ARTIGO MARCIA ANGELL
Companhias farmacêuticas & médicos: Uma história de corrupção
Marcia Angell*
The New York Review of Books (http://www.nybooks.com/articles/22237), 15 de
janeiro de 2008
O senador republicano Charles Grassley, da Comissão de Finanças, tem investigado
os laços financeiros entre a indústria farmacêutica e pesquisadores da academia.
Ele não precisou procurar muito. Tome o caso de Joseph L. Biederman, professor de
Psiquiatria da Harvard Medical School e chefe da psicofarmacologia pediátrica do
Harvard's Massachusetts General Hospital. Muito graças a ele, crianças de 2 anos
vêm tendo diagnóstico de desordem bipolar e são tratadas com coquetel de drogas
poderosas, muitas não-aprovadas pela Food and Drug Administration para esta
finalidade e nenhuma delas aprovada para crianças abaixo de 10 anos.
Legalmente, médicos podem usar drogas aprovados para determinado fim em
qualquer outra finalidade que escolherem, mas esse uso deve se basear em boas
evidências científicas publicadas. Não parece ser o caso aqui. Os próprios estudos
de Beiderman sobre as drogas que ele defende para tratar transtorno bipolar na
infância eram, na opinião de especialistas ouvidos pelo New York Times, tão
pequenos e tão precariamente concebidos que foram considerados amplamente
inconclusivos.
O senador Grassley revelou em junho [2008] que as empresas farmacêuticas,
inclusive as que fabricam drogas para transtorno bipolar na infância, pagaram a
Beiderman US$ 1,6 milhão por consultoria e palestras entre 2000 e 2007 — dois de
seus colegas receberam outro tanto. Após a revelação, a direção do Massachusetts
General Hospital e da associação médica enviaram carta aos médicos da casa
expressando não seu choque pelo enorme conflito de interesses, mas simpatia
pelos beneficiados: "Sabemos que esta é uma dolorosa fase para estes médicos e
suas famílias, e nossos corações estão com eles".
Ou considere Alan F. Schatzberg, chefe da psiquiatria de Stanford e presidente
eleito da Associação Psiquiátrica Americana. O senador Grassley descobriu que
Schatzberg detém mais US$ 6 milhões em ações da Corcept Therapeutics, empresa
que ele ajudou a fundar e que está testando a mifepristone (a droga abortiva
conhecida como RU-486) no tratamento da depressão psicótica. Schatzberg era o
pesquisador principal num estudo subvencionado do Instituto Nacional de Saúde
Mental que incluía testes do mifepristone neste uso. Ele assinou três trabalhos
sobre o assunto. No fim de junho, Stanford declarou nada ter visto de errado no
acordo, embora um mês depois o conselho da universidade anunciasse que estava
substituindo Schatzberg temporariamente como pesquisador principal "para
eliminar qualquer mal-entendido.
Talvez o caso mais notório exposto pelo senador tenha sido o de Charles B.
Nemeroff, chefe da Psiquiatria da Universidade de Emory, editor, com Schatzberg,
do influente Textbook of Psychopharmacology. Nemeroff foi o principal pesquisador,
por cinco anos, de estudo subvencionado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental,
de US$ 3,95 milhões, dos quais US$ 1,35 milhão vieram por fora, para teste de
várias drogas da GlaxoSmithKline. Obrigada a informar ao National Institutes of
Health os pagamentos do laboratório, a Emory passou a exigir declaração de
valores acima de US$ 10 mil anuais, além de garantia de ausência de conflito de
interesses.
Mas Grassley comparou os registros da Emory aos da empresa: Nemeroff recebeu
US$ 500 mil da GlaxoSmithKline por dezenas de palestras de promoção das drogas
da empresa, que ele omitiu. Pressionado, prometeu não aceitar nada acima de US$
10 mil. Em 2004, contudo, recebeu US$ 171.031 da empresa, mas declarou US$
9.999.
