IMAGENS DA BANALIDADE DO MAL EM A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR IMAGES OF THE BANALITY OF EVIL IN CLARICE LISPECTOR’S NOVEL A HORA DA ESTRELA Margareth Cordeiro Franklin* Resumo Clarice Lispector, em A hora da estrela, realiza uma profunda reflexão sobre a persistência da banalidade do mal na sociedade contemporânea. Herança dos regimes totalitários, o mal banal revela-se no presente, quando a miséria faz da violência um acontecimento cotidiano, transformado em espetáculo pela indústria cultural. A existência de homens supérfluos, vazios de pensamento, sem direitos ou sem lei, capazes de sofrerem ou cometerem banalmente o mal é a assustadora normalidade descrita nas aventuras da personagem Macabéa na cidade grande. Palavras-chave: Banalidade do Mal, Violência, Cidade. Abstract In A hora da estrela Clarice Lispector makes a deep reflection about the persistence of the banality of bad in contemporary society. Inherited from the totalitarian regimes, the banal bad shows itself in the present, when poverty makes violence an ordinary event, which the cultural industry treats as a spectacle. The existence of superfluous men, without thought, without rights, lawless men who are capable of suffering or inflicting badness banally, is the frightening normality presented in the adventures of the character Macabéa in the big city. Key words: Banality of Bad,Violence, City. 1 Introdução Clarice Lispector costumava escrever seus textos de forma fragmentária, sem ordem certa, em qualquer lugar ou tipo de papel que encontrasse: envelopes, guardanapos, pedaços dispersos, que depois eram reunidos e ordenados. Alguns livros levavam anos para serem concluídos e, às vezes, ela trabalhava em mais de um projeto ao mesmo tempo. Entretanto, seu livro A hora da estrela1 foi escrito febrilmente do começo ao fim, como se fosse uma exceção no seu método (Lispector, 1977).2 Essa curiosidade parece dizer da urgência no registro de uma história que acontecia “em estado de emergência e de calamidade pública” (HE, p. 8). Macabéa, a personagem, era “capim” no asfalto e, andando pelas ruas do Rio de Janeiro, revela a metrópole periférica por meio de imagens. Podemos, então, perceber a modernidade brasileira exposta em suas ambigüidades e contradições, assentada sobre o descompasso sempre presente de idéias “fora do lugar”.3 Do corpo escrito da personagem à cidade, vemos a presença de uma sociedade que se fez moderna e cosmopolita, mas que continua ancorada na permanência de velhos padrões de miséria e desigualdade, ganhando no presente dimensões de brutalidade e violência nunca vistas. Essa conexão entre o modelo excludente e autoritário de modernização aqui implantado e o crescimento assustador de uma marginalidade avançada ameaça as promessas de progresso e a civilização que nunca foram cumpridas.4 Sendo resultado da repercussão das transformações desiguais e desarticuladas da economia pós-fordista, em particular dos efeitos perversos do desemprego estrutural e da informalização da economia, a marginalização avançada empurra para os territórios confinados e degradados das cidades o extrato supérfluo e miserável da sociedade de consumo, sujeito às novas formas de violência banalizada que surgem da impotência do Estado, incapaz de garantir o mínimo para a sobrevivência e a cidadania. Enquanto isso, cresce o poder dos mandatários da contravenção: traficantes de drogas e armas, seqüestradores, assaltantes que, organizados em quadrilhas, institucionalizam uma espécie de poder paralelo nos enclaves de exclusão das grandes metrópoles. À literatura cumpre o papel de buscar, além da crítica ao modelo excludente e perverso que se insinua nesse traçado, a possibilidade de um outro olhar capaz de se constituir como um registro humano, consciente de seus limites físicos e culturais, frente à onipotência da técnica personificada na metrópole. É do desencontro entre o mundo da técnica e da destruição das formas tradicionais de cultura e a persistência de uma ordem social excludente que se ergue a crítica: “A modernidade não é só a repetição do idêntico, ela é a consciência dos artistas que a expressam criticamente” (Muricy, 1998, p. 204). No texto de A hora da estrela essas referências são apresentadas pelo narrador, Rodrigo S.M, cuja identidade a autora mistura intencional à sua, emprestando fragmentos de sua própria biografia: “Sem falar que em menino me criei no Nordeste” (HE, p. 16). Para seu narrador, a