ANÁLISE DE OBRAS – VESTIBULAR SERIADO 2008
A HORA DA ESTRELA
Análise 1
A Hora da Estrela, de Clarice Lispector
Análise da obra
A hora da estrela é também uma despedida de Clarice Lispector. Lançada pouco antes de sua morte em
1977, a obra conta os momentos de criação do escritor Rodrigo S. M. (a própria Clarice) narrando a
história de Macabéa, uma alagoana órfã, virgem e solitária, criada por uma tia tirana, que a leva para o
Rio de Janeiro, onde trabalha como datilógrafa.
É pelos olhos do narrador e através de seu domínio da palavra que a existência e a essência são
expostas como interrogações. Tal presença masculina retrata um universo de fragmentos, onde o ser
humano não é respeitado, mas desacreditado nessa reconstrução de uma realidade mutilada.
Em A hora da estrela Clarice escreve sabendo que a morte está próxima e põe um pouco de si nas
personagens Rodrigo e Macabéa. Ele, um escritor à espera da morte; ela, uma solitária que gosta de
ouvir a Rádio Relógio e que passou a infância no Nordeste, como Clarice.
A despedida de Clarice é uma obra instigante e inovadora. Como diz o personagem Rodrigo, estou
escrevendo na hora mesma em que sou lido. É Clarice contando uma história e, ao mesmo tempo,
revelando ao leitor seu processo de criação e sua angústia diante da vida e da morte.
Estrutura da obra
É uma obra composta de três histórias que se entrelaçam e que são marcadas, principalmente, por duas
características fundamentais da produção da autora: originalidade de estilo e profundidade psicológica no
enfoque de temas aparentemente comuns.
A linguagem narrativa de Clarice é, às vezes, intensamente lírica, apresentando muitas metáforas e
outras figuras de estilo. Há, por exemplo, alguns paradoxos e comparações insólitas, que realmente
surpreendem o leitor. E também é peculiaridade da autora a construção de frases inconclusas e outros
desvios da sintaxe convencional, além da criação de alguns neologismos.
Foco narrativo
Quanto à linguagem, o livro a apresenta fartamente, em todos os momentos em que o narrador discute a
palavra e o fazer narrativo. Interessante notar que, antes de iniciar a narrativa e logo após a 'Dedicatória
do autor', aparecem os treze títulos que teriam sido cogitados para o livro.
O recurso usado por Clarice Lispector é o narrador-personagem, pois conforme nos faz conhecer a
protagonista, também nos faz conhecê-lo. Ele escreve para se compreender. É um marginalizado
conforme lemos: "Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar pra mim na terra dos
homens". Quanto à sua relação com Macabéa, ele declara amá-la e compreendê-la, embora faça
contínuas interrogações sobre ela e embora pareça apenas acompanhando a trajetória dela, sem saber
exatamente o que lhe vai acontecer e torcendo para que não lhe aconteça o pior.
Macabéa, a protagonista, é uma invenção do narrador com a qual se identifica e com ela morre. A
personagem é criada de forma onisciente (tudo sabe) e onipresente (tudo pode). Faz da vida dela um
aprendizado da morte. A morte foi a hora de estrela.
O enredo de A hora da Estrela não segue uma ordem linear: há flashbacks iluminando o passado, há idas
e vindas do passado para o presente e vice-versa.
Além da alinearidade, há pelo menos três histórias encaixadas que se revezam diante dos nossos olhos
de leitor:
1. A metanarrativa - Rodrigo S. M. conta a história de Macabéa: Esta é a narrativa central da obra: o
escritor Rodrigo S.M. conta a história de Macabéa, uma nordestina que ele viu, de relance, na rua.
2. A identificação da história do narrador com a da personagem - Rodrigo S.M. conta a história dele
mesmo: esta narrativa dá-se sob a forma do encaixe, paralela à história de Macabéa. Está presente por
toda a narrativa sob a forma de comentários e desvendamentos do narrador que se mostra, se oculta e se
exibe diante dos nossos olhos. Se por um lado, ele vê a jovem como alguém que merece amor, piedade e
até um pouco de raiva, por sua patética alienação, por outro lado, ele estabelece com ela um vínculo mais
profundo, que é o da comum condição humana. Esta identidade, que ultrapassa as questões de classe,
de gênero e de consciência de mundo, é um elemento de grande significação no romance, Rodrigo e
Macabéa se confundem.
3. A vida de Macabéa - O narrador conta como tece a narrativa.
Narrador e protagonista, inseridos em uma escrita descontínua e imprevisível, permitem ao leitor a
reflexão sobre uma época de transição, de incoerência, como um movimento em busca de uma nova
estruturação da obra literária similar à insegurança, à ansiedade e ao sofrimento. O tema é oferecido,
socializando a possibilidade de ruptura.
O narrador revela seu amor pela personagem principal e sofre com a sua desumanização, mas, também,
com a própria tendência em tornar-se insensível.
O foco narrativo escolhido é a primeira pessoa. O narrador lança mão, como recurso, das digressões, o
que, aspectualmente parece dar à narrativa uma característica alinear. Não se engane: ele foge para o
passado a fim de buscar informações.
Espaço / Tempo
O Rio de Janeiro é o espaço. Ocorre que o espaço físico, externo, não importa muito nesta história. O
"lado de dentro"das criaturas é o que interessa aos intimistas.
Pelos indícios que o narrador nos oferece, o tempo é época em que Marylin Monroe já havia morrido possivelmente a década de 60 em seu fim ou a de 70 em seus começos - mas faz ainda um grande
sucesso como mito que povoa a cabeça e os sonhos de Macabéa.
Embora a história de Macabea seja profundamente dramática, a narrativa é toda permeada de muito
humor e ironia. O próprio nome da protagonista constitui-se numa grande ironia (tragicomédia).
Personagens
Macabéa: Alagoana, 19 anos e foi criada por uma tia beata que batia nela (sobre a cabeça, com força);
completamente inconsciente, raramente percebe o que há à sua volta. A principal característica de
Macabéa é a sua completa alienação. Ela não sabe nada de nada. Feia, mora numa pensão em
companhia de 3 moças que são balconistas nas Lojas Americanas (Maria da Penha, Maria da Graça e
Maria José). Macabéa recebe o apelido de Maca e é a protagonista da história. Possivelmente o nome
Macabéa seja uma alusão aos macabeus bíblicos, sete ao todo, teimosos, criaturas destemidas demais
no enfrentamento do mundo; a alusão, no entanto, faz-se pelo lado do avesso, pois Macabéa é o inverso
deles.
Olímpico: Olímpico se apresentava como Olímpico de Jesus Moreira Chaves. Trabalhava numa
metalúrgica e não se classificava como "operário": era um "metalúrgico". Ambicioso, orgulhoso e matara
um homem antes de migrar da Paraíba. Queria ser muito rico, um dia; e um dia queria também ser
deputado. Um secreto desejo era ser toureiro, gostava de ver sangue.
Rodrigo S. M.: Narrador-personagem da história. Ele tem domínio absoluto sobre o que escreve.
Inclusive sobre a morte de Macabéa, no final.
Glória: Filha de um açougueiro, nascida e criada no Rio de Janeiro, Glória rouba Olímpico de Macabéa.
Tem um quê de selvagem, cheia de corpo, é esperta, atenta ao mundo.
Madame Carlota: É a mulher de Olaria que porá as cartas do baralho para "ler a sorte"de Macabéa.
Contará que foi prostituta quando jovem, que depois montou uma casa de mulheres e ganhou muito
dinheiro com isso. Come bombons, diz que é fã de Jesus Cristo e impressiona Macabéa. Na verdade,
Madame Carlota é uma enganadora vulgar.
Outras personagens: As três Marias que moram com Macabéa no mesmo quarto, o médico que a
atende e diagnostica a gravidade da tuberculose e o chefe, seu Raimundo, que reluta em mandá-la
embora.
Enredo
Macabéa (Maca) foi criada por uma tia beata, após a morte dos pais quando tinha dois anos de idade.
Acumula em seu corpo franzino a herança do sertão, ou seja, todas as formas de repressão cultural, o
que a deixa alheia de si e da sociedade. Segundo o narrador, ela nunca se deu conta de que vivia numa
sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável.
