Faculdades Integradas do Vale do Ivaí
Instituto Superior de Educação - ISE
Credenciado pela Portaria MEC nº. 533 de 22/02/05 – D.O.U. – 23/02/2005
INDIANARA THEIS
DE SAMSA A MACABÉA: O HORROR E A DOR
IVAIPORÃ/PR
2013
Av. Minas Gerais, 651 – Fone/Fax (43) 3472-1414 – CEP 86.870-000 Ivaiporã / PR.
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INDIANARA THEIS
DE SAMSA A MACABÉA: O HORROR E A DOR
Trabalho de conclusão de curso apresentado como
requisito parcial para obtenção do grau de
licenciatura em Letras das Faculdades Integradas do
Vale do Ivaí (UNIVALE).
Orientadora:
Sanches
Prof.ª
IVAIPORÃ/PR
2013
Me.
Ana
Paula
Miqueletti
INDIANARA THEIS
DE SAMSA A MACABÉA: O HORROR E A DOR
Trabalho de conclusão de curso apresentado como
parte dos requisitos para obtenção parcial do grau de
licenciatura em Letras das Faculdades Integradas do
Vale do Ivaí (UNIVALE).
Orientadora: Prof.ª Me. Ana Paula Miqueletti
Sanches
Aprovado em: __/__/__
________________________________________________
Professora Me. Ana Paula Miqueletti Sanches
_________________________________________________
Professor (a) Convidado (a)
_________________________________________________
Professor (a) Convidado (a)
DEDICATÓRIA
Primeiramente, dedico esse trabalho a Deus, por ter me dado forças para
conquistar sonhos e nunca ter me deixado desistir. A minha mãe Dalva, que em
todos os momentos de dificuldade esteve presente, apoiando-me em todas as
decisões, mesmo que ela não as compreendesse. Pelo exemplo de vida que minha
família me proporcionou, pela educação que me proporcionaram, permitindo que eu
enxergasse os meus erros e que se possível os assumisse e encarasse as suas
consequências, sem nunca me abandonarem. Aos meus irmãos que sempre
estiveram comigo, mas principalmente a Patrícia que sempre esteve ao meu lado me
suportando e me escutando durante todo esse percurso. Ao Leandro pelo seu
carinho, amor e pela compreensão, que permitiram a conclusão deste trabalho. Em
geral, dedico esse trabalho a todos que acreditaram na minha capacidade.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Deus que me iluminou durante toda essa
caminhada.
Aos meus pais, pelo apoio que me deram durante esses três anos,
principalmente a minha mãe que não mediu nenhum esforço para a conclusão de
mais essa etapa na minha vida.
Agradeço todos os meus familiares, mas em especial a Vera, pela força e
insistência para que eu cursasse Letras.
Ao meu noivo que de uma forma especial e carinhosa me deu força e
coragem, me apoiando nos momentos mais difíceis.
A minha orientadora Professora Ana Paula Miqueletti Sanches, por confiar e
acreditar na minha escolha, pela colaboração e paciência e principalmente por todas
as sugestões e ajuda, tornando possível o término deste trabalho.
A todos os meus professores, pela dedicação que tiveram ao longo do curso,
iluminando meus pensamentos e escolhas, sempre me levando a buscar novos
conhecimentos.
Finalmente, agradeço aos meus colegas de sala, por todos os momentos
que tivemos; por todas as lutas que vivemos, mas nós nunca desistimos. Pelo
companheirismo, e por todas as alegrias.
Obrigada a todos, em geral, pela compreensão.
“A palavra é o meu domínio sobre o mundo”
(Clarice Lispector)
“Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e nos mordem. Se o livro que lemos
não nos desperta com um murro no crânio, para que lê-lo?”
(Franz Kafka)
THEIS, Indianara. De Samsa a Macabéa: do horror a dor. Faculdades Integradas
do Vale do Ivaí – UNIVALE. Monografia de curso de Letras. Ivaiporã, 2013.
RESUMO
Gregor Samsa, personagem de A Metamorfose de Franz Kafka, e Macabéa,
personagem e A Hora de Estrela de Clarice Lispector, têm suas histórias permeadas
pelo horror e pela dor. O primeiro, um simples caixeiro viajante que sustentava a
família e que, surpreendentemente, em um dia comum, acorda metamorfoseado em
um inseto asqueroso. A segunda, uma pobre nordestina que é engolida pela vida na
capital. Ela, Macabéa, é o próprio inseto pisoteado pelas relações sociais de um
mundo que não é seu. Samsa, antes a tábua de salvação de sua família, é, no
decorrer da narrativa, veementemente renegado, tendo em vista que sua
metamorfose foi a forma que Kafka encontrou para nos evidenciar como o ser
humano pode ser desprezado quando já não mais útil, do caso de Gregor, instante
no qual deixou de sustentar sua família. Já Macabéa nunca foi aceita: retirante,
pobre, desprovida de inteligência, essa representante da realidade de muitos
brasileiros foi literalmente devorada por um mundo interesseiro e cruel. Ambos nos
fazem refletir sobre a condição (des) humana com a qual nos deparamos
constantemente. Dessa feita, esse trabalho se propõe justamente a realizar uma
comparação entre eles por meio de uma reflexão acerca da narrativa e da
linguagem.
Palavras-Chave: Lispector; Kafka; Gregor Samsa; Macabéa.
THEIS, Indianara. De Samsa a Macabéa: the horror and pain. Faculdades
Integradas do Vale do Ivaí – UNIVALE. Monograph presented as a required
assignment for the conclusion of the Languages Course. Ivaiporã, 2013.
ABSTRACT
Gregor Samsa, a character in The Metamorphosis by Franz Kafka, and Macabéa
character and A Time Star Clarice Lispector has permeated their stories of horror and
pain. The first, a simple salesman who supported the family and, surprisingly, on an
ordinary day, wakes metamorphosed into a nasty bug. The second, which is a poor
northeastern swallowed up by life in the capital. She Macabéa, is the insect itself
trampled by the social relations of a world that is not yours. Samsa, before the
salvation of his family, is in the course of the narrative, vehemently disowned,
considering that his transformation was the way that Kafka found to show us how
human beings can be neglected when no longer useful, the if Gregor, instant at
which no longer support his family. Already Macabéa was never accepted: migrant,
poor, unintelligent, this representative of the reality of many Brazilians was literally
devoured by a selfish and cruel world. Both make us reflect on the condition (un)
human with which we face constantly. This time, this work aims precisely to make a
comparison between them through reflections on narrative and language.
Keywords: Lispector; Kafka; Gregor Samsa; Macabéa.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................................................... 10
2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DOS PERÍODOS DE CONSTRUÇÃO DAS
OBRAS DE KAFKA E LISPECTOR .................................................................................. 12
2.1 CONTEXTO HISTÓRICO .............................................................................................. 12
2.2 O MODERNISMO E VANGUARDAS EUROPEIAS .................................................. 14
3 ESTUDO DOS AUTORES: FRANZ KAFKA E CLARICE LISPECTOR .................. 16
3.1 VIDA E OBRA DE FRANZ KAFKA............................................................................... 16
3.2. A VIDA E OBRA DE CLARICE LISPECTOR ............................................................ 17
3.3 A METAMORFOSE DE KAFKA ................................................................................... 18
3.4 MACABÉA DE LISPECTOR ......................................................................................... 26
4 DE KAFKA A MACABÉA – A DOR E O HORROR .................................................... 35
4.1 COMPARAÇÃO ENTRE A PERSONAGEM KAFKIANA E A LISPECTORIANA . 35
5 CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 40
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 42
10
1. INTRODUÇÃO
Diante de um mundo repleto de conflitos, surgem dois escritores que por meio
da literatura representam os impactos de uma época marcada pela desolação, tristeza,
dor, medo. Esse período foi muito crítico para a população mundial, pois começava a
Primeira Guerra Mundial, e é em meio a esse conflito que surgem as vanguardas
europeias, e a busca por algo inovador. São cinco os principais movimentos:
Futurismo; Dadaísmo; Cubismo; Expressionismo; Surrealismo. Essas tendências eram
manifestos advindos do contraste social, o proletariado contra a burguesia.
Em meio a tantos impactos ocasionados temos o movimento Modernista, que
se iniciou na Alemanha junto com a Primeira Guerra. Deste período será analisada a
obra de Franz Kafka que representa a repressão e o sofrimento do povo em suas
obras. Já no Brasil, esse movimento teve influência das vanguardas europeias, O
Modernismo foi marcado por três fases: a primeira fase é a nacionalista; a segunda,
regionalismo e a terceira tratam-se da fase realmente inovadora, momento que se
estabeleceu que não houvesse regras para escrever. Nessa fase, existem três
escritores isolados, pois tinham marcas próprias, são eles: João Cabral de Melo Neto;
Guimarães Rosa e por fim Clarice Lispector, escritora que recebeu uma atenção
especial no decorrer deste trabalho.
Antes de iniciar a análise das obras, foi de extrema importância salientar
alguns aspectos sobre a vida dos autores. Inicialmente, temos o escritor Franz Kafka,
judeu, nasceu em Praga, em 1883. Austro-Húngaro, recebeu influência das culturas
judaica, checa e alemã. Faleceu em 1924. Suas obras representavam os
acontecimentos e sentimentos relacionados à vida, pode ser notada a relação que
tinha com seu pai em algumas obras. Escreve sempre buscando a compreensão de si
mesmo. Representa a opressão dos mais fortes sobre os mais fracos. Em 1915, Kafka
publicou o livro que teve repercussão maior na sua carreira: A metamorfose.
Clarice Lispector será a segunda escritora que terá sua obra analisada. Ela
nasceu na Ucrânia em 1920, mas mudou-se para o Brasil em 1922. Lispector em suas
obras busca a sondagem da mente humana, ela foi muito ousada e inovadora para a
literatura brasileira, pois sua linguagem era única. Lispector é o principal nome da
literatura intimista, e os questionamentos do ser humano resultaram em romances
introspectivos.
11
Os dois autores viveram em épocas e lugares diferentes, no entanto, suas
obras expressam uma constante reflexão acerca da experiência existencial humana
em sua profundidade. A metamorfose, Franz Kafka, conta a história de Gregor Samsa
que sustentava sua família até que em um dia comum acorda metamorfoseado em um
monstruoso inseto, sendo assim, Samsa passa por um momento de adaptação. Nesta
monografia, estudam-se as condições biológicas de Samsa, por meio da análise sobre
sua transformações morfológicas. Também foi analisada profundamente a sua
adaptação relacionada com a sua nova forma, enfatizando os questionamentos que ele
fazia a si mesmo e a dor ocasionada por essa mudança.
