INGREDIENTES A QUÍMICA DOS SORVETES O sorvete é uma complexa interação entre água, ar, gordura, proteínas e açúcares O sorvete que todos conhecemos e desfrutamos é o resultado de anos de experimentação que, naturalmente, inclui a química. Brian Rorhig, especialista da American Chemical Society dá uma olhada sobre algumas das substâncias que compõem os cremes gelados e explica alguns fenômenos físicos e químicos que influem sobre o sabor e a textura. Qualquer um que tenha elaborado sorvetes alguma vez conhece seus ingredientes: leite, creme, açúcar, ovos… Mas há um ingrediente que habitualmente se esquece, provavelmente porque não o podemos ver: o ar. E o ar no sorvete é importante. Se alguém deixa derreter um pote de sorvete e depois volta a congelar para comê-lo, seguramente notará que não é muito apetitoso. Da mesma forma, se alguém deixa derreter um pote de sorvete sobre a mesa, verá que o volume do produto fundido diminui muito. Simplesmente porque o ar corresponde a 30-50% do volume total do sorvete que desfrutamos. Para ter uma idéia do efeito do ar sobre o sorvete, podemos pensar no creme batido. O creme batido tem uma textura e um sabor diferentes do creme de leite líquido, que tem um sabor mais doce. Assim como o sorvete sem ar, o creme puro com açúcar tem um sabor enjoativo, demasiado doce. Isto se deve ao fato de que a estrutura de uma substância pode ter um gran- 16 de efeito sobre seu sabor. A estrutura controla a velocidade com que as moléculas sápidas se liberam dentro da boca. A maior estrutura (de sorvete, neste caso) mais tempo leva para que as moléculas de sabor sejam liberadas. Estas moléculas estimulam os receptores da língua e da cavidade bucal. A quantidade de ar agregado ao sorvete se conhece como overrun. Se o volume do sorvete se duplica pelo acréscimo de ar, o overrum é de 100%, que é a quantidade máxima aceitável em um sorvete comercial. Os sorvetes mais econômicos usualmente contém mais ar que os sorvetes premium. Um efeito colateral de agregar muito ar é que o sorvete tende a fundir mais rapidamente. A quantidade de ar também tem um grande efeito sobre a densidade , um balde de quatro litros de sorvete tem que pesar pelo menos 2,16 kg, com uma densidade mínima de 540 g/litro. Os melhores sorvetes têm densidade de até 900 g/litro. Isto é fácil de constatar em comércios que vendem sorvetes embalados de diferentes marcas, quando se compara o peso de embalagens de igual capacidade, nota-se a diferença entre as marcas mais econômicas e as mais caras. Devido ao alto conteúdo de gordura dos sorvetes, porém, e também porque a gordura é menos densa que a água, todos os sorvetes sempre serão menos densos que qualquer solução aquosa. O sorvete é uma emulsão, ou seja uma combinação de dois líquidos que normalmente não se misturariam. Ao invés disso, um dos líquidos se dispersa no outro. Em um sorvete, partícu- Sorveteria Confeitaria Brasileira Nº 220 2015 INGREDIENTES se detidamente um sorvete, pode-se ver que a estrutura é porosa. Uma bolha de ar típica em um sorvete tem aproximadamente um décimo de milímetro de diâmetro. A presença de ar significa que o sorvete é –também- uma espuma. Outros exemplos de espumas são os creme batidos, os marshmallows e o merengue. AÇÚCAR E GORDURA O leite contém lactose, o açúcar do leite, a qual não é muito doce. Os sorveteiros devem acrescentar muito mais açúcar do que a que notamos, usualmente sacarose ou glicose. O Sorvete soft com muito overrun Sorvete de alta qualidade com pouco overrum frio tende a adormecer as papie alto conteúdo gorduroso las gustativas, tornando-as menos sensíveis. Devido a isto, é las líquidas de gordura (chamadas glóbulos de gordura) necessário mais açúcar para produzir os efeitos desejaestão dispersadas em uma mistura de água, açúcar e dos à baixa temperatura à qual se serve um sorvete. Se gelo, junto com bolhas de ar (Figura 1). Se examinaralguém experimenta um sorvete à temperatura ambiente, o notará demasiado doce. O mesmo efeito se pode notar nas FIGURA 1. Alguns dos ingredientes mais comuns em um creme gelado incluem crisbebidas carbonatadas: se são tais de gelo, ar, glóbulos de gordura, açúcar e agentes saborizantes (baunilha por consumidas quentes, têm um exemplo) sabor enjoativo. Em algumas Bolhas de ar regiões do mundo onde os Glóbulos de gordura refrigerantes são consumidos à Cristais de gelo temperatura ambiente, se lhes agrega menos açúcar, e quando Ácido palmítico esses mesmos refrigerantes são bebidos frios não são suficientemente doces. Uma grande razão pela qual os sorvetes são tão Líquido saborosos é seu alto conteúdo Baunilha de gordura. A não ser que estejam rotulados como "light", Sacarose "baixos em gordura" ou "sem gordura", os sorvetes contém ao menos 10% de gordura proveniente do leite (não se pode utilizar outra). Antes do leite ser homogeneizado, uma capa Sorveteria Confeitaria Brasileira Nº 220 2015 17 INGREDIENTES de creme se forma em sua superfície. Este creme tem uma alta concentração de gordura láctea (até 50%) e aporta a maior parte da gordura em um sorvete. Os