Ignorava até mesmo porque se deslocara de Alagoas até o Rio de Janeiro, onde passou a viver com mais
quatro colegas na Rua do Acre. Macabéa trabalha como datilógrafa numa firma de representantes de
roldanas, que fica na Rua do Lavradio. Tem por hábito ouvir a Rádio Relógio, especializada em dizer as
horas e divulgar anúncios, talvez identificando com o apresentador a escassez de linguagem que a
converte num ser totalmente inverossímil no mundo em que procura sobreviver. Tinha como alvo de
admiração a atriz norte-americana Marilyn Monroe, o símbolo social inculcado pelas superproduções de
Hollywood na década de 1950.
Macabéa recebe de seu chefe, Raimundo Silveira, por quem ela estava secretamente apaixonada, o
aviso de que será despedida por incompetência. Como Macabéa aceita o fato com enorme humildade, o
chefe se compadece e resolve não despedi-la imediatamente.
Seu namorado, Olímpico de Jesus, era nordestino também. Por não ter nada que ajudasse Olímpico a
progredir, ela o perde para Glória, que possuía atrativos materiais que ele ambicionava.
Glória, com certo sentimento de culpa por ter roubado o namorado da colega, sugere a Macabéa que vá a
uma cartomante, sua conhecida. Para isso, empresta-lhe dinheiro e diz-lhe que a mulher, Madame
Carlota, era tão boa, que poderia até indicar-lhe o jeito de arranjar outro namorado. Macabéa vai, então, à
cartomante, que, primeiro, lhe faz confidências sobre seu passado de prostituta; depois, após constatar
que a nordestina era muito infeliz, prediz-lhe um futuro maravilhoso, já que ela deveria casar-se com um
belo homem loiro e rico - Hans - que lhe daria muito luxo e amor.
Macabéa sai da casa de Madame Carlota 'grávida de futuro', encantada com a felicidade que a
cartomante lhe garantira e que ela já começava a sentir. Então, logo ao descer a calçada para atravessar
a rua, é atropelada por um luxuoso Mercedes Benz amarelo. Esta é a hora da estrela de cinema, onde ela
vai ser "tão grande como um cavalo morto".
Ao ser atropelada, Macabéa descobre a sua essência: “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha
vida: nasci”. Há uma situação paradoxal: ela só nasce, ou seja, só chega a ter consciência de si mesma,
na hora de sua morte. Por isso antes de morrer repete sem cessar: “Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou”.
Por ter definido a sua existência é que Macabéa pronuncia uma frase que nenhum dos transeuntes
entende: “Quanto ao futuro.” (...) “Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase
vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.”
Com ela morre também o narrador, identificado com a escrita do romance que se acaba.
(fonte: passeiweb)
ANÁLISE 2
A HORA DA ESTRELA - Clarice Lispector (Resumo)
A HORA DA ESTRELA
Publicado em 1977, pouco antes da autora morrer, A hora da estrela é a única de suas obras que enfatiza
aspectos da realidade objetiva e manifesta uma intenção explicitamente social, embora não seja esta a
dimensão mais valiosa do texto.
ARGUMENTO
O relato é construído por duas camadas que se interligam de maneira contínua:
a) A camada do narrador: Rodrigo S.M., o primeiro narrador masculino na obra de Clarice, atormenta-se
ao escrever uma novela sobre uma jovem nordestina. Ele questiona o tempo inteiro o seu próprio modo
de narrar, o seu estilo, a sua capacidade de compreender Macabéa, moça de extração sócio-cultural
inferior. Simultaneamente, tenta desvelar o jogo complicado que o seu texto empreende entre a ficção e a
realidade. Em última instância, o que ele procura é desvendar o significado da literatura e da existência.
b) A camada de Macabéa: é o registro da medíocre trajetória no Rio de Janeiro de uma alagoana de 19
anos, moradora de um quarto de pensão que divide com quatro balconistas das Lojas Americanas.
Macabéa é moça raquítica, feia, solitária e morrinhenta, além de ser uma datilógrafa de segunda
categoria. Alienada, sonsa, adora ouvir a Rádio Relógio, coleciona pequenos anúncios num álbum e
gostaria de ser artista de cinema. Trata-se de uma jovem sem qualquer tipo de vida interior, sem futuro e
com um passado inexpressivo, quase cretina.
No transcurso da história, Macabéa arruma um namorado, também nordestino, o metalúrgico Olímpico de
Jesus, só que este, apesar de inculto e grosseiro, sonha em integrar-se ao Sul, ascender socialmente e
até tornar-se deputado. Percebendo os limites gerais de Macabéa, (“Ela era incompetente para a vida”,
diz o narrador), Olímpico troca-a por Glória, estenógrafa, loira oxigenada e amiga de sua ex-namorada.
Aconselhado pela própria Glória, Macabéa procura uma cartomante, Madame Carlota, antiga prostituta e
cafetina. Esta, sinceramente horrorizada com a vida que a moça levava, resolve animá-la com a
perspectiva de um futuro sorridente, profetizando que a nordestina encontraria um estrangeiro alourado
de “olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos”, muito rico e com quem se casaria. Macabéa que
“nunca tinha tido coragem de ter esperança”, sai feliz da consulta, pois “a cartomante lhe decretara
sentença de vida”. Porém, ao atravessar a rua distraidamente é atropelada por uma Mercedes amarela.
Cai no chão, agoniza e diz sua última frase, em aparência enigmática: “Quanto ao futuro”. Várias pessoas
observam a moribunda. Alguém pousa junto ao corpo uma vela acesa. Desta maneira, Macabéa alcança,
com a própria morte, a sua hora de estrela.
O QUE OBSERVAR
1) Em relação à obra de Clarice Lispector:
a)Escrito quando um câncer a corroia, A hora da estrela é a tentativa da autora de fugir da sufocante
introspecção das obras anteriores (“...não agüento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter
em pé...”), criando um texto que tivesse alguma abertura para o mundo exterior.
b) Não se pode desconsiderar as circunstâncias históricas em que o livro foi produzido: o governo Geisel
com sua “distensão lenta e gradual”, o recuo dos aparelhos repressivos, as inquietações da sociedade
civil, as contestações políticas menos tímidas e a perspectiva do fim da ditadura militar, possam ter
influenciado a escritora a produzir algo mais “social”. Um texto solidário em relação aos milhares de
nordestinos que migravam para o Sudeste em busca de melhores condições de vida corresponderia, com
certeza, ao clima da época.
c) A novidade da criação que é a criação de um narrador masculino (único na obra de Clarice) para relatar
o drama de Macabéa. Por ser homem, Rodrigo S.M, poderia ter uma visão menos intimista e sentimental
e, portanto, mais capaz de entender a extensão da realidade concreta (“...porque escritora mulher pode
lacrimejar piegas...”).
2) Em relação ao narrador
a) A questão do narrador é essencial no texto. Na Dedicatória do autor, que abre o livro há uma
advertência: “Na verdade Clarice Lispector”. Estabelece-se, assim, uma estrita vinculação entre Clarice e
o narrador da obra. Ambos se confundem.São um só e, ao mesmo tempo, são diferentes. Rodrigo S.M.
representa uma outra forma de ser e de escrever de Clarice, um desdobramento do próprio eu da
escritora, uma espécie de heterônimo.
Este narrador expressaria de maneira mais confiável a realidade objetiva, (o drama de Macabéa) como
também poderia apresentar algumas respostas aos impasses existenciais e literários que atormentavam a
autora de Laços de família .Desta forma, A hora da estrela deixa de ser uma novela especificamente
social e torna-se também um “drama de linguagem”, (expressão de Benedito Nunes) e um
questionamento metafísico sobre o significado último da existência.
b) As primeiras vinte páginas do texto são de discussão dos problemas que Rodrigo S.M. enfrenta para
escrever. Um deles diz respeito à questão do estilo a ser empregado. O narrador opta pela simplicidade:
É claro que, como todo o escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço
adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o
ar(...) Mas não vou enfeitar a palavra (...) Tenho que falar simples.(...) Que ninguém se engane,
só consigo a simplicidade através de muito trabalho.
