VI – Doutores e Mestres - 2006 A HORA DA ESTRELA: A REPESENTAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS DE CLARICE LISPECTOR POR CAETANO VELOSO E WALY SALOMÃO Carlos André Rodrigues de Carvalho (Mestre em Teoria da Literatura) Resumo: O presente trabalho tem como finalidade analisar, do ponto de vista narrativo, a representação que o compositor Caetano Veloso e o poeta Waly Salomão fazem dos personagens Macabéa, Olímpico e Glória, de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, nas músicas O Nome da Cidade, Campeão Olímpico de Jesus, A Hora da Estrela de Cinema e Da Gema. Palavras-chave: Narrativa; Representação; Kitsch. Em 1977, pouco antes de morrer, a escritora Clarice Lispector parecia chegar, com A Hora da Estrela, à síntese de sua visão sobre a situação do homem diante do mundo. Em suas diversas manifestações conflitivas, em que se chocam violentamente a vivência interior e a realidade, as personagens são sofridas e cuidadosamente delineadas, numa sondagem vertical, provocadora, que nos impede de refletir sobre a nossa própria condição humana. O livro tem como narrador/personagem Rodrigo S. M, “que ironiza, através de contínuas intrusões no texto, o estilo de narrativa que ele próprio utiliza. Coloca-se assim, pela freqüência com que dialoga com o leitor sobre a construção da narrativa, como uma das personagens centrais do romance”. (CAMPEDELLI e ABDALA JR., 1981:92). O início da história se dá quando ele – narrado – encontra, numa rua do Rio de Janeiro, o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Como o material de que um escritor dispõe para revelar a sua história é a palavra, Clarice/Rodrigo S.M. luta, na elaboração de seu romance, para romper o espaço do texto, na busca da cintilação das estrelas nas pedras opacas da língua, na tentativa conseguir algo impossível: “Tentarei tirar ouro do carvão” (LISPECTOR, 1977:23). Tenta também buscar o silêncio no barulho do grito, de buscar o perene no que é fugaz. Assim como a palavra tem que se parecer com a palavra, tem que ser apenas ela, o personagem-narrador procura a sua autenticidade, o seu encontro consigo mesmo, como personagem e como narrador. Como personagem, tentando recuperar o seu lado interior, o mais verdadeiro. Como narrador, obrigando-se a refletir a simplicidade dos sentimentos autênticos numa linguagem despojada, não contaminada pela rotina dos signos que já não apontam para mais nada, comprometidos pelo uso desgastante do instrumental já tão trabalhado na elaboração de outros textos, tentando captar o sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. A personagem-protagonista do livro é Macabéa, reduzida ao apelido de Maca, uma nordestina do interior de Alagoas. Pobre e datilógrafa, era incompetente para a Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 409 VI – Doutores e Mestres - 2006 vida, pois estava sempre à margem deste rio que corre para lugar nenhum. Na verdade, o mundo é que não estava preparado para receber Macabéa (“o mundo me navega e eu não sei navegar”1), já que ela incomodava por sua humildade, por seu gauchismo, por sua inconsciência da infelicidade. Incômoda porque não reclamava, incômoda porque não obedecia, incômoda porque tinha olhos de quem perguntava sem fazer perguntas, ela que sabia que nada tinha resposta. Macabéa tinha sido criado por uma tia beata, depois da morte dos pais quando tinha apenas dois anos de idade. Por motivos que ela mesma ignora, viajou de Alagoas para o Rio de Janeiro, onde passa a viver com mais quatro amigas na Rua do Acre. Anônima na cidade grande, frágil, magricela, símbolo da busca de Clarice e, quem sabe, sua resposta no sentido de superar a inautenticidade que rege comumente as relações entre os homens. Assim era Macabéa. O seu encontro com a cartomante, a quem vai procurar, a coloca diante do seu destino. Sua morte patenteia a sua presença silenciosa num mundo feito todo contra ela. Macabéa, por exemplo, acumula no corpo franzino “herança do sertão”, todas as formas de repressão cultural, o que a deixa alheada de si e da sociedade. É um verdadeiro “parafuso indispensável” na sociedade técnica em que