A Hora da Estrela, Lispector, narra a história de uma moça nordestina,
Macabéa. De acordo com o narrador que a descreve, pode-se considerar que ela não
passa de uma migrante que será sempre desconhecida e inútil. Órfã, foi criada por sua
tia, que sempre a maltratava, portanto cresceu sem qualquer perspectiva da vida.
Macabéa será analisada por sua corporalidade e por suas características sob a
perspectiva do narrador e da própria personagem, provando mais uma vez sua falta de
identidade própria. Estudiosos consideram que a protagonista da novela clariceana só
teve uma significação em sua vida, na hora da sua morte, considerado por Lispector, o
momento em que ela vive a sua hora da estrela.
O tópico que pode ser considerado mais importante é a comparação das
obras, na qual se identifica o horror e a dor nas duas obras em questão. Neste
capítulo, os personagens serão comparados por suas caracterizações a partir do
livro A Condição Humana, de Hannah Arendt (1958). Trata-se da obra que a autora
analisa, a partir de um prisma político, a condição humana, observando-a sobre três
aspectos: o labor, o trabalho e a ação. Deixa-se evidente que os personagens são
exilados, não sendo o significado comum, aquele que saem de sua terra de origem,
mas o exílio ocasionado pelos erros, pelo trabalho exaustivo, pela dor e pela morte.
É evidente, que os exílios são uma condenação dos homens por eles mesmos.
Portanto, constata-se que os dois personagens têm suas histórias marcadas pela
dor e pelo horror. Sendo assim, ambos permitem a reflexão sobre o mundo que nos
cerca, a condição desigual perante a sociedade.
12
2. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DOS PERÍODOS DE CONSTRUÇÃO DAS
OBRAS DE KAFKA E LISPECTOR
2.1 CONTEXTO HISTÓRICO
O período de 1912 a 1950 é muito crítico para a população mundial, haja
vista que é neste contexto que ocorrem as duas grandes guerras mundiais que
deixaram inúmeras marcas no cotidiano dos indivíduos. Todavia, é importante
ressaltar que tais conflitos permitiram uma vasta produção literária, não apenas nos
países envolvidos. Havia uma sensibilização geral.
O ano de 1914 é marcado pelo início da primeira Guerra Mundial, na qual
várias pessoas morreram devido a esse conflito a Europa perdeu muitos territórios,
começa assim sua decadência e inicia a ascensão dos Estados Unidos, novas
tecnologias surgem como: o avião, o tanque de guerra, e o submarino. O Brasil
destaca-se no seu fortalecimento industrial.
Em meio à desilusão de um continente destruído, surgem na Europa os
movimentos comunistas e fascistas que algumas décadas mais tarde preparam o
terreno para uma nova guerra. Já no Brasil, as consequências deste período estão
relacionadas ao café, a maioria do produto era exportada, mas com a crise da Europa
essa procura diminuiu, atingindo diretamente a economia brasileira, depois da geada
muito forte, foi criado o Instituto do café, controlando a entrega do café aos demais
países. É necessário salientar que o Brasil passou a ter mais destaque na
industrialização.
Em todos os continentes há conflitos internos, porém o que amedronta a
população é a possibilidade de surgir uma nova guerra mundial, os países estão mais
potentes, aumentou-se a tecnologia, assim as armas utilizadas ocasionariam estragos
maiores que a Primeira Guerra Mundial.
Impulsionados por todo o contexto caótico da Primeira Guerra Mundial, surgem
as Vanguardas Europeias, assim denominadas por se tratar de movimentos pioneiros
da arte que se iniciaram na Europa. São cinco os principais movimentos: Futurismo;
Dadaísmo; Cubismo; Expressionismo; Surrealismo.
O Futurismo ou a valorização do futuro, lançado em 1909 por Marinetti,
propunha a destruição do passado, celebrando os novos signos do mundo, a
eletricidade, a máquina, a industrialização, essa tendência influenciou a Primeira Fase
do Modernismo, que valorizava a liberdade de expressão, destruição da sintaxe, ou
13
seja, as regras gramaticais não foram mantidas fielmente, assim como a pontuação.
Além disso, desprezavam o uso do advérbio e dos adjetivos.
A corrente radical foi o Dadaísmo, fundado por Tristan Tzara, esse movimento
negava o presente, o passado e o futuro, surgiu em meio a Primeira Grande Guerra,
caracterizado por uma revolta contra o capitalismo burguês, por essa razão os
dadaístas são contra as teorias e as ordenações lógicas, negavam o presente, o
passado e o futuro, defendendo sempre as combinações inusitadas e ilógicas.
A corrente que ficou mais conhecida se iniciou nas artes plásticas, com Pablo
Picasso, na pintura, o Cubismo, ficou conhecido pela suas formas irregulares,
distorcidas, valorizando as formas geométricas. Na literatura surgiu com o manifesto de
Apollinaire, escritores dedicavam-se a uma literatura mais próxima das outras artes,
portanto os textos deixaram de ser regulares, neste período eram escritos em linhas
curvas, na horizontal, na vertical; nas poesias os versos caracterizam-se em brancos e
livres, não havia preocupação com as estrofes, as palavras pareciam formar imagens
no papel.
O Expressionismo é um movimento que busca expressar os sentimentos e as
emoções do autor, retratando o lado pessimista da vida; com a modernização muitos
ficaram isolados, a industrialização explorava os cidadãos, esse fato gerou revolta nos
escritores
que
através
da
literatura
expressaram
seu
repudio
quanto
aos
acontecimentos, estes escreviam com o coração, representando a natureza interior de
cada indivíduo, o principal tema dessa corrente é a angústia existencial.
A corrente Surrealista foi inspirada nos sonhos, nos ideais utópicos do ser
humano, assim como no expressionismo baseou-se na sondagem interior do indivíduo,
no entanto, esse período valorizou-se a liberação do inconsciente, na literatura foi
marcada pela escrita automática, o autor deixa se levar pelo impulso, não tendo
preocupação com a lógica.
Essas tendências eram manifestos advindos do contraste social: de um lado a
burguesia eufórica pela economia industrial e, de outro lado, o proletariado,
descontente com as condições de trabalho e a intensificação do desemprego,
principalmente após a queda da Bolsa de Valores de Nova Yorque em 1929. Já no
Brasil, a mão de obra passou de escravocrata para mão de obra livre, de monarquia
para república. Com a Segunda Guerra Mundial, os autores deixaram suas obras ainda
mais reflexivas, pois estas representavam fielmente o que acontecia na época, logo
após o término da guerra, os escritores passaram a escrever sobre o sofrimento de
14
cada indivíduo, a destruição que foi maior relacionado à Primeira Guerra;
representavam a esperança de reconstrução não só nos locais destruídos, como
também na psique de cada participante desse horror.
2.2 O MODERNISMO E VANGUARDAS EUROPEIAS
O Modernismo no Brasil foi dividido em três gerações, a primeira geração foi
marcada pela Semana da Arte Moderna de 1922 a qual consistia em buscar uma
literatura inovadora, com marcas próprias brasileiras. Os escritores ridicularizavam a
literatura da forma parnasiana, tendo em vista que esta era composta de regras, as
poesias eram metrificadas e rimadas, não havia valorização nos sentimentos, apenas
valorizavam a estrutura que escreviam. Nesse primeiro momento, o Brasil busca a
aceitação das formas mais livres, na qual a maior preocupação era resgatar a literatura
tradicional. Logo, tal momento ficou conhecido como fase heróica, devido à ousadia de
muitos artistas.
Uma das características marcantes nesse período é o nacionalismo
exagerado, ou seja, uma valorização muito grande da pátria. Contudo, vale ressaltar
que essa valorização não era idealizadora, como outrora acontecera no Romantismo,
mas sim com uma visão crítica, como se pode comprovar por meio de um dos textos
mais importantes dessa primeira geração que foi Macunaíma: O herói sem nenhum
caráter, de Mário de Andrade.
A segunda geração moderna foi marcada pelo Regionalismo, principalmente o
nordeste, com as suas secas, a miséria, a situação dos trabalhadores, neste período
ocorreu um amadurecimento dos escritores. As poesias se caracterizavam como
questionamento da existência humana, inquietação social e religiosa. A literatura busca
sempre uma forma denunciar, retratar a realidade, e na segunda geração essas
marcas ocorreram de maneira mais profunda. Carlos Drummond de Andrade, Cecília
Meireles, Jorge Amado, Murilo Mendes marcaram essa época. Em 1945 surgem novos
rumos para a Literatura Brasileira, com o fim da Segunda Guerra Mundial, iniciava no
Brasil uma nova constituição que estabelecia novos pactos sociais, o Brasil se
modernizava juntamente com o resto do mundo. Surge assim o terceiro momento do
período Moderno Os escritores desse período já possuíam liberdade de usar as formas
que quisessem para interpretar a vida do nosso país. Os países que tinham acabado
15
de sair da guerra falavam muito em reconstrução, o que possibilitou no Brasil a
retomada dos temas: nacionalismo e regionalismo, característicos das gerações
anteriores. Houve uma mistura de gêneros, que abordavam diversos temas: intimismo,
crítica política, preocupação social, reflexões sobre a poesia e o mundo regional. A
poesia moderna encontrava profundidade de temas, de preocupação social e
investigação psicológica. A prosa se caracteriza por possuir uma linguagem mais
penetrante nos conflitos entre indivíduo e o meio social. Os escritores, por sua vez,
abordavam a miséria e os mecanismos de opressão de forma objetiva e forte que
permitiam que o leitor refletisse. Outra característica é o realismo fantástico, que
expressa uma visão crítica das relações humanas e sociais por meio de narrativas que
transfiguram a realidade.
Ainda nessa fase, devem-se salientar pelo menos três escritores isolados, já
que eles possuíam marcas próprias e buscavam percepção da literatura em linguagem,
sendo eles: João Cabral de Melo Neto, com precisão poética; Guimarães Rosa com
sua sutileza da fala e o texto narrativo, e, finalmente, Clarice Lispector com a tentativa
de explorar a consciência humana em busca do significado da existência. Essa última
autora será trabalhada com destaque no decorrer deste trabalho. O último romance
escrito por Lispector foi a Hora da Estrela, que terá destaque neste trabalho.