Outra preocupação de Rodrigo S.M. é o da estrutura narrativa. Confundido-se com Clarice, ele
renuncia ao modo psicológico/subjetivo da escrita anterior e anuncia sua adesão a uma forma
tradicional de narrar:
Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e “gran
finale”
Mas, pode o narrador basear-se no modelo convencional de narrativa, se sua protagonista é
uma coitada, sem qualquer possibilidade de ação sobre o mundo? Inúmeras vezes Rodrigo S.M.
problematiza a mediocridade da história que vai contar:
Que não se esperem, então, estrelas no que se segue: nada cintilará, trata-se de matéria opaca
e por sua própria natureza desprezível por todos. (...)
Limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. (...)
O seu viver é ralo.(...)
c) Aspecto significativo da obra é a culpa do narrador em relação à Macabéa. A consciência
que, de alguma maneira, ele é co-responsável pela pobreza econômica e existencial da jovem
nordestina o atormenta:
Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela.(...)
Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum
modo um desonesto. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com
desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. (...)
Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa. (...) A moça é uma verdade da qual eu
não queria saber.(...) Não sei a quem acusar, mas deve haver um réu.(...)
d) Escrever, para Rodrigo S.M., é algo mais do que contar uma história ou fixar um drama social.
Escrever é questionar-se o tempo todo: “Este livro é uma pergunta.”. É, ao mesmo tempo, uma
busca de autoconhecimento (“Desculpai-me, mas vou continuar a falar de mim que sou meu
desconhecido.”); é uma tentativa de encontrar significado para a existência fora da própria
interioridade (“Bem sei que é assustador sair de si mesmo.”); e é, também, uma suspensão
parcial da morte: (“Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a
rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria
simbolicamente todos os dias.”). Mesmo assim, o narrador experimenta um forte sentimento de
fracasso da linguagem e a certeza de que a literatura não resolve os problemas humanos.
e) Um dos aspectos mais complexos da obra é a relação de Rodrigo S. M. com Macabéa. Se por
um lado, ele vê a jovem como alguém que merece amor, piedade e até um pouco de raiva, por
sua patética alienação, por outro lado, ele estabelece com ela um vínculo mais profundo, que é o
da comum condição humana. Esta identidade, que ultrapassa as questões de classe, de gênero
e de consciência de mundo, é um elemento de grande significação no romance, Rodrigo e
Macabéa se confundem:
Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para ela. (...)
Essa história será um dia o meu coágulo... (...)
Vejo a nordestina se olhando ao espelho e – um rufar de tambor – no espelho aparece o meu
rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos. (...)
3) Sobre Macabéa:
a) Os primeiros aspectos definidores de Macabéa são os de sua modesta origem social (“Como
a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás
de balcões trabalhando até a estafa”). Órfã, criada por um tia repressora, ela é feia, virgem,
gosta de coca-cola, passa um pouco de fome e trabalha como datilógrafa no Rio de Janeiro. No
entanto, o aspecto predominante de sua medíocre personalidade é o seu despreparo para a vida
inteligente. É tão tola que sorri para as pessoas na rua, mas ninguém lhe responde ao sorriso
porque sequer a olham. Sua própria cara expressa tanta pobreza mental que parece pedir para
ser esbofeteada. Em síntese, trata-se de um ser ínfimo, de uma “alma rala”.
b) A principal característica de Macabéa é a sua completa alienação. Ela não sabe nada de
nada.
A palavra realidade não lhe dizia nada. (...)
Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. (...)
Nenhuma coisa importante jamais acontecera em sua vida:
Mas vivia em tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manhã. (...).
Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. (...)
A sua inconsciência não resulta apenas da ignorância do mundo. Ela se desconhece: “Quando
acordava não sabia mais quem era”. Às vezes, diante do espelho, não se enxergava, como se a
sua tivesse sumido. A todo instante, Rodrigo S. M. registra a alienação de Macabéa, a sua
incapacidade de percepção. Por isso, a jovem nordestina vive a dimensão do não-ser.
Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu” cairia estatelada no chão (...)
Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu. Assustou-se tanto que parou
completamente de pensar. (...)
“Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro.
Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não, sabia para quê, não se
indagava. (...)
Sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si
mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela. (...)
Encontrar-se consigo própria era um bem que até então ela não conhecia.(...)
Algumas delimitações que Rodrigo S.M. elabora para Macabéa são tragicamente líricas:
Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim. (...)
Tornara-se apenas vivente em sua forma primária. (...) Era apenas fina matéria orgânica. Existia.
Só isto.
c) Quase nula é a compreensão de Macabéa a respeito da existência, seja a sua, seja a da
humanidade em geral. Normalmente, ela age como uma mentecapta: pede desculpas ao patrão
por tê-lo aborrecido quando este se dispõe a demiti-la; agradece ao médico que lhe diagnostica
a tuberculose e quando este ironicamente lhe receita espaguete, ela ignora o que seja isso; e no
momento em que o namorado, Olímpico, lhe dá o fora, põe-se sem mais nem menos a rir. Nada
a desespera, nem saber que não faz falta a ninguém ou que é muito feia e desinteressante. (“Ser
feia dói?”, pergunta-lhe Glória.). Tampouco o futuro a preocupa, ela não tem futuro como não
tem passado, nem presente, porque na verdade ela não existe, ela é como um vegetal: “Ela era
subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim”.
A sua pobre cultura, originária das informações inúteis da Rádio Relógio, são risíveis:
O Imperador Carlos Magno era chamado na terra dele de Carolus. (...)
Você sabia que a mosca voa tão depressa que se voasse em linha reta ia passar pelo mundo
todo em 28 dias? (...)
Igualmente hilariante é o diálogo que trava com o namorado, usando dados desta cultura de
almanaque:
Macabéa: – O que quer dizer eletrônico?
Olímpico: – Eu sei, mas não quero dizer.
Macabéa: – O que quer dizer “renda per capita”?
Olímpico: – Ora, é fácil, é coisa de médico.
d) As pouquíssimas revelações (epifanias) que Macabéa experimenta não lhe suficientes para a
formação de uma identidade. Certa ocasião, chorara ao ouvir Una furtiva lacrima, na
interpretação de Caruso, (“Adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências
mais delicadas e até com certo luxo de alma”.) Outro dia, em que não fora trabalhar e ficara
sozinha no quarto, tinha dançado “num ato de absoluta coragem.” Porém, a descoberta efetiva
do próprio ser ocorreria apenas depois do atropelamento.
4) O namoro com Olímpico
a) “O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos,
bichos da mesma espécie que se farejam”. Assim começa o namoro dos dois. “Eles não sabiam
como se passeia”. No primeiro encontro, sob a chuva, param diante de uma vitrine de uma
ferragem e Macabéa não suportando o silêncio, diz a Olímpico: “Eu gosto tanto de parafuso e
prego, e o senhor?” Nas outras vezes que se encontraram também chovia. Olímpico se irrita:
“Você só sabe chover”
.
b) Ao contrário de Macabéa, (“Acho que não preciso vencer na vida.”), Olímpico quer ser muito
rico, talvez até deputado. É um homem duro, disposto a tudo. Nos “cafundós do sertão”matara
um desafeto seu, era um “homem com honra já lavada”. Não tem paciência ou qualquer gesto de
delicadeza com a namorada. Quando esta lhe pede que telefonasse para ela, Olímpico retruca:
“Telefonar para ouvir as tuas bobagens?” Certo dia, os dois vão tomar um, cafezinho e ela lhe
pergunta se poderia ser “pingado” e ele responde que sim, mas se o preço fosse maior, ela devia
pagar a diferença.
c) Quando Olímpico conhece Glória, amiga de Macabéa, percebe que se trata de uma mulher de
outra estirpe. Ela, “apesar de branca, tinha em si a força da mulatice”. Era um degrau na
escalada do nordestino. O fato de ser carioca dava a Glória a condição de integrante do
“ambicionado clã do sul do país. (...) Soube que Glória tinha mãe, pai e comida quente em hora
certa.” E Olímpico abandona Macabéa com sua costumeira rudeza: “Você, Macabéa, é um
cabelo na sopa. Não dá vontade de comer.” Na sua mediocridade interior, a pobre datilógrafa
sequer experimenta a vertigem de um autêntico sofrimento. Apenas ri quando o namorado lhe
comunica o rompimento.