história de Macabéa devia ter começo, meio e fim. Porém, outra história paralela acontece: a de como narrar a história de Macabéa, processo de criação sofrido para Rodrigo S.M, que nada tem de linear e se desenvolve à custa de indagações a propósito do próprio ato narrativo. Tal procedimento pode ser percebido nesse fragmento: Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”, como se diz nos requerimentos oficiais, “por força de lei” (HE, p. 23). Considerando a “força maior” da palavra, o narrador Rodrigo S.M estabelece uma tensão entre a história da nordestina pobre e migrante e a história da sua época, oculta nas entrelinhas do texto. Esse é o registro que faz quando escolhe o tema de uma vida sem brilho, estrela apagada, insignificante e anônima, mais que por existir se tornou um fato como pedra dura, desafiando com seu silêncio a abundância dos símbolos da cidade moderna na periferia do capitalismo: excluídos, violência, publicidade, moda, rádio, fotografia, cinema, jornal, letreiros – essa verdadeira constelação de imagens que se tornam objetos de uma representação crítica. Rodrigo é o intelectual que empresta a pele para Clarice Lispector assinar seu nome, como em um dos títulos possíveis, e participar do seu presente com um registro que guardará para sempre o frescor das verdadeiras narrativas. 2 Macabéa e a Cidade: imagens da modernidade É num instante único e irrepetível, por isso decisivo, que Rodrigo S.M, “na verdade Clarice Lispector” (HE, p. 7), captura com um olhar uma moça nordestina na cidade do Rio de Janeiro. Nesse encontro epifânico, marcado pela fugacidade, Macabéa é recortada em meio à multidão para revelar a cidade onde a violência banal se instala sem singularidade no cotidiano e a desigualdade se mostra em imagens postas ao voyerismo popular, tornando-se uma linguagem, uma forma de cultura política a reforçar a impossibilidade de negociações ou consensos mínimos. Como numa cartografia desenhada com o caminhar da moça nordestina, tempo e espaço nos conduzem através da cidade que se depara com o crescimento assustador da violência. Nesse caminhar com dor e música, a construção da moça personagem se faz “passo a passo de acordo com um prazo determinado por horas" (HE, p. 21). Para isso, o narrador adota o ponto de vista do pedestre, seguindo o cotidiano da moça e devagar nos apresentando a cidade, em oposição aos carros que passam velozes e que terão um papel significativo no desfecho da história. É possível inferirmos a conexão com o presente das grandes cidades, onde a multidão de pedestres se esquiva nas ruas em meio ao tráfego, num estranho balé evocado pela música invisível que atravessa todo o texto de A hora da estrela. Mal ouso clamar palavras a essa rede vibrante e rica, mórbida e obscura tendo como contratom o baixo grosso da dor. Alegro com brio. (...) Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta (HE, p. 21). Ao avistar na multidão da cidade grande sua personagem, Rodrigo S.M refaz a cena primordial da modernidade, elevando o encontro casual com Macabéa ao arquetípico encontro na rua, quando a narrativa literária mistura-se à realidade. Expressando impasses e possibilidades da vida moderna, evocando o senso de urgência política que emana da rua como espaço público, a literatura captura o tempo presente e guarda na narrativa o instante que produz iluminação. No encontro na rua, fugacidade, transitoriedade, fragmentação e velocidade celebram a modernidade enquanto denunciam criticamente a perda de sentido da vida daquela multidão de homens e mulheres imersos no caos do anonimato, na vida áspera da selva urbana. Uma das principais características da personagem Macabéa é ser extremamente muda. Seu silêncio permitenos várias interpretações, mas principalmente evoca os que como ela estão excluídos do discurso oficial, impossível de ser codificado por quem engrossa o mundo de “humilhados e ofendidos” (HE, p. 50). O silêncio a torna personagem coletivo como as multidões que na modernidade do capital e da técnica estão sujeitas a vidas anônimas, desenraizadas, sem memória e sem registro na história oficial. Nas últimas décadas do século XX, surgem novas formas de desigualdade e de marginalidade capazes de se constituírem numa espécie de modernização da miséria que pode ser pensada como um caos nas relações de sobrevivência. Isso assume uma radicalidade tal que remete pessoas, que do ponto de vista formal são cidadãs, ou seja, reconhecidas como portadoras