16
3. ESTUDO DOS AUTORES: FRANZ KAFKA E CLARICE LISPECTOR
3.1 VIDA E OBRA DE FRANZ KAFKA
O primeiro autor que receberá uma análise especial será Franz Kafka, escritor
renomado do Modernismo na Alemanha, nasceu em Praga, atual República Tcheca,
filho de um comerciante judeu. Em 1902, conhece Max Brod que vem a ser seu melhor
amigo, a quem ele confia o desejo de ter todas as suas obras destruídas depois da sua
morte. Formou-se em direito em 1906, todavia nessa época Kafka já possuía interesse
exacerbado pela Literatura, entretanto precisava trabalhar em seguradoras para se
sustentar. A saúde do escritor era muito atribulada assim como a sua vida amorosa, ele
se encontra próximo ao matrimônio por três vezes, mas sempre desiste. Em 1917,
precisa afastar-se de seu emprego devido a uma tuberculose na laringe, que no
decorrer dos anos vai se agravando. No momento, em que Kafka nota a sua saúde
mais frágil, decide internar-se em um sanatório, perto de Viena, neste local sua vida
chega ao fim em 1924.
A sua morte não representou o fim de seu trabalho, ao contrário, é depois de
sua morte que seu grande amigo, Max Brod, publicou as suas obras. Assim ele
transformou Kafka em um grande escritor, conhecido mundialmente, principalmente
pelo seu estilo peculiar de escrever.
As obras de Kafka representavam os acontecimentos e sentimentos
relacionados à sua vida, principalmente a relação que ele tinha com o pai, que pode ser
notada na obra A Metamorfose, podendo ser vista como um desabafo do autor. O
escritor buscava a compressão em si mesmo, interligando tudo o que há e o que
parece estabelecer entre o indivíduo e o mundo, entre homem e escritor, entre subjetivo
e objetivo.
Kafka representava em seus livros, a opressão dos mais fortes, pois ele viveu
em uma época na qual os países poderosos apropriavam-se dos países inferiores,
também representou em suas obras, a força militar, devido ter presenciado as
atrocidades da Primeira Guerra Mundial. Sendo assim, suas obras representavam as
conseqüências de um sistema, no qual o ser humano estava sempre em último lugar, é
importante salientar que nesse momento surge o grande tema de Kafka: a alienação, o
homem facilmente manipulado pela autoridade que protege a lei; a imagem desse
homem kafkiano é sempre acuada, desnorteada diante dos poderes superiores.
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Essa alienação dos personagens representa a amplitude de lucidez e a
realidade que caracterizam o autor. Ele escreve com tanto realismo que suas obras não
apontam soluções, não possuem otimismo nenhum, é o mundo como ele se apresenta.
De acordo com Ana Cristina Pinto da Silva, quando mais Kafka dava aos seus textos
um aspecto de pesadelo ou irrealidade, mais ele se aproximava do real, porque o real é
o absurdo que o ser humano vive um pesadelo que não acaba.
As visões kafkianas são, ao mesmo tempo, demoníacas e paradisíacas, pois
apontam a felicidade e a infelicidade, denunciam a crueldade e o absurdo do mundo.
Na leitura da suas obras percebe-se que elas não são puramente metafísicas ou
religiosas, sem nenhum compromisso com a realidade social e política da época que
ele viveu; na realidade Kafka esconde-se atrás da conformação das personagens e da
normalidade que seus textos possuem. O escritor publicou seu primeiro livro em 1912,
O Veredicto. Em 1915 publicou A Metamorfose, uma de suas obras mais conhecidas,
esta obra será analisada profundamente no decorrer deste artigo.
3.2. A VIDA E OBRA DE CLARICE LISPECTOR
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1920, contudo logo se mudou para
o Brasil. Lispector começou muito cedo, durante a sua adolescência escreveu
diversos contos e histórias que foram recusados por várias editoras, jornais e
revistas. Sendo assim em 1939, começa a trabalhar como redatora em uma Agência
Nacional e como tradutora e jornalista. Casou-se com Maury Gurgel Valente,
diplomata, devido à carreira do esposo, percorreu diversos países como: Itália,
Suíça, Inglaterra, mas isso não influenciou sua carreira artística.
Formou-se em
1944 em Direito e lançou seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem. Lispector
iniciou sua carreira em uma época que os escritores brasileiros dedicavam-se à
literatura regionalista ou de denúncia social, Clarice utiliza como foco as angústias e
os questionamentos existenciais do ser humano. Ela foi extremamente ousada e
inovadora, por esse motivo ela não está classificada dentre as características
citadas acima, ela tinha uma linguagem única, é fácil perceber que sua linguagem
possuía uma força que intensificava as emoções de seus personagens que
mobilizam seus leitores.
Sendo o principal nome da literatura intimista, questionamentos do ser
humano, o que resultou em romances introspectivos. As principais marcas de sua obra
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são: sondagem da mente humana; rompeu a literatura linear, ou seja, não escrevia nos
padrões de um romance; os espaços temporais não são respeitados, há uma mistura
de passado e presente; os personagens não são caracterizados fisicamente, muitas
vezes não possuem nome; as ações dos personagens entram em plano secundário,
valorizam-se as características psicológicas, referindo-se a introspecção; presença de
epifania, os personagens sofrem uma súbita revelação, na qual recebem com
estranheza algum fato banal da realidade. No momento que os personagens
mergulham em um fluxo de consciência, sentindo-se diferente em relação ao mundo, e
por certo terá seu futuro modificado; suas obras apresentam muitas figuras de
linguagem como: metáforas, sinestesia, antíteses, aliterações; suas principais
personagens são mulheres, devido ela visar atingir valores humanos e universais tais
como a falsidade das relações humanas, jogo de aparências, e as carências afetivas, a
condição da mulher.
Em 1967 a personalidade de Clarice Lispector foi transformada, depois que
ocorreu um incêndio em sua casa decorrente de um cigarro esquecido. Após o
incêndio, a escritora fez várias cirurgias plásticas para reconstrução de seu rosto, esse
fato não interrompeu sua carreira, todavia transformou-a em uma escritora mais
instrospecta. Seus personagens representam mais seus próprios sentimentos, isso não
fica evidente nas obras, apenas quem conhece as angústias de Clarice percebe que
cada obra representa um pouco dela mesma. Clarice Lispector morreu em 1977,
decorrente de um câncer, quando Drummond escreveu:
Clarice
Veio de um mistério
partiu para outro
ficamos sem saber a essência do mistério
ou o mistério não era essencial.
Essencial era Clarice vagando nele.
Dentre tantas obras da autora, a única que apresenta problemas sociais do
Brasil é A Hora da Estrela, nesse livro a autora mistura as suas características
marcantes com devaneios psicológicos e emocionais, viagens interiores.
3.3 A METAMORFOSE DE KAFKA
A novela escrita em 1912 e publicada em 1915 é uma narrativa surpreendente,
na qual o personagem principal, Gregor Samsa, ao acordar percebe que está
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transformado em um inseto horrível. Esse acontecimento ocorre no início da obra, e
com o decorrer dela, vão acontecendo às mudanças de comportamento de Gregor e
de sua família.
Gregor Samsa era um caixeiro viajante que sustentava sua família, o pai tinha
uma dívida antiga e Gregor trabalhava para pagá-la, recebendo sempre ameaças do
seu chefe, dizendo que se ele não tivesse o desempenho esperado estaria demitido. O
senhor Samsa, era aposentado, gordo, praticamente inválido, estava sempre com o
uniforme do seu antigo serviço. A mãe de Gregor também gorda, sofre de asma, faz os
serviços domésticos auxiliada por Ana, uma ajudante, ela só tem preocupação com o
senhor Samsa. Grete, a irmã de Gregor sonha em ser violinista, mas a família possui
inúmeras dificuldades financeiras, impossibilitando Grete de realizar seu sonho.
Portanto, nota-se que Gregor é a solução dos problemas familiares, pois ele é o único
que trabalha, para proporcionar uma melhor alimentação, uma moradia confortável e
uma vida estável para toda família. Sonhava também em mandar a irmã para
universidade para estudar violino, pois talento Grete tinha, faltando apenas o dinheiro.
Essa rotina de trabalho é exaustiva, suga todas as energias dele, impossibilitando-o de
ter uma vida social comum às demais pessoas. Sempre que ele chegava a casa, e
adentrava o seu quarto, lembrava-se do seu dia, o gerente, a família, a dívida, o sonho
da irmã.
A vida da família segue pacata até que um dia a Senhora Samsa, nota que o
filho tinha perdido o trem que o levaria até o trabalho. Sua mãe o chama repetidas
vezes, mas nada ouve, quando enfim consegue responder, a mãe pensa em chamar
um médico, pois pensa que o filho esteja doente. Com a demora de Gregor para
chegar ao serviço, seu chefe resolve ir até sua casa, ameaçando levar a queixa ao
gerente podendo fazer com que ele perca o serviço, começa a censurá-lo aos pais,
ameaçando cobrar a dívida antiga. Como Gregor não abria a porta, a família resolve
chamar o médico e o serralheiro. Quando a porta se abre, todos se assustam com o
que veem; um inseto grande e monstruoso em que o personagem central havia se
transformado.
A partir dessa metamorfose física, pois ele continua pensando como ser
humano, a vida da família sofre um grande abalo. Seu pai teve que voltar a trabalhar, a
casa ficou disponibilizada para receber hóspedes, a irmã de Gregor, teve que procurar
um emprego, a vida de todos virou um caos. A relação intrafamiliar sofre
transformações significativas. Para o pai, Gregor passa a ser um “peso morto”,
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imprestável. Para a mãe, ele passa a ser um objeto de repulsa, um ser asqueroso. Até
mesmo a irmã que sempre foi amorosa com ele, o considerava como o empecilho de
todos, ele passou a ser o parasita. Essa metamorfose física origina uma metamorfose
nos valores da família, inclusive para o próprio Gregor, este que sua posição de inseto,
só lamenta pelo fato de não poder mais trabalhar e sustentar sua família. Eles
mantinham Gregor escondido dos olhos de todos que ali apareciam, evitando que
vissem o animal asqueroso que este se transformara.