vive. Olímpico de Jesus Moreira Chaves, o namorado paraibano, operário de uma metalúrgica, não tinha consciência, talvez, do quanto era parecido com Macabéa, pela mesma origem nordestina, pela marginalização social, pela ignorância sobre as coisas. Dela diferia, entretanto, por seus sonhos de grandeza, por seu ar de quem pensava que sabia das coisas, por seu inconformismo que o tornava agressivo e impaciente com Macabéia, sábia pela humildade, sensível, alienada por defesa e, por isso mesmo, livre da felicidade e da infelicidade, livre de toda a máquina armada pelos homens para gerar necessidades. Glória, a colega de trabalho de Macabéa, é uma carioca autêntica “safadinha e esperta” (LISPECTOR, 1977:64), que fica com o namorado de Macabéa e, indiretamente, conduz a protagonista à morte. Macabéa morre atropelada depois da visita a uma cartomante indicada por Glória, que aliás empresta a dinheiro a Macabéa para pagar a consulta. O atropelamento de Macabéa por luxuoso Mercedes Benz amarelo é a “hora da estrela” de cinema”, onde ela vai ser “tão grande como um cavalo morto”. Foi este universo, composto de personagens tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes, forjado por Clarice que o compositor Caetano Veloso e o poeta Waly Salomão recriaram, em 1984, ao comporem quatro poemas-canção que descrevem os três personagens de Clarice Lispector. As canções foram feitas para integrar o espetáculo A Hora da Estrela, inspirado no livro de Clarice, da cantora Maria Bethânia. Além das quatro músicas inéditas, que são objetos de análise deste trabalho, integraram o repertório do show outras canções já conhecidas, que se adequavam ao universo clariceano. 1 Verso do poema-canção A Hora da Estrela de Cinema, de Caetano Veloso, um dos que serão analisados mais adiante. Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 410 VI – Doutores e Mestres - 2006 Na representação da representação feita por Caetano Veloso e Waly Salomão, o narrador/personagem de Clarice, Rodrigo S.M., é descartado. Macabéa assume a postura de narradora clássica (onisciente), ganhando voz e, narrando não apenas suas mazelas, mas também a exuberância da colega Glória e a condição de Olímpico de Jesus. Mas o que Macabéa de Caetano faz é narrar ou descrever? Para distinguirmos os dois procedimentos recorreremos ao ensaio “Narrar ou Descrever”, de Lukács (1968). Através da comparação de um mesmo episódio – a corrida de cavalos – em dois romances diferentes (Naná e Ana Karenina), Lukács diz que no primeiro os detalhes são incidentais e, portanto, desnecessários, o que se configura uma descrição, enquanto no segundo, são decisivos para o desenrolar da ação dramática, que consiste na narrativa. A partir da importância das informações dos quatro textos que serão analisados, poderemos considerá-los como narrativas e não como descrições. Os autores dos poemas-canção inspirados nos personagens de Clarice Lispector, ao narrarem esses personagens, colocam um pouco de si nesses textos, mas não por acaso. Ambos, Caetano Veloso e Waly Salomão, já passaram por momentos semelhantes aos de Macabéa e Olímpico. Assim como o casal do livro de Clarice, os dois poetas são nordestinos – o primeiro de Santo Amado da Purificação, interior cravado no Recôncavo Baiano, e o segundo, embora filho de pai sírio e mãe baiana, nasceu em Jequié, também interior da Bahia. Assim como Macabéa se mudaram para o Rio de Janeiro para tentar a vida. No caso de Waly, pode-se não notar muita semelhança entre ele e Olímpico, mas, no interior da Bahia, o poeta esteve próximo a muitos homens com perfil semelhante ao “cabra da peste” Olímpico de Jesus, e, no Rio de Janeiro, onde morou até morrer em junho do ano 2004, aos 58 anos, conheceu muitas Glórias. Wolfgang Iser ajuda a esclarecer a mistura de realidade e ficção nos quatro poemas-canção em pauta: “No ato de fingir, o imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria e adquire, deste modo, um predicado de realidade; pois a determinação é uma definição mínima do real. Na verdade, o imaginário não se transforma em real por efeito da determinação alcançada pelo ato de fingir, muito