Numa carta de 2000 em que justificava sua participação no conselho de uma dúzia
de corporações, Nemeroff apontou seu “valor” para a Emory: “Certamente os Srs.
se lembram que Smith-Kline Beecham Pharmaceuticals doou uma cátedra e é
provável que Janssen Pharmaceuticals fará o mesmo. Além disso, Wyeth
Pharmaceuticals-Ayerst financiou programa no departamento, e pedi a AstraZeneca
Produtos Farmacêuticos e Bristol-Myers [sic] Squibb a fazerem o mesmo. Parte da
razão deste financiamento a nossa faculdade seria meu serviço nestes conselhos”.
A área psiquiátrica ganhou espaço na mídia graças às investigações de Grassley,
mas conflitos de interesse similares infestam a medicina (o senador está agora se
voltando para os cardiologistas). A maioria dos médicos recebe dinheiro ou
presentes de laboratórios de uma maneira ou de outra: como consultores, como
palestrantes em encontros patrocinados pela indústria, como autores-fantasma de
artigos escritos pelas empresas ou seus agentes e como “pesquisadores” ostensivos
de estudos que consistem meramente em medicar seus pacientes com uma droga e
repassar os resultados à companhia. Outros ganham almoços grátis e presentes
variados. Em contrapartida, a indústria subsidia a maioria dos encontros de
associações profissionais e a maioria dos cursos de atualização exigidos dos
médicos para que preservem sua licença.
Ninguém sabe o quanto a indústria gasta com médicos, mas calculo, por seus
balanços anuais, que o gasto das 9 maiores empresas cheguem a dezenas de
bilhões de dólares. Por estes meios, a indústria farmacêutica ganhou enorme
controle sobre o modo como os médicos avaliam e usam seus produtos. Seus laços
com médicos, especialmente catedráticos em escolas médicas de prestígio, afetam
os resultados da pesquisa, o modo de praticar a medicina e até a definição do que é
doença.
Considere os ensaios clínicos de fármacos testados em seres humanos. Antes de
uma nova droga entrar no mercado, o fabricante deve patrocinar estudos clínicos
para demonstrar à Food and Drug Administration que a droga é segura e eficaz,
geralmente, em comparação com um placebo ou pílula falsa. Os resultados de
todos os ensaios (pode haver muitos) são submetidos à FDA, e se um ou dois
ensaios são positivos, ou seja, se mostram eficácia sem risco grave, a droga é
normalmente aprovada, mesmo se todos os outros ensaios forem negativos. A
droga é aprovada apenas para um determinado uso, por exemplo, para o
tratamento do câncer de pulmão, e é ilegal promovê-la para qualquer outro uso.
Mas o médico pode prescrever medicamentos aprovados “extra-bula”. Depois que a
droga está no mercado, as empresas continuam a patrocinar os ensaios clínicos
para obter aprovação para novos usos ou demonstrar vantagem sobre os
concorrentes, muitas vezes apenas como desculpa para chegar ao médico (esses
testes são adequadamente chamados de "semear estudos”).
Como as empresas farmacêuticas não têm acesso direto a seres humanos,
precisam dos ensaios clínicos em escolas médicas, onde pesquisadores usam
pacientes de hospitais e clínicas de ensino, ou em empresas privadas de pesquisa.
Mas os patrocinadores preferem as escolas médicas, em parte porque a pesquisa é
levada mais a sério, mas, principalmente, porque lhes dá acesso a influentes
professores-médicos, os formadores de opinião (Kols), que escrevem livros e
artigos em periódicos, lançam compêndios e guias práticos, integram painéis
consultivos da FDA e de outros organismos governamentais, lideram associações
profissionais e falam nos inúmeros encontros e jantares anuais sobre
medicamentos prescritos. Ter Kols como o Dr. Beiderman na folha de pagamento
vale cada centavo.
Décadas atrás, as escolas médicas não tinham relações financeiras extensas com a
indústria, e os que faziam pesquisa com patrocínio da indústria não tinham laços
com patrocinadores. Mas as escolas agora têm acordos múltiplos com a indústria e
estão em difícil posição moral para impedir que seu corpo docente se comporte da
mesma forma. Inquérito recente revelou que cerca de dois terços dos centros
médicos acadêmicos têm participação em empresas que patrocinam pesquisa na
mesma instituição. Estudo em escolas médicas descobriu que dois terços dos chefes
de departamento recebem pagamento de empresas farmacêuticas e três quintos
recebem renda pessoal. Na década de 1980 escolas médicas começaram a emitir
orientações sobre conflitos de interesse, mas eles variam muito, são geralmente
permissivos e vagamente executados.
