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OS PROCESSOS-CRIME, A EDUCAÇÃO E A
NORMALIZAÇÃO DA INFÂNCIA DESVALIDA
Alessandra David Moreira da Costa
Centro Universitário Moura Lacerda
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo mostrar, por intermédio do estudo de processos-crime envolvendo
menores, como o sistema jurídico utilizava-se de seus poderes e de seus recursos, para impor-se como
instituição normalizadora especialmente às classes menos favorecidas, e particularmente, à infância
considerada perigosa. É sabido que foi na época moderna que o Estado começou a se preocupar com a
infância, pois ela representava o futuro e a riqueza das nações e as famílias pobres, consideradas
incapazes de sustentar e educar os filhos, eram os alvos privilegiados de controle estatal, visto que
eram mais propensos a corromper-se e ir para a marginalidade. O mundo das ruas, para as autoridades,
levava os menores à vadiagem, e isto era visto como um fator de corrupção da ordem pública e da
moralidade dos costumes. Dessa maneira, o poder público passou a ter um papel crescente de controle
dos menores. Ao Estado caberia o dever de tomar medidas reais e válidas no sentido de dar-lhes
formação para se tornarem aptos a integrar a sociedade. A fim de que isso se concretizasse, era
necessário dar oportunidade à formação do caráter dos menores, pois necessitavam ser transformados
em adultos úteis e com saúde mental e física, para o bem-estar da sociedade, o que só poderia ser
alcançado pela educação. Para cuidar, educar, fiscalizar, vigiar e controlar as crianças e as famílias
tidas como desqualificadas e imorais, o Estado serviu-se de vários setores, dentre eles, a caridade e a
filantropia, a medicina e a Justiça. Ao Poder Judiciário coube a tarefa de legislar e normatizar,
instituindo normas de comportamento e instrução e, sobretudo, de punição aos desviantes dos padrões
considerados normais e ideais, ou seja, o modelo de educação e conduta das famílias burguesas. No
Brasil, percebemos que a instauração da ordem burguesa deu-se entre o final do século XIX e os anos
30 do século XX. O Estado Novo, de 1937 a 1945, foi regido por uma visão conservadora da
realidade, com ênfase na ajustada composição familiar como lócus de disseminação da moral e dos
bons costumes e na implantação de programas governamentais e decretos legislativos especialmente
direcionados à família, à mulher e à infância. Este direcionamento não somente permaneceu na década
de 1950, como se expandiu do domínio familiar à escola, com o estabelecimento de projetos
educativos voltados para os setores mais carentes da população. Assim sendo, como marcos desta
pesquisa, consideramos os anos de 1930 a 1960, que perpassam todas as questões acima relatadas,
além de ser considerado o momento de maior difusão dos ideais da escola nova entre nossos
intelectuais e as instâncias em que eles atuavam, entre elas, o Poder Judiciário, esfera deste estudo. As
fontes analisadas constituem-se de processos-crime envolvendo menores, quer seja na qualidade de
vítimas, quer seja na qualidade de réus. Também, foram considerados alguns casos em que, mesmo os
menores não sendo os protagonistas dos processos, são parte integrante e muitas vezes, figuras centrais
dos mesmos, como por exemplo, nos crimes de abandono material de família. Boa parte do corpus
examinado retrata crianças que vivem – ou são fruto de – ambientes tidos como altamente degradados,
denotando a existência de perigo físico e moral extremamente ameaçador, necessitando a intervenção
da Justiça. Em relação à metodologia, empregou-se a análise documental e a análise das práticas
judiciárias dos documentos investigados e dos argumentos apresentados por todos aqueles que figuram
nos trâmites judiciais: os impetrantes das causas, as vítimas, os réus, os advogados, os promotores, os
juízes, as testemunhas etc. Os resultados alcançados sugerem que as representações emanadas do
discurso jurídico expressam similaridades com o discurso pedagógico, pois ambos se articulam em
torno de um mesmo objeto, a infância, formando o eixo de um projeto de modernização do Brasil na
primeira metade do século XX. Ainda, assinalam, que ao lado da instância pedagógica, o âmbito
jurídico incorporou e produziu um saber, bem como recursos práticos, para normalizar a população
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TRABALHO COMPLETO
A miséria ou a pobreza não exclui a honestidade. Justamente as pessoas
nessa situação é que a lei socorre, por meio do órgão defensor da sociedade
e, mais do que as outras pessoas devem ser protegidas para desviar-lhes de
destino incerto. [Palavras do Curador de Menores do Processo-crime de
Sedução, n. 4.917, cx 273, 1944. Arquivo Histórico Municipal de
Franca/SP].