embora possa adquirir aparência de real na medida em que por este ato pode penetrar no mundo e aí agir”. (Apud LIMA, 2002). Construídas a partir de um compromisso com o já dito, para usar uma expressão de Michel Foucault, ou o quase dito ou ainda o sugerido no livro de Clarice, os quatro poemas-canção objetos de análise neste trabalho podem ser lidos/ouvidos sem qualquer vínculo ao livro de Clarice. A Macabéa de O Nome da Cidade ou de A Hora da Estrela de Cinema pode ser qualquer mulher. O Olímpico, do poema de Waly, pode ser qualquer homem que guarde características semelhantes as dele. E a Glória, de Da Gema, pode ser qualquer carioca, já que as características dela são todas construídas em cima de cliclês. Por outro lado, nenhum dos três personagens existiriam se não houvesse a obra primeira para servir de modelo. Um comentário de Silviano Santiago traduz muito bem isso: Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 411 VI – Doutores e Mestres - 2006 “O discurso segundo pressupõe a existência de um outro, anterior e semelhante, ponto de partida e ponto de chegada, circuito fechado onde as decisões a serem tomadas pelo narrador ou pelos personagens diante de cada “bifurcação” já estão mais ou menos previstas e prescritas pelo original.” (2000: 57) O caminho mais óbvio para a representação da representação dos personagens de A Hora daEstrela por Caetano Veloso e Waly Salomão seria uma linguagem puramente kitsch, assim como, por exemplo, o cineasta Guel Arraes fez ao levar para as telas de cinema o livro Lisbela e o Prisioneiro, de Osman Lins. O kitsch aparece nos textos, sobretudo em Da Gema e Campeão Olímpico de Jesus, mas de forma muito sutil, quase imperceptível. A categoria kitsch tem valor predominantemente ideológico, pois pressupõe o reconhecimento axiomático de uma cultura elevada (criadora) e uma cultura inferior (imitadora). Está última geraria o kitsch, uma degradação do gosto. O problema desta interpretação é que, do ponto de vista antropológico, tem sido duvidosa a distinção científica entre elevada e inferior e, com relação à cultura de massa, verifica-se que ela é apenas um momento, pretensamente democratizante, da cultura ocidental. Além disso, a sociedade está sempre alternando os seus valores estéticos, fazendo continuamente mudar o gosto: o que é kitsch/mau-gosto num instante pode deixar de ser no outro. (SODRÉ, 1978:31). Kitsch seria arte falseada, uma espécie de engodo artístico da era tecnológica. Mas Adorno já advertia: “É inútil querer abstratamente traçar fronteiras entre a ficção estética e a pilhagem sentimental do kitsch. Ele está misturado a toda arte como veneno; separar-se dela constitui hoje uma de suas tentativas mais desesperadas”. De acordo com Muniz Sodré (1978:31), em poética, o conceito de kitsch é mais complexo: trata-se do efeito pré-fabricado na obra de arte. É o caso, diz ele, de uma narrativa do tipo Meu Pé de Laranja Lima, que consiste em uma manipulação de clichês relativos à infância, à ruralidade, à tristeza etc., com o objetivo de provocar um efeito (já presente nas intenções do autor ao escrever o livro) caríssimo às classes médias: a comoção. O NOME DA CIDADE: MACABÉA E A METÁFORA DA VIDAGEM Para narrar as desventuras de Macabéa, Caetano Veloso compôs O Nome da Cidade e A Hora da Estrela de Cinema. Na primeira, o compositor, partindo da metáfora da viagem, assume a personalidade de Macabéa, que narra suas impressões sobre os primeiros contatos com a cidade grande, no caso o Rio de Janeiro. Ao contrário de Rodrigo S.M., que trata “de dramatizar ficcionalmente o ato da criação literária e vivenciá-lo como porta-voz de uma experiência de vida que lhe é social e existencialmente estranha” (FARIAS, 1992:8), Caetano Veloso transfere à Macabéa a tarefa de narrar suas impressões da cidade grande. O compositor, no Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 412 VI – Doutores e Mestres - 2006 entanto, aproveita muitas informações que ficaram nas entrelinhas da narrativa de Clarice e usa como chave principal para abrir A Hora da Estrela a partir do não-dito no livro: Ôôôôôôô ê boi! Ê bus! Onde será que