5) O encontro com a cartomante e com a morte:
a) Glória sugere a Macabéa que fosse a uma cartomante. Na casa da cartomante, Macabéa se
deslumbra: “Lá tudo era de luxo. Matéria plástica amarela nas poltronas e sofás. E até flores de
plástico. Plástico era o máximo. Estava boquiaberta”. Em busca de um destino, constata – por
meio das palavras de madame Carlota – que sua vida tinha sido horrível até então. As
perspectivas otimistas anunciadas pela cartomante transformam Macabéa. Pela primeira vez ela
sente a sua existência, está “grávida de futuro”.
b) Ao ser atropelada, Macabéa descobre a sua essência: “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia
de minha vida: nasci”. Há uma situação paradoxal: ela só nasce, ou seja, só chega a ter
consciência de si mesma, na hora de sua morte. Por isso antes de morrer repete sem cessar:
“Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou”.
Por ter definido a sua existência é que Macabéa pronuncia uma frase que nenhum dos
transeuntes entende: “Quanto ao futuro.” (...) “Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo
de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela
de mil pontas.”
6) O narrador e o fim do relato
a) Terminar a narração para Rodrigo S.M. representa não apenas o fim da escrita de uma
história melancólica como também a percepção de sua finitude pessoal. Perplexo, ele visualiza
na morte de Macabéa a sua própria: “Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas –
mas eu também?!”
b) A conclusão implícita do narrador é a de que ele, Macabéa e a própria Clarice, apesar das
diferenças sociais, intelectuais e de visão de mundo que os separavam, tinham uma identidade
comum, irmanavam-se e convergiam para um mesmo destino, simbolizado pela metáfora “a hora
da estrela”, ou seja, a morte, “pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de
cinema, é o instante de glória de cada um, e é quando como no canto coral se ouvem agudos
sibilantes”.
c) Numa série de doze títulos paralelos que Clarice – no corpo do próprio texto – estabelece para
A hora da estrela figura um último, que é uma espécie de pungente referência a Macabéa, a
Rodrigo S.M. e a própria Clarice: “Saída discreta pela porta dos fundos”
INDICAÇÃO DE LEITURA
GOTLIB, Nádia Batella. Clarice.Uma vida que se conta. São Paulo, Ática, 1995. (Magnífica
biografia acompanhada de ótimas análises críticas da obra de Clarice Lispector).
GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de leitura: A hora da estrela. São Paulo, Ática, 1996. (Boa
introdução ao texto mais lide de Clarice Lispector).
Por: Educaterra
Este é o último romance de Clarice Lispector, o ponto final de uma carreira que, iniciada em
1944, com Perto do Coração Selvagem, constituiu um dos momentos mais altos da literatura
brasileira moderna.
A autora, que em geral primou pela sondagem da psicologia profunda das personagens, neste
livro nos apresenta um comovente drama em que, surpreendentemente, as molas da ação têm
natureza e inspiração social.
A personagem feminina é descrita com grande lirismo e, sob seus traços nordestinos de mulher
ingênua, delineia-se todo um contraponto bíblico.
Quando Macabéa se vê prestes a realizar seu grande sonho de mulher, atravessando uma rua
da metrópole (nada bíblica), encontra subitamente a morte na velocidade de um automóvel. O
tom lírico da narrativa se tinge enfim de tragédia.
O estilo, ao contrário da maior parte dos livros anteriores da autora, é marcado por uma
preocupação narrativa de caráter mais objetivo, situando a personagem em seus hábitos, seu
espaço social, seu ideário romântico.
Publicado dois meses antes da morte de sua autora, esse “conto-de-fadas às avessas”, ao
mesmo tempo que registra a “fraca vida” de Macabéa, compondo uma narrativa “exterior”,
“explícita”, também questiona, ironiza e expõe as perplexidades da ficção contemporânea,
através de um autor-narrador, Rodrigo S. M., que pretende captar no “sentimento de perdição do
rosto de uma nordestina”, vista ao acaso em uma rua do Rio de Janeiro, a “vida primária, que
respira, respira, respira”.
Atormentado pela personagem que criou, mas que não conhece completamente, o narrador
esbarra, a cada instante, nas diferenças de classe social e de gênero e, particularmente, nas
possibilidades e limitações da linguagem, na “agonia” do ato de escrever e na palavra que
instaura, revela e esconde.
Em 1985, A Hora da Estrela foi adaptado para o cinema, resultando no premiado filme do
mesmo título, dirigido por Susana Amaral.
(Fonte: curso objetivo)
ANTOLOGIA POÉTICA DE GREGÓRIO DE MATOS
Gregório de Matos
(1636-1695 )
Antologia Poética
Biografia
Como filho de senhor de engenho, Gregório pôde estudar em Portugal,para onde
se mudou aos 14 anos de idade. Lá passou 32 anos, prósperos e tranqüilos.
Retornou ao Brasil, em 1682, nomeado para funções na burocracia eclesiástica da
Sé da Bahia. Durou pouco no cargo, do qual foi destituído em 1683. Iniciou-se, então,
a última fase de sua vida. O casamento com Maria dos Povos, a quem dedicou
belíssimos sonetos, não impediu a decadência, social e profissional, do Dr. Gregório.
Ficou famoso em suas andanças e pândegas pelos engenhos do Recôncavo.
Mais famosas ainda eram suas sátiras. Talvez por causa delas, foi deportado para
Angola, em 1694. Pôde retornar ao Brasil, no ano seguinte, mas para o Recife, onde
morreu aos 59 anos de idade.
Gregório de Matos Guerra ficou conhecido na história da literatura como o Boca
do Inferno, por causa de suas sátiras e de sua poesia. Mas sendo um autor barroco e,
portanto surpreendente e contraditório, esse mesmo Boca do Inferno também disse
coisas belíssimas sobre o amor.
GREGÓRIO DE MATOS – LÍRICA
1-CONSIDERAÇÕES GERAIS:
O Barroco é a denominação dada à arte do século dezessete, que se estende no
Brasil até meados do século seguinte. A significação do termo BARROCO é bastante
diversa, onde se resolveu optar por uma que dá uma dimensão mais abrangente das
características da referida escola – a IRREGULARIDADE. Para se entender tal
acepção, optou-se por fazer um paralelo com o período antecedente, o Renascimento
(Classicismo).
No Renascimento, houve uma forte oposição ao período medieval, denominado-o
erroneamente de “Período das Trevas”. A arte do século dezesseis buscava uma
retomada do período da Grécia antiga, enfatizando dentre outros elementos a
racionalidade e a mitologia greco-romana . A Europa vive o apogeu da Reforma
Religiosa, onde a Igreja Católica, além de questionada, perde parte de sua influência.
A religiosidade é um pouco relegada para se valorizar o ANTROPOCENTRISMO.
Na segunda metade do século XVI, a Igreja Católica reage a tal movimento iniciando a
Contra-Reforma (que tem o seu ápice no século seguinte). Há um “refluxo” no caráter
racional do Homem, onde mais uma vez a religiosidade é posta em evidência. É nesse
século (XVII) que se situa a arte barroca, tentando conciliar a religiosidade católica de
seu tempo com o legado racionalista que o Renascimento deixou. Todavia, tal
conciliação não passa do plano da tentativa, pois estamos lidando com elementos
antagônicos – a fé e a razão – como formas de compreensão do mundo. Daí o caráter
conflitivo, irregular do Barroco. Esse caráter é realçado no texto pela utilização
abundante de ANTÍTESES e PARADOXOS.
Partindo dessa assertiva, as demais características do período literário em questão
são conseqüências diretas ou indiretas desse conflito espiritual. A ânsia por querer
aproveitar o momento (Carpe diem) se faz latente. A vida é compreendida como
passageira. A “confusão” se faz na maneira como isso é feito, pois o Homem barroco
fica dividido entre a espiritualidade e o materialismo. Além desses, destaca-se seu
caráter interrogativo (denotando uma conotação filosófica sobre o mundo e o estar no
mundo), a fugacidade da vida e a fragilidade da vida humana.
Quanto à linguagem, o texto barroco vai primar pela sofisticação e detalhismo. Essas
duas características foram exploradas não só na literatura desse período, mas
também na arquitetura, pintura e escultura. Isso justifica o aspecto visual de vários
textos barrocos, que são desenvolvidos pelo uso da METÁFORA. São símbolos
usuais a água, a fumaça, a neve, o fogo, a cinza, enfim, substâncias que não têm
formas definidas. Torna-se comum aqui as inversões sintáticas dos períodos, um
vocabulário de certa forma elevado e a utilização constante de figuras de linguagem
(principalmente a antítese, o paradoxo, a metáfora e a anáfora).