Esta citação faz parte do processo-crime envolvendo L., uma menor de 14 anos de idade, de
profissão doméstica, que havia sido seduzida. No inquérito, o delegado informou que “era do
conhecimento da polícia que a menor e algumas companheiras viviam de um lado para outro,
namorando pelas esquinas”. Já para o Curador,
o fato de a ofendida viver em habitação coletiva e em extrema pobreza não
comprova que ela não tenha dignidade. [E apontou em seu relatório] que os
depoimentos ouvidos no sumário para esclarecer o fato, mostravam a
injustiça do procedimento, pois esse tipo de pessoa [pobre] deve ser
considerada boa como qualquer outra e receber confiança, quando se mostra
verossímil. Era certo que a moça não tinha comportamento exemplar e não
era afeita de meio familiar mais elevado. Sua própria origem a impedia que
tivesse. Sua condição era modestíssima, vivendo num cortiço em companhia
da mãe, onde a menor encontraria esse meio [ideal]? Em sua condição, teria,
como teve, que se afazer à vida desse conglomerado. Por esse motivo é de se
presumir que L. havia perdido sua honestidade? [ARQUIVO HISTÓRICO
MUNICIPAL DE FRANCA/SP. Processo-crime. Sedução. N. 4.917, cx.
273, 1944].
Os argumentos do Delegado e do Curador apresentados neste documento descrevem de modo
singular a percepção que os membros do Poder Judiciário tinham a respeito de crianças e jovens frutos
de ambientes tidos como degradados e de famílias consideras imorais, além de retratar as
circunstâncias, as condições de vida e o meio em que viviam os menores envolvidos nos processoscrime aqui examinados.
Assim, o foco deste estudo é o discurso jurídico a respeito de menores em situações de risco,
tais como órfãos, abandonados pela família, membros de famílias desestruturadas, filhos de mães
solteiras, de pais que abandonaram a família, de famílias miseráveis, entre outros. Nas observações de
Moysés Kuhlmann Jr.e Rogério Fernandes (2004, p.15) trata-se da história da infância, “da relação da
sociedade, da cultura, dos adultos, com essa classe de idade”. Neste caso, do modo como a sociedade,
por meio do aparelho judiciário, analisava e solucionava as adversidades causadas pela infância
excluída, não inserida ou incapacitada de participar do processo social.
Boris Fausto (1984, p. 17) relata que, “se apreendida em nível mais profundo a criminalidade
expressa, a um tempo, uma relação individual e uma relação social indicativa de padrões de
comportamento, de representações e valores sociais”. Os atores sociais por nós investigados, ou seja,
os menores envolvidos em processos-crime, figuravam como categorias que deveriam sofrer
intervenções para que se adequassem à nova ordem social e às novas normas sociais.
O crescimento dos centros urbanos, a industrialização e a crescente migração da população da
área rural fizeram com que a sociedade brasileira, no período em estudo, 1930 a 1960 ficasse mais
suscetível aos problemas da modernidade, dentre os quais o aumento da criminalidade, o que
desencadeou a necessidade urgente de impor um disciplinamento social mais rígido. Mediante as
fontes do Poder Judiciário por nós pesquisadas, os processos-crime de menores, esperamos mostrar
que o discurso jurídico acerca das crianças em situação de risco, tanto moral quanto social,
equiparava-se a outros discursos, especificamente aos da área da educação formando o eixo do projeto
de modernização do Brasil na primeira metade do século XX.
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O ideal educacional passou a ser composto por uma base tríplice formada pela família, pela
criança e pela escola. A família era a responsável natural pela educação dos filhos. À escola caberia
complementar os ensinamentos adquiridos por intermédio do grupo familiar. Vale lembrar que essa
base não permeou todas as famílias; pelo contrário, uma vasta parcela da população infantil ficou de
fora dessas mudanças sociais e estruturais da família moderna. Em razão disto, o poder público
começou a implementar programas de ações governamentais de proteção à infância, sustentadas na
incapacidade das famílias para educar seus filhos, especialmente quando inseridas no contexto de
urbanização crescente.
As famílias sem recursos representavam uma ameaça para o Estado por dois motivos: o
aumento do pauperismo, que exigia grandes subsídios para a reorganização do corpo social em função
do direito dos pobres à assistência, ao trabalho e à educação; e o surgimento de profundas clivagens
quanto às condições de vida e aos costumes, que confrontava, por um lado, uma minoria burguesa
civilizada e, por outro, um povo bárbaro que perambulava pela cidade ameaçando sua destruição
(DONZELOT, 1986, p. 54).
Assim, duas instituições desempenharam, a partir de então, função decisiva na normalização
da ordem social, especialmente no tocante ao enquadramento das crianças descendentes de famílias
pobres: o Poder Judiciário e a escola. O aparecimento de novas profissões e profissionais voltados para
o trabalho social, dentre eles os assistentes sociais e os educadores, fizeram emergir no final do século
XIX,um pólo filantrópico em torno da questão da infância que reuniu, num mesmo alvo, aquilo que
poderia ameaçá-la, ou seja, que colocaria a infância em perigo, e aquilo que poderia torná-la
ameaçadora, isto é, a infância que representava um perigo social.