A família passou a ter inquilinos para poder pagar as despesas, porém Gregor
começou a incomodá-los, o que ocasionou a ele ainda mais repúdio perante a família,
todos desejavam que ele fosse para fora da casa, assim poderiam continuar a vida
normalmente. Em um dia que o pai de Gregor se sentiu incomodado com a sua
presença na sala, começou a atirar as frutas que estavam na fruteira, e a uma maça
acertou as suas costas e ali ela ficou apodrecendo, pois ninguém da família se
importou com o que acontecera. Gregor morre de uma maneira reflexiva, pensando em
um mundo que o consumiu e que desejou seu fim. Depois de sua morte solitária, a
família Samsa, se desfaz de todos os vestígios de Gregor e saem para um passeio, no
qual desejam mudar de casa, e não sentem falta de Gregor, apenas fazem planos para
o futuro.
Ana Isabel Queiroz (2009) dedicou-se aos estudos da obra de Kafka, de uma
maneira diferente, ela apresenta explicações da metamorfose de Gregor Samsa
relacionadas com a Biologia.
De acordo com a estudiosa, a palavra metamorfose deriva do grego e resulta
da combinação de duas expressões “meta”, que significa mudança, e “morfo”, que
significa forma. Esse termo foi utilizado como título de uma obra latina, a
“Metamorfoses” de Ovídio (Nais 1981 apud Queiroz 2009), referia-se as alterações de
forma envolvendo seres vivos. Já na crítica literária, observa-se o termo metamorfose
para referirem-se as várias personalidades literárias de alguns escritores.
A metamorfose, como fenômeno biológico, foi sendo organizada em função de
algumas ideias existentes e descobertas científicas: Aristóteles e Plínio falaram sobre a
metamorfose de sapos e borboletas; no início do século XVIII, Johannes Goedart,
titulou que o fenômeno favorecia a concepção de que a Natureza era regulada pelo
acaso e não por qualquer tipo de leis; na atualidade, este termo está relacionado com a
Zoologia, designando o processo que envolve as transformações notáveis e bruscas
na forma e na estrutura dos indivíduos.
21
Queiroz (2009) salienta que esse fenômeno é característico de alguns grupos
específicos de animais, equinodermos, moluscos, artrópodes e anfíbios, nestes grupos
podem ser identificadas transformações ao longo do ciclo de vida. Deixando evidente
que nos seres humanos não há nenhuma ocorrência de metamorfose, apesar das
diferenças morfológicas, fisiológicas e comportamentais das fases de crescimento.
Neste contexto, a estudiosa atenta-se na história de Kafka, pois a personagem
principal perde a sua forma humana e adquire forma animal, partindo desse
pressuposto Queiroz (2009) observa algumas particularidades dessa transformação.
A primeira, particularidade é a conservação da identidade biológica, a
transformação ocorre sem perda ou alteração da individualidade. Ao longo da
história, apesar das diferenças morfológicas e comportamentais, Gregor mantêm a
sua identidade intacta, ou seja, a identidade não se altera.
Segundo Peralta (1988), “a metamorfose acontece como resultado de um
desejo próprio, ou pelo desejo de outro”, para ela, Gregor desejava essa
transformação, devido aos inúmeros problemas observados na narrativa.
Queiroz (2009) comenta que se a mudança estivesse relacionada com o
desejo próprio de Gregor deveria ser um benefício para a personagem, embora essa
transformação tenha libertado Gregor de um trabalho exaustivo e detestado por ele,
de uma família totalmente dependente, a narrativa traça o percurso da infelicidade e
da desadaptação que o leva a morte. Ao contrário do processo biológico, que
melhora as capacidades de sobrevivência do animal metamorfoseado.
Gregor assusta-se com a sua morfologia, e é forçado a descobrir um novo
mundo de locomoção, uma nova forma para se alimentar e uma nova maneira para
utilizar o habitat, essas dificuldades ocorrem principalmente por Gregor não ter
consciência de sua transformação, já que a obra refere-se apenas a uma noite de
sono agitado, quando atinge a sua condição de animal, Gregor enfrenta além das
mudanças
morfológicas,
alterações
progressivas
decorrer
narrativa,
vai-se
em
algumas
capacidades
funcionais.
No
da
extinguindo
sua
capacidade
de
comunicação, sua voz modifica-se rapidamente, até que não consegue ser
compreendido. A visão vai diminuindo, até ele não enxergar com nitidez o outro lado
da rua, através da janela.
De acordo com a sucessão natural, as fases imaturas ocorrem antes que os
seres adquiram o estado adulto. Estabelecendo um paralelo com a obra, Gregor
22
seria apenas uma larva, metáfora para um ser frágil e subordinado, diante de sua
família não passava de provedor financeiro. Após a transformação ele aumenta sua
compreensão do mundo e das relações sociais.
Outro ponto relevante para Queiroz (2009) é em qual animal Kafka
transformou
Gregor,
várias
traduções
geram
controvérsias,
a
expressão
“Ungheueren Ungeziefer”, que indica transformação de Gregor. Algumas versões
portuguesas traduziram essa versão como “gigantesco inseto”, ou “espécie
monstruosa de inseto”. Já algumas traduções em língua inglesa não consideravam a
palavra “Ungeziefer” como sinônimo de inseto, mas sim de verme. Na realidade
nota-se que Kafka não desejava identificar Gregor como algo muito específico. Na
história, é vaga a identificação do animal que a personagem se transformou.
Evidentemente o desejo do autor é surpreender seus leitores. Só uma leitura
detalhada de toda narrativa permite o reconhecimento de pistas deixadas por Kafka
para que fosse possível essa identificação.
Queiroz (2009) apresenta essas características detalhadamente. Permitindo
que os leitores cheguem à conclusão de Gregor ter-se transformado em um
artrópode: “Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e,
ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em
rijos segmentos arqueados” (p. 7)
Somente os artrópodes são revestidos por exoesqueleto, para que protegem
a musculatura e os órgãos internos.
O número de patas poderia ser um fator decisivo para conhecer a identidade
biológica de Gregor após a transformação, porém Kafka não cita a quantidade de
patas, apenas o descreve com inúmeras pernas, podendo assim chegar à conclusão
que Gregor transformou em inseto, crustáceo, aranha e miriápodes.
Mais adiante, a autor expõe aos leitores mais duas características
morfológicas. Gregor possuía mandíbulas e antenas, todavia falta alguma
característica que o defina como inseto, pois as mandíbulas são comuns aos
crustáceos, insetos e miriápodes; enquanto as antenas ocorrem nos crustáceos e
insetos.
Há outras características que causa espanto, medo nos leitores. Destacamse as secreções e os fluídos corporais. O escritor descreve que ao rodar a chave,
sai da boca de Gregor um fluído castanho. Essa característica existe na maioria dos
animais, pois as glândulas salivares têm função de lubrificar o alimento. A descrição
23
de Kafka gera nojo em alguns leitores e compaixão em outros. Queiroz (2009)
observa que uma produção excessiva de saliva só poderia resultar de um ferimento,
na sequência desse acontecimento, Gregor sofre um derramamento de sangue,
característica dos humanos e animais vertebrados. Por conta disso, não tem como
um artrópode se esvair em sangue.
Quanto à locomoção de Gregor, nota-se que no início da novela, o autor
descreve com cautela a forma como ele saiu de sua cama: “Por mais violentamente
que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar,
ficando de costas.” (p.8); “as inúmeras perninhas, que não cessavam de agitar-se
em todas as direções e que de modo nenhum conseguia controlar. Quando tentou
dobrar uma dela, foi a primeira a esticar-se, e, ao conseguir finalmente que fizesse o
que queria, todas as outras abanavam selvaticamente, numa incomoda e intensa
agitação.” (p.13).
Gregor teve que aumentar sua capacidade de locomoção, ele adquire
coordenação para se locomover em diferentes superfícies, chão, paredes, teto,
janela. Com o passar do tempo ele ganha velocidade e domínio nas suas trajetórias.
Constata-se que se Gregor fosse um crustáceo, ele teria desenvolvido
características por ambientes aquáticos. Ele não demonstra em nenhum momento
da narrativa, qualquer interesse por locais úmidos, pelo contrário, quando a mãe
limpa o quarto, ele fica extremamente incomodado. Quase no final da obra, o autor
revela a identidade biológica de Gregor Samsa. A empregada o chama de Mistkafer.
Em várias traduções esse termo aparece como barata velha, mas na realidade
significa escaravelho-do-esterco, um tipo de besouro. Conquanto do ponto de vista
biológico, Gregor Samsa não é um escaravelho típico, pois não se alimenta de
fezes. Entretanto no seu quarto existe todo tipo de sujeira e ele se alimenta de lixo
humano.
A narrativa de Kafka foge as regras da biologia, no que diz respeito a
capacidade cognitiva, só aos homens estaria reservada a capacidade de pensar,
entretanto a transformação de Gregor Samsa não afeta a sua capacidade cognitiva,
nem emocional, pois ele continua interpretando os comportamentos e sentimentos
dos seus familiares e também os seus.
Kafka termina sua obra com a morte da personagem principal, Gregor
perece a noite toda, e morre pouco depois das três horas da manhã, resultado da
desnutrição e da infecção que fora provocada por um pedaço de maça cravado em
24
seu dorso. De outro lado, Kafka representa os sentimentos da família quando
percebem que Gregor faleceu, nota-se que não eram convencionais, pois não
ocorreu um funeral nem luto. A notícia da morte de Gregor permitiu que a família se
libertasse, pois eles despediram a empregada, saíram para passear, pensavam no
futuro, e pretendiam casar a filha com um bom marido.
A pesquisadora encerra seus estudos acerca da obra de Kafka, deixando
evidente que a metamorfose de Gregor Samsa não corresponde a nenhum
fenômeno biológico, essa transformação está no domínio do fantástico. Conclui,
portanto que Gregor seria um animal único para a ciência.
A obra A metamorfose de Kafka, é estudada em diversos âmbitos, a
professora Jurema de Oliveira (2011), da Universidade Federal do Espírito Santo,
dedicou seus estudos na transformação extraordinária que ocorre com Gregor, e na
degradação física e principalmente emocional do personagem. Segundo ela, o autor
no início da trama coloca o leitor em contato com uma imagem inacreditável, sem
apresentar nenhuma explicação. Essa imagem é Gregor Samsa transformado em
um animal estranho, Oliveira (2011) deixa claro que a transformação de humano
para animal é narrada de uma forma simples, como se fosse um processo natural.
