1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde A Atenção Domiciliar no município do Rio de Janeiro 1 Luís Claudio de Carvalho Magda de Souza Chagas Ana Lúcia Pontes Durante o processo de seleção do município do Rio de Janeiro (RJ) como campo da pesquisa na área da atenção domiciliar nos acompanhava expectativa da existência de baixa oferta deste tipo serviço. Nosso primeiro contato foi com a experiência em curso na Área Programática (A.P.) 3.1, onde está localizado o Hospital Municipal Paulino Werneck, e ligado a este hospital um serviço de PAD que opera desde 1997. A partir desta primeira aproximação fomos descortinando, tomando conhecimento e contato com várias experiências na área da atenção domiciliar em curso na cidade, como: Hospital Estadual Getúlio Vargas (estadual); Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia - INTO (federal); Instituto Fernandes Figueiras (federal); Instituto Nacional de Câncer - INCA (federal); Hospital Universitário Clementino Fraga Filho - UFRJ. Analisando as experiências pode-se conferir que o principal motivo da criação do PAD em cada uma destas unidades foi a necessidade de aumentar a rotatividade de pacientes nos leitos e consequentemente ampliar o acesso dos usuários para internação hospitalar. Observaram-se distinções entre os perfis de morbidade de cada programa, conforme está apresentada no quadro 1. Entretanto, não demonstram ser um facilitador para uma maior articulação entre os serviços. Quadro 1 - Perfil de morbidade dos programas de atenção domiciliar Programas de atenção Perfil de morbidade domiciliar Hospital Municipal Paulino Acidente Vascular Cerebral, Doença Pulmonar Obstrutiva Werneck2 Crônica, Demência, Diabetes com complicações e Paralisia Cerebral. Hospital Estadual Getúlio Paciente com seqüela de Acidente Vascular Encefálico ou Vargas 3 com fratura de colo de fêmur. Instituto Nacional de Câncer Paciente com neoplasia necessitando de cuidados paliativos Instituto Nacional de Tramato- Pacientes em pós-operatório de osteoplastia de quadril, ortopedia joelho, coluna e os raqui-medulares. Instituto Fernandes Figueiras4 Pneumopatias e neuropatias infantis. Hospital Universitário Paciente oncológico, ou doenças geriátricas ou com AIDS. Clementino Fraga Filho - UFRJ 1 Agradecemos a disponibilidade ofertada pelas equipes e famílias dos programas de atenção domiciliar pesquisados, pois sem as suas contribuições não seria possível realizarmos o estudo. 2 PAD criado em 1997. 3 PAD criado em 1999. 4 PAD criado em 2001. 2 Com este primeiro descortinar, nos deparamos então com nossa primeira surpresa, o que apresentamos no primeiro momento como expectativa ganhava outro plano na realidade, ou seja, existe sim oferta de serviços na área da atenção domiciliar, e esta oferta de serviço é: − Maior do que esperávamos; − Em distintas especialidades e faixa etárias; − Em diferentes níveis de complexidade; − Nos diferentes níveis de gestão. No desenho dos PAD existentes no município do RJ, constatou-se que a gestão de cada programa é realizada na própria unidade hospitalar, a fim de suprir as necessidades do respectivo estabelecimento, como por exemplo, crianças com pneumopatia; idoso em pós-operatório de osteoplastia de quadril e pacientes com seqüela de AVE com internação prolongada . A articulação entre as unidades é incipiente, olhando, por exemplo, para Área Programática (AP) 3.1 da 5 Secretaria Municipal de Saúde do RJ com uma população de 872.453 habitantes, que possui um PAD de cada esfera de governo desarticulada. Ao olharmos para os PAD federais existentes no município, constatou-se que articulação é incipiente e não possuem uma gestão integrada e sim isolada em cada unidade hospital. Esta situação estimulou o grupo de pesquisa a destacar algumas características do cenário para o debate: − A relação entre estas unidades e os demais entes federativos revela-se de modo informal, não institucionalizado e algum contato se dá no plano afetivo entre os trabalhadores. − Ao olhar para rede de saúde do município do Rio, observa-se que há problemas na organização dos serviços de atenção básica e média complexidade no que se refere no sistema de referência e contrareferência, dificultando conseqüentemente à alta do usuário do PAD. − A insuficiência de serviços de saúde que possa dar conta da continuidade da atenção à saúde aos usuários PAD, aptos para alta, contribui para longo período de permanência do programa. − Alguns programas criam ambulatório PAD para continuidade da atenção aos pacientes com alguns critérios para alta, como usuário com condições de se locomover até o hospital. − Apesar da deficiência do Sistema de Saúde no aspecto da resolutividade, acesso, vinculo- responsabilização, e sistema de referência e contra-referência, as equipes demonstram-se implicadas com o trabalho desenvolvido nos programas. − Há o reconhecimento das coordenações dos PAD da necessidade de garantir uma maior integração entre os entes federativos, na perspectiva da constituição da rede de saúde. 