O surgimento de sociedades protetoras da infância - que também pretendiam fazer com que as
famílias pobres aprendessem a educar seus filhos de acordo com os preceitos modernos – ocasionou
mudanças que fizeram com que as leis também fossem modificadas para garantir, progressivamente,
uma transferência de soberania da família moralmente insuficiente para o corpo dos filantropos,
magistrados e médicos especializados na infância. Aos juízes foi atribuído o poder de confiar a guarda
de uma criança, ou à Assistência Pública, ou a uma pessoa, ou a uma sociedade caridosa, nos casos de
delitos cometidos por crianças ou contra elas.
Em A Verdade e as Formas Jurídicas, Michel Foucault (1996), mostra que o século XIX
correspondeu à formação de um saber concentrado no homem e sua individualidade, sobre o indivíduo
e o seu padrão de normalidade. Constituíram-se, assim, práticas sociais que engendraram domínios de
saber que fizeram aparecer não somente novas técnicas e novos objetos, mas, também, novas formas
de sujeitos e sujeitos de conhecimento. Esse saber tinha como pano de fundo as práticas do controle e
da vigilância, sendo que, “entre as práticas sociais em que a análise histórica permite localizar a
emergência de novas formas de subjetividade, as práticas jurídicas, ou mais precisamente, as práticas
judiciárias, estão entre as mais importantes” (p. 11 – Grifo nosso).
Dessa maneira, para Foucault (1996) as práticas judiciárias constituem-se num grande
manancial para a análise social da própria sociedade e das práticas exercidas no âmbito social e
esclarece que foi no século XIX, que se formou a “sociedade disciplinar”, e o que levou ao seu
nascimento foi a reorganização do sistema judiciário e penal nos diferentes países do mundo. Se no
século XVIII, a lei penal era uma representação daquilo que era útil para a sociedade, considerava-se
crime aquilo que a perturbava e danificava, sendo o criminoso “inimigo social”. No século XIX, a
nova legislação penal não mais visará ao que é socialmente útil, mas, pelo contrário, procurará ajustarse ao indivíduo, procurando saber o que esses indivíduos podem fazer, o que são capazes de fazer,
para, desse modo, controlar seus comportamentos, suas atitudes e até suas vidas.
Em Vigiar e Punir (1995), Foucault diz que diz que no século XIX emergem três grandes
instrumentos disciplinares: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. A vigilância
hierárquica organiza-se como um poder múltiplo, automático e anônimo; apesar de seu alvo ser o
indivíduo, seu funcionamento constitui-se de uma rede de relações, estando presente em todos os
lugares e em todos os momentos, vigiando tudo e a todos ao mesmo tempo. Na realidade, é uma
vigilância constante e permanente em que cada indivíduo vigia o outro e a si mesmo, constituindo,
portanto, uma autovigilância também.
A sanção normalizadora é, na essência, um mecanismo penal. Porém, sua finalidade não é
punir, no sentido jurídico da palavra, com a conotação de castigar, maltratar, isolar, mas sim de
corrigir. Sua função é reduzir os desvios, ou melhor, fazer com que eles inexistam; enfim, o objetivo
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da sanção normalizadora é justamente normalizar. Para Foucault (1995, p. 163 – Grifo nosso), “a
penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições
disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza”.
Esse é o sentido da sanção normalizadora. O poder adquirido pela norma deriva dessa concepção,
tornando-a igual e, juntamente com a regulamentação, um grande instrumento de poder.
O terceiro instrumento disciplinar apontado por Foucault (1995) é o exame. “O exame
combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante,
uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir” (p. 164). Como a vigilância hierárquica e a
sanção normalizadora, o exame foi originado no século XIX, a partir de formas de análises judiciárias,
e estreitamente vinculado a formas de controle políticos e sociais característicos da sociedade
capitalista.
O exame é minucioso e meticuloso, dizendo respeito não propriamente ao crime, mas ao
criminoso. É o exame do criminoso, de sua personalidade, de sua mentalidade, de suas tendências e
inclinações. É um estudo de caso, sendo cada indivíduo um caso particular, passível de ser descrito,
medido e, ao mesmo tempo, comparado a outros, no intuito de mensurar o grau de “anormalidade”
existente no sujeito em estudo. Relaciona-se com a vigilância, quando um detentor de poder examina
outrem e, além disso, torna esse poder um saber sobre o examinado, vigiado e observado.
O exame abre duas possibilidades que são correlatas: a constituição
do indivíduo como objeto descritível, analisável, não, contudo, para reduzi-lo
a traços ‘específicos’, mas para mantê-lo em seus traços singulares, suas
aptidões e características próprias, sob o controle de um saber permanente; e,
por outro lado, a constituição de um sistema comparativo que permite a
medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de
fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua
distribuição numa ‘população’ (FOUCAULT, 1995, p. 169).