Na realidade, como já foi observado no trabalho de Queiroz, esse processo é
extremamente anormal, pois um humano não possui a capacidade de se
metamorfosear.
A família o tratava com estranhamento e com recusa que podem ser
percebidos nas ações violentas de seu pai e da empregada, que atiram em seu
quarto, tudo o que não é usado nos demais cômodos da casa, o que representa um
descaso a Gregor. Além disso, o pai atirava-lhe coisas quando ele aparecia em
cômodos sociais da casa, em certa ocasião, o pai atira-lhe uma maçã no seu dorso,
local que ela permanece até a sua morte.
É importante ressaltar que a perda do controle sobre as questões do
cotidiano da família acontece somente no plano físico, pois Gregor tem consciência
de tudo o que acontece. Blanchot (1987 apud Oliveira 2011) define:
(...) é no espaço da morte que os heróis de Kafka cumprem suas atitudes, é
ao tempo indefinido do ‘morrer’ que eles pertencem. Eles fazem a
experiência dessa estranheza e Kafka também está neles, submetendo-se a
tal provação. (BLANCHOT,1987,p.88)
25
O “espaço da morte” de que fala Blanchot (1987 apud Oliveira 2011) afasta
Gregor do mundo externo: das dívidas dos pais, do trabalho detestável. Porém essa
metamorfose não o impede de pensar e de se angustiar com a situação de sua
família, ele passa a se questionar sobre os acontecimentos vivenciados e sobre o
que poderia ter feito pela sua família, pensava principalmente no futuro e nos sonhos
de Grete, sua irmã.
Com o decorrer da narrativa Gregor se deforma, ficando ausente de sua
condição humana, aos poucos a personagem principal perde seus sentidos, em um
primeiro momento ele perde a capacidade de se comunicar e mais adiante na obra,
sua capacidade de enxergar nitidamente vai sendo extinta. O mundo vazio de
Gregor faz com que ele se submeta a morte com o intuito de se libertar da sua
condição de animal e libertar a sua família de ter que conviver com um ser estranho.
Oliveira (2011) salienta que a obra de Kafka representa de forma marcante a
modernidade. Gregor Samsa deixou de viver sua vida para cumprir a função de
provedor da família. Por esse motivo, ele percebe que permanece distante do
convívio social, por ser submisso aos pais, ao chefe, por ter escolhido uma profissão
que não lhe agrada. Kafka utiliza alguns mecanismos que possibilitam aproximar o
leitor de sua obra. Kafka utiliza uma linguagem impessoal, a narração de desenvolve
de forma lenta com um nível elevado de descrição, para que o leitor “mergulhe” na
história. Esses mecanismos causam um estranhamento nos leitores, devido aos
comportamentos serem tão humanizados que por vezes parecem desumanos. Para
encerra sua idéia, Oliveira cita “O herói Kafkiano não é um ser especial, mas um
homem comum, vítima passiva das instituições ético-sociais, incapaz de atuar como
agente transformador de uma situação injusta e degradável”.
De acordo com o crítico Francisco Elias Simão Merçon (2006), a novela A
Metamorfose, de Franz Kafka, é diferente das demais metamorfoses que ocorrem,
para ele a metamorfose de Gregor Samsa aconteceu subitamente, na qual o herói
não se encontrava afastado de seu lar, ou seja, desprotegido, Gregor estava no seu
próprio quarto, não havia a presença de seres fabulosos. A metamorfose de Gregor
acontece em um mundo moderno e burocrático, em que o herói é um trabalhador
assalariado cujo objetivo é acordar cedo todos os dias. Merçon (2006) ainda
compara a metamorfose de Gregor com a passagem da Bíblia em que Adão foi
criado por Deus, exemplifica como Deus criou o homem, enquanto na obra de Kafka,
26
Gregor é transformado rapidamente em um inseto. Talvez essa seja a metamorfose
mais acelerada da história da literatura.
3.4 A HORA DA ESTRELA DE LISPECTOR
No último romance de Clarice Lispector, a escritora cria um narrador fictício,
Rodrigo S.M., que relata a vida de uma nordestina, ele identifica-se com ela, mesmo
quando a agride. Sendo assim nota-se que o texto é metalinguístico, ou seja, um
autor-narrador que fala da sua própria obra e busca nela e com ela conhecer-se e
reconhecer-se.
O narrador conta a história de uma jovem alagoana, de 19 anos, virgem,
ignorante, órfã e que viveu com sua tia, que adorava dar-lhe uns cascudos. Depois
de uma infância miserável muda-se com a tia para o Rio de Janeiro, Macabéa faz
curso de datilografia e consegue um emprego. Quando sua tia falece, ela começa a
dividir um quarto com quatro meninas que trabalhavam em uma loja popular.
Macabéa não cheirava bem, pois raramente tomava banho, suas noites eram
perturbadas pela sua tosse persistente e a azia do café frio que tomava antes de
deitar-se. Ela tinha alguns hábitos que a tiravam da rotina, mas que ela não sabia se
estes a deixavam feliz, pois não sabe o que significa essa tal felicidade. Sempre
ouvia a rádio Relógio, no aparelho emprestado pelas colegas de quarto. Macabéa
era magra e pálida, não se alimentava direito, almoçava cachorro-quente e CocaCola todos os dias; não tinha o luxo de uma refeição quente. Seus luxos eram
apenas usar um esmalte vermelho que sempre roía, comprar um rosa, e ir ao
cinema, o que a fazia sonhar em ser atriz de cinema, como Marilyn Monroe.
Raimundo, chefe de Macabéa, decide demiti-la devido ao péssimo trabalho
que fazia, pois seus textos sempre tinham alguma palavra errada. A reação dela foi
pedir desculpas pelos erros cometidos, portanto o chefe resolve dar mais uma
chance a ela.
Conhece Olímpico de Jesus, seu único namorado, em um dia que mentiu
para faltar no serviço, desejava sentir-se livre. Não foi um namoro convencional,
Olímpico também tivera vindo do Nordeste, trabalhava em uma metalúrgica, que
para Macabéa já soava uma melhor condição relacionada a sua condição financeira.
Ambicioso e mau-caráter, morava de favor no seu local de trabalho, roubava seus
27
colegas e desejava ser deputado. Ele não tinha paciência com Macabéa, porque ela
fazia perguntas bobas, o que a levava a pedir desculpas constantemente, pois tinha
medo de perdê-lo, cabe salientar que por esse motivo ela recebia maus tratos
sempre calada.
Quando Olímpico conhece Glória, amiga de trabalho de Macabéa, não
hesita e troca Macabéa por Glória. O rapaz considera a troca um progresso, pois
Glória era loira, cheia de corpo, morava em uma casa confortável, tinha três
refeições por dia, e o mais importante o pai dela era açougueiro, profissão muito
almejada por Olímpico.
Macabéa é orientada por Glória a ir ao médico, que a trata mal, pois ele não
gostava de pobres, nesse momento, ela descobre estar com tuberculose, mas não
entende a gravidade da doença, não compra os medicamentos orientados pelo
médico. E mais uma vez, aconselhada por Glória, que sentia pena de Macabéa por
ter roubado seu namorado, ela vai a uma cartomante para conhecer a sua sorte.
Após Madame Carlota contar a sua vida antiga para Macabéa, lê as cartas para ela
que fica emocionada e esperançosa por um futuro promissor. Afinal, iria se casar
com um estrangeiro rico que daria todo amor que ela necessitava.
Atordoada e feliz, ao mesmo tempo, com as previsões da cartomante
atravessa a rua sem olhar para nenhum lado, um carro Mercedes-Benz a atropela.
Caída na calçada, todos a vislumbram, mas nenhum dos espectadores oferece
ajuda. Por fim, a protagonista da história tosse sangue e morre, essa seria a sua
hora da estrela.
Neste momento, vale realizar uma análise da personagem Macabéa,
deixando evidente a maneira que ela foi descrita na obra, a sua maneira de pensar,
a corporalidade e principalmente a caracterização da personagem. Macabéa será
analisada por Ligia Regina Calado Medeiros (2008) quanto a sua corporalidade, e a
estudiosa Gleyda Lucia Cordeiro Costa Aragão (2009) dedica-se as características
da personagem sob a perspectiva do narrador e da própria protagonista.
Em seus estudos, Medeiros (2008), inicia sua análise por meio de definição
de corpo de Pierre Bourdieu (2005 apud Medeiros 2008), pois segundo o autor o
corpo possui movimentos e deslocamentos que estão fixados em uma tipologia
sexual, em outras palavras, o corpo é coberto de significados e a sua construção
está fixada em bases sociais. Portanto, a análise do corpo de Macabéa não está
relacionada com as suas condições sociais: pobre; nordestina; migrante; disciplinada
28
de uma forma impositiva, ela carrega em sua manifestação corporal sinais dessa
repressão.
A personagem principal do livro A hora da Estrela, recebe de sua tia uma
educação punitiva, pois todas as tarefas realizadas por Macabéa eram monitoradas
por ela, se Macabéa quebra-se as regras logo recebia uns cascudos da sua tia.
Sendo assim, Xavier (2007 apud Medeiros 2008) defende que a própria reprodução
impensada do que aprendia, tem-se em Macabéa uma personagem suscita ao
adestramento, ela faz tudo o que lhe é imposto.
A protagonista diante de toda obra é uma pessoa invisível, metaforicamente,
pela insuficiência de seus movimentos corporais. Pode-se notar o fato de Macabéa
ter “ovários murchos” provando assim sua incapacidade de ter descendentes.
Quando comparada com Glória por Olímpico, o único namorado da protagonista,
este salientou que a forma física de Macabéa não representava fertilidade, mas
Glória sim, já era mais propensa à fertilidade, devido seus quadris largos e fartos.
Quando o narrador apresenta Macabéa aos seus leitores, ele anuncia:
“numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no
rosto de uma moça nordestina.” (LISPECTOR, 1988, p.12) O rosto de Macabéa
antecipa como ela será representada na obra, mais adiante Rodrigo S.M. ainda
argumenta que a moça tinha ombros curvos, e a seu rosto estava como se
desejasse um tapa, também era magrela e possuía pulmões muito frágeis e logo no
início da narrativa, era suspeita de contrair tuberculose.