de direitos e cidadania, à exclusão da sociedade civil de fato, vivendo em permanente insegurança em relação ao presente e ao futuro. Milhões de pessoas foram expulsas do mundo do trabalho formal e ingressaram no universo das pessoas vivendo em condição de pobreza absoluta, graças ao caráter estrutural dessa condição. Tal situação ganha características mais agudas nos países periféricos, onde se estima que essa classe dos excluídos chegue à metade ou mais da população. A precariedade do mercado de trabalho aliada à crescente fermentação de uma falsa consciência sobre o papel do Estado, no que se refere ao que é público, cada vez mais desvalorizado ou submetido aos interesses privados, acabam por remeter maiorias à condição de párias, sem lugar na sociedade: sem direitos, sem emprego, sem terra, sem identidade, sem cidadania. É dessa massa de indivíduos mergulhados no estado de natureza, porque apartados das regras de sociabilidade fundadas no direito, apesar da abundância das leis e da incapacidade da justiça em garantir a igualdade, que emerge o silêncio alegórico de Macabéa. Seu silêncio pode ser pensado como chave de leitura para a compreensão do crescimento atual da miséria como mais uma etapa da exclusão comum à história brasileira, mas que, pela sua dimensão, aliada à generalização da violência, ameaça a existência de uma sociedade capaz de reconhecer o outro como alteridade, como diferente. Tornando-se submisso às máquinas que construiu, o homem transformou-se, ele mesmo, num autômato perseguindo seus desejos de consumo, cada vez mais impossíveis de serem satisfeitos. O progresso da ciência e da tecnologia aponta para um lado oposto ao humano, só restando exibir no corpo das cidades as marcas dessa exclusão, como a ferrugem no corpo de Macabéa. As constantes expressões que ao longo do texto registram o estado de coisa ao qual pertence Macabéa são confirmadas quando ela tenta se reconhecer no espelho e custa a perceber a sua identidade: “tão jovem e já com ferrugem” (HE, p. 32). A ferrugem torna o corpo da moça nordestina um artefato metálico, parte do maquinário que o circunda na cidade. Macabéa estava condenada ao silêncio e essa marca, como uma estrela aziaga se imprimirá no seu corpo enferrujado, no qual o vazio da palavra não pode ser suprido sem o necessário acesso aos direitos, tornando-a personagem coletivo, alegoria da multidão, sobre quem a escrita oficial sempre construiu um discurso incapaz de resgatá-los de onde estão, nas margens cada vez mais difusas do mercado de trabalho, no submundo da marginalidade, nos confins do mundo rural, formando o extrato iletrado, mudo e supérfluo na sociedade contemporânea. Sem vínculos com uma comunidade, incluída na massa urbana formada por indivíduos desenraizados, atomizados e solitários, Macabéa é parte dos que “não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam” (HE, p. 18). A grande metrópole é o lugar da técnica por excelência, a demonstrar o triunfo da razão sobre a natureza dominada e sobre os humanos que se calaram por absoluta impotência. Incapazes de transformar em linguagem o esquecimento que melhor traduz a superficialidade de suas vidas, são seres sem memória e sem história, cansados, silenciosos e com sonhos de consumo para compensar o que não foi possível realizar durante o dia no qual vivenciaram seu corpo a corpo contra a cidade. Também estão mudos os que vivem isolados, atestando a impotência do humano contra a imponência da técnica personificada pela grande metrópole. Macabéa, despreparada para a cidade, é eliminada na luta pela sobrevivência nas ruas da cidade, impotente ante a técnica e a velocidade. As ruas não eram dela, e, sim, dos carros, como o mercedes de luxo que a atropelou e a deixou estendida na calçada. O narrador monta com luxo e ostentação o espetáculo do corpo na calçada. Com sinos, velas acesas, crepúsculo e música de violino, o corpo de Macabéa desafia o anonimato e cumpre seu destino/ estela / estrela. Na morte, Macabéa teria seu desejo realizado: Na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes (HE, p. 36). Ao exibir no corpo de Macabéa a encenação de um espetáculo de luto como reação à perda do humano na sociedade técnica, A hora da estrela torna possível uma operação crítica capaz de retirar da morte e dos escombros de uma vida arruinada uma narrativa como uma estratégia contra o esquecimento. 