Essas formas de controle e vigilância revestem-se do conceito de normalização. François
Ewald (1993, p. 78) analisa que “Foucault inscreve a norma entre as artes de julgar, uma maneira de o
poder reflectir as suas estratégias e definir os seus objectos”. À vista disso, o século XIX assistiu à
passagem do espaço da lei para a tecnologia da norma, enquanto o Estado Moderno procurou
implantar seus interesses, utilizando-se dos equipamentos de normalização. No século XIX, também
emergiu um saber-poder que culmina no advento das chamadas ciências humanas, dentre elas, a
Psiquiatria, a Psicologia e a Sociologia, e na incorporação dessas ciências pelas práticas judiciárias,
especialmente pela nova legislação penal.
Assim, a psiquiatria, a antropologia criminal e a criminologia, sendo as duas últimas as principais
ciências nas quais se baseia a nova legislação penal, são exemplos de saberes normalizadores que,
como disciplinas que se pretendem científicas, abrem espaço para o conhecimento do indivíduo
criminoso ao introduzirem nas práticas jurídicas e penais critérios de avaliação diversificados, a partir
dos quais não se julga mais apenas a obediência ou não à lei, mas também a própria natureza do
criminoso, seu comportamento antes e depois do crime cometido e seus desvios frente aos padrões de
conduta considerados normais Essa avaliação tende a ser contínua, ao supervisionar os
comportamentos cotidianos dos indivíduos sujeitos às práticas penais (ALVAREZ, 1996 p. 39).
Dessa maneira, o saber jurídico penal foi o grande responsável pela participação do poder
judiciário nas práticas de controle social dos indivíduos. Sua divisão entre os indivíduos propensos ou
não ao crime, à delinqüência, ao mau comportamento, levou ao desenvolvimento de mecanismos de
prevenção dessas tendências ou, em última instância, de tratamento e recuperação, como parte do
processo de punição.
De acordo com essa nova concepção de justiça penal o importante não era apenas estabelecer a
culpa e penalizar o criminoso, mas tratá-lo dessa “deformidade”, desse desvio psíquico e social que o
conduzia à criminalidade. Desse modo, o saber das ciências humanas, aplicado ao judiciário, se
inscreveu no conhecimento sobre as características psicossociais do indivíduo criminoso, pois, para a
nova escola penal, dever-se-ia combater não o crime e a criminalidade, mas quem o cometeu ou está
em vias de cometê-lo. A lógica é a seguinte: se não houvesse criminosos ou pessoas com tendências ao
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crime, não haveria criminalidade. É por esse motivo que a investigação recaiu sobre os indivíduos,
porque o problema estava no indivíduo, não no contexto social.
O novo saber judiciário aplicou-se a certos segmentos da população, aqueles que se mantinham
impermeáveis ao enquadramento na nova ordem social e política, como os loucos, as mulheres e os
menores. Para Ferreira e Lima (2004, p. 84) “é em função dos modelos socialmente construídos que se
determina aquilo que pode ser considerado normal ou desviante, em determinado momento e, por tal,
sujeito a variadas formas de intervenção e prevenção”.
Dessa maneira,
é o esforço da classificação social e depois legal que codifica e criminaliza
os comportamentos, sendo então, com base nisso, que a problemática da
marginalidade adquire visibilidade e coerência. A partir do momento em que
são construídas categorias sociais e jurídicas que objetivamente definem
fronteiras, impõem limites, demarcando aquilo que é normal daquilo que é
marginal, surgem inevitavelmente as sanções para com os comportamentos
marginais. Daí que os registros judiciais sejam fontes inestimáveis para a
compreensão da marginalidade [...] (FERREIRA e LIMA, 2004, p. 85).
Em razão disso, o saber judiciário tornou-se mais incisivo sobre os menores primeiramente,
porque se percebeu um aumento da criminalidade entre crianças e adolescentes, e, em segundo lugar,
porque a instalação do tribunal de menores representou o que havia de mais moderno em relação ao
tratamento e ao julgamento da infância perigosa, além de contribuir decisivamente para alçar o poder
judiciário à instância máxima de controle das populações desviantes e das questões relativas aos
menores, tais como os cuidados com sua educação, saúde e condições físicas e morais.
No Brasil, essas idéias tiveram ampla repercussão, sobretudo a partir do final do século XIX,
devido às transformações sociais advindas com a República e com a convivência de diferentes
segmentos sociais, como os negros recém-libertos e os imigrantes recém-chegados, que se instalaram
nas cidades, e, ainda, com o aumento da criminalidade em setores específicos da população, como as
crianças.
Tais questões passaram a fazer parte das preocupações do poder judiciário, que por meio de
juristas defensores de uma nova doutrina penal, tais como Viveiros de Castro1, Paulo Egídio de
Oliveira Carvalho2 e Cândido Mota3, podemos ter uma noção de quão intensamente esses ideais
influenciaram a sociedade brasileira no encaminhamento de questões relativas aos setores
1
Para o qual, “os novos conhecimentos da justiça, ao invés de abrir espaço para a impunidade, a
tornava apta para agir frente às categorias de indivíduos que até então ficavam fora do alcance da
justiça clássica, como os menores” Por isso, Castro era favorável à utilização da ciência e do trabalho
dos peritos criminais no exame do estado mental dos indivíduos, o que ajudaria, consideravelmente, a
justiça a distinguir os criminosos (ALVARES, 1996, p. 98).