Além de o narrador atribuir todas essas características físicas a protagonista,
ele deixa evidente na obra o seu ponto de vista sensorial, nem a cor, nem o cheiro,
nem o gosto, resumindo, tudo o que estivesse relacionado a ela não era agradável:
Disfarçava os panos em grossa camada de pó branco e se ficava meio
caiada era melhor que o pardacento. Ela era toda um pouco encardida, pois
raramente se lavava. [...] Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe
que seu cheiro era morrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo,
pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do
rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não a
importava. Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. (LISPECTOR,
1998. P.27)
Rodrigo induz seus leitores a sentirem, ao mesmo tempo, repúdio e pena de
Macabéa, quando afirma: “ela havia brotado da terra do sertão em cogumelo logo
mofado.” (LISPECTOR, 1998, p.29), entre vários outros momentos cruciais da
narrativa, ainda que ele tenha permitido que a moça se inventasse dentro dele
29
forçando a sua existência, provando mais uma vez a insignificância de Macabéa no
decorrer da história, pois ela não foi criada com criatividade, e como se ela tivesse
simplesmente infiltrado nos pensamentos do narrador.
A imagem do corpo de Macabéa, em toda obra, está em desvantagem
diante dos outros personagens, ela era considerada praticamente estéril pela sua
forma física, enquanto Glória era fértil, possuía quadris largos e propícios para
reprodução. O seu dente cariado contrasta com o dente de ouro de Olímpico, que
não dispensa um dente perfeito, para conquistar sua marca na sociedade, e quando
o narrador deseja que a história chegue ao fim, este lhe dá um instante de lua,
tentando transformar em glorioso o final trágico da protagonista sofredora.
A morte de Macabéa representa para ela sua salvação, e isto também está
relacionado ao corpo da personagem principal, pois como ela não possuía um corpo
capaz e se sustentar não deveria existir.. A hora da morte é vivenciada por ela,
passo a passo, refletindo sobre tudo o que deixou de ser durante a narrativa. É
como se o narrador desejasse devolver a ela, nos últimos momentos, tudo o que lhe
foi tirado do texto. O período no qual Macabéa mais viveu foi durante seus últimos
suspiros.
Medeiros (2008) finaliza seus estudos fazendo uma reflexão sobre a obra: “a
moça apesar de não ter nem rosto, nem corpo para ser artista de cinema, estreia em
seus últimos momentos, em um grande final.”
A hora da estrela, última novela escrita por Lispector, contém uma história
de abandono e abandonados, pois traz histórias de seres esquecidos pelo mundo e
que almejam de diversas formas encontrarem essa “hora da estrela”, momento em
que tudo pode ocorrer. Glória, colega de trabalho de Macabéa, busca pelo amor de
homens casados. Olímpico almeja uma profissão de sucesso, na qual ele possa ser
reconhecido, principalmente pela sua voz. Enquanto Madame Carlota, a vidente,
deseja purificar-se do seu passado de prostituição, tenta em vão deixar suas clientes
satisfeitas com profecias falsas. E quanto a Clarice, ela continua sua luta para
mostrar o excesso de si em suas obras. A protagonista da história não deseja nada,
ela apenas é o escape de todas as frustações e expectativas.
Analisando
profundamente Macabéa, a estudiosa Gleyda Lucia Cordeiro Costa Aragão (2009),
em seu artigo, busca explicar a caracterização da personagem Macabéa e também
estudar os conceitos de identidade da personagem. A estudiosa ainda compara
Macabéa de Clarice com a Macabéa da produção cinematográfica de Suzana
30
Amaral, entretanto o que será analisado no decorrer deste artigo é apenas a
personagem clariceana, devido aos limites temporais deste trabalho.
Diferentemente das outras personagens de Clarice, que são inseridas em
um cotidiano inútil na qual elas vivem um tédio confortável, Macabéa vive sozinha,
não possui família, passa a narrativa lutando pela sua sobrevivência no Rio de
Janeiro. Aragão (2009) salienta que uns dos aspectos mais importantes da obra de
Clarice é o fluxo de consciência. Macabéa é apresentada aos leitores por duas
vozes, a voz da protagonista e do narrador Rodrigo S. M., para ele a obra é
considerada um desabafo, um relato.
Aragão (2009) observa que logo no início do livro o narrador não demonstra
nenhum interesse em contar a história de Macabéa, ela cita: “Porque a direito ao
grito. Então eu grito.” (p.13) Porém esse grito não é referido a protagonista, mas sim
ao desejo do narrador em escrever o que ele quiser.
Rodrigo S. M. inicia a história da vida de Macabéa e sua aventuras
insignificantes, ele oscila entre narrador onisciente e observador. De acordo com o
narrador-escritor:
A história – determino com falso livre arbítrio – vai ter uns sete personagens
e eu sou apenas um dos mais importantes, é claro. Eu, Rodrigo S.M. Relato
antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de
originalidade. Assim é que experimentei contra os meus hábitos uma
história com começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e chuva
caindo. (LISPECTOR, 1998, P.13)
O narrador durante a história fala muitas vezes de si mesmo, permitindo que
ele se torne um dos personagens da obra. Segundo Guidin (1994 apud Aragão
2009), Rodrigo é narrador de Macabéa, mas é também personagem de uma história
que acontece juntamente com a de Macabéa. Gotlib (1995 apud Aragão 2009)
salienta que a partir desse desdobramento a história deixa de contar somente o
drama de Macabéa criando um enredo cruzado com outro enredo, formando outros
personagens principais. Para Nunes o livro é composto de três tramas: a moça
nordestina; a personagem que surpreendeu o narrador e a própria narrativa.
Antes de iniciar a obra propriamente dita, Rodrigo comenta o trabalho que
teve com as palavras, pois a personagem é repleta de simplicidade, portanto deveria
usar palavras adequadas, ou seja, não necessitava de formalidade para compor a
obra. Segundo o mesmo:
31
Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-que o um material
básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se
agrupam em frases e destas se evolua um sentido secreto que ultrapassa
palavras e frases. É claro que como todo escritor, tenho a tentação de usar
termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos
e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que a
palavra ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra, pois se eu tocar
no pão da moça, esse pão se tornará ouro – e a jovem não poderá mordêlo, morrendo de fome. Tenho que falar simples para captar sua delicada e
vaga existência. (LISPECTOR, 1998,P.14-15)
Desse modo, a autora insere em sua obra um narrador masculino, pois sua
intenção é distanciar ao máximo a personagem principal e o contador da história.
Lispector acrescenta na obra um jogo intrigante entre as vozes masculina e
feminina. Neste momento, podem-se ser percebidas várias articulações de
identidades, Rodrigo, o narrador, em muitas partes da obra, fala por Macabéa,
tornando-a um ser ainda mais insignificante. A personagem Macabéa é construída
por Rodrigo, ela só se apresenta dentro da obra quando conhece Olímpico. Portanto
conclui-se que Macabéa projeta-se em Olímpico, principalmente pelo fato da
protagonista precisar dele para projetar seus pensamentos e ajudá-la nos
conhecimentos do mundo.
Macabéa é a protagonista da história contada por Rodrigo, que deixa claro
sua identidade frágil, sendo um ser impossibilitado de falar de si. Portanto, Macabéa
necessita da definição de outros.
As características traçadas por Rodrigo S. M. são extremamente
melancólicas e insensíveis. Nordestina, feia, miserável, raquítica, solitária são
apenas alguns adjetivos utilizados pelo narrador para descrever Macabéa. Essas
marcas permitem que os leitores no decorrer da obra sintam compaixão da
personagem e de diversas pessoas que passam situações semelhantes a estas da
narrativa, pois a pobreza, a miséria, o desamparo acontece em todo lugar do mundo,
não exclusivamente com os nordestinos e brasileiros.
Ainda que a frase que inicia a obra seja: “Tudo no mundo começou com um
sim.” (LISPECTOR, 1998,p. 11), ao contrário, Macabéa é a mais pura negação. E é
a partir da negação que ela é descrita aos seus leitores: ela não é bonita, não é
inteligente, não é culta, não tem amigos, não tem saúde, não tem família. Ela não
despertava interesse nem nas companheiras de quarto, as meninas a achavam
estranha, além do mau-cheiro que estava impregnado nela. Na história existe
apenas um momento que ela se define:
32
E quando acordava? Quando acordava na sabia mais quem era. Só depois
é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de cocacola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando
com obediência o papel de ser. (LISPECTOR, 1998. p. 36).
Para que se possa entender com exatidão a personagem, Aragão (2009)
afirma que é necessário analisar brevemente pelo menos dois personagens: Glória e
Olímpico.
Glória era sua colega de trabalho e Olímpico namorado de Macabéa, que
futuramente a troca por Glória. Esta era o oposto da moça nordestina, pois falava
bem diante das pessoas, possuía algumas curvas vantajosas, enquanto Macabéa
não passava de uma moça magricela. Ela não era bonita, mas tinha formosura, era
filha de açougueiro, característica marcante para ostentar o interesse de Olímpico
por ela. Glória era cobiçada por qualquer tipo de homem, inclusive os casados.
Quando precisava justificar suas faltas no trabalho tinha uma lábia que nunca
geravam desconfianças. Glória encontrava seu lugar na sociedade enquanto
Macabéa nem era percebida. Ela tinha tudo o que faltava a Macabéa, corpo e
comportamentos sedutores, família estruturada e desenvoltura profissional. Pode-se
perceber em alguns trechos do livro a superioridade de Glória em relação à
Macabéa. Glória é descrita com a exuberância inexistente em Macabéa:
Glória era toda contente consigo mesma: dava-se grande valor. Sabia que
tinha o sestro molengole de mulatas, uma pintinha marcada junto da boca,
só para dar uma gostosura, e um buço forte que ela oxigenava. (...) Glória
tinha um traseiro alegre e fumava cigarro mentolado para manter um hálito
bom nos seus beijos intermináveis com Olímpico. Ela era muito satisfatona:
tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava e havia nela um desafio em que
se resumia: “ninguém manda em mim” (LISPECTOR, 1998, p. 64-65)
Olímpico apesar de possuir muitas semelhanças com Macabéa, mas com
alguns contrapontos. Ele, mesmo sendo ignorante, consegue se inserir no contexto
urbano, mesmo com poucos recursos ele corre atrás de seus sonhos, utilizando-se
muitas vezes da mentira para alcançar algum objetivo.