3 A Banalidade do Mal e a Herança Totalitária A existência de homens supérfluos capazes de sofrerem ou cometerem banalmente o mal foi a terrível novidade introduzida pelo Totalitarismo. O conceito de banalidade do mal se associa à experiência totalitária no século XX e ao surgimento de homens sem nenhum nível de pertencimento no mundo. “A principal característica do homem de massas não é a brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais" (Arendt, 1989, p. 367). Após o mal em grande escala produzido pelos campos de concentração, pelo extermínio em massa executado por funcionários comuns, o mundo percebeu espantado que as categorias usuais de política ou as leis existentes não podiam julgar os crimes cometidos, originais no horror e na falta de significado. Entretanto, o desfile dos humanos supérfluos, destituídos como sujeitos políticos, mergulhados no esquecimento nos novos campos de exclusão das grandes metrópoles, convivendo com a violência ritualizada em espetáculo, nos fazem perceber que esses são os fantasmas de um pesadelo humano que sobreviveram como elementos totalitários na sociedade contemporânea. Numa sociedade que exclui da cidadania todas as maiorias que escapam dos mecanismos tradicionais de representação (sindicatos, partidos, organizações civis), a destituição da fala e a impossibilidade de participação em um mundo comum reduzem o espaço público, ou seja, o lugar onde a ação e o discurso dos homens podem ganhar visibilidade e reconhecimento. É a denúncia da perda do espaço público como mundo compartilhado que se torna cada vez mais reduzido e compromete a visibilidade das ações, impedindo que a palavra narre histórias que permanecerão na memória dos homens, que aparece em A hora da estrela como um alerta para suas conseqüências políticas. Essa ameaça contemporânea diz respeito à banalidade do mal que se estende em sua dimensão política ao mundo de homens e mulheres supérfluos, isolados, desenraizados porque perderam suas comunidades de origem e foram destituídos de qualquer papel como sujeito político, não possuem nenhum nível de pertencimento no mundo e vivenciam a ameaçadora condição de ser massa. O Totalitarismo trouxe ao século XX o mal em sua dimensão política, impossível de ser punido e sempre pensado como imperdoável: O surgimento de um mal radical antes ignorado põe fim à noção de gradual desenvolvimento e transformação de valores. Não há modelos políticos, nem históricos, nem simplesmente a compreensão de que parece existir na política moderna algo que jamais deveria pertencer à política como costumávamos entendê-la, a alternativa de tudo ou nada (Arendt, 1989, p. 494). Recusando-se a aceitar a idéia de uma malignidade do homem, Arendt (1989) atribui o surgimento do mal radical à sua natureza política, ligada à experiência totalitária dos campos de concentração no século XX e ao surgimento de homens supérfluos, definidos como um homem qualquer, sem capacidade política, sem consciência moral, sem vontade política, sem julgamento. O mal é banal porque é revestido de uma assustadora normalidade, sem brilho particular ou distinção. Esse mal sem dimensão demoníaca, do qual foi removida qualquer maldade e do qual a necessidade foi abandonada e a realidade afastada, será cometido por indivíduos comuns, sem intenções profundas. Daí, a denominação de banalidade do mal uma vez que não existem causas enraizadas para que esse mal seja cometido. Banal e superficial em suas razões, porém extremo em suas formas. Esse perfil aterrador por sua normalidade é traçado na história de Macabéa, em sua condição de supérflua no mundo, migrante, mulher pobre, feia, analfabeta, destituída da fala, repetindo o que ouvia e não entendia dos clichês das propagandas e programas do rádio, presa aos sonhos de consumo e até engraçada em suas desventuras. Tais características configuram um profundo vazio de pensamento, aqui pensado como um traço do mundo de humanos supérfluos que vivenciam uma incapacidade de pensar.Vazio que em sua falta de sentido mistura-se a uma ausência até o nada, um não-pensar, que distancia Macabéa da realidade e a torna meramente peça enferrujada de uma engrenagem, ou melhor, certeza de que “vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável” (HE, p. 36). O vazio de pensamento toma, então, o lugar dos demais vazios vividos pela personagem, como síntese de um processo de carências que se acumulam: o vazio da fome no estômago mal nutrido por cachorro quente e coca-cola; o vazio do espírito, mal alimentado pelos pingos de cultura da Rádio