2
Defensor da criação de instituições não só para os menores que agiram com discernimento no ato do
crime, mas também para aqueles que praticaram atos anormais e antissociais, bem como para os
abandonados física e moralmente e para os predispostos ao crime. A proposta do autor abarcava tanto
as instituições penais quanto as de proteção social, envolvendo não somente o Estado, mas todos os
setores sociais preocupados com o crescimento da criminalidade entre crianças e jovens (ALVAREZ,
1996, p. 108).
3
Que concordava que o alvo do Estado deveria ser o criminoso, “enquanto indivíduo a conhecer, e não
o crime, uma entidade abstrata, por isso, era indispensável que se “conhecesse o criminoso e os
elementos que o influenciaram como a raça, o clima, a idade e o estado civil” (ALVAREZ, 1996, p.
117). Ainda segundo Mota, a tendência ao crime ou as circunstâncias que levam a ele são apreendidas
mais facilmente na infância e na juventude, daí a necessidade de combater o problema em sua origem,
prevenindo os maus hábitos e as más influências dos menores que viviam em ambientes propensos à
criminalidade (ALVARES, 1996, p 120).
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considerados problemáticos, perigosos ou ameaçadores, como era o caso dos menores desvalidos.
Também foi uma maneira de o saber jurídico penetrar nas discussões nacionais de maior relevância e,
mais do que isso, imiscuir-se e impor-se à população em geral, consagrando-se como um dos mais
importantes aparelhos produtores e reprodutores da ordem nacional no período em estudo.
Segundo Foucault (1996, p. 86) a instituição penal da sociedade disciplinar instituída no século
XIX não poderia mais estar, única e exclusivamente, nas mãos do poder judiciário; ela se faz
incorporar em várias outras instituições que também têm por finalidade o controle, a vigilância e a
correção. Porém, todas essas instituições desenvolveram-se em torno da instância judiciária e buscam
enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência, como exemplo, podemos citar as instituições
pedagógicas e dentre estas, a escola.
A redefinição do papel da escola e as reformulações em torno do aparelho escolar situaram a
educação como uma das principais, senão a principal prioridade utilizada pelos Estados nacionais na
formação dos cidadãos, fator que obrigou a instituição escolar a rever seu discurso e a reestabelecer
seus objetivos para atender aos requisitos e aos preceitos da sociedade moderna.
O Brasil não ficou à parte de todos esses acontecimentos relativos à educação; pelo contrário,
importantes fatos ocorridos na segunda metade do século XIX, tais como a abolição da escravatura, a
imigração européia e a Proclamação da República impulsionaram profundas alterações na estrutura da
sociedade, sendo a escola um dos dispositivos responsáveis pela articulação e pela transmissão dos
novos saberes, os quais eram solicitados pelas modificações sociais, políticas e econômicas que o País
estava vivenciando naquele momento.
Dessa maneira, a educação, e especialmente a educação popular, era vista pelas elites como
imprescindível para civilizar, moralizar, além de proporcionar a participação política por intermédio
do voto, um direito apenas das pessoas alfabetizadas. Portanto, para os republicanos, a educação
ligava-se aos procedimentos voltados à evolução da sociedade, objetivando progressos nas áreas:
econômica, tecnológica, científica, social, moral e política, constituindo-se num fator essencial para
essa evolução.
No âmbito do movimento de renovação educacional que se difundiu pelo País, notadamente na
década de 1930, o qual ficou conhecido pela denominação de Escola Nova, era fundamental que o
Estado assumisse a responsabilidade de educar para que a escola efetuasse as funções que lhe eram
atribuídas, ou seja, enquadrar a população nos princípios modernizadores, civilizando, transformando o
povo em cidadãos disciplinados e produtivos, capazes de se adaptarem às novas normas sociais e às
novas tecnologias de conhecimento e de trabalho que a era industrial exigia.
Nesse contexto, o Estado despontava como a única instância competente para responder pela
educação das novas gerações, o que seria feito por intermédio das escolas e a partir dos anos 1940, por
serviços estatais de proteção à infância mantidas sob o controle dos poderes públicos, como o
Departamento Nacional da Criança (DNCr), o Serviço de Assistência ao Menor (SAM) e a Legião
Brasileira de Assistência (LBA).
A educação ministrada pela família vinha em segundo plano uma vez que, embora não pudesse
prescindir do apoio e da cooperação dos pais, a meta da nova escola era educar o indivíduo na direção
de finalidades definidas pelo conjunto das necessidades do País. A família deveria apenas cooperar com
a escola, apoiando e reproduzindo os ensinamentos transmitidos pela instituição, ideário compartilhado
pelo sistema judiciário, para o qual o problema do menor abandonado era uma conseqüência da
desestruturação familiar.