Assim como a protagonista, Olímpico não possuí nenhum estudo formal, e
também não conhece as palavras difíceis que ela sempre o questiona. Ele inventa
um nome chique para Macabéa, mesmo sem conhecer as suas origens, “Olímpico
de Jesus Moreira Chaves”, tinha um dente de ouro e seu maior sonho era ser
deputado. É somente na presença de Olímpico que Macabéa se apresenta aos
33
leitores, provando que precisa de alguém para existir. Para conquistar Olímpico, a
personagem principal procura estabelecer um diálogo com seu futuro namorado,
porém seus assuntos estão relacionados com as curiosidades da rádio Relógio, e
originava o efeito inverso em Olímpico, pois ele se irritava com seus assuntos e na
maioria das vezes a respondia com estupidez. No final do namoro, podemos
observar uma tentativa fracassada de iniciar um diálogo:
Depois da chuva no Jardim Zoológico, Olímpico não foi mais o mesmo:
desembestara. E sem notar que ele próprio era de poucas palavras como
convém a um homem sério, disse-lhe:
- Mas puxa vida! Você não abre o bico e nem tem assunto!
Então aflita, ela lhe disse:
- Olhe, o imperador Carlos Magno era chamado de Carolus! E você sabia
que a mosca voa tão depressa que se voasse em linha reta ia passar pelo
mundo todo em 28 dias?
- Isso é mentira!
- Não é não, juro pela minha alma pura que aprendi na Rádio Relógio!
- Pois eu não acredito.
- Quero cair morta neste instante se estou mentindo. Quero que meu pai e
minha mãe fiquem no inferno, se estou lhe enganando.
- Vai ver que cai mesmo morta. Escuta aqui: você está fingindo que é idiota
ou é idiota mesmo?
-Não sei bem o que sou, me acho um pouco...de quê?...Quer dizer que não
sei bem quem eu sou. (LISPECTOR, 1998, p.55-56)
Nesse trecho, Macabéa confirma seu fracasso em suas tentativas em
manter um diálogo. Macabéa é uma protagonista que não brilha; uma estrela sem
vida, assim ela é definida por Aragão (2009).
Macabéa vai ao médico, conselho dado por sua colega de trabalho Glória, o
médico não gostava de pacientes pobres, sendo assim não os atendiam como
mereciam, apenas passou o diagnóstico de uma tuberculose a Macabéa, e não se
preocupou em auxiliá-la em nenhum momento, apenas lhe entrega uma receita, a
protagonista acreditando que não era nada grave, nem se interessa em comprar o
remédio. E continua com sua rotina pacata, pois nessa altura da história a
protagonista já tinha perdido seu namorado, Olímpico, para Glória, que possuía um
corpo avantajado e seu pai era açougueiro, profissão muito almejada por Olímpico,
que sempre fora interesseiro.
Glória preocupada com sua colega, pois roubará lhe o namorado,
recomenda que ela vá a uma cartomante, para descobrir qual o seu futuro. A
cartomante é uma ex-cafetina, que não tem medo das pessoas e vive na periferia.
Sua casa colorida reflete a própria opulência da cartomante. Quando recebe sua
cliente cria um clima acolhedor, oferece café para Macabéa, para deixá-la mais à
34
vontade, e ainda utiliza vários elogios para melhorar a autoestima dela. Mesmo que
Macabéa estivesse cercada por uma farsa, ela deslumbrou-se. Segundo Guidin:
Situada a cena onde se move a cartomante, é impossível não notar a ironia
narrativa de Clarice atribuída a Rodrigo, a quem está exposta a
personagem. Macabéa foi chamada por ele de “café frio” e bebera café em
excesso de açúcar para aproveitar a oportunidade; também foi comparada a
uma flor murcha, por oposição às flores de plástico, eternização vulgar de
um dos símbolos de delicadeza e feminilidade. Ao contrário das flores que
Macabéa comprava e que morriam em suas mãos, a simbologia do feminino
está plastificada nessa casa, aberta à mulheres a cata de futuro. (GUIDIN,
1996, p.46)
É madame Carlota, com seu discurso sedutor, que convence Macabéa que
ela pode ter um destino, que ela nem sabia definir muito bem. Como ela sempre
aceita e acredita tudo o que dizem, ela se encanta com as afirmações da
cartomante. E através deste interesse de Macabéa que Madame Carlota inverte os
fracassos da vida da personagem em possíveis felicidades:
- Macabéa, tenho grandes notícias para lhe dar! Preste atenção, minha flor,
porque é de maior importância o que vou lhe dizer. É uma coisa muita séria
e muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo mais: vai mudar a
partir do momento em que você sair da minha casa! Você vai se sentir
outra. Fique sabendo, minha florzinha, que até o seu namorado vai voltar e
propor casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que
pensou melhor e não vai mais lhe despedir! (LISPECTOR, 1998, p. 76)
Macabéa ficou tão entusiasmada com as notícias que logo ao sair da
casa da madame Carlota, foi atropelada por uma Mercedes. Através da análise de
Aragão (2009) percebe-se que a protagonista da história não possui identidade
própria, sem consciência, e por ser limitada discursivamente, ela vive sua vida num
grande vazio existencial.
É relevante ressaltar que Aragão (2009) dedicou-se a nos contar como
surgiu a personagem Macabéa, em uma entrevista realizada por Lispector, ela conta
brevemente, que a ideia surgiu em um passeio na feira de São Cristóvão, no Rio de
Janeiro. Sendo de extrema importância esclarecer que São Cristóvão é um bairro no
subúrbio da cidade, e as pessoas que frequentam são migrantes de baixa renda
vindos do Nordeste. Assim Aragão (2009) encerra seus estudos sobre as
características de Macabéa na novela clariceana.
35
4. DE KAFKA A MACABÉA – A DOR E O HORROR
4.1 COMPARAÇÃO ENTRE A PERSONAGEM KAFKIANA E A LISPECTORIANA
Neste
capítulo,
os dois
personagens citados anteriormente,
serão
comparados de acordo com suas caracterizações e, para uma melhor interpretação,
os estudos foram iniciados pelo livro A condição Humana, de Hannah Arendt (1958).
Trata-se da obra que a autora analisa, a partir de um prisma político, a condição
humana, observando-a sob três aspectos: o labor, o trabalho e a ação.
A condição humana diz respeito às formas de vida que o homem impõe
sobre si para sobreviver. São elas que tentam suprir a existência dele, variando
conforme o local e o momento ao qual esse homem faz parte. Sistematizando os
três aspectos já citados.
Segundo Arendt (1958), o “labor” significava um processo biológico
necessário para sobrevivência do indivíduo. Já o “trabalho” é a atividade que
consiste em transformar coisas naturais em artificiais, a autora enfatizava que o
trabalho não é a essência ao homem, mas sim uma atividade imposta pela própria
espécie. E por último, a ação que se caracteriza na necessidade do ser humano
viver socializado com seres semelhantes a eles. Ela observa ainda quanto à
condição humana:
A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a
vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo
com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição
de existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas
produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que
devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os
seus autores humanos, [...]; por ser uma existência condicionada, a
existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seriam um
amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se esses artigos não
fossem condicionantes da existência humana. A condição humana do
trabalho é a mundanidade. (ARENDT, 1983, p. 17)
Outro fator relevante para essa análise é o capítulo do livro dedicado as
esferas públicas e privadas, que enfatiza os aspectos político da vida humana. Ela
situa a era moderna no período do século XVII até o início do século XX,
distinguindo-se do mundo moderno, aquele que a partir das primeiras explosões
atômicas. Na última parte do livro – A vitória do animal laborans -, a autora explica:
A vitória do animal laborans jamais teria sido completa se o processo de
secularização, a moderna perda da fé como decorrência inevitável da
36
dúvida cartesiana, não houvesse despojado a vida individual de sua
imortalidade, ou pelo menos da certeza da imortalidade. A vida individual
voltou a ser mortal, tão mortal quanto o fora na antiguidade, e o mundo
passou a ser menos estável, menos permanente e , portanto, menos
confiável do que o fora na era cristã. Ao perder a certeza de um mundo
futuro, o homem moderno foi arremessado para dentro de si mesmo, e não
de encontro ao mundo que o rodeava; longe de crer que este mundo fosse
potencialmente imortal, ele não estava sequer seguro de que fosse real.
(ARENDT, 1983, p.333-4)
A vitória do animal laborans traduz a vitória da condição natural de vivente
sobre qualquer outra condição de existência humana. Enquanto na história do
pensamento político pré-moderno jamais tivessem pensado na possibilidade de nos
transformarmos em animais vivos, incapazes de uma vida política que fosse mais
que a gestão do contentamento animal. Na modernidade, para a autora, o modo de
vida de consumidor venceu, e mesmo o pensamento mais negativo sobre as
implicações políticas da tal vitória dificilmente será um exagero.
Sendo assim, partiremos para o objetivo maior desse trabalho, a
comparação dos personagens de acordo com a obra A condição Humana, de Arendt
(1958). No livro A metamorfose, de Franz Kafka, publicado em 1915, o autor não cita
o contexto no qual a história se desenvolve, fornece apenas algumas pistas, como,
por exemplo, o trem, meio de transporte privilegiado, que Gregor utiliza para suas
idas e vindas de seu trabalho como caixeiro-viajante; o trabalho do pai em um
banco. Pistas suficientes para reconhecer o intervalo de tempo marcado por
transformações ocasionadas pela revolução industrial.
Portanto, a vitória do animal laborans, da qual Arendt fala, alcança
concernimento à obra de Kafka. Logo, não é Samsa o indivíduo que devido ao
trabalho cansativo, as dívidas contraídas pelo pai, a aposentadoria do pai, que se
retira do sistema produtivo, a vida pacata da mãe e da irmã, Samsa se sente
obrigado a assumir a responsabilidade financeira da casa, alienando-se no trabalho,
na produção. É pertinente ressaltar que Gregor Samsa em nenhum momento da
narrativa, demonstra ter noção do que lhe acontece, nem mesmo quando o narrador
assume a primeira pessoa. Ele enxerga as diferenças físicas, sente o corpo
estranho, porém não tem consciência da transformação. Para ele, o que lhe sucede
é algo estranho, que o inibe de continuar em sua rotina, forçando-o a permanecer
37
em seu quarto todo tempo. A metamorfose do animal laborans significa a perda da
condição humana, sua própria morte, então realizada no final da narrativa.