Relógio que ouvia e não entendia; o vazio do tempo não preenchido após o desemprego; o vazio das lembranças que sua pouca memória não alcançava; o vazio de direitos que não garantia sua presença na história. Escrevendo em evidente agonia, Rodrigo S.M tenta se agarrar às possibilidades abertas pela literatura para um outro dizer, permitindo, na ambigüidade da narrativa, outras leituras sobre sua personagem, mostrando que a violência presente na vida dos que vivem às margens da cidade é parte da violência oficial que lhes tolhe os direitos e a palavra. Com esforço, a literatura busca produzir efeitos sensíveis sobre a realidade: “Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago” (HE, p. 100). Porém, a cidade em A hora da estrela é permeada por suas próprias contradições, podendo ser lida também como metáfora do lugar de encontro dos diversos territórios e tempos sociais, onde diferentes vozes se reúnem, reproduzindo em seus limites a fronteira entre o centro e a periferia e onde estratégias de sobrevivência cultural, de memória e solidariedade se desenham em meio ao “silêncio desolado dos povos errantes” (Bhabha, 1998, p. 232). No espaço urbano, o migrante – como Macabéa, que vivencia a perda do lugar de origem – estabelece uma relação de significação com a cidade que resulta na construção de pontos de referência capazes de produzir sentido para sua existência, fornecendo estabilidade em relação ao espaço e ao tempo, fazendo-o sentir-se em seu lugar. É principalmente a língua que cumpre esse papel estruturante, no qual se constitui o sujeito em sua relação histórica com a cidade como espaço simbólico. Macabéa, em seu itinerário pela cidade, revela o mapeamento de lugares onde se reconhece, como se o processo de significação que acompanha a passagem do sertão para a cidade estivesse lentamente acontecendo. As ruas e praças que percorre, o cais do porto onde espia os navios com saudade, o zoológico, as vitrines na zona sul e o roteiro diário entre a casa e o trabalho são pontos assinalados no mapa da sua subjetividade. Dessa forma, a metrópole não é apenas o lugar do anonimato e da invisibilidade, da aspereza, da vida imunda, do perigo, mas também espaço onde construímos estratégias para viver, trabalhar, ver o mundo e a nós mesmos. Lugar na escrita onde acontece o encontro da autora, narrador e personagens, reafirmando a possibilidade do reconhecimento do outro em oposição ao anonimato da multidão, à solidão das massas. Rodrigo S.M desarticula com o corpo grotesco e desajeitado da sua personagem a cidade instalada pelo discurso do moderno e permite que o riso renovador invada com um radicalismo utópico o breve lapso de tempo suspenso no cotidiano a cada vez que o leitor mergulha na leitura do texto literário, como uma astúcia a subverter a lógica ordenada da metrópole. Tudo isso, sim, a história é história. Mas sabendo antes para nunca esquecer que a palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela (HE, p. 25). A narrativa que se completa no ato de leitura é também uma estratégia de resistência por ser capaz de interromper o automatismo cotidiano e produzir uma pausa, uma possibilidade de pensar. Como Macabéa, quando um dia ficou cansada, pediu uma folga, dançou e rodopiou no quarto do cortiço, inventando um momento seu enquanto o rádio de pilha tocava alto. Esse pequeno gesto pleno de significados é um surpreendente momento de reafirmar as possibilidades da iniciativa humana: Macabéa experimenta a liberdade na solidão do seu quarto. Solidão diferente das que vivencia em meio à multidão nas ruas, colocando-a consigo mesma, num diálogo interior que desde a Antigüidade denominamos pensamento. Então, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e (HE, p. 51). O parar para pensar operado por Macabéa tem importantes conseqüências no mundo das atividades fundadas no automatismo, isto é, na ausência de pensamento, pois abre possibilidades para que regras de conduta sejam julgadas, tornando-as passíveis de serem examinadas, questionadas e até mesmo modificadas. É sobre a ausência de pensamento e a incapacidade de julgar que se assentaram os regimes totalitários, anulando a capacidade do homem de refletir sobre regras e comportamentos, apenas aderindo à terrível e assustadora normalidade do mal banalizado. É precisamente pensar e exercer criticamente a faculdade de julgar por si mesmo que se torna na sociedade contemporânea uma estratégia de defesa dos indivíduos sitiados nas cidades, imersos no mecanismo das coisas. O pensamento depende da comunicação consigo mesmo e dessa interação brota a consciência moral de cada um capaz de inibir a prática do mal. Porém, não se reduz a uma atividade solitária, pois antecipa a relação com os outros quando estabelece um juízo, por meio do qual apontamos o que é certo ou errado à nossa volta. Na conquistada solidão, Macabéa ensaia as possibilidades do pensamento e diante do espelho ela decide não perder nada de si mesma: “Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na vida, pensou” (HE, p. 51). 