Uma vez definido os papéis da escola, do Estado e da família, o problema recaiu sobre as famílias
que não possuíam condições de ajudar a escola na educação da prole. Era preciso, em primeiro lugar,
intervir com o intuito de normalizar as famílias desviantes, medida igualmente defendida pelo Poder
Judiciário, que acreditava que os menores em situação de risco moral deveriam ser retirados do meio
em que viviam e internados em instituições competentes.
O processo movido em 1949 pela Justiça Pública contra E. B. (ARQUIVO HISTÓRICO
MUNICIAPAL DE FRANCA/SP. Processo-crime. Abandono Moral de Menor e Casa de Prostituição.
N. 5.505, cx. 302, 1949) ilustra de maneira significativa esta situação. E. B., por manter uma casa de
prostituição foi acusada de abandonar moralmente seu filho, o menor O. B., de 15 anos de idade.
Quando compareceu em Juízo, a mãe afirmou que:
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por ser proprietária de uma casa de meretrizes, seu filho não residia com ela
e, sim, na pensão de uma viúva que dava hospedagem a menores.
Assegurou, também, que o filho havia cursado até o terceiro ano no Grupo
Escolar Francisco Martins e que, naquele momento, estava trabalhando na
Fábrica de Calçados Régis, percebendo o salário de Cr$ 200,00 mensais.
Porém, apesar de o menor trabalhar, as despesas de sua manutenção eram
pagas pela declarante, que não tinha intenção de encaminhar seu filho para o
Serviço Social de Menores, estando disposta a arranjar uma pessoa idônea
para dele zelar.
Num primeiro momento, o próprio menor havia aventado a possibilidade de ser conduzido
para o Abrigo de Menores. Mas mudou de opinião, prometendo obedecer as ordens de sua mãe e
continuar a trabalhar em profissão honesta. No entanto,
o Juiz entendeu que O. B. não poderia continuar vivendo com sua mãe, visto
ela ser meretriz e dividir sua renda com um homem, fato que caracterizava o
abandono moral do menor, que acabou sendo enviado ao Serviço Social de
Menores.
A defesa da acusada, que apelou ao Egrégio Tribunal do Estado de São Paulo, é peculiar. Ela
oferece um discurso riquíssimo ao conceituar várias questões do Direito relativas ao problema da
prostituição, já que a acusada era prostituta, mas, principalmente, concernentes à moralidade, dado que
o processo caracterizava o abandono moral. O advogado de defesa da ré inicia sua argumentação
abordando que
a prostituição não deixa de ser um mal necessário e cita Santo Agostinho:
“suprimi as prostitutas, as paixões humanas revolucionarão o mundo; dai a
elas a posição de mulheres honestas e a infâmia e a desonra corromperão o
Universo”.
Ao utilizar tais palavras do filósofo, o defensor pretendia induzir a apelação no sentido da
justificativa e da aceitação da prostituição, pois, se até o santo padre da igreja católica reconhecia a
“importância” social da prostituição, por que a justiça francana via impedimentos em sua existência?
Mencionando o criminalista Nelson Hungria, o eminente advogado salienta que
“a política criminal muitas vezes desatende a lógica, [uma vez que] a
prostituição é tolerada como uma fatalidade da vida social, mas a ordem
jurídica faltaria à sua finalidade se deixasse de reprimir aqueles que, de
qualquer modo, contribuem para maior fomento dessa chaga social. Se a
prostituição é um mal necessário deplorável, não deixa de ser, até certo
ponto, em que pese aos moralistas teóricos, necessário. Embora se deva
procurar reduzi-la ao mínimo possível, seria desacerto a sua incriminação.
Sem querer fazer-lhe elogio, cumpre reconhecer-lhe uma função preventiva
na entrosagem da máquina social: é uma válvula de escapamento à pressão
de irrecusável instinto, que jamais se apaziguou na fórmula social da
monogamia e, anular o meretrício, se isso fosse possível, seria
inquestionavelmente orientar a imoralidade para o recesso dos lares e fazer
referver a libido para a prática de todos os crimes sociais”.
O que chama a atenção nas alegações do advogado de defesa é sua ênfase em conclamar, para
o campo do Direito, um raciocínio oriundo, segundo ele, da Sociologia. Diz o bacharel: “acima do
Direito, da lei fria e muitas vezes indiferente à realidade social, está a Sociologia. A citação acima,
antes de ser uma magnífica lição de direito, é uma equilibrada lição de Sociologia”. Conforme já
discorremos no presente estudo, o recurso aos princípios da Sociologia e outras áreas do conhecimento
foi muito empregado pelo saber jurídico para a análise da implicação dos fatos sociais na ocorrência
de crimes e delitos.
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Em relação ao abandono moral, a defesa alegou que “ficou provado nos autos que as poucas
vezes que o menor esteve em sua casa [da acusada], foi durante o dia, em horas de refeições, jamais
assistindo qualquer cena deprimente ou imoral que o corrompesse”. Utiliza-se do comentário ao
Código Penal Brasileiro de Romão Cortês de Lacerda, segundo o qual havia três elementos
fundamentais na caracterização do abandono moral:
o sujeito passivo, o menor de 18 anos, o elemento material que está no fato
de deixar que o menor pratique qualquer dos atos previstos e o elemento
moral, o dolo, que consiste em o agente saber que o menor está praticando o
fato e voluntariamente omitir o emprego de meios conducentes a evitá-lo.