Como as empresas insistem, como condição para financiamento, que estejam
intimamente envolvidas em todos os aspectos da pesquisa que patrocinam, elas
podem facilmente direcionar o estudo para que mostrem seus medicamentos
melhores e mais seguros do que são. Antes da década de 1980, professores
pesquisadores tinham total responsabilidade pela condução dos trabalhos, mas
agora os empregados das empresas ou seus agentes frequentemente concebem os
estudos, analisam, escrevem os papers e decidem se e como publicar os
resultados. Às vezes, a faculdade médica pouco mais faz do que contratar mão-deobra, fornecendo doentes e coletando dados segundo instruções da empresa.
Em virtude deste controle e os conflitos de interesse que permeiam o
empreendimento, não surpreende que ensaios patrocinados pela indústria
publicados em revistas médicas consistentemente favoreçam a droga dos
patrocinadores, em grande parte porque os resultados negativos não são
publicados, os resultados positivos são repetidamente publicados de formas
ligeiramente diferentes e uma visão positiva é dada mesmo em resultados
negativos. Revisão de 74 ensaios clínicos de antidepressivos, por exemplo, mostrou
que foram positivos 37 dos 38 estudos publicados. Mas, dos 36 estudos negativos,
33 não foram publicados ou publicados de forma a evidenciar um resultado
positivo. Não é incomum que um artigo mude o foco da droga, do efeito pretendido
para um efeito secundário que pareça mais favorável.
Essa supressão de resultados desfavoráveis é objeto do cativante livro de Alison
Bass, Side Effects. É a história de como a gigante britânica GlaxoSmithKline
enterrou provas de que seu antidepressivo Paxil era ineficaz e mesmo prejudicial a
crianças e adolescentes. Bass, ex-repórter do Boston Globe, descreve o
envolvimento de três pessoas, um cético psiquiatra acadêmico, um moralmente
indignado administrador-assistente do departamento de psiquiatria da Brown
University (cujo chefe recebeu em 1998 mais de US$ 500 mil como consultor de
empresas farmacêuticas, incluindo a GlaxoSmithKline) e um incansável assistente
de promotor de Nova York. Eles partiram para cima da GlaxoSmithKline e no fim
venceram, contra todas as probabilidades: em 2004, a corporação admitiu fraude e
aceitou pagar US$ 2,5 milhões de indenização (fração mínima dos mais de US$ 2,7
bilhões das vendas iniciais do Paxil).
Também comprometeu-se a liberar resumos de todos os ensaios clínicos concluídos
após 27 de dezembro de 2000. De maior importância foi ter chamado a atenção
para a deliberada e sistemática prática de se suprimirem resultados desfavoráveis
da investigação, o que nunca teria sido revelado sem o processo legal. Um dos
documentos internos da GlaxoSmithKline revelados no processo dizia: "Seria
inaceitável comercialmente incluir declaração de que a eficácia não fora
demonstrada, uma vez que isso poderia prejudicar o perfil da paroxetina [Paxil]".
Muitas drogas ditas efetivas são pouco mais do que placebos, mas não há como
saber porque os resultados são escondidos. Uma pista disso foi conseguida há seis
anos por quatro pesquisadores que, com base no Freedom of Information Act,
obtiveram revisões da FDA dos ensaios clínicos com placebo dos seis
antidepressivos mais usados aprovados entre 1987 e 1999 — Prozac, Paxil, Zoloft,
Celexa, Serzone e Effexor. Em média, em 80% os placebos foram tão eficazes
quanto os medicamentos. A diferença entre droga e placebo era tão pequena que
seria pouco provável que houvesse qualquer significado clínico. Os resultados foram
praticamente os mesmos para as seis drogas: todas igualmente ineficazes. Mas
como os resultados favoráveis foram publicados e os desfavoráveis enterrados
(neste caso, na própria FDA), público e médicos acreditavam que essas drogas
eram potentes antidepressivos.
Ensaios clínicos também são tendenciosos pela concepção de pesquisas escolhidas
para produzir resultados favoráveis aos patrocinadores. Por exemplo, a droga do
patrocinador pode ser comparada com outro medicamento administrado em dose
tão baixa que a do patrocinador parece mais poderosa. Ou uma droga para uso de
idosos será testada em jovens, para que os efeitos secundários apareçam menos.
