Leituras Recensão de «A(s) Esquizofrenia(s)»* e a Ciência Precoce Leitura crítica: José Manuel Jara Psiquiatra Chefe do Serviço de Psiquiatria do Hospital Júlio de Matos Foi recentemente lançada no meio psiquiátrico uma monografia cujo titulo, “A(s) Esquizofrenia(s)”, nos vem desde logo lembrar a pluralidade intuída por E. Bleuler, quando, em 1911, retoma com novos conceitos a “Demência Precoce” de Kraepelin. O verdadeiro quebra cabeças da psicopatologia e da psiquiatria, a “doença mental” por excelência, que melhor caracteriza o que o leigo, ao longo dos tempos, reconheceu como (o) louco e a loucura, eis que é objecto de um texto editado em português, da autoria de três psiquiatras portuguesas. A empresa seria bem-vinda, e outra seria a crítica, não fossem os muitos aspectos gerais e particulares, que nos merecem uma apreciação negativa. É nocivo para a ciência médica, como para qualquer outra área do saber, que se iniba o espirito crítico a céu aberto, remetendo a apreciação de um texto publicado para o foro íntimo de cada leitor. Se a análise for fundamentada a rigor poderá servir de reflexão e ponderação para os mais interessados pelo tema. Se o livro se destina a psiquiatras é manifestamente elementar, e desprovido de uma informação actualizada, com utilidade prática. Por exemplo, no capítulo sobre terapêutica farmacológica não dá qualquer informação sobre modos de substituição de neurolépticos clássicos por atípicos, pouca informação dá sobre dosagens convenientes em cada medicamento, e a que tem é estandardizada. A experiência própria das autoras não é evidenciada em nenhum aspecto da terapêutica. E, já agora, não deixa de ser surpreendente o pouco cuidado com que se afirma que “ os novos antipsicóticos têm em comum uma afinidade substancial para os receptores 5-HT2a e D2”, (págª102) o que, como é sabido, é manifestamente errado em relação ao receptor dopaminérgico. 37 1 - Actualidade e fundamentação, aspectos gerais Na secção de “Tratamento da fase aguda” (págª99) tem um efeito desagradável a reiterada referência à «violência» do comportamento dos doentes, sem a distinguir da agressividade e agitação, e como se fosse a característica típica das psicoses agudas. Não é fácil a abordagem num livro de texto sucinto, em 124 páginas, de tema tão vasto e complexo da psiquiatria. Mas são desejáveis pequenas monografias que dêem a informação essencial sobre um tema, tendo presente o estado da arte. E, sem sombra de dúvidas, o espírito de síntese e a brevidade, podem ser qualidades a apreciar positivamente. Mas terá de se considerar sempre os destinatários prováveis da obra e o seu tesaurus sobre o assunto: o que já sabem, o que virão a saber de novo, ou mesmo só a rever. E, com efeito, as autoras dizem na introdução que o que as moveu “baseou-se na vontade de transmitir aos outros algumas ideias recentes e outras mais antigas, recolhidas num esforço de estudo e actualização”. Será suficiente esse esforço e a melhor das intenções? Veremos. Se o livro se destina a médicos em geral ou a estudantes, enferma de uma marcada insuficiência na evidência clínica e psicopatológica. Toda a descrição da doença abstrai em absoluto da personalidade, da pessoa, e da subjectividade dos doentes. Nenhum sintoma psicopatológico é explanado com exemplos vivos que o tornem compreensível, de modo que se pode dizer que não se ouve uma única palavra viva, nem se vê nenhum doente. Ora, por muito objectivada que esteja a esquizofrenia, e ainda bem que os conhecimentos progrediram na genética e nas neurociências, o conhecimento da sintomatologia psicopatológica e clínica não pode ser didacticamente igual ao da neurologia. A aridez descritiva, de tão enxuta, resulta num quadro abstracto, incompreensível para o iniciado, que sairá no fim do livro sem perceber o que é a VOLUME IV Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO 2002 Leituras doença. Um exemplo muito palpável: percorre-se o texto sem encontrar uma explicação ou ilustração minimamente capaz do delírio, exceptuando a pintura psicótica de estigmatizante e de mau gosto da capa, reproduzida em fragmentos no texto; em vez disso insere-se no texto um catálogo de tipos de conteúdos delirantes, algo amalgamado. (págª31 e 32) Um texto em português, de autores portugueses, deveria fazer alguma referência a obras do próprio país. Sabemos bem como a investigação científica está centralizada em alguns países, ficando apenas globalizada a sua divulgação. Mas o estar à la page nem sempre será o maior crédito. O saber recente, as investigações mais actuais, têm de se ancorar na clínica, na prática e no saber sedimentado: a história da “esquizofrenia” não é um mero anacronismo, uma mera curiosidade de museu, uma simples erudição. Lamenta-se que uma obra como a “Vida Psíquica dos Esquizofrénicos” do mestre Sobral Cid, não mereça uma simples citação; e está nos antípodas do texto em análise, na riqueza psicopatológica e clínica... Mas outras obras e artigos de autores de língua