deuses, alienígenas e outros elementos sobrenaturais. Algumas vezes esses pacientes chegam a ter idéias religiosas e/o políticas, proclamando-se salvadores da terra ou da raça humana. Humor Lábil - Oscilação entre período de euforia e depressão. Laboterapia - Método psicoterápico em que se usa o trabalho, principalmente manual, para afastar os malefícios da desocupação e da ociosidade; ergoterapia; praxiterapia. Laudo Pericial - Uma forma de prova, peça do processo, que deverá ser interpretada e avaliada pelo Juiz ou Tribunal, cuja produção exige conhecimentos técnicos e científicos, e que se destina a estabelecer, na medida do possível, uma certeza a respeito de determinados fatos e de seus efeitos. O perito fala somente sobre os efeitos técnicos e científicos. O Juiz declara os efeitos jurídicos desses fatos referidos pelo perito e das conclusões deste. 1 3 3 Praxiterapia - Terapia Ocupacional; técnica psiquiátrica de tratamento que consiste na utilização terapêutica do trabalho, distribuindo-se tarefas de complexidade crescente, usada, geralmente, com pacientes crônicos hospitalizados. Método psicoterápico de trabalho, principalmente manual, para afastar os malefícios da desocupação e da ociosidade. Psicose Confusional - Uma espécie de “Confusão Agitada” da mente. Transtorno Depressivo - Os transtornos depressivos são um problema de saúde pública, devido a sua alta prevalência e ao declínio na qualidade de vida, tendo como elementos mais salientes o humor triste e o desânimo. Transtorno de Personalidade - Também referido como Perturbação da Personalidade se caracteriza quando os traços de personalidade de um indivíduo causam tamanha inaptidão de lidar de forma regular com determinadas situações e passam a prejudicá-lo e incomodá-lo e, talvez mais comumente, seus familiares e pessoas próximas. Transtorno de Personalidade Bordeline - Definido como um gravíssimo transtorno de personalidade, caracterizado por desregulação emocional, raciocínio “totalmente bom ou totalmente mau - extremo ou cisão”, e relações caóticas. Pessoas com essa personalidade podem possuir uma série de sintomas de transtornos psicológicos, tais como ataques pânico, grande sentimento de entusiasmo para depois sentir um grande vazio ou dissociação mental, assim como despersonalização, comportamento briguento, acompanhado por impulsividade auto-destrutiva, manipulação, conduta suicida, bem como esforços excessivos para evitar o abandono e sentimentos crônicos de vazio. Transtorno de Personalidade Histriônica - Uma desordem de personalidade representada por pessoas dramáticas, exageradas, sedutoras, que tendem a chamar atenção para si mesmas e controlam pessoas e circunstâncias para conseguirem o que querem - manipuladores. Transtorno Psicótico - Este estado mental indica uma perda de con1 3 4 tato com o real, caracterizado por delírios (pensamentos que não condizem com a realidade, como medo de perseguição) e alucinações (ouvir vozes, ver objetos e coisas inexistentes). A pessoa pode ter alucinações, delírios, mudanças comportamentais e pensamento confuso, aliados a uma carência de visão crítica que leva o indivíduo a não reconhecer o caráter estranho de seu comportamento. Assim, ele tem sérias dificuldades nos relacionamentos sociais e em executar as tarefas cotidianas. Toxicômanos – Dependente Químico. Toda a pessoa que, partindo de um produto base, faz a escalada com outro produto e (ou então) o utiliza diariamente, ou quase diariamente. É uma definição que não emite julgamento sobre as conseqüências psicopatológicas do uso de produtos tóxicos. Verborrágico - Pessoa que usa uma quantidade excessiva e geralmente irritante de palavras para dizer coisas de pouco conteúdo ou sem importância. 1 3 5 1 3 6