Há dois estilos seguidos pelos escritores: o Cultismo e o Conceptismo. Atenta-se para
o fato que nenhum escritor seguiu um só estilo. A mistura de ambos não fica restrita à
obra de um escritor, mas se evidencia também em um mesmo texto. Feito tal
esclarecimento sobre a utilização desses estilos, parte-se agora para as suas
definições:
O Cultismo é um requinte formal que consiste em elaborar um intrincado jogo de
palavras, explorando efeitos sensoriais como forma , volume , cor , além de um forte
caráter imagéstico. A valorização da imagem é formulada com base na metáfora,
pormenorizando seus detalhes. Como exemplo desse “jogo de palavras , tem-se esse
fragmento de Gregório de Matos:
“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte fez todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo todo.”
Já o Conceptismo consiste em um jogo apurado de raciocínio lógico, onde o escritor
barroco tenta mostrar a “veracidade “de seu ponto de vista.
“Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
...................................................................
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.”
2-Gregório de Matos Guerra
Ao evocar-se a figura de Gregório de Matos, mais vulgarmente conhecido como
“Boca do Inferno”, tem-se o aspecto mais sublime e o mais mordaz da poesia
barroca brasileira. O poeta baiano, além de desenvolver uma poética em sintonia com
as tendências européias, deu “tons locais” em sua obra, relatando os costumes e a
organização social brasileira.
Levando em consideração os temas desenvolvidos pelo autor, pode ser feita a
seguinte divisão de sua obra: lírica amorosa , fescenina , satírica , religiosa ,
filosófica e encomiástica . Neste breve comentário, nos deteremos na sua poesia
satírica e religiosa em virtude de serem estas duas modalidades textuais solicitadas
pelos vestibulare.
A LÍRICA AMOROSA
A produção amorosa de Gregório de Matos recebe uma forte influência de Petrarca e
Camões. Há tons idealizantes no que diz respeito à concepção feminina, ressaltando o
seu aspecto angelical. O platonismo é evidenciado como predominante, destinando o
poeta um sentimento “puro”, sublime. Todavia, o sofrimento amoroso se torna latente
no autor, visto uma não concretização amorosa, exacerbando os seus sentimentos em
conotações contraditórias, tipicamente barroca , como se evidencia no soneto abaixo :
Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:
Tu, que um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal, em chamas derretido.
Se és fogo, como passas brandamente,
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!
Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.
COMENTÁRIOS :
Na primeira estrofe, o poeta caracteriza seus sentimentos para com a sua musa. O
sofrimento é nitidamente evidenciado ao colocar como sinônimo de amor ardor e
pranto. O exagero sentimental nesses dois primeiros versos se faz com a utilização da
hipérbole. Nos dois versos seguintes, o conflito amoroso no autor se torna claro com
o uso de paradoxos – Incêndio em mares, neve convertida em fogo.
Na estrofe seguinte, ele escreve sobre esse sentimento que o consome. Para
desenvolver tal conotação, foi necessário que o poeta começasse a atribuir toda uma
simbologia na estrofe anterior, onde neve significaria tranqüilidade e fogo a inquietude
do amor. É com base nessa simbologia, ele coloca que seu peito está abrasado, que
esse fogo (amor) aprisionado em cristal (peito do poeta ) o está consumindo.
As contradições oriundas do amor são questionadas com interrogações no primeiro
terceto para que se chegasse à conclusão que enquanto ele fosse a neve ardente, ela
seria a chama fria. Perceba que essas definições estão calcadas no paradoxo para
ressaltar as contrariedades do amor (que não é correspondido pela parte feminina).
Estilisticamente, há a predominância de versos decassílabos, as rimas intercaladas, os
períodos invertidos sintaticamente, além do tipo de composição escolhida: o soneto.
A LÍRICA SATÍRICA
É a produção satírica a mais destacada por alguns na poesia de Gregório de Matos.
Dir-se-ia aqui que ela representa a que deu uma maior tônica pessoal ao poeta.
Gregório parece figurar como uma espécie de metralhadora giratória, não poupando
críticas a nenhum seguimento social da Bahia. Governantes, clero, mulatos,
comerciantes, a “nobreza Caramuru”, mestiços, enfim, todos. Um exemplo dessa
indistinção se percebe no poema “Milagres do Brasil São”, satirizando a figura do
Vigário de Passé, Lourenço Ribeiro, pelo fato de ser um homem de cor , chamando-o
de “Cão revestido em Padre” :
Imaginais que o insensato
Do canzarrão fala tanto
Porque saba tanto , ou quanto ?
Não , senão porque é mulato ;
Ter sangue de carrapato ,
Ter estoraque de congo ,
Cheirar-lhe a roupa a mondongo
É cifrar de perfeição :
Milagres do Brasil são .
ou então no célebre poema do “Pica-Flor” , que seria uma resposta malcriada a uma
freira que lhe compara ao beija-flor :
A uma freira que, satirizando a delgada fisionomia do poeta, chamou-lhe picaflor.
Se pica-flor me chamais,
Pica-flor aceito ser,
Mas resta agora saber,
se no nome, que me dais,
meteis a flor, que guardais
no passarinho melhor!
se me dais este favor,
sendo só de mim o pica,
e o mais vosso, claro fica,
que fico então pica-flor.
Ironia , deboche , humor e irreverência – eis as marcas na sátira de Gregório de Matos
que lhe renderam o degredo a Angola em 1694 .
No exemplo abaixo, pode-se perceber, além dos predicados aludidos no parágrafo
anterior, um tom de ressentimento e vingança por parte do autor
Triste Bahia! oh quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado.
Rica te vi eu já, tu a mim abundante.
A ti tocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.
Oh, se quisera Deus que, de repente,
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!
COMENTÁRIOS :
Nesse poema, tem-se um painel das transformações sociais e econômicas sofridas
pela Bahia ao final do século XVII. Na primeira estrofe, o poeta evoca um passado
(antigo estado) dele e da Bahia, colocando estarem tão diferentes (quão
dessemelhante ) . Dois tempos são evocados aqui : o presente e o passado de ambos.
Atualmente, sua terra natal se vê empobrecida, enquanto ele (pertencente à nobreza
Caramuru) não está gozando do status e das facilidades que levara até então.
A máquina mercante que tem entrado na larga barra baiana é uma alusão à atividade
mercantilista que se processa nesse período, principalmente pelos franceses,
holandeses e britânica. Tudo isso tem alterado (trocado) não somente o perfil baiano
como do próprio autor. As atividades comerciais começam a ter sua ascensão
enquanto as agrárias (cana-de-açúcar) em que o poeta se vê inserido estão em
declínio. É esse declínio econômico que Gregório de Matos faz referência no início do
texto.
A imprudência dos baianos é condenada nos dois últimos tercetos. O autor se utiliza
de uma personificação para a Bahia, colocando-a como personagem. O caráter de
“metida”da senhora Bahia é ressaltado pelo termo abelhudo, que troca seu açúcar
(ouro branco) por artigos de luxo (drogas inúteis) trazidas pelos comerciantes (que
estão aqui designados por Broichote , pejorativo de British – comerciante inglês ) .
É tal imprudência que faz com que a senhora Bahia decline. Por isso, o poeta evoca a
divindade (Deus) para que lhe dê um castigo – amanhecendo sisuda com uma capa
(capote) simplória (de algodão), o que representaria a perda total do status da Bahia.
A LÍRICA RELIGIOSA
Essa é a produção gregoriana mais tipicamente barroca pois aqui vê-se inserido o
conflito espiritual desse período . A dialética PECADO x PERDÃO é bem evidenciada.
O poeta assume a sua condição de pecador diante da divindade, não extraindo de si a
sua culpabilidade. Todavia, é nessa mesma culpabilidade que ele espera ser salvo,
como ilustra bem o poema no início desse capítulo ao ser exemplificado o
CONCEPTISMO.
Nos seus textos religiosos, o estilo predominante é o conceptismo. Aqui, o autor
tentará convencer a Deus que, embora tenha pecado (e como) ele merece (e precisa)
ser salvo. O materialismo e a espiritualidade se chocam continuamente dentro
desse tipo de produção poética. Todos esses aspectos estão bem evidenciados no
poema abaixo:
Meu Deus, que estais pendente em um madeiro ,
Em cuja lei protesto de viver ,
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso , constante , firme , e inteiro .