portuguesa, como “Esquizofrenia”, de Isaias Paim (E.P.U.,1990),extremamente didáctica, para apenas citar mais uma. 38 Em vão se procura por toda a obra uma fundamentação para a pluralidade das “esquizofrenias” que se adivinha no título. É apenas uma mimese do titulo da obra de E. Bleuler. A noção de espectro paranóide, por exemplo, nem sequer é aflorada. A possibilidade de uma definição dimensional dos sintomas e sindromas também está ausente.A diversidade nosológica das esquizofrenias de K. Leonhard nem mencionada é. Aliás o capítulo “Nosologia” inclui equivocadamente também a psicopatologia, e limita-se a reproduzir nosograficamente o capítulo sobre esquizofrenia da Classificação Internacional das Doenças (10ª), erradamente mencionada como europeia (págª36). O diagnóstico diferencial é uma simples justaposição sem elaboração própria, das “possibilidades alternativas”. Outro ponto que complica a legibilidade científica do livro é o facto da extensa e “actualizada” bibliografia não estar indexada ao texto, nem sequer a cada um dos capítulos, aparecendo como uma massa de referências por ordem alfabética, muito difícil de consultar. Por fim, ainda como comentário geral, no último capítulo,“Estruturas e serviços”, constata-se a mais completa desterritorialização destas “Esquizofrenias”. Nem leis portuguesas, nem associações, nem serviços, nada que responda ao país concreto. A mais completa abstracção. Esta omissão mais parece, passe a ironia, “uma resposta ao lado”...do país real. VOLUME IV Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO 2002 2 - Os rigores do estilo São muitos os exemplos de uma redacção vaga, imprecisa e confusa, ao longo de todo o texto. Alguns fragmentos de discurso são uma prova óbvia do que acima se disse: “A linguagem reflecte as perturbações do pensamento que se escondem por detrás desta.” (págª31) “O achado negativo de maior relevância foi efectivamente a incapacidade de se confirmar uma base psicológica na etiologia da esquizofrenia.” (págª16) “... a hipótese etiopatogénica da dopamina é aquela que maiores consensos reúne, até que nos seja possível saber um pouco mais sobre a doença” (págª16) As incertezas e insegurança das autoras, que querem dar mostras de contenção e prudência, reflectem-se (não se escondem...) na sua linguagem escrita. E ficamos sem saber se o consenso entre as autoras, até que saibam um pouco mais, ficou ao nível da hipótese dopaminérgica... Um bom achado positivo da maior relevância sobre a capacidade de se confirmar uma base biológica para a etiologia da esquizofrenia, diríamos, parafraseando o segundo parágrafo, citado como amostra do discurso. Outro tipo de incorrecção inserida no texto tem a ver com a cronologia da evolução dos conceitos. A doença esquizofrenia existe evidentemente desde muito antes da sua conceptualização, descrição e designação. Mas que rigor pode ter uma afirmação como a que se segue: “A primeira descrição da esquizofrenia enquanto doença do sistema nervoso surge em 1674 pela pena do médico inglês Thomas Willis, responsável pela descrição anatómica do polígono vascular de Willis, na base do cérebro.” (págª11) Quando é sabido que a esquizofrenia como conceito médico científicamente firmado surge no termo do século XIX, início do século XX. E que enquanto doença do sistema nervoso, apesar das muitas constatações empíricas, a investigação prossegue no século XXI!... Não estamos ao mesmo nível da descrição de um polígono anatómico inominado antes... Outro exemplo de retrodatação conceptual de duvidosa validade é o seguinte: “As taxas de primeiros internamentos por catatonia eram de 6% em 1850 e de o,5% em 1950, em Inglaterra (Bethlem Royal Hospital)...” (págª26) Leituras Não poderia ser escolhido um pior exemplo para uma brevíssima página sobre epidemiologia. A descrição da catatonia, feita por Kahlbaum, é de 1874. Que rigor poderá ter essa comparação, entre os meados dos dois séculos? Ainda outra evidência de imprecisão e má redacção: “Foi Kraepelin que muito contribuiu para a inclusão nesta nova entidade clínica de diversos sintomas ou sindromas previamente dispersos pela literatura, nomeadamente a hebefrenia, a catatonia e a paranóia. Inicia-se assim um primeiro sistema classificativo da esquizofrenia”. (págª12) Parece que Kraepelin juntou os sintomas e sindromas apanhados na literatura, quando se sabe que fez a síntese dos diferentes sindromas numa única unidade nosológica, a que chamou Dementia Praecox, como fruto de longas anamneses, colhidas e analisadas minuciosamente. E contrariamente ao que figura no texto a “paranóia” não integra a síntese, mas sim a chamada “dementia pranoides”. Não se trata de um sistema classificativo da “esquizofrenia”, senão a posteriori, e com a necessária tradução de conceitos. A imprecisão é quase uma constante, sendo os exemplos escolhidos uma amostra ilustrativa. Mais a mais em questões que se prendem com a própria definição da doença, a falta de rigor é de maior gravidade. Vejamos agora