V RAM – Reunião de Antropologia do Mercosul GT – Os direitos dos mais e menos humanos MATERNIDADE DETIDA: o direito de ser mãe e de ser filho(a) no Presídio Feminino de Florianópolis/SC. Danielle Silveira de Almeida ∗ I No período no qual foi realizado o trabalho de campo no Presídio Feminino de Florianópolis encontravam-se no local 77 (setenta e sete) presas, sendo que destas 36 (trinta e seis) estavam condenadas – 7 (sete) em regime semi-aberto e 29 (vinte e nove) em regime fechado e as outras 41 (quarenta e uma) estavam aguardando julgamento. Como o interesse de pesquisa estava nas mães que se encontravam com as crianças no berçário e nas mães que se separaram delas, foram entrevistadas as três mães que se encontravam no berçário e as quatro mães que se encontravam na galeria. Do último grupo não houve a possibilidade de falar com a que seria a quinta entrevistada pelo fato de estar internada por suspeita de tuberculose. No total foram entrevistadas 7 (sete) mulheres. Um problema vivido pelas presidiárias é o da superlotação. Além das celas serem pequenas, ocupando os beliches quase todo o espaço, foi relatado que durante a noite as mulheres que não encontram acomodação nas celas dormem ocupando os corredores, forrando o piso com colchões. Não há separação das presidiárias nas celas de acordo com o crime cometido e a ocupação se dá de forma “aleatória” 1 – cada uma que chega se acomoda ∗ Formanda em Direito/Univali – Bacharel em Ciências Sociais/UFSC – Mestre em Antropologia Social/PPGAS-UFSC. 1 Usei as aspas pelo fato de que a ocupação nas celas apesar de não seguir os requisitos formais relacionados acima deve seguir requisitos locais estipulados pelas presidiárias. Tais informações não foram coletadas pelo fato de não estar inscrita no objeto desta pesquisa e também e pelo tempo restrito o que não impede de ser trabalhado em momento posterior. onde houver “vaga” 2 . Ainda que a estrutura do prédio seja precária, falta de pintura nas paredes, móveis surrados pelo uso e pelo tempo, as presidiárias, na medida do possível, parecem oferecer certa organização ao local. II Para a reflexão sobre o universo e as relações prisionais foi utilizado como referencial teórico a abordagem de Roberto DaMatta3 , considerando que no ponto de vista das presidiárias o local onde vivem, o Presídio Feminino de Florianópolis, pode ser considerado “casa”. Esta suposição está baseada em dados coletados em campo de maneira informal, ou seja, por meio de conversas e não das entrevistas em si, mas que não menos expressam significado. Na primeira visita ao berçário a recepção foi da seguinte maneira: “não repara a bagunça. É que a gente acordou faz pouco tempo e a gente fica cuidando das crianças. Agora que a gente começou a arrumar”. Mas ao contrário do que possa parecer o ambiente estava relativamente organizado e logo se percebe que se trata de uma advertência de praxe para as visitas. A mesma coisa aconteceu quando da visita a uma cela na galeria para a realização de entrevista: “não repara que é bem apertadinho” e puxou um banquinho para eu sentar como quem dissesse: “entra e fica a vontade.” Outra situação que merece ser relatada foi a de quando houve a necessidade de fotografar o berçário e, mesmo sendo advertidas que não seriam identificadas nas fotografias, solicitaram que o trabalho fosse realizado em outro dia, que foi combinado, porque consideravam que o berçário estava muito bagunçado, o que de fato nem estava. Quanto a este aspecto não se deseja considerar que o presídio seja considerado “casa” em sentido estrito, mas que agrupa características de uma casa. Para especificar melhor a diferença, Goffman classifica as prisões como “instituições totais” ou seja “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável 2 “Vaga” também é um termo a ser relativizado já que no momento da pesquisa cerca de setenta mulheres distribuíam-se em dez celas/quartos apenas, sendo que algumas se espalhavam pelos corredores durante a noite. 3 Cf. DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. 