Macabéa atinge o mesmo destino de Samsa. Porém, ela nos últimos
momentos de sua vida, logo após sair da casa da cartomante, torna-se capaz de
perceber o vazio que havia marcado sua trajetória. Essa conscientização está
marcada por sua vontade de ter uma vida melhor, cheia de sonhos e esperanças
para o futuro.
Diferentemente da obra kafkiana, A hora da estrela, possui inúmeros
aspectos que permitem o leitor identificar a época que as ações ocorrem. Trata-se
obviamente do século XX, por esse motivo, nenhum estranhamento causa o leitor,
as ações são familiarizadas facilmente.
Silva (2010) busca explicar à voz narrativa e a linguagem seguindo o livro A
condição Humana, Arendt (1958). Ela introduz suas conclusões a cerca da obra A
metamorfose (1915). Na obra de Kafka, um narrador em terceira pessoa conta a
história de Gregor Samsa, transmitindo os acontecimentos, pensamentos e até
sentimentos do personagem. Em alguns momentos da narrativa, o narrador concede
a voz a Samsa, que em primeira pessoa, assume a narração.
Já na obra clariceana, a história de Macabéa é contada por um narrador,
Rodrigo S. M., em terceira pessoa, que no decorrer da narrativa assume a primeira,
entretanto, em nenhum momento, concede a voz a personagem. Na obra de Kafka o
que é anormal é a metamorfose de Samsa, no de Clarice, esta anormalidade está
representada nas indagações do narrador, que se mostra sempre em dúvida a
respeito dos acontecimentos e da própria escrita.
A linguagem é importante nos dois textos, tanto para os protagonistas,
quanto para o narrador de A hora da estrela. Samsa vai perdendo a propriedade da
fala, aos poucos, passando por um estágio de “voz animal” até perder
completamente sua capacidade de comunicação. Sendo assim, ele não transita
mais entre os humanos, vive isolado no seu quarto, transitando apenas por seus
pensamentos, e, portanto, impossibilitado de viver sua condição humana.
Já Macabéa apesar de nunca ter perdido sua capacidade de comunicação,
não manteve no decorrer da narrativa qualquer profundidade linguística, possuía um
vocabulário muito pequeno lhe permitindo pouquíssima comunicação e ainda não
tinha qualquer reflexão sobre o que falava. Assim ela se torna destituída de tudo,
apenas come, dorme e respira.
38
A falta de consciência crítica em relação ao mundo e a si mesma, impedindo
de admirar-se, de tocar-se e até de construir sua própria personalidade, sem
qualquer profundidade. Ela é uma pessoa superficial, sem alegrias, sem tristezas, ou
seja, sem qualquer vestígio de condição humana.
No que diz respeito ao narrador de A hora da estrela, este possuí o domínio
completo da linguagem, falada e escrita, sendo capaz de colocar no papel suas
dúvidas, sua agonias, suas dores e temores, destacando a linguagem como
referência essencial do ato de escrever.
Silva (2010) ainda dedica seus estudos para o exílio dos protagonistas,
Samsa, Macabéa e o narrador de A hora da estrela. Pois, cada um deles da sua
maneira experimentam o exílio, não aquele que se refere a pessoas expulsas de sua
terra natal, mas sim o exílio experienciado dentro deles mesmos.
Em A metamorfose, Samsa vivencia o exílio devido a sua metamorfose em
inseto e a sua consciência que o permite entender com clareza a situação em que
vive e que vivia. Percebe que sua vida era apenas um caminho repleto de erros,
principalmente pelo seu trabalho, que o mantinha muito tempo fora de casa, e o fato
de sempre ir para locais diferentes, impedia-o de manter vínculos sociais
duradouros, ele não tinha relacionamentos amorosos, até mesmo com seus
familiares não mantinha vínculos.
O trabalho exaustivo está caracterizado pela profissão que tinha somente
para manter os gastos da família, assim a narrativa permite ao leitor perceber que na
realidade, esse trabalho é ainda mais cansativo por ele não gostar do que faz,
porém ele deve manter seu trabalho, afinal ele é o provedor da família, e ainda
assume uma dívida adquirida por seu pai. A dor surge pela sua dificuldade de se
locomover, pois apesar de ele possuir corpo de inseto, ele não pensava como
inseto, seu cérebro fazia com que ele tentasse se equilibrar como homem, porém
sobre um monte de patas.
Por fim, sua morte ocorre em consequência de uma dor e do ferimento
causado pela maçã que fora atirada pelo pai, ficando cravada em seu dorso,
abrindo-lhe uma ferida física e outra moral. Além disso, Samsa sofre muito com sua
solidão, pois enquanto seu dinheiro sustentava a casa, todos o tratavam bem, agora
todos sentem vontade de se livrar de uma criatura tão horrível, monstruosa.
Macabéa, por sua vez, caracteriza sua existência como errante devido à
falta de vínculos que possuía com todos, especialmente com a linguagem. O
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trabalho exaustivo e a dor são provações por que passa como datilógrafa, pois ela
não sabe cumprir as suas tarefas, mal sabe escrever, levando o chefe a demiti-la.
Macabéa tem dor no dente no decorrer de toda narrativa, o que faz que o leitor
perceba a miséria em que ela vive. A morte é o único momento que a protagonista
tem vida, ou melhor, tem a sua “hora da estrela”.
O narrador de A hora da estrela, sofre seu exílio desde o início da narrativa,
apresentando dúvidas e questionamentos que o afligem. Sua dor é profunda, seu
trabalho de escritor é exaustivo, seus erros estão inseridos nas suas reflexões, pois
ele busca sentido para tudo que o cerca. Quanto à morte, esta é a sombra que o
acompanha em todos os momentos, levando-o a dizer logo após a morte de
Macabéa: “Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque
acabo de morrer com a moça.” (LISPECTOR,1998, p. 97).
Silva (2010) encerra seus pensamentos a cerca das obras, evidenciando
que as ocorrências que levam os protagonistas ao exílio são: os erros, o trabalho
exaustivo, a dor e a morte. Essa perda está inscrita nos traços anotados por Hannah
Arendt em A condição humana. Os homens não resistem aos seus próprios
condicionamentos. E a vita activa produz atividades que acabam fazendo que
percam o vínculo com sua condição.
Essa compreensão pode ser notada em Samsa, que se transforma em um
inseto, em Macabéa que é destituída de tudo, ou no narrador de A hora da estrela,
cujas dúvidas o empurram para um vazio dentro de si. Os exílios ficam expressos
como uma condenação dos homens por eles mesmos. A era das máquinas, que no
princípio causa muita felicidade, no final traz profunda solidão, proporcionando a
exclusão do mundo por eles criado.
Pode-se concluir que os dois personagens analisados têm suas histórias
permeadas pelo horror e pela dor. Ele antes de ser metamorfoseado em um inseto,
sustentava a casa, e logo após a transformação passa a ser considerado asqueroso,
renegado por sua família, talvez essa foi a forma que Kafka utilizou para evidenciar
quanto o ser humano pode ser descartado quando não for mais útil. Enquanto
Macabéa nunca fora classificada como útil. A história deixa claro, que ela era
desprovida de inteligência, de beleza, de tudo o que lhe pudesse ser atribuído.
Sendo assim, ambos permitem a reflexão sobre o mundo que nos cerca, sobre a
condição desigual entre a sociedade.
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5. CONCLUSÃO
As vanguardas europeias impulsionaram o movimento Modernista, sendo de
extrema importância para a produção das obras analisadas no decorrer deste
trabalho, escritas em contextos diferentes, porém dentro da mesma escola literária,
tendo muitas marcas semelhantes. A literatura de Kafka se compara a de Lispector
pelo simples fato dos personagens serem introspectivos.
Analisar estas duas obras, em um primeiro momento, parece muito
complicado, pois são complexas, entretanto depois de um contato profundo com as
obras, as dúvidas foram sendo sanadas. Principalmente, pelos escritores serem
considerados os maiores da sua época, Kafka na Alemanha, e Lispector no Brasil.
É notável a relação entre os protagonistas das novelas, ambos sofrem com
as mudanças ocasionadas em sua vida, Samsa precisa adaptar-se em um novo
corpo, o corpo de inseto, no qual fora transformado e Macabéa em uma sociedade
na qual ela sempre está alienada. Esses sofrimentos geram muita dor e causam
horror aos leitores, deixando-os sensibilizados diante de tantas discrições pesadas e
tenebrosas.
Gregor Samsa não busca sua identificação, ou seja, ele reconhece todas as
mudanças morfológicas, entretanto seu psicológico continua sendo igual de seres
humanos, não conseguindo aceitar a sua condição existencial, nem encontrar a sua
identidade, mesmo quando assume a primeira pessoa. De acordo com o livro A
condição Humana (ARENDT, 1958), ele espera a morte, pois não encontra qualquer
explicação.
Já Macabéa, diferentemente de Samsa, encontra sua identidade no final do
livro, no momento que sai da casa da cartomante, pois ali ela consegue realizar seus
sonhos mesmo que somente em sua imaginação. No entanto, seu destino é
semelhante ao de Gregor Samsa.
A comunicação dos personagens é de extrema importância para as obras,
porém, na obra kafkiana, Samsa perde sua capacidade de comunicação logo após a
transformação, enquanto Macabéa, possuía capacidade comunicativa e não a
exercitava com frequência , quem fala por ela na maioria da narrativa, é Rodrigo
M.S., o narrador da obra clariceana.
Segundo a estudiosa Hannah Arendt (1958) os protagonistas sofrem exílios,
cada qual a sua forma, Samsa, pelo seu trabalho exaustivo, por pagar a dívida de
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seu pai, simplesmente por ser o responsável por toda família. E Macabéa, pelo fato
de ser destituída de tudo, só possuía características ruins, resumindo ela era
desprovida de tudo, não tinha amizades, era órfã, não tinha beleza, e era muito
magra, que o narrador caracterizava como infértil, pois seus “óvulos eram murchos”.
Essas características permitem que os leitores se comovam e até se
assustem diante de tantas atrocidades. Mas revelam uma reflexão em relação a
vida, principalmente com o contexto histórico relacionado com cada narrativa.
Permitindo uma compreensão completa.
Por fim, é pertinente destacar que ambos buscam uma reflexão em relação
ao mundo, diante da desigualdade social inserida na sociedade em que vivem.
Assim, conclui-se que ambos têm suas histórias marcadas pelo horror e pela dor.
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Download

De Samsa a Macabéa - O Horror e a dor