isso começa A correnteza sem paragem O viajar de uma viagem A outra viagem que não cessa Cheguei ao nome da cidade Não à cidade mesma, espessa Rio que não é rio: imagens Essa cidade me atravessa Com uma melodia que mistura aboio6 com lamento sertanejo, o compositor já inicia a canção com um verso que denuncia o estranhamento de Macabéa diante da cidade grande. O boi e o ônibus, respectivamente, meios de transporte da cidade natal da personagem e da metrópole onde ela foi parar, deixa isso bem claro para o ouvinte/leitor. Mais que a saída de uma cidade do interior nordestino para uma metrópole, a viagem de Macabéa descrita por Caetano é também uma viagem muito mais longa, poder-se-ia até dizer que nunca termina. É a viagem dos sonhos irrealizáveis, da esperança em algo que a personagem talvez nem saiba o que é, tamanha sua ingenuidade perante a vida. Nos dois últimos versos, informações que dão uma pista das impressões de Macabéa da metrópole: uma, a poluição do rio, que não é desfrutável (como o da cidade dela), resumindo-se apenas a imagens; a outra, a insignificância dela para as pessoas que passam. “Essa cidade me atravessa” pode ser traduzida como a indiferença das pessoas com a protagonista. Será que tudo me interessa? Cada coisa é demais e tantas Quais eram minhas esperanças? O que é ameaça e o que é promessa? Ruas voando sobre ruas Letras demais, tudo mentindo O Redentor que horror! Que lindo! Meninos maus, mulheres nuas A segunda estrofe é iniciada com três indagações de Macabéa diante da profusão de coisas que ela se depara. Diante desse mundo enorme, o que é ameaça e o que é promessa? Os viadutos, os cartazes e outdoors, os “trombadinhas” e as 6 Definição de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira: Melopéia plangente e monótona com que os vaqueiros guiam as boiadas ou chamam os bois dispersos. Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 413 VI – Doutores e Mestres - 2006 prostitutas em pleno trottoir ganham, na visão de Macabéa, definições de uma ingenuidade, no mínimo, comovente e, no caso destes dois últimos (os meninos de rua e as prostitutas) sem qualquer preconceito. O espanto, diante do Cristo Redentor, chega a ser maior do que a fé da personagem, que antes de se sensibilizar com a imensa estátua em concreto de braços abertos, se assusta. A gente chega sem chegar Não há meada, é só o fio Será que pra o meu próprio rio Este rio é mais mar que o mar Ôôô ôô ô ô êh boi êh bus Sertão, sertão ê mar... Para compreendermos a sensação de abandono da nossa protagonista no Rio de Janeiro, recorreremos a um texto clássico Georg Simmel (1976: 12), que busca na metrópole as características que condicionam e problematizam a vida moderna. Ele realiza em seu percurso uma radiografia desse espaço, diferenciando-o de outras formações urbanas do passado e associando-o com elementos da modernidade. A metrópole, para ele, é o lugar do fluxo constante de pessoas e objetos; é a sede da economia monetária, onde a dimensão econômica uniformiza as pessoas e as coisas e determina relações e atitudes; é, ainda, uma estrutura impessoal, que se sobrepõe aos indivíduos, indiferenciando-os. É, também, o lugar da divisão econômica do trabalho, da especialização, da fragmentação e do rompimento com vínculos históricos tradicionais. Para Simmel, o mundo da metrópole moderna estaria impregnado do que ele chama de espíritos subjetivo e objetivo, com este último predominando. Ou seja: a metrópole é marcada por uma mentalidade racional, intelectual nesse sentido, que desconsidera os aspectos emocionais e existenciais dos indivíduos como forma de dar resposta aos variados estímulos e às demandas da “economia do dinheiro”. Daí, por conseguinte, uma atitude “prosaicista” é assumida, nivelando individualidades e diferenças, dessacralizando e dessubstancializando pessoas e objetos. Macabéa só consegue a atenção dos estranhos na hora da morte, mesmo assim é uma atenção relativa, já que todos se aproximam dela, mas ninguém se prontifica a ajudá-la: “Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde e haviam se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe dava uma existência” (LISPECTOR, 1977: 81). Com base na teoria de Georg Simmel, notamos no primeiro verso que Macabéa/Caetano reforça a indiferença da multidão já narrada antes. Ela é apenas mais uma no meio de tanta gente. Com o corre-corre da cidade grande, a presença dela, como a dos outros, é ignorada. Se não a notam, como podem compartilhar da sua dor? O verso, assim, soa mais como uma queixa do que como uma constatação. E ela chega a uma conclusão a partir de uma brincadeira com a expressão “o fio da meada”. Se em Alagoas a expressão faz sentido, no Rio de Janeiro a meada não Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 414 VI – Doutores e Mestres - 2006 existe: “tudo é um risco só”, como diz Caetano em A hora da Estrela de Cinema, a próxima canção a ser analisada. O espanto diante do rio da cidade grande é tamanho que a personagem não exita em perguntar se, para o rio da cidadezinha de onde ela saiu, aquele rio que ela agora vê é maior que o próprio mar. Demonstrando uma grande carga poética na sua narrativa, Caetano evita o pastiche literário. Cria uma Macabéa a partir da de Clarice Lispector, mas sem repetir passagens do livro que marquem a protagonista, como o hábito de ouvir a rádio relógio, a mania de tomar aspirina ou comer sanduíches. A HORA DA ESTRELA DE CINEMA: MACABÉA E A SUA CONDIÇÃO Em A hora da Estrela de Cinema, Caetano Veloso, também na pele de Macabéa, narra suas características físicas (mofina, jururu etc.) tomando como parâmetro a opulência da amiga Glória8 , que fisicamente é o oposto dela. Embora minha pele cáqui Sem rosa ou verde Sem destaque E minha condição mofina, jururu, panema Embora envolta Há uma certeza em mim Uma indecência Que toda fêmea é bela Toda mulher tem sua hora Tem sua hora da estrela Sua hora da estrela de cinema Quando diz que em sua pele não há “rosa ou verde”, Macabéa refere-se ao fato de Glória ser inegrandte da Escola de Samba Mangueira, que tem estas duas cores na sua bandeira. Mas, como que se consolando por não ter a opulência da colega, Macabéa acredita que toda mulher é bela e tem sua hora de brilhar. Quanto à condição de Macabéa, o autor insere aqui uma palavra tupi pouco usada para descrever a personagem: panema, que quer dizer “imprestável”. Vale acrescentar outro significado da palavra. Entre os indígenas panema serve para designar “má sorte na caça”, ou seja “ficar panema” é uma expressão que serve para designar o índio que não está tendo sorte quando sai para caçar. Capibaribe, Beberibe, Subaé, Francisco Tudo é um risco só E o mar é um mar 8 No espetáculo de Maria Bethânia, a deixa para a música é um diálogo entre Macabéa (Bethânia) e Olímpico (Raul Gazzolla). Este diz a Macabéa que ela não tem cara nem corpo para ser artista de cinema e que ela tem cor de suja. Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 415 VI – Doutores e Mestres - 2006 E eu quase, quase não existo E sei, eu não sou cega O mundo me navega E eu não sei navegar Toda existência é inteiramente um risco que estamos obrigados a correr e percorrer. A aventura marítima – tomando-se como base os rios que Macabéa conhece – aparece como a metáfora mais convincente desta condição. A existência é um quase que só se define pelo limite. Aceitar o limite, a determinação, mostra-se, assim, como “a experiência inelutável da condição humana”. Só nos fazemos pelo “vaivém de brilhos e tristezas, de efervescências e dores” que o Kairós nos oferece. O possível que se cumpre apesar da certeza da morte. É assim que podemos dizer que a vida deve ser vivida lentamente porque trágica: “Na verdade, a vida, de maneira confessada ou relativamente racionalizada, é trágica apenas porque existem momentos que possuem importância unicamente em si mesmos”. Fora deles, estaremos sempre diante da incerteza ou da certeza da morte. (FARES, 1996:137) Existe um homem Que há nos homens Um diamante em minhas fomes Rosa claríssima na minha prosa sem poema E fora, e fora De mim, de dentro a fora Uma ciência que toda fêmea é bela Toda mulher tem sua hora Tem sua hora da estrela Sua hora da estrela de cinema CAMPEÃO OLÍMPICO DE JESUS: UM CABRA DA PESTE COM