4 Neste sentido, a diferença mais marcante é o fato de não se poder sair 5 , a perda, ainda que temporária, da liberdade. Segundo Goffman, para o internado, o sentido completo de estar ‘dentro’ não existe independentemente do sentido específico que para ele tem ‘sair’ ou ‘ir para fora’. Somados a perda da liberdade estão ainda o peso da vigilância constante e o afastamento dos relacionamentos extramuros. Neste sentido, a finalidade de utilizar as categorias “casa” e “rua” se deve ao fato de que para a sociedade em geral o presídio é visto como rua, sendo que de acordo com as relações estabelecidas entre as presidiárias, bem como com as atividades que exercem cotidianamente pode, na perspectiva delas, ser visto como casa. Além disso, de acordo com DaMatta, “leituras pelo ângulo da casa ressaltam a pessoa. São discursos arrematadores de processos ou situações. Sua intensidade emocional é alta” enquanto que “leituras pelo ângulo da rua são discursos muito mais rígidos e instauradores de novos processos sociais. É o idioma do decreto, da letra dura da lei, da emoção disciplinada que, por isso mesmo, permite a exclusão, a cassação, o banimento, a condenação” 6 . Esta segunda leitura é a mais comum nos trabalhos acadêmicos sobre Presídios. Aqui, o que se propõe é uma leitura sob perspectiva diversa, é o olhar sob o ponto de vista de quem está dentro. O olhar para sujeitos que mesmo “estigmatizados” pela sociedade da qual fazem parte, vivem no cotidiano sob determinadas regras morais. III Ao que se refere às relações interpessoais no Presídio Feminino foi relatada a maneira que acontecem os relacionamentos intramuros. A informante foi uma das mães no berçário. Ela relatou que o começo do relacionamento entre uma presidiária e um presidiário pode se dar da seguinte maneira: uma mulher que vai visitar um homem – deu o exemplo dela quando foi visitar seu marido na ocasião em que ele estava preso – fica 4 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos . p. 11. Trata-se de uma sensação desconfortável mesmo quando se vai para pesquisa. Somente a partir da quarta visita lembrei que não poderia sair se ninguém abrisse a porta para mim. Das outras vezes, eu me despedia de todos, dizia quando voltaria, descia até o portão e tinha que voltar para pedir que alguém abrisse. Eu ainda poderia sair, mas pensei na situação de quando não há esta possibilidade. 6 DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. p.19. 5 sabendo do interesse de alguém do presídio masculino conhecer alguém do presídio feminino. Quando ela volta ao Presídio Feminino ela tenta saber quem está interessada e “se for uma pessoa boa” 7 ela comenta e os dois começam a conversar por cartas, por telefone, e se gostarem, passa um tempo e marcam visita íntima. Aproveitando o relato, foi perguntado se estes relacionamentos costumam ser duradouros, ou se mudavam sempre de companhia. Então ela respondeu que: “Depende. É como lá fora. Tem homem que gosta de ter várias mulheres, outros que não... É, aqui dentro é um pouquinho como se fosse lá fora, só a diferença é que a gente não pode sair”. Das mulheres entrevistadas duas engravidaram em visita íntima, durante o cumprimento de pena, com o companheiro que também estava preso. Outras duas engravidaram em visita íntima com presidiários que conheceram durante o cumprimento da pena e depois se tornaram seus companheiros. Uma engravidou em visita íntima, durante o cumprimento de pena, com um presidiário, e depois que ele foi solto não mais se relacionaram como casal, mas é ele quem cuida do filho em comum e de mais um filho dela com outro homem. E as demais (duas) já foram grávidas para o presídio. A relação estabelecida entre as mães e os/as filhos/as que estão fora do presídio é variável a cada caso. Umas crianças estão em creches como Recanto do Carinho e Casa Lar, outras estão com o pai ou com a avó. As que confirmaram não estabelecer contato constante com os filhos foram duas e justificaram pela distância em que estão residindo 8 . Os filhos de uma residem em Catanduvas e estão sendo criados pela avó e os de outra residem em Videira e estão sendo criados pelo pai. Quando questionadas sobre o que fariam ao sair da prisão estas foram as que responderam de maneira diferente em relação a voltar a cuidar dos filhos. A primeira porque a avó já cuida das crianças há muito tempo e conhecem a avó como mãe, assim não acha justo tirar as crianças dela. E a segunda porque, além de demonstrar desânimo ao relatar que terá 20 anos a cumprir, tem receio de que não consiga a guarda das crianças. As demais demonstraram estar a par dos acontecimentos em 7 Depois de falar isso ela logo acrescentou: “porque aqui no presídio também tem pessoa boa”. De acordo com Wilson Edson Jorge, a maioria das famílias dos presos são de baixa renda apresentando dificuldade de locomoção. Por isso, deveriam ter seu acesso à penitenciária facilitado, para as visitas periódicas. Isto porque “o contato com os familiares, além de ser um direito do preso, é um elemento fundamental para manter sua tranqüilidade, minimizando os riscos de reações violentas e tumultos”. Ver JORGE, Wilson Edson. Penitenciárias – a questão da localização. IBCCRIM. ano 10 – n. 120. nov. 2002. P.6-7. 