5 A AP 3.1, em percentual, é a que tem maior população morando em favelas chegando próximo de 50%. 3 No desenvolvimento do trabalho de campo buscou-se cartografar as experiências existentes nos três entes federativos. Na esfera municipal e estadual não houve dificuldades na coleta de informações. Entretanto, alguns programas de atenção domiciliar dos hospitais federais ficaram de fora da pesquisa por determinadas razões: − Hospital Universitário Clementino Fraga Filho por não possuir categoria médica em sua equipe, compromete a análise da produção do cuidado da equipe multidisciplinar que está sendo avaliada em todas as experiências estudadas. − Tanto o INCA como o INTO, informou que teríamos que enviar para o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) de cada instituto para que fosse (re)avaliado o projeto (termo de referência, os instrumentos e os termos de consentimento). Foi informado aos Centros de Estudos destas unidades que o projeto já tinha sido aprovado pelo CEP do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho - UFRJ, entretanto a postura não foi alterada. Portanto, o grupo de pesquisa definiu que não seria possível esperar os trâmites burocráticos das Unidades, pois a pesquisa tinha que acontecer nos prazos acordados com MS e que a experiência do IFF, as demais do município e de outras cidades irão suprir de maneira satisfatória a ausência destas duas unidades hospitalares ligadas ao MS. Considera-se necessário ressaltar que o INCA, INTO e IFF foram considerados importantes para a pesquisa, porém apenas uma permitiu a realização do levantamento de informações. Nas três experiências selecionadas (municipal, estadual e federal) detalhamos algumas categorias de análise: arranjos e composição da equipe; articulação do PAD com sistema local de saúde; características do cuidador; conformação do ato de cuidar; racionalidade dos processos (efetividade, eficiência e eficácia); e avaliação da atenção domiciliar (ferramentas de avaliação). Em cada PAD escolhido foi eleito um caso traçador em conjunto com os coordenadores dos programas, buscando usuários típicos e que causavam algum incômodo à equipe na produção do cuidado. A lógica de construção do caso traçador baseou-se na ferramenta fluxograma analisador (MERHY, 1997) com o objetivo de observar mais atentamente a micropolítica do trabalho em saúde6 na produção do cuidado de um usuário. Para isso foi necessário conversar com os trabalhadores de saúde, a cuidadora e o usuário envolvidos na produção do caso e, também, por meio das suas falas reconstruiu-se o caminho trilhado pelo usuário e seus momentos de interface com os outros atores. As entrevistas com os profissionais ocorreram na unidade de saúde e com a cuidadora e o usuário no domicílio. No decorrer do trabalho de campo que aconteceu de dezembro de 2005 a dezembro de 2006, pudemos coletar diversas informações sobre os programas, principalmente por meio de entrevistas, e também devolver 6 Veja nesse site o texto sobre Atenção Domiciliar: medicalização e substitutividade. 4 para um dos PAD o caso traçador da sua unidade. Esse retorno aconteceu durante três meses em encontros quinzenais com a equipe, onde aprimoramos as observações sobre a micropolítica do trabalho em saúde. Principais destaques do trabalho de campo na cidade do Rio de Janeiro 1. Origem do PAD e sua articulação com a rede A Historia comum dos PAD pesquisados no município do Rio de Janeiro é que surgiram com o objetivo de desospitalizar pacientes crônicos das enfermarias e aumentar a rotatividade dos leitos hospitalares. Ressalta-se que a iniciativa de criação partiu dos profissionais de saúde, incomodados com a super lotação dos hospitais, buscaram ajuda na literatura e outros serviços de atenção domiciliar para criarem o próprio programa. Uma particularidade do Rio de Janeiro é que os PAD referenciam seus pacientes de “alta” para o próprio hospital e, muitas vezes, ao próprio ambulatório do programa. A equipe alega que a articulação com unidade básica e de média complexidade mostra-se insuficiente. Nos casos traçadores comprovaram essa dificuldade enfrentada tanto pelos profissionais como pelos usuários/familiares. Portanto, o acesso aos PAD tornam-se tão restrito quanto o da rede de saúde. 