Nesse lance , por ser o derradeiro ,
Pois vejo a minha vida anoitecer ,
É , meu Jesus , a hora de se ver
A brandura de um Pai manso Cordeiro .
Mui grande é vosso amor , e meu delito ,
Porém pode ter fim todo o pecar ,
E não o vosso amor , que é infinito .
Esta razão me obriga a confiar ,
Que por mais que pequei , neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar .
COMENTÁRIOS:
O poeta inicia o texto se dirigindo à divindade em tom de súplica. Reafirma aqui sua
condição de pecador (v.02) e, embora tenha renegado as leis divinas, tem consciência
de que irá ser julgado por elas quando morrer.
Na segunda estrofe, tenta uma última chance de ser salvo, pois percebe estar próximo
à morte – “minha vida anoitecer”. A chantagem emocional que o eu lírico faz com Deus
começa a ganhar corpo. É nesse momento que ele afirma ser a hora de se ver o
caráter misericordioso do Pai celeste.
Na estrofe seguinte, é dado início ao jogo conceptista. O poeta começa a articular sua
“teia argumentativa” afirmando ser grande o amor de Deus e o seu pecar. Todavia,
este amor é infinito, contrapondo-se com seus pecados, finitos.
Fecha-se o jogo conceptista na última estrofe. De acordo com o autor baiano, ele
espera se salvar em virtude da imensidão do amor divino, já que Deus é
0
misericordioso (2 estrofe).
A LÍRICA FILOSÓFICA
A influência de Camões é muito evidenciada nesse tipo de composição. Aqui, Gregório
fica no campo das especulações, tentando obter respostas sobre dúvidas que
dilaceram o eu lírico. Tais dúvidas, em grande parte, são oriundas do conflito espiritual
vivenciado pelo autor.
Embora exista uma busca constante por respostas, o que se percebe é um eu poético
perdido em suas indagações, transitando entre seus conflitos em busca de valores,
como no soneto abaixo:
O bem que não chegou a ser possuído,
Perdido causa tanto sentimento,
Que, faltando-lhe a causa do tormento,
Faz ser maior tormento o padecido.
Sentir o bem logrado, e já perdido,
Mágoa será do próprio entendimento;
Porém, o bem que perde um pensamento
Não deixa a outro bem restituído.
Se o lôgro satisfaz a mesma vida
E, depois de logrado, fica engano
A falta que o bem faz em qualquer sorte.
Infalível será ser homicida
O bem que sem ser mal, motiva o dano;
O mal que sem ser bem, apressa a morte.
COMENTÁRIOS:
Aqui, Gregório de Matos questiona-se sobre o seguinte ponto: O que é mais
significativo- o bem que se perde na posse ou antes de possuído ?
Ao início, o autor pondera o sentimento causado pelo que foi perdido antes da posse.
Tal sentimento aumenta quando ele não sabe o que fez para a perda do que ansiava.
Na estrofe seguinte, o autor reflete sobre o sofrimento que lhe ficou diante da perda
para, nos tercetos, concluir que perder algo antes de possuído causa-lhe maior
angústia.
Para chegar a tal conclusão, temos o desenvolvimento de todo um pensamento
conceptista, ponderando entre bem possuído, mas perdido e bem que não chegou
a ser possuído; sentimento com causa de tormento e sentimento sem causa de
tormento ; entendimento e pensamento , refletindo bem o caráter antitético do
Barroco.
3-POEMAS PARA ANÁLISE
A) Sacros: A CRISTO S.N. CRUSCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA
HORA DE SUA VIDA
Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer,
Animoso, constante, firme, inteiro.
Neste lance por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai manso Cordeiro.
Mui grande é vosso amor e meu delito,
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor que é infinito.
Esta razão me obriga a confiar,
Que por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.
A JESUS CRISTO NOSSO SENHOR
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinqüido, Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma
culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida
e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na sacra história,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, perder
na vossa ovelha a vossa glória.
A N. S. JESUS CRISTO COM ATOS DE CONTRIÇÃO E SUSPIROS DE AMOR
Ofendi-vos, meu Deus, bem é verdade,
É verdade, meu Deus, que hei deliqüido,
Deliqüido vos tenho, e ofendido, ofendido vos tem minha maldade.
Maldade, que encaminha à vaidade,
Vaidade, que todo me há vencido;
Vencido quero ver-me, e arrependido,
Arrependido a tanta enormidade.
Arrependido estou de coração,
De coração vos busco, daí-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.
Luz, que claro, me mostra a salvação,
A salvação pretendo em tais abraços,
Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus.
B) Filosóficos:
MORALIZA O POETA NOS OCIDENTES DO SOL A INCONSTÂNCIA DOS BENS
DO MUNDO
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, Depois da Luz se segue a noite escura, Em
tristes sombras morre a formosura, Em contínuas tristezas a alegria.
Porém se acaba o Sol, por que nascia? Se formosa a Luz é, por que não dura? Como
a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza, Na formosura não se dê constância, E na alegria
sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância, E tem qualquer dos bens por natureza A
firmeza somente na inconstância.
C) Satíricos:
AOS VÍCIOS
Eu sou aquele que os passados anos Cantei na minha lira maldizente Torpezas do
Brasil, vícios e enganos.
E bem que os descantei bastantemente, Canto segunda vez na mesma lira O mesmo
assunto em pletro diferente. De que pode servir calar quem cala? Nunca se há de falar
o que se sente?! Sempre se há de sentir o que se fala.
Qual homem pode haver tão paciente, Que, vendo o triste estado da Bahia, Não
chore, não suspire e não lamente? Isto faz a discreta fantasia: Discorre em um e outro
desconcerto, Condena o roubo, increpa a hipocrisia. O néscio, o ignorante, o
inexperto, Que não elege o bom, nem mau reprova, Por tudo passa deslumbrado e
incerto.
E quando vê talvez na doce trova Louvado o bem, e o mal vituperado, A tudo faz
focinho, e nada aprova. Diz logo prudentaço e repousado: - Fulano é um satírico, é um
louco, De língua má, de coração danado. Néscio, se disso entendes nada ou pouco,
Como mofas com riso e algazarras Musas, que estimo ter, quando as invoco? Se
souberas falar, também falaras, Também satirizaras, se souberas, E se foras poeta,
poetizaras. A ignorância dos homens destas eras Sisudos faz ser uns, outros
prudentes, Que a mudez canoniza bestas feras. Há bons, por não poderem ser
insolentes, Outros há comedidos de medrosos, Não mordem outros não - por não ter
dentes. Quantos há que os telhados têm vidrosos, e deixam de atirar sua pedrada, De
sua mesma telha receosa? Uma só natureza nos foi dada; Não criou Deus os naturais
diversos; Um só Adão criou, e esse de nada. Todos somos ruins, todos perversos, Só
os distingue o vício e a virtude, De que uns são comensais, outros adversos. Quem
maior a tiver, do que eu ter pude, Esse só me censure, esse me note, Calem-se os
mais, chitom, e haja saúde.
Finge que Defende a Honra da Cidade e Aponto os Vícios de Seus Moradores
Uma cidade tão nobre, uma gente tão honrada veja-se um dia louvada desde o mais
rico ao mais pobre: cada pessoa o seu cobre, mas se o diabo me atiça, que indo a
fazer-lhe justiça algum saia a justiçar, não me poderão negar que por direito, e por Lei
esta é a justiça, que manda El-Rei.
O Fidalgo de solar se dá por envergonhado de um tostão pedir prestado para o ventre
sustentar: diz que antes o quer furtar por manter a negra honra, que passar pela
desonra de que lhe neguem talvez; mas se o virdes nas galés com honras de ViceRei, esta é a justiça, que manda El-Rei.
A Donzela embiocada mal trajada, e mal comida, antes quer na sua vida ter saia, que
ser honrada: à pública amancebada por manter a negra honrinha, e se lho sabe a
vizinha e lho ouve a clerezia, dão com ela na enxovia e paga a pena da lei: esta é a
justiça, que manda El-Rei.
A Viúva autorizada, que não possui um vintém, porque o Marido de bem deixou a casa
empenhada: ali vai a fradalhada, qual formiga em correição, dizendo que à casa vão
manter a honra da casa; se a virdes arder em brasa, que ardeu a honra entendei: esta
é a justiça, que manda El-Rei.