8 relação aos filhos, estejam eles na creche ou sob cuidados de alguém da família e pretendem cuidar deles quando saírem. No entanto, ainda que estejam cientes, na medida do possível, da condição das crianças, sobre a maneira pela qual estão sendo cuidadas e de receberem delas visitas regulares, algo perceptível é o receio das mães quanto aos seus filhos se sentirem abandonados por elas. Além disso, percebe-se também um certo temor dessas mães em perder definitivamente o filho. De fato, a psiquiatra infantil Marluce de Souza Pedro explica que “é justamente aos seis meses de idade – época em que os bebês nascidos nos presídios têm que ir embora – que as crianças começam a identificar o mundo e reconhecer as mães”. Acrescenta que com a separação, “podem se tornar depressivas. Esse rompimento faz com que sintam que perderam a mãe. Para elas, é como se a mãe tivesse morrido 9 ”. Certa vez, quando estava sendo explicada a idéia de que com a pesquisa se desejava investigar de quem é a responsabilidade sobre as crianças quando não estão com as mães no presídio, e sobre o que o Estado faz para protegê-las, uma das mães disse: “O Estado? O Estado só quer é roubar os filhos da gente.” Considerações finais As mulheres encarceradas convivem com inúmeras dificuldades como superlotação do presídio, más condições quanto à conservação da estrutura como falta de pintura; iluminação precária na galeria; portas, paredes e móveis danificados; além dos elementos intrínsecos ao cumprimento da pena como a vigilância constante e privação da liberdade. No entanto, sem contar com estas questões físico-estruturais, percebe-se que estas mulheres convivem em um meio onde se encontra a solidariedade 10 e regras morais11 , ou seja, 9 CAMPOS, Marinês. Ao nascer, seis meses de prisão. Jornal da Tarde – Estadão, 09 dez. 2001. Disponível em: <http://www.jt.estadao.com.br/editorias/2001/12/09/ger023.html> Acesso em: 16 set. 2003 10 Na semana em que eu estava realizando a pesquisa de campo, no domingo subseqüente àquela quarta-feira, seria a comemoração de aniversário dos filhos gêmeos de uma das presidiárias que a visitariam naquele final de semana. Comentando sobre este acontecimento, demonstrando estar orgulhosa quanto a isso, ela me mostrou uma sacola onde estava guardando os preparativos para a festinha. Tinha latas de leite condensado, brigadeiro, cajuzinho, forminhas para enfeitar os docinhos... E me disse que ela estava comprando e que as “meninas” (do presídio) estavam ajudando. 11 No que se refere às regras morais, certa vez presenciei um diálogo ilustrador. Uma das presidiárias estava sendo questionada pela agente prisional o porquê dela não estar participando do trabalho com as bijouterias. demostram certa organização social e familiar. O Presídio, então, acaba por ser um misto de “casa” e “rua”, de relações estabelecidas no âmbito privado/íntimo e público em um mesmo espaço. Mas ainda que no mesmo ambiente, há possibilidade de delimitação de fronteiras demarcadas entre estes dois universos a partir da observação das relações estabelecidas. O que se depreende do depoimento entrevistadas é que a pior conseqüência do cárcere para suas vidas é a distância que se estabelece entre elas, seus filhos e seus familiares. Muitas vezes pela falta de recursos econômicos e outras pelo fato do abandono devido a reprovação pelo ato cometido por elas. Relatam também ser muito doloroso o abandono que sofrem por parte dos amigos. Assim, o cumprimento de pena acaba por ser um momento solitário e devido a estes distanciamentos a perspectiva de retorno ao convívio em sociedade torna -se debilitada. Desta maneira, antes de se atribuir tratamento aos filhos de mulher encarcerada como abandonados urge refletir sobre a situação de abandono da mulher que cumpre pena. É sabido que se trata de um abandono institucional. Neste sentido, existe a necessidade de que o trabalho de assistência social seja efetivamente realizado tanto com as mulheres presidiárias quanto com seus familiares, buscando a reafirmação dos laços afetivos e de apoio. Referências bibliográficas CAMPOS, Marinês. Ao nascer, seis meses de prisão. Jornal da Tarde – Estadão, 09 dez. 2001. Disponível em: <http://www.jt.estadao.com.br/editoriais/2001/12/09/ger023.html> Acesso em: 16 set. 2003. DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1987. JORGE, Wilson Edson. Penitenciárias – A questão da localização. IBCCRIM, São Paulo, ano 10, n. 120, p.6, nov. 2002. Então foi respondido que não quer mais trabalhar lá porque foi acusada de ter “roubado” algumas peças o que não considerou justo esclarecendo que: “eu tô aqui pelo 12 e não pelo 155”, ou seja, tráfico e não furto.