2. Disputa de planos de cuidado entre a equipe e a cuidadora Um dos casos traçadores observados nos chamou atenção dada a peculiaridade que foi se descortinando a medida que as entrevistas, realizadas no domicílio, foram sendo desenvolvidas. A mãe da criança não seguia a todas as orientações prescritas pela equipe, principalmente a que indicava uso de concentrador de oxigênio durante 24 horas por dia. A justificativa da cuidadora era de que o Feliz7 sendo uma criança necessitava brincar com outras crianças como soltar pipa, brincar na areia, e assim por diante. Tais ações não eram aprovadas pela equipe. Durante a nossa observação aflorou um importante analisador natural8 do caso - disputa de planos de cuidado entre a cuidadora e a equipe - que provocou uma série de indagações 7 Este nome foi escolhido pelo fato de a criança demonstrar constantemente este estado de espírito, situação confirmada pelas falas dos atores envolvidos no caso. 8 “(...) são analisadores de fato, produzidos “espontaneamente” pela própria vida histórico-sociallibidinal e natural, como resultado de suas determinações e da sua margem de liberdade.” Gregório F. BAREMBLIT. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. Rio de Janeiro. Rosa dos Tempos, 1992. 5 sobre a produção do cuidado pela equipe e cuidadora: será que a equipe não deveria ser mais flexível na elaboração do plano? Por que a cuidadora não participa da construção do plano? Como adequar o plano da equipe ao da cuidadora? Quais são as tecnologias que a cuidadora opera e possibilita o bem estar do Feliz? O analisador do caso permite verificar que os profissionais de saúde a todo tempo, conforme foi descrito, operam com tecnologias duras (equipamentos e protocolos clínicos), leve-duras (saber profissional) e leves (vínculo). Entretanto, as tecnologias duras é que guiam a produção do cuidado prestada ao usuário, não havendo possibilidade de escuta e de valorização da necessidade do Feliz brincar e interagir mais com as outras crianças. Olhando para a cuidadora, percebe-se que ela opera com outros tipos de tecnologias: dura (manuseio dos equipamentos e medicamentos), leve-dura (saber de cuidadora) e leve (vinculo-responsabilização, acolhimento, afeto, amizade, parceria, etc). No caso dela, são as tecnologias leves que guiam a produção do cuidado prestado ao Feliz, tornando possível a atenção às necessidades da criança. Ao observarmos o caso podemos constatar que existem diferenças na produção do cuidado, como já descrito acima. A cuidadora quer guiá-la por meio das tecnologias leves e a equipe pelas tecnologias duras. No cuidado prestado pela cuidadora (primeira situação), a tecnologia leve comanda o processo de trabalho e o medicamento e os equipamentos funcionam apenas como auxílio. A relação entre cuidadora e usuário torna-se dinâmica, há escuta, percepção da singularidade, valorização dos gestos mútuos de cuidado e produção de saúde. Já no cuidado prestado pela equipe (segunda situação), pode-se dizer que o processo de trabalho foi comandado pela tecnologia dura, materializada pelos equipamentos e saber estruturado dos profissionais. Demonstra que o trabalhador ficou preso à conduta, ao protocolo clínico, aos seus padrões mantendo uma linguagem programada, sem possibilidade de novas interações, reduzindo o aspecto relacional de seu trabalho, reduzindo sua capacidade de perceber outras necessidades que não as ditadas pela ciência. Nas duas situações do plano de cuidado da cuidadora e do plano de cuidado da equipe, observa-se que em ambas existe trabalho morto e vivo. Já vimos que na primeira situação, prevalece uma outra lógica de atuação da cuidadora: os atos de fala, escuta e olhares. As tecnologias leves comandam o processo de trabalho, é o trabalho vivo que captura o morto. No processo de trabalho comandado pelo trabalho vivo, a cuidadora detém uma grande margem de liberdade para ser criativa, relacionar-se com o Feliz, experimentar soluções para os problemas que surgem e, 6 o que é mais importante, interagir, inserir o usuário no processo de produção de sua própria saúde, fazendo-o sujeito, ou seja, protagonista de seu processo saúde-doença. Tal perspectiva é central tanto na produção do cuidado individual à saúde das pessoas individualmente, quanto na produção coletiva. Afinal de contas, o envolvimento da comunidade na tomada de decisão sobre o ambiente em que vive é tão importante quanto a participação do usuário na decisão sobre a melhor conduta clínica para a sua saúde. Na segunda situação, o processo de cuidado desenvolvido pelos profissionais é guiado pela tecnologia dura (equipamentos e protocolos clínicos), levando à captura do trabalho vivo pelo morto, ou seja, o agir do trabalhador está preso ao saber estruturado e ao equipamento, produto de um trabalho anterior. Nesse