De acordo com esse parecer, a justificativa do advogado foi a de que
ninguém viu o menor assistindo cenas deprimentes ou imorais, capazes de
corromper, quando esteve por instantes rápidos em casa de sua mãe. Para ser
julgada procedente a denúncia precisaria ter ficado provada a convivência ou
a freqüência constante do menor em casa mal afamada, a lei é textual, fala
de convivência, moradia em conjunto, com pessoas viciosas ou de má vida.
O juiz avaliou que a denúncia era improcedente, uma vez que “a ré já tinha pedido baixa da
inscrição de sua pensão na prefeitura”. A decisão foi contestada pelo Promotor Público, que apelou ao
Egrégio Tribunal estadual, apoiando-se igualmente em Romão Cortês de Lacerda, salientando que
o perigo que se encontrava o menor no ambiente por ele freqüentado,
justamente nessa idade em que o caráter deve receber os últimos retoques
que o tornam apto a suportar os embates da existência. Mesmo que se exija,
para a configuração do delito, que se tenha em conta a possibilidade de
corrupção do menor, está ele perfeitamente caracterizado.
À vista disso, a promotoria requisitou a reforma da decisão e a condenação da ré.
Ferreira e Lima (2004, p. 99) afirmam que “aos tribunais de infância se confiava o exercício
de uma ação supletória da ação da família, manifestando a jurisdição tutelar da infância, dessa forma,
preocupação social e educativa na medida em que nem a família escapava ao seu controle, quando o
interesse das crianças o exigisse”.
No documento analisado, apesar de o juiz ter decidido pela absolvição da ré, fica patente a
preocupação com o ambiente moral em que o jovem vivia; daí a investigação do local, da
circunstância de o menor habitá-lo ou não e, por fim, o fato de o promotor recorrer da sentença do juiz,
interpolando-a a alçada superior – no caso, o tribunal estadual – por entender que o meio familiar
estava prejudicando a formação do caráter do menor e corrompendo-o. Podemos identificar nesse
processo o lócus judiciário como um espaço de busca de salvaguarda para a moral social, de controle
dos desvios, das contravenções, e, ao mesmo tempo, um espaço de resistência em que a mãe, apesar de
ser prostituta e ter uma casa de prostituição, luta para ter a guarda do filho.
Embora seja de Sindicância, outro processo significativo que abarca o ambiente familiar e
moral ocorreu em 1952, envolvendo os menores S. e A. E., ambos de 17 anos. S. trabalhava como
doméstica na casa dos pais de A.E., conhecidos e influentes comerciantes francanos, e dormia no
mesmo quarto que o menor e sua irmã, local em que foi deflorada por A. E., que a engravidou –
segundo consta nos autos (ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIAPAL DE FRANCA/SP. Processocrime. Sindicância. N. 5.791, cx. 323, 1952). A menor reclamou à justiça porque o rapaz não cumpriu
a promessa de casar-se com ela e a desamparou. E confessou: que “o progenitor de A. E. de nada
sabia, porque do contrário forçosamente teria ele falado qualquer coisa com a declarante, que em sua
‘doença’ [ou seja, a gravidez], não teve nenhum auxílio nem do menor nem de seu pai”.
Ao ser convocado para prestar esclarecimentos, o menor A.E., devidamente acompanhado
pelo seu curador declarou que “era estudante e que a acusação que lhe fora feita era uma infâmia, pois
jamais teve qualquer intimidade com essa vítima”. Porém, ele ratifica as declarações prestadas por ela,
confirmando que,
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num mesmo quarto de sua residência, dormiam diversas pessoas, dentre elas
o próprio declarante, dois irmãos e uma irmã, além da menor S. e uma outra
empregada da família. [O acusado disse que], por serem todos os seus
irmãos menores, não poderia haver oportunidade para práticas de atos
indecorosos.
Todas as testemunhas ouvidas asseguraram o comportamento exemplar da menor, que
precisou ir trabalhar em casa de família porque sua mãe enviuvou e não dispunha de recursos para
tratá-la. Uma delas, inclusive, garantiu que a menor havia lhe contado que era admoestada pelo filho
de seu patrão.
Em seu relatório, o Delegado de Polícia concluiu que, “ao contrário do que disse o acusado em
seu depoimento, as facilidades para que ele abusasse da menor lhe foram oferecidas por dormirem no
mesmo cômodo, situação que o condicionou a manter relações sexuais com a vítima em seu próprio
leito”.