DENTE DE OURO A representação da representação de Olímpico de Jesus coube a Waly Salomão, com música de Caetano Veloso. Campeão Olímpico de Jesus, ao contrário das duas canções anteriores, não utiliza o não-dito no livro como elemento narrativo. Num tom tão cru quanto o do livro – mas ao mesmo tempo cheio de sarcasmo – sintetiza-se de forma singela as características do personagem. Olímpico, um nordestino foragido do sertão paraibano por matar um homem – segredo que ele não divide com ninguém no Rio de Janeiro –, sobrevive como metalúrgico e dorme “de graça numa guarita em obras de demolição por camaradagem do vigia”. (LISPECTOR,1977) Olímpico tem como sobrenome apenas Jesus, mas mente para Macabéa, dizendo que seu nome completo é Olímpico de Jesus Moreira Chaves. O motivo da mentira é que o sobrenome já acusa que ele não tem pai. “Fora criado por um Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 416 VI – Doutores e Mestres - 2006 padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar as pessoas para se aproveitar delas e lhe ensinara como pegar mulher” (LISPECTOR, 1977:46). E é partir desses fatos que Waly começa a traçar o perfil do personagem. Luz crua do sertão, crua luz do sertão O nosso campeão nasceu cresceu chapado Filho de mãe sábia e pai enviesado Lua do sertão, luz crua do sertão Neste vale de pus, sobrenome Jesus Apelido visual de quem não viu nem cor E nem cheiro de pai Que a dolorosa mãe carregue a sua cruz Sem destapar um ai Sertão de crua luz Casca de jaca dura, Olímpico, bico de jaca Na segunda e última estrofes, os nomes soltos, mas que guardam algumas semelhanças entre si, dão pistas sobre o perfil de Olímpico. Tocha, pira e falo aparecem justapostas como que para descrever a virilidade do personagem, “que não tinha vergonha, era o que se chamava no Nordeste de “cabra safado”. As outras palavras também podem atestar o lado artista de Olímpico, que nas horas de folga esculpia figuras de santo e eram tão bonitas que ele não as vendia. “Todos os detalhes ele punha e, sem faltar ao respeito, esculpia tudo do Menino Jesus. Ele achava que o que é, é mesmo, e Cristo tinha sido além de santo um homem como ele, embora sem o dente de ouro” (LISPECTOR, 1977:46). Luz crua do sertão, crua luz do sertão Tocha, pira, graveto, agave, falo, espeto Cabra macho esquisito, sopro de 7 vidas Dum anjo gato frito Cabra macho esquisito Luz crua do sertão, crua luz do sertão Dente pivô de ouro, dente que cintila, Boca que gargalha, dente que rebrilha, Boca de lanterna que nunca carece De trocar de pilha Casca de jaca dura, Olímpico, bico de jaca Luz No início deste mesmo parágrafo do livro, o narrador Rodrigo S.M. diz que, ainda na cidade natal, Olímpico tinha juntado salários e salários para arrancar um canino e trocá-lo por um dentre de ouro faiscante. E é neste detalhe que Waly vai se deter para ajudar a construir o perfil do personagem na última estrofe. Mas antes disso, note que o poeta compara o personagem a um gato – animal ao qual os supersticiosos atribuem sete vidas – tamanha a capacidade que Olímpico Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 417 VI – Doutores e Mestres - 2006 tem para escapar da morte. O número sete aqui nos remete também a outro dado curioso na narrativa de Rodrigo S. M: foi numa manhã do dia 7 de maio que Macabéa conheceu Olímpico. DA GEMA: GLÓRIA, A MULATA QUE SE OXIGENA Glória, ao ser apresentada a Olímpico se denomina “carioca da gema” (LISPECTOR, 1977: 59), uma expressão que esta não sabe o que significa por se tratar de uma gíria do tempo de juventude do pai dela. ...Da gema Ovo estrelado na tela de cinema Ela é carioca da gema Ovo estrelado na tela de cinema Veja que a lua nunca lhe traz nostalgia Só sai pra ver sua alegria Como diria Noel Quando ela surge redonda atrás da colina Como uma imensa aspirina Boiando nua no céu Para apresentar Glória, Macabéa, aqui a narradora, a compara a um ovo estrelado na tela de cinema, uma visão estranha, mas que faz sentido, considerando-se o hábito da personagem de tingir os pêlos de louro. A tela de cinema seria ambiente em que se passa a história. Glória não tem nada da