sentido, o processo de trabalho é pré-programado, limitando a ação do trabalhador àquilo que já foi determinado, por exemplo, pela programação do protocolo clínico. Essas orientações distintas levam a que se configure um cotidiano de disputas constantes entre o plano de cuidado da cuidadora e o da equipe. A existência de disputa não pressupõe que exista necessariamente conflito. Ao contrário, podem propiciar melhorias no processo de trabalho desenvolvido pela equipe, desde que sejam encaradas com o intuito de entender, valorizar, respeitar o outro e, ao mesmo tempo, possibilitar o entendimento, valorização e respeito pelo outro. Se cada profissional se dispuser a olhar para a situação deste modo, permitirá afetar e ser afetado pelo outro no seu pensamento e agir. Durante as entrevistas com os profissionais envolvidos não se evidenciou esta disposição de escuta ou aprendizagem. Ao contrário, ficou claro que a equipe tenta fazer com que a cuidadora cumpra o plano de cuidado elaborado por eles, ou tenta excluir/ submeter a mãe por meio de algumas atitudes negativas, não compartilhando informações, ridicularizando o seu trabalho e assim por diante. Por outro lado, a cuidadora assume também estes papéis, quando ignora o plano de cuidado da equipe, ou assume o papel de mãe para obrigar a equipe a aceitar algumas situações criadas por ela. Fica claro, então, que a existência de uma diversidade de sujeitos envolvidos no caso cria constantemente arenas de disputas de idéias/projetos individuais e/ou coletivos para a produção do cuidado. Neste caso em particular, essa arena de disputas apresenta-se como um problema para o desenvolvimento do trabalho da equipe, já que esta não enxerga a diversidade como uma possibilidade de aperfeiçoar o processo de trabalho para a cadeia produtiva do cuidado. 7 A instituição de “praças de conversas” 9 entre os trabalhadores e a cuidadora pode ser uma forma de tornar o processo de trabalho da equipe e da cuidadora mais sinérgicos, pois podem possibilitar o entendimento do outro, propiciar que se façam pactuações na produção do cuidado e revelar outros assuntos pertinentes ao usuário, ao cuidador e à equipe. As praças são consideradas como espaços em que os profissionais e as pessoas envolvidas na área da saúde possam expor seus projetos, desejos, necessidades frente a determinado assunto pertinente ao grupo. 3. Desdobramento da pesquisa – devolução para a equipe Outra especificidade do RJ foi a oportunidade de devolver à equipe PAD de um determinado hospital, o caso traçador, por meio do fluxograma analisador, onde os trabalhadores avaliaram o caso apontando os sucessos e ruídos na produção do cuidado. O trabalho consistia em problematizar com o grupo o processo de trabalho desempenhado pela equipe, a luz da análise institucional, em encontros quinzenais e que duraram três meses. Na apresentação do fluxograma do caso foi interessante por que algumas “clareiras” apareceram e que durante a elaboração do fluxo não se pode perceber pelos pesquisadores, como por exemplo, o desempenho escolar insuficiente do Feliz, demonstrando a necessidade de buscar parceria intersetorial a fim de elaborar um adequado projeto pedagógico individual para a criança. Os encontros com a equipe mostraram-se produtivos, pois com a aceitação da ferramenta fluxograma analisador pelo PAD, surgiu a proposta de elaborarmos em conjunto, novos fluxogramas de outros casos a partir de suas falas. Com o passar do tempo, demonstraram uma maior afinidade com a ferramenta e a sua utilização regular nas reuniões de discussão de casos. Além de uma maior abertura para as discussões em equipe. Na avaliação final dos encontros realizada pela equipe é que o processo foi importante para a reflexão do processo de trabalho desempenhado por eles e que gostaram da ferramenta utilizada e a continuarão usando. Considerações finais Vale destacar que ao termino da pesquisa ao oferecermos ao campo de onde foi selecionado o caso Feliz, a possibilidade de apresentarmos o fluxograma analisador. 9 Emerson Elias Merhy. A oferta foi aceita com interesse e 8 disponibilidade. O fluxograma serviu como dispositivo junto a equipe para discussão sobre o processo de trabalho desempenhado pelos profissionais. É importante, também, destacar que as disputas de projetos ocorrem cotidianamente nas equipes e podem garantir o potencial inovador da Atenção Domiciliar. Entretanto, essa característica está diretamente relacionada, entre outras coisas, no como as equipes encaram esse compartilhamento de produção do plano de cuidado. Ou seja, esta situação é capaz de propiciar o aperfeiçoamento do trabalho em saúde desenvolvido pelos profissionais e os cuidadores.