sorvetes premium podem ter até 20% de gordura, a qual lhes dá sua textura cremosa e suave. Os sorvetes reduzidos em gordura não são tão ricos e tendem a ter uma textura menos cremosa. Ainda que a gordura seja com freqüência vilipendiada, tem seu propósito. A maior parte dos alimentos mais deliciosos provavelmente contém gordura. A gordura satisfaz, de modo que não precisa comer muito para sentir-se cheio. O problema de utilizar gordura como ingrediente em qualquer tipo de alimento é que não se mistura bem com muitas outras substâncias. A gordura é não polar, isto significa que as cargas positivas e negativas dentro da molécula estão distribuídas de forma uniforme. Uma substância polar, como o água, tem regiões separadas de cargas positivas e negativas: um extremo de uma molécula polar tem uma carga parcial positiva e o outro extremo tem una carga parcial negativa. As substâncias polares e não polares não se misturam. Assim como o azeite flutua sobre a superfície da água, o conteúdo de gordura de um sorvete também tem uma tendência a separar-se do resto da mistura. 18 MANTENDO TUDO JUNTO Devido ao fato de o creme ser uma emulsão, se poderia esperar que as gotas de gordura presentes se separassem depois de algum tempo, da mesma forma que um pote com tempero para saladas, onde o azeite se separa dos outros condimentos. Quando se sacode o frasco de tempero, as duas partes voltam a misturar-se, mas depois de alguns minutos, começam a separar-se novamente. Isto se deve a que as gotas de azeite interagem umas com as outras, num processo chamado coalescência. No caso do leite, cada gota de gordura está recoberta com una capa de proteínas que impedem que as gotas de gordura interajam entre si. Estas proteínas lácteas funcionam como "emulsificadores", ou seja substâncias que estabilizam a emulsão e permitem que as gotas permaneçam dispersas, ao invés de confluir todas juntas. Devido a que as proteínas de leite tem um lado não polar, e a que as substâncias não polares se dissolvem em substâncias similares, os extremos no polares das proteínas são atraídos pelos glóbulos de gordura não polares. Isto é bom no caso do leite, mas não tão bom no sorvete, no qual as gotas de gordura devem aglutinar para capturar as bolhas de ar. De tal modo que há que agregar outros emulsificantes para permitir que as gotas de gordura se unam. Este emulsificante substitui as proteínas do leite sobre a superfície das gotas de gordura, levando a que se forme uma membrana mais fina, que aglutinam mais facilmente FIGURA 2. As bolhas de ar são retidas pelos glóbulos de gordura coalescentes Glóbulos de gordura parcialmente agregados Bolhas de ar Cristais de gelo Glóbulos de gordura Fase aquosa não congelada com açúcares Sorveteria Confeitaria Brasileira Nº 220 2015 INGREDIENTES FIGURA 3. Estrutura química de um tipo de lecitina chamada fosfatidilcolina durante o batido (Figura 2). Um emulsificante comum é a lecitina, encontrada na gema de ovo. A lecitina é um termo genérico que engloba a um grupo de moléculas formadas por largas cadeias de ácidos gordurosos ligadas a uma molécula de glicerol, junto com colina e um grupo fosfato (Figura 3). A lecitina se infiltra entre os glóbulos de gordura, fazendo com que permaneçam juntos uns aos outros e, como resultado, fiquem presas as bolhas presentes no mix nesta gordura parcialmente coesa. Isto confere firmeza e textura ao sorvete, permitindo-lhe manter sua forma. Muito relacionados com os emulsificantes estão os estabilizantes, os quais tornam cremosa a textura. Os estabilizantes têm dois papéis. Em primeiro lugar devem prevenir a formação de grande s cristais, em presença de estabilizantes, o sorvete contém pequenos cristais de gelo, os quais se fundem mais lentamente que os de tamanho grande, devido ao efeito de isolamento da gordura que os rodeia. Em segundo lugar, os emulsificantes atuam como uma esponja absorvente, imobilizando qualquer líquido no sorvete. Os estabilizantes usuais são proteínas, tais como gelatina e clara de ovo. A goma guar, a goma garrofin e a goma xántica também podem ser utilizadas. Também se pode ver no rótulo da embalagem de sorvete a presença como estabilizantes de carrageninas ou de alginato de sódio, ambos derivados de algas. Sem estes estabilizantes, o sorvete poderia parecer mais como um milkshake. Uma vez que estejam todos os ingredientes juntos no mix, será necessário congelá-lo para fazer o sorvete. Os solutos dissolvidos (sobretudo o açúcar) na porção líquida da mistura reduz seu ponto de congelamento. Há uma diminuição de 1,86°C na temperatura de congelamento por cada mol de soluto agregado a um kilograma de água. Em outras palavras, se dissolver um mol de açúcar em um kilo de água, a mistura não se congelará a 0°C mas a -1,86°C. o ponto de fusão é uma propriedade coligativa, isto significa que o efeito se observa sem importar a identidade específica da solução: o que interessa é quantos moles há dissolvidos. Um sorvete típico se congela a 3°C devido à presença dos solutos dissolvidos. Sorveteria Confeitaria Brasileira Nº 220 2015 19