Outra forma comum de desvio decorre da prática de comparar um novo
medicamento com placebo, quando a questão pertinente é a comparação com um
medicamento existente. Em suma, é possível conseguir ensaios clínicos de
praticamente qualquer maneira que se queira, e por isso é tão importante que os
pesquisadores sejam verdadeiramente desinteressados no resultado de seu
trabalho.
Conflitos de interesse afetam mais do que a pesquisa. Também moldam
diretamente a forma de se praticar medicina, por sua influência na prática
profissional, nas diretrizes governamentais e nas decisões da FDA. Alguns
exemplos: num levantamento de 200 painéis de peritos que emitiram orientações
práticas, um terço admitiu algum interesse financeiro na droga em exame. Em
2004, quando o National Cholesterol Education Program conclamou à redução
drástica dos níveis de "mau" colesterol, oito dos nove peritos do painel tinham
vínculos financeiros com fabricantes de redutores de colesterol. Dos 170
colaboradores da edição mais recente do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM), da Associação Psiquiátrica Americana, 95 tinham
vínculo financeiro com farmacêuticas, incluindo todos das seções sobre transtornos
do humor e esquizofrenia. E mais: muitos integrantes das comissões permanentes
de peritos que aconselham a FDA na aprovação de drogas têm laços financeiros
com a indústria.
Os laboratórios aperfeiçoaram um novo e efetivo método de expandir seus
mercados. Em vez de promover drogas para tratamento de doenças, começaram a
promover doenças para encaixar suas drogas. A estratégia: convencer o maior
número possível de pessoas (e seus médicos, claro) de que têm problemas médicos
que exigem tratamento medicamentoso longo. Às vezes chamado de
"mercantilização da doença", este é o foco de dois novos livros: o de Melody
Petersen, Our Daily Meds, e o de Christopher Lane, Shyness.
Marcia trata aqui de fenômeno há tempos debatido, pelo qual, para promover ou
exagerar condições, a indústria lhes dá nomes graves e sonoros — e com
abreviaturas. Assim, azia é agora "doença do refluxo gastroesofágico" ou DRGE;
impotência é "disfunção erétil" ou DE; tensão pré-menstrual é "transtorno disfórico
pré-menstrual" ou (TDPM), e timidez é "transtorno de ansiedade social" (ainda sem
abreviatura). Note-se que estas são doenças definidas que afetam principalmente
pessoas normais; assim, o mercado é enorme e facilmente expansível. Eis como
um executivo de marketing aconselha seus vendedores para a expansão do uso de
Neurontin: "Neurontin para dor, Neurontin na monoterapia, Neurontin para bipolar,
Neurontin para tudo". A estratégia de marketing da droga — extraordinariamente
bem-sucedida — é convencer os americanos de que só há dois tipos de pessoas: os
que precisam de tratamento com drogas e os que ainda não sabem disso. Essa
estratégia não poderia ser implementada sem a cumplicidade da classe médica.
Melody Petersen, ex-repórter do New York Times, escreveu ampla e convincente
acusação contra a indústria farmacêutica. Ela detalha as maneiras, legais e ilegais,
de as empresas criarem blockbusters (drogas com vendas anuais acima de um
bilhão de dólares) e do papel essencial dos Kols. O principal exemplo é o Neurontin,
aprovado apenas para uso restrito, o tratamento da epilepsia quando outros
medicamentos não controlem as convulsões. Pagou peritos acadêmicos para
exaltarem o Neurontin em outros usos — doença bipolar, estresse pós-traumático,
insônia, síndrome das pernas inquietas, sensação de calor, enxaquecas. Pelo
financiamento de conferências de promoção desses usos, o fabricante tornou a
droga um campeão de vendas (US$ 2,7 bilhões em 2003). No ano seguinte, em
caso amplamente coberto pela repórter para o Times, a Pfizer declarou-se culpada
de venda ilegal do remédio e concordou em pagar US$ 430 milhões para encerrar o
processo. Para a Pfizer, apenas o custo do negócio: vale a pena, porque Neurontin
continua a faturar milhões.