De posse do relatório policial, o Promotor Público pediu ao comissário de menores que se
realizasse uma sindicância sobre a vida do jovem A. E., verificando: “seu ambiente familiar, seus
antecedentes morais, sua situação social, seu grau de educação e sua ocupação habitual”. Na
perquirição do comissário de menores, foi constatado que
o rapaz residia na cidade de Franca em companhia de sua família; seu pai era
um senhor probo e capaz, tanto monetariamente como pessoalmente, sendo
comerciante e proprietário; o acusado cursou o Ginásio Champagnat, onde
tirou o diploma e atualmente, cursa o primeiro ano Ginasial, no Ginásio
Estadual local. [Ao inquirir o diretor desse estabelecimento de ensino, o
comissário] obteve boas referências sobre o menor e, segundo informações
prestadas pela vizinhança da família de A. E., ele era um rapaz bom e de boa
moral, não era dado a fazer farras e nem andava em más companhias, sendo
que, após o horário dos estudos, auxiliava o pai vendendo mercadorias em
sua própria residência.
A vida familiar “regrada” que o rapaz levava, o “irretocável” ambiente familiar em que vivia,
o fato de ter estudado em colégios conceituados – como o Champagnat, no qual só estudavam os filhos
da elite local e regional, e no Ginásio Estadual, muito procurado e de boa reputação – o depoimento
concedido pelo diretor ginasial, que atestou sua boa conduta como aluno, enfim, todas essas “boas
referências” tiveram um peso muito grande na absolvição do acusado.
Em suas declarações, o pai do menor confirmou a versão do filho, dizendo que
no mesmo quarto dormiam todos os seus filhos, mais a menor S. e uma outra
empregada, sendo que essas duas últimas dormiam numa mesma cama, o
que o forçava a acreditar na inocência de seu filho no caso em questão. [O
pai observou também] que A. E. era muito comportado e só lhe dava
motivos de alegria, tanto nos estudos como na vida prática.
Feitas as averiguações, o promotor apresentou seu parecer, no qual relatou o seguinte:
com referência à pessoa do menor, colhemos boa impressão, parecendo-nos
um menor aproveitável e sem nenhum índice de periculosidade. Pela
sindicância realizada verificou-se ser o menor um excelente aluno do
Ginásio Estadual local. [Assim], como o menor não oferecia periculosidade,
não necessitava ser internado em estabelecimento correcional, devendo ser
conservado sob a guarda paterna; entretanto, o Juízo deveria oficiar o
progenitor para que fiscalizasse o procedimento do filho, orientando-o para
um bom caminho.
Na recomendação do promotor fica patente que a educação familiar, nos casos em que a
Justiça constatasse um adequado ambiente moral e educativo, ainda era a opção mais aconselhada para
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a transmissão dos valores morais, da boa conduta e do bom encaminhamento que a criança ou o jovem
deveria ter em sua vida.
Na percepção do Juiz,
o fato atribuído ao menor A. E. não ficou cabalmente provado embora as
circunstâncias corroborem as acusações da vítima. Essa e o menor tiveram
facilidades fora do comum, pois ocupavam o mesmo quarto. Essa
imprevidência dos pais do menor, quase inacreditável, colocando dois
adolescentes no mesmo aposento, provocou o fato que deu origem a este
feito. E mais do que isso fez com que uma moça se perdesse e uma criança
sem pai viesse a aumentar o número de menores sem lar. Se fosse possível
aplicar uma pena, esta deveria ser dirigida contra os pais do menor, únicos
culpados por tudo o que sucedeu.
Em conformidade com o parecer do Curador Geral, o juiz decidiu pelo arquivamento do
processo, ressalvando que “o menor deveria permanecer na casa paterna, sob a responsabilidade do
pai, que se obrigaria a fiscalizar o procedimento do filho, assumindo nos autos a responsabilidade pelo
menor”.
Esta determinação do magistrado mostra de maneira significativa a intervenção do Poder
Judiciário na esfera familiar de outrora. Pois, “para uma eficiente profilaxia do crime, considerava-se
fundamental a aplicação de medidas preventivas que se revelassem eficazes no combate à deflagração
do ‘mal’ ou, pelo menos que fossem capazes de diminuir as hipóteses que o tornariam possível”
(FERREIRA e LIMA, 2004, p. 99).
Retrata igualmente, a importância e a atribuição do compromisso educacional e moral dado à
família pelo aparelho judiciário, pois para o Juiz, os pais falharam em suas obrigações, descuidando-se
da vigilância sobre o filho quando o colocaram para dormir no mesmo cômodo que uma jovem,
praticamente impelindo-os a praticarem atos libidinosos. Em razão da negligência, e segundo o
julgador os pais é que deveriam ser punidos pelo mau comportamento do filho, visto que era função da
família, tanto pelo exemplo e pelo ensinamento quanto pela fiscalização, educar seus descendentes,
tendo em vista a aquisição de uma conduta modelar, socialmente aceita e tida como correta.
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Menor e Casa de Prostituição. N. 5.505, cx. 302, 1949.
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323, 1952.
DONZELOT, J. A polícia das famílias. 2.ed. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 1986. 209 p.
FAUSTO, B. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo, SP:
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FERREIRA, A. G.; LIMA, C. C. Menores em risco social e delinqüentes no século XIX e princípios
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Os processos-crime, a educação e a normalização da infância