Se virdes um Dom Abade sobre o púlpito cioso, não lhe chameis religioso,
chamai-lhe embora de frade: e se o tal paternidade rouba as rendas do convento para
acudir ao sustento da puta, como da peita, com que livra da suspeita do Geral, do
Viso-Rei: esta é a justiça, que manda El-Rei.
D) Lírica Amorosa:
A UMA DAMA
Dama cruel, quem quer que vós sejais, Que não quero por hora descobrir-vos, Dai-me
licença agora para argüir-vos, Pois para amar-vos sempre ma negais: Por que razão
de ingrata vos prezais, Não me pagando o zelo de servir-vos? Sem dúvida deveis de
persuadir-vos,
Que a ingratidão aformoseia mais. Não há cousa mais feia na verdade: Se a ingratidão
aos nobres envilece, Que beleza fará, o que é fealdade?
Depois, que sois ingrata me parece, Que hoje é torpeza o que era então beldade, Que
é flor a ingratidão que em flor fenece.
À MARIA DOS POVOS, MINHA FUTURA ESPOSA
Discreta e formosíssima Maria, Enquanto estamos vendo claramente, Na vossa
ardente vista o sol ardente, E na rosada face a aurora fria: Enquanto pois produz,
enquanto cria Essa esfera gentil, mina excelente No cabelo o metal mais reluzente, E
na boca a mais fina pedraria: Gozai, gozai da flor da formosura, Antes que o frio da
madura idade Tronco deixe despido, o que é verdura. Que passado o zênite da
mocidade, Sem a noite encontrar da sepultura, É cada dia ocaso da beldade.
DEFINIÇÃO DE AMOR (ROMANCE)
Nada disto é, nem se ignora,
Que o Amor é fogo, e bem era
Tivesse por berço as chamas
Se é raio nas aparências.
Este se chama Monarca,
Ou semideus se nomeia
Cujo céu são esperanças,
Cujo inferno são ausências.
Um Rei, que mares domina, um mundo que sopeia,
Sem mais tesouro que um arco,
Sem mais arma que uma seta,
O arco talvez de pipa,
A seta talvez de esteira,
Despido como um maroto, cego como uma topeira.
Arre lá com tal amor!
Isto é amor? É quimera,
Que faz de um homem prudente
Converter-se logo em besta.
Uma bofia, uma mentira,
Chamar-lhe ei mais depressa,
Fogo selvagem nas bolsas,
E uma sarna nas moedas.
É este, o que chupa, e tira
Vida, saúde e fazenda.
E se hemos falar a verdade
É hoje o Amor desta era
Tudo uma bebedice.
Que se acaba co dormir
E co dormir se começa.
O Amor é finalmente
Um embaraço de pernas,
Uma união de barrigas,
Um breve tremor de artérias,
Uma confusão de bocas,
Uma batalha de veias,
Um rebuliço de ancas,
Quem diz outra coisa é besta.
Sites para pesquisa:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/gregoriodematos
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/gregorio.html
SONETOS DE CAMÕES
Comentário
Mais de 400 anos de polêmicas cercam qualquer nova edição dos Sonetos de Luís
de Camões. Principalmente se a intenção é organizá-la de forma metódica e criteriosa.
Depois de estudar a poesia camoniana durante sete anos, para publicar sua edição
da obra lírica de Camões, Domingos Fernandes ainda avisava seus leitores, em 1616:
“Se neste livro se acharem algumas coisas que não sejam de Camões, não me
ponham culpa.” As dificuldades em se determinar com precisão a autoria dos 400
sonetos que, em algum momento, foram atribuídos a Camões são tantas e tão antigas
que levam até o mais cuidadoso dos editores a dar, por escrúpulos, avisos
semelhantes seus leitores.
Os sonetos de Camões só foram publicados pela primeira vez em 1595, 15 anos
após a sua morte. O organizador Lobo Soropita haveria de incluir, nessa primeira
edição, vários sonetos apócrifos, atribuídos erroneamente ao autor dos Lusíadas.
Desde então, os erros foram se reproduzindo e as discussões se multiplicando. Há
sonetos banidos de certas edições, só para serem resgatados nas seguintes. Com
outros, o contrário ocorre. Alguns editores são muito complacentes, outros pecam
pelo excesso de rigor. Muitos são exageradamente subjetivos, poucos se entendem.
Aos primeiros sonetos publicados por Soropita (1595), as sucessivas edições da
lírica camoniana foram acrescentando muitos poemas de autoria duvidosa. O caos se
estabelece ao acompanharmos as edições de Estêvão Lopes (1598), Domingos
Fernandes (1616), Álvares da Cunha (1663-1668), Faria e Sousa (1685) e do
Visconde de Juromenha (1861), que foram construindo o corpus de 400 sonetos
atribuídos a Luís de Camões.
Para lançarmos um pouco de luz nesse quebra-cabeças, escolhemos os critérios
expostos pelo poeta, crítico literário e incansável estudioso camoniano Jorge de Sena
em sua obra Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular
(Portugália Editora; Lisboa; 1969). Estudando os sonetos tanto do ponto de vista
histórico quanto semântico e estrutural, Sena chega à conclusão de que as edições de
1595
a
1663
apresentam
119
sonetos
legitimamente
camonianos.
Apresentamos, portanto, nessa edição, os 119 sonetos apontados por Jorge de
Sena e acrescentamos 20 deles por nós escolhidos das edições posteriores, assim
como 11 poemas considerados por Jorge de Sena e por nós como apócrifos, ou de
autoria contestada.
Como critério de ordenação dos sonetos, escolhemos apresentá-los divididos pelas
edições em que primeiro apareceram, seguindo o que já fora feito por Hernâni Cidade
na edição das Obras Completas de Luís de Camões (Livraria Sá da Costa; Lisboa;
1946).
Já o estabelecimento do texto, para essa edição brasileira, seguiu o estudo rigoroso
feito por Cleonice Berardinelli no monumental volume Sonetos de Camões - Corpus
dos Sonetos Camonianos (Centre Culturel Portugais/Casa de Rui Barbosa;
Lisboa/Paris/Rio de Janeiro; 1980). Fizemos apenas as alterações exigidas pelo
Português do Brasil, quando não foram prejudiciais à métrica, rima, ou ritmo dos
poemas.
Esperamos, assim, que o leitor brasileiro possa ter uma visão segura do que há de
melhor na obra do maior sonetista da nossa língua. Para os que o lêem por prazer,
oferecemos o respaldo do nosso estudo. Aos que o fazem por obrigação escolar,
desejamos que encontrem nessas pequenas obras-primas o prazer que tem
contagiado leitores por mais de 400 anos.
Frederico Barbosa
Sonetos disponíveis em:
http://fredb.sites.uol.com.br/lusdecam.htm (sonetos disponíveis)
http://www.scribd.com/doc/2410087/camoes-sonetos
Comentários (Sonetos de Camões)
Cantor dos desconcertos do mundo (Sonetos de Camões)
Camões é o maior poeta lírico do Classicismo português. Dotado de inegável
genialidade, coube a ele a melhor performance do soneto em língua portuguesa.
Camões segue estritas regras de composição, obedecendo ao princípio da imitação,
embebendo-se em fontes italianas como as do poeta Petrarca. A brevidade do soneto
-- dois quartetos, dois tercetos -- requer grande concentração emocional, geralmente
disposta sob a forma de tese-antítese com desfecho conclusivo que busca a síntese
ou a unidade. A linguagem é condensada no decassílabo, utilizando a palavra de
forma precisa, permeada pelo controle rígido da razão, mesmo quando o tema é uma
aparente desordem. Assim, Camões é capaz de expressar-se de maneira
extremamente concisa em sonetos narrativos como o famoso "Sete anos de pastor
Jacó servia" e de lamentar de maneira semi-romântica a ausência da amada em "Alma
minha gentil, que te partiste". É nos sonetos de análise que o poeta alcança maior
desenvoltura, tecendo reflexões sobre o tempo - "Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades" - buscando uma definição do amor, ilustrada por uma de suas mais famosas
produções - "Amor é fogo que arde sem se ver". Ele capta a psicologia feminina
através de versos inesquecíveis, cujo exemplo mais significativo está em "Um mover
de olhos, brando e piedoso". São muitas as composições lírico-amorosas, em que a
mulher e o amor são idealizados como forma de atingir a supremacia do Bem e da
Beleza. Camões se deixa levar por um certo sensualismo carnal que se opõe ao ideal
petrarquiano do amor, ilustrado por "Transforma-se o amador na coisa amada". Além
do tema amoroso, Camões se faz cantor dos desconcertos do mundo. Espírito muito
atento à sua época, tem plena consciência de que tudo muda, nada é eterno. O
homem, embora queira sempre atingir o ideal e a perfeição, depara-se com a terrível
restrição imposta pela própria condição humana. O poeta chega à conclusão de que
não existe o absoluto ou o eterno, restando a ele divagar sobre o real e o ideal, o
eterno e o transitório, a morte e a vida, o pessoal e o universal. Nesses pares,
encontram-se as mais profundas tensões que a lírica já deixou transparecer.