O livro de Lane tem foco mais amplo — o rápido aumento do número de
diagnósticos psiquiátricos na população americana e seu tratamento com drogas
psicoativas (que afetam os estados mentais).
Dado que não há testes objetivos para as doenças mentais e as fronteiras entre
normal e anormal são freqüuentemente incertas, especialmente a psiquiatria é
campo fértil para novos diagnósticos ou ampliação de antigos. Critério para
diagnóstico é praia exclusiva do DSM, produto de um grupo de psiquiatras, a
maioria com vínculos financeiros com a indústria farmacêutica. Lane, professor de
Literatura da Northwestern University, traça a evolução do DSM a partir de seu
modesto começo em 1952, de pequeno caderno de espiral às atuais 943 páginas, a
"bíblia" da psiquiatria, referência para tribunais, prisões, escolas, empresas de
seguros, salas de emergência, escritórios e instalações médicas.
Lane mostra que não passa de mistura complexa de política acadêmica, ambição
pessoal, ideologia e, sobretudo, da influência da indústria. O que falta é evidência.
Lane cita um integrante da força-tarefa da edição DSM-III (hoje vigora a IV):
“Havia muito pouca investigação sistemática, e grande parte da investigação que
existia era realmente uma desordem: dispersa, incoerente, ambígua. Penso que a
maioria de nós reconhece que a quantidade de boa e sólida ciência sobre a qual
íamos tomando decisões foi bastante modesta”.
Lane usa a timidez como estudo de caso de doença. A timidez como doença
psiquiátrica estreou como "fobia social" no DSM-III, em 1980, considerada “rara”.
Em 1994, com o DSM-IV, tornou-se "transtorno de ansiedade social", agora
extremamente comum. De acordo com Lane, para impulsionar as vendas do Paxil,
GlaxoSmithKline decidiu promover a ansiedade social como "grave condição
médica". Em 1999, recebeu aprovação da FDA para vender a droga no tratamento
da “ansiedade social”, o que fez com ampla campanha midiática, incluindo cartazes
nas paradas de ônibus de todo o país mostrando gente triste e as palavras
"Imagine ser alérgico a pessoas...". As vendas subiram. Barry Brand, diretor de
produção do Paxil, teria dito: "Cada marqueteiro sonha encontrar um nicho
inexplorado no mercado e desenvolvê-lo. Isso é o que fizemos com a ansiedade
social".
Alguns dos maiores blockbusters são drogas psicoativas. A teoria de que as
condições psiquiátricas resultam de desequilíbrio bioquímico é usada como
justificativa para sua generalização, embora a teoria ainda tenha que ser provada.
As crianças são alvos particularmente vulneráveis. Que pai ousa dizer "não" quando
o médico afirma que seu filho está doente e recomenda tratamento de drogas?
Estamos agora no meio de uma aparente epidemia de doença bipolar em crianças
— substituindo o Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) como a mais divulgada
condição na infância: este diagnóstico cresceu 40 vezes entre 1994 e 2003. Estas
crianças são tratadas com múltiplas drogas “extra-bula”, muitas das quais
sedativos e quase todos com potencialmente graves efeitos secundários.
Estes problemas não estão limitados à psiquiatria, embora nela atinjam seu clímax.
Conflitos de interesses e preconceitos similares estão em praticamente todos os
campos da medicina, especialmente aqueles que dependem fortemente de drogas
ou dispositivos. Simplesmente não é mais possível acreditar muito na investigação
clínica publicada, ou confiar no julgamento de médicos renomados ou guias
médicos. Não sinto prazer algum nesta conclusão, a que cheguei lenta e
relutantemente em duas décadas como editora em The New England Journal of
Medicine.
Um resultado desse grave desvio é que os médicos aprendem a praticar um estilo
de medicina com uso intensivo de medicamentos. Mesmo quando a mudança do
estilo de vida poderia ser mais eficaz, médicos e seus pacientes acreditam que para
cada doença ou desconforto existe uma droga. Os médicos também são levados a
acreditar que a mais nova, a mais cara marca de medicamento é superior às mais
antigas ou aos genéricos, ainda que raramente haja qualquer prova disso, porque
patrocinadores não costumam comparar seus produtos com medicamentos mais
antigos em doses equivalentes. Além disso, os médicos, seduzidos pela prestigiosa
escola médica, aprende a prescrever medicamentos para uso “extra-bula” sem boas
evidências de eficácia.