4 Conclusão Ao optar pela possibilidade de estabelecer outros sentidos à narrativa, Clarice Lispector navegou na direção oposta ao mito do progresso e da modernização e celebrou a história humana como possibilidade na precariedade das ruínas e da morte. Ao registrar um encontro na rua e dele fazer matéria de sua história, ela extraiu do continuum da história linear uma vida oprimida, encontrando nela eco de vozes que silenciaram e a quem a literatura pode permitir escapar do destino e da morte para manter viva a consciência de tudo o que é “sofrido e malogrado” (Benjamin, 1984, p. 188). Seu olhar voltado para o aqui e o agora é visionário, pois o instante que se abre vazio e inapreensível, como uma iluminação, pode ser capaz de desafiar a ordem e provocar o despertar da vida congelada no mundo que nos transforma em mercadorias, permitindo o reconhecimento do outro e de nós mesmos. Em seus escritos anteriores, a autora sempre associou a linguagem ao silêncio, ao impossível de ser comunicado e que apenas devia ser sentido, e sua maior ambição talvez tenha sido capturar o instante-já, presente volátil que não pode ser transposto em palavras. Consciente de que abria mão do ambicionado silêncio como plenitude da comunicação que dispensa palavras e nos remete a uma linguagem original entre os seres e as coisas, Clarice Lispector penetra nos territórios do presente aprisionado no tempo homogêneo e vazio da modernidade para falar, com o evidente desconforto do seu narrador Rodrigo S.M, do silêncio da nordestina miserável e dos milhões como ela que enchem cidades e textos escritos. É o presente, tempo da ação possível, que Rodrigo registra ao olhar Macabéa, alertando-nos para a sombra do mal banalizado que se estende no mundo dos seres tornados mercadorias, sem pensamento e sem memória, vivenciando a violência cotidiana em suas vidas de estrelas apagadas. Oposto ao infinito da memória, o esquecimento seria o ponto de partida e chegada da história de Macabéa, não fosse pela narrativa. A literatura, ao pretender resguardar essa história do esquecimento, anda no sentido inverso à morte, para que não nos esqueçamos dos esquecidos da história. Notas [1] 2 As citações de A hora da estrela receberão neste artigo a notação HE e a página correspondente. Ver a respeito dessa afirmação a nota filológica na edição crítica organizada por Benedito Nunes de A Paixão Segundo GH (Lispector, 1988, p. 36-37). 3 Essa expressão foi usada por Roberto Schwartz em seus estudos sobre Machado de Assis e o século XIX para traduzir o desconcerto entre uma sociedade que se dizia moderna e a permanência de relações marcadas pela violência e pelo arbítrio (Citado por Telles, 2001, p. 13). 4 O conceito de marginalidade avançada baseia-se na existência de novas formas de exclusão social e de marginalização que surgiram ou se intensificaram nas cidades nas últimas décadas do século XX (ver Wacquant, 2001). Referências ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BENJAMIN, Walter. Origens do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1977. ______. A paixão segundo G.H. Edição crítica. Org. Benedito Nunes. Brasília: CNPq, 1988. MURICY, Kátia. Alegorias da dialética: imagens e pensamento em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998. TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania. São Paulo: Editora 34, 2001. WACQUANT, Löic. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. Rio de Janeiro: REVAN, 2001. Dados da autora: *Margareth Cordeiro Franklin Mestre em História – UFMG – e Doutoranda em Literatura – PUC Minas Endereço para contato: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Instituto de Ciências Humanas Departamento de Letras Rua Dom José Gaspar, 500 Coração Eucarístico 30535-610 Belo Horizonte, MG – Brasil Endereço eletrônico: [email protected] Data de recebimento: 28 maio 2007 Data de aprovação: 29 jul. 2008