CRONISTAS DO DESCOBRIMENTO
OBSERVAÇÃO: OS DOIS TRECHOS ABAIXO CAIRAM NO ÚLTIMO VESTIBULAR
DE LAVRAS
Trecho da obra
VIAGEM À TERRA DO BRASIL
Jean de Léry
Quanto à organização social de nossos selvagens,
é coisa quase incrível – e dizê-la envergonhará aqueles
que têm leis divinas e humanas – que, apesar de serem
conduzidos apenas pelo seu natural, ainda que um tanto
degenerado, eles se dêem tão bem e vivam em tanta paz
uns com os outros. Ocorrendo alguma briga (o que se dá
com tão pouca freqüência que durante quase um ano em
que com eles estive só os vi brigar duas vezes), os outros
nem sequer pensam em separar ou pacificar os
contendores; ao contrário, se estes tiverem de arrancar-se
mutuamente os olhos, ninguém lhes dirá nada, e eles assim
farão. Todavia, se alguém for ferido por seu próximo, e se
o agressor for preso, ser-lhe-á infligido o mesmo
ferimento no mesmo lugar do corpo, por parte dos
parentes próximos do agredido, e caso este venha a
morrer depois, ou caso morra na hora, os parentes do
defunto tiram a vida ao assassino de um modo semelhante.
De tal forma que, para dizer numa palavra, é vida por
vida, olho por olho, dente por dente. Mas, como já disse,
são coisas que raramente se vêem entre eles.
Pode-se concluir que tudo o que eu disse sobre a
lealdade desses selvagens para com os amigos continua
sendo verdadeiro e indubitável, ou seja, que eles sentiriam
grande pesar em desagradá-los. Ao que, à guisa de
conclusão, eu acrescentaria que os velhos sobretudo, que
no passado não tiveram machados, foices e facas (coisas
que hoje lhes parecem tão apropriadas para cortar
madeira e fazer arcos e flechas), não só tratam muito bem
os franceses que os visitam como também exortam os
jovens a fazer o mesmo no futuro.
Crônicas do Descobrimento – Antônio Carlos Olivieri e
Marco Antônio Villa (organizadores) – Com adaptações.
Vocabulário:
contendor = adversário, rival
à guisa de = como
exortar = estimular, induzir
CARTA AO PADRE GERAL, 1º/6/1560
José de Anchieta
Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1º de junho
de 1560.
No ano de 1558, no fim do mês de maio escrevi,
Reverendo em Cristo Padre, o que se passou, assim acerca
de nós outros, como da conversão e doutrina dos índios.
Há tão poucas cousas dignas de se escrever, que não
sei que escreva, porque, se escrever a Vossa Paternidade
que haja muitos dos Brasis convertidos, enganar-se-á a
sua esperança, porque os adultos a quem os maus
costumes de seus pais têm convertido em natureza, cerram
os ouvidos para não ouvir a palavra de salvação, e
converter-se ao verdadeiro culto de Deus.
Um só exemplo contarei por me não demorar em cada
cousa particular, e que não será causa de menor alegria.
Faleceu há pouco uma velha índia que havia sido
manceba de um português quase quarenta anos, e ainda
gerando muitos filhos; esta como os nossos irmãos
houvessem muito admoestado, que olhasse para si, e não
quisesse ir-se ao inferno por aquele pecado, logo
arrependida, e conhecendo a maldade com que havia
vivido, aborreceu o pecado perseverando na castidade, e
trabalhava de purgar seus pecados com muitas esmolas
que nos fazia. Agora, ferida de uma longa e incurável
enfermidade, foi a Piratininga, onde deixou uma casa para
seus filhos e escravos. Entendia somente as cousas
tocantes à salvação de sua alma, confessava e comungava
muitas vezes, e dando-nos muitas esmolas, aparelhava
eternos tabernáculos na vida. Visitavam-na muitas vezes
os irmãos, confortavam-na nas divinas palavras,
principalmente quando já no último, tendo corruptos os
membros secretos (esta era sua enfermidade, que é mui
comum nestas mulheres do Brasil, ainda virgens), mas o
Padre Afonso Braz, e o irmão Gaspar Lourenço,
intérprete, tendo mais ânimo ao odor que sua alma havia
de dar, venceram o fedor que aos outros era intolerável,
estiveram toda a noite sem dormir, esforçando-a com
divinas palavras, em que ela muito se deleitava, até que
expirou com ditoso fim, como é de crer.
*Brasis: é expressão usada na época para designar os
índios brasileiros.
Crônicas do Descobrimento – Antônio Carlos Olivieri e
Marco Antônio Villa (organizadores) – Com adaptações.
ANÁLISE
Cronistas do Descobrimento, de Org. Antônio Carlos Olivieri e Marco Antonio
Villa
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O livro Cronistas do Descobrimento é uma antologia organizada por Antônio Carlos
Olivieri e Marco Antonio Villa, com introdução ponderada e didática, apresentando um
panorama
dos
textos
produzidos
pelos
cronistas
do
século
XVI.
Os autores selecionaram passagens de mais de doze obras apresentando um
panorama abrangente dos primeiros contatos dos europeus com o território brasileiro e
com os povos indígenas, dando-nos oportunidade de conhecer fatos sobre o
nascimento do Brasil através da palavra de quem viveu os acontecimentos. Os textos
dos cronistas se parecem com uma grande obra de aventura, que nos surpreende a
cada
passo.
A obra reúne trechos começando pela Carta de Achamento de Pero Vaz de Caminha,
e encontramos entre outros, trechos de obras de Hans Staden, cartas de jesuítas
como José de Anchieta e Manuel da Nóbrega, além de Pero de Magalhães Gândavo.
Narrativas menos citadas, como a do Piloto Anônimo e dos franceses Thevet e Léry
são incluídas. São textos interessantes que apresentam as impressões de europeus
sobre
o
país
e
seus
habitantes.
A obra descreve os hábitos e as riquezas naturais do Brasil de quinhentos anos atrás;
uma natureza rica em pau-brasil, árvores frutíferas, diversidade de animais que não
eram conhecidos pelo homem europeu e que despertou o interesse de conhecer cada
vez mais o que era realmente o Brasil. Com isso, começou-se um processo de
exploração, retirando da nossa terra o que ela possuía de melhor, através do intenso
trabalho dos índios, que entregavam nossas riquezas em troca de utensílios sem
valor. A admiração dos portugueses pelos índios transformou-se em ambição e
avareza, levando-os a acabar com a cultura indígena, provocando assim a
aculturação: o índio abandona seus hábitos e costumes para absorver a cultura
européia imposta a eles.
Gabriel Soares de Sousa, um dos cronistas cujo texto está inserido nesta obra, tece
considerações críticas a respeito da liberdade excessiva dos índios, evidenciando uma
sociedade livre, portanto não regida por leis de controle social, fato que dificultava o
domínio mais prático e intensivo sobre o habitante local. O texto de Gabriel também
nos revela o paradoxo sustentado no fato de que a catequese ou conversão do índio
ao cristianismo não está relacionado a um estado de consciência de fé, por parte do
Gentio.
Pode-se observar nos textos dos cronistas do descobrimento, que versam, em boa
parte, sobre a questão do desrespeito às tradições culturais e intelectuais de um povo
- basta lembrar a visão do índio como destituído de saber, de tradição e de cultura a
reforçar a discriminação dos valores do povo conquistado, nas inúmeras cartas e nos
relatos da época do descobrimento.
Fonte: passeiweb
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ANÁLISE DE OBRAS – VESTIBULAR SERIADO 2008 A HORA DA