É fácil culpar a indústria, e ela certamente tem grande parte da culpa. A maioria
das grandes empresas foi acusada de fraude, de marketing “extra-bula” e outros
delitos. TAP Pharmaceuticals, por exemplo, em 2001 confessou culpa e pagou US$
875 milhões para liquidar acusações penais e civis na venda fraudulenta de Lupron,
usado no tratamento do câncer de próstata. As acusações de fraude incluem Merck,
Eli Lilly e Abbott. Os custos ainda são insignificantes em relação aos lucros gerados
por essas atividades ilegais. Ainda assim, seus apologistas poderiam argumentar
que a indústria está apenas tentando fazer seu trabalho principal, mesmo que os
interesses dos investidores vão um pouco longe demais.
Médicos, escolas médicas e associações profissionais não têm tal desculpa, pois
devem responsabilidade aos pacientes. A missão de escolas médicas e hospitais
universitários, que justifica seu estatuto de isenção fiscal, é educar a próxima
geração de médicos, promover pesquisa cientificamente importante e cuidar dos
integrantes mais doentes da sociedade. Não é envolver-se em lucrativas alianças
comerciais com a indústria farmacêutica. Por mais condenáveis que sejam as
práticas da indústria, o comportamento de grande parte da classe médica é pior. As
empresas não são de caridade, esperam algo em troca do dinheiro que gastam.
Tantas reformas seriam necessárias para restaurar a integridade da pesquisa clínica
e da prática médica que não podem ser resumidas. Implicaria mudanças na lei e na
FDA, incluindo seu processo de aprovação de drogas. Mas há também clara
necessidade de que a classe médica se afaste do dinheiro da indústria quase
totalmente. Embora a cooperação indústria-academia possa dar importante
contribuição científica, é geralmente na pesquisa básica, e não na clínica — e
mesmo assim é discutível se exige o enriquecimento pessoal dos pesquisadores. As
escolas médicas e seus representantes não devem aceitar quaisquer pagamentos
de empresas farmacêuticas, com exceção no apoio à pesquisa, e que esse apoio
não tenha qualquer arranjo anexado, incluindo o controle de empresas
farmacêuticas na concepção, na interpretação e na publicação dos resultados da
investigação.
Escolas médicas e hospitais universitários devem aplicar rigorosamente essa regra,
e não podem ter negócios com empresas cujos produtos seus pesquisadores
estudem. Por fim, raramente existe uma razão legítima para um médico aceitar
doações de empresas farmacêuticas, mesmo pequenas, devendo pagar por suas
reuniões e sua atualização.
Depois de tanta publicidade desfavorável, escolas médicas e associações
profissionais começam a falar de controle dos conflitos de interesse, mas até agora
a resposta tem sido morna. Constantemente se referem a "eventuais" conflitos de
interesse, como se isso fosse diferente da realidade, e falam em divulgá-los e gerilos, não em proibi-los. Em suma, parece haver o desejo de eliminar o cheiro de
corrupção, mantendo o dinheiro. Quebrar a dependência da classe médica à
indústria farmacêutica terá que ir além da criação de comissões e outros gestos.
Exigirá a quebra de um padrão de comportamento extremamente lucrativo. Mas se
a classe médica não puser fim a essa corrupção voluntariamente, perderá a
confiança do público e o governo (não apenas o senador Grassley) imporá
regulamentação. Ninguém na medicina quer isso.
* Marcia Angell é patologista, catedrática do Departamento de Medicina Social da
Harvard Medical School. Trabalhou por 20 anos na New England Journal of Medicine
(https://content.nejm.org/), que deixou em 2000 quando era editora-chefe. Seu
último livro, The Truth About the Drug Companies: How They Deceive Us and What
to Do About It (Random House, 2004) saiu no Brasil em 2007 (A verdade sobre os
laboratórios farmacêuticos, Record); o artigo contém 19 notas, que podem ser
consultadas na versão original (http://www.nybooks.com/articles/22237)
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ARTIGO MARCIA ANGELL Companhias farmacêuticas