ingenuidade de Macabéa e para revelar isso esta recorre a um verso do compositor carioca Noel Rosa – que, na música, é a melhor tradução do Rio de Janeiro, a terra de Glória. Loira, morena Mulata que se oxigena Galinha de pretas penas Finge ser rosa e amarela Será que ela se tinge Inteira e até onde? Será que até oxigena os íntimos pêlos que esconde? Glória é morena, mas tem os pelos quimicamente dourados e isso causa uma confusão para Macabéa que, a princípio, não sabe defini-la com precisão. Como boa carioca que é, ela deve fingir ser fã da Escola de Samba Mangueira. Os três últimos versos dessa estrofe aparecem no livro de Clarice da seguinte forma: “Oxigenava os pêlos das pernas cabeludas e das axilas que ela não raspava. Olímpico: será que ela é loura embaixo também?” (LISPECTOR, 1977:63). Note-se que, no livro, a indagação é feita por Olímpico e não por Macabéa. Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 418 VI – Doutores e Mestres - 2006 Bacalhoada, batata, Vinho nas veias Bonita como as sereias Sorrindo em Copacabana Desinibida, brutalidade da vida Ela é total colorida Forte, bonita e bacana Óvulos férteis, cadeiras de parideira Parece até estrangeira aos brasileiros demais A atração que Olímpico sente por Glória faz com que Macabéa a compare com iguarias, bebida e a um dos seres míticos que mais despertam a libido dos homens: a sereia. Ao contrário de Macabéa, ela é desinibida, um dos traços que chama a atenção de Olímpico. A brutalidade de Glória está na indiferença dela com a colega Macabéa. No livro, ela é descrita por Rodrigo S.M. assim: “Era uma safadinha esperta mas tinha força de coração. Penaliza-se com Macabéa mas ela que se arranjasse, quem mandava ser tola? E Glória pensava: não tenho nada a ver com ela” (LISPECTOR, 1977:64). As referências aqui as cadeiras de parideira da personagem também são descritas no livro pelo narrador/personagem Rodrigo S.M.: “Pelos quadris adivinhava-se que seria boa parideira. Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma o seu próprio fim” (LISPECTOR, 1977:60). Refeição farta, contra-filé de primeira Matriz, Império e Mangueira, Produto, anúncio e cartaz Ela é carioca da gema Ovo estrelado na tela de cinema Aqui, Macabéa reforça as comparações de Glória com as comidas preferidas de Olímpico. Se nos versos anteriores ela fingia ser mangueirense, aqui é revelada como admiradora de outras duas escolas de samba. Para definir a exuberância de Glória, Macabéa recorre ao mundo da propaganda – mostrando-se adaptada à realidade da cidade grande, que antes ela repudiava (“letras demais tudo mentindo”, em O Nome da Cidade) – diz que ela não é apenas uma campanha publicitária completa, mas também o produto dessa mesma campanha. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMPEDELLI, S.; ABDALA JR., B. 1981. Literatura Comentada – Clarice Lispector. 1. ed. São Paulo: Abril Educação. FARES, C. 1996. O arco da conversa – um ensaio sobre a solidão. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial. Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 419 VI – Doutores e Mestres - 2006 FARIAS, S. L. R. 1992. A movência do ficcional ou a astúcia da mímesis: a hora da estrela de cinema, de Clarice Lispector. In.: Correio das Artes, João Pessoa, 06 de dezembro. ISER, W. 2002. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In.: LIMA, L. C. (org.). Teoria da literatura em suas fontes, v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. LISPECTOR, C. 1977. A Hora da Estrela. São Paulo: Civilização Brasileira. LUKÁCS, G. 1968. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. SIMMEL, G. 1976. Metrópole e vida mental. In.: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar. SODRÉ, M. 1976. Kitsch, Mentonímia, Nazi-fascismo. In.: Tempo Brasileiro – Revista Trimestral de Cultura, número 52. Rio de Janeiro Além dos livros citados acima, este trabalho foi realizado a partir do programa do show A Hora da Estrela, de Maria Bethânia, de 1984, do áudio (CD) do mesmo espetáculo (versão pirata) e do CD A Beira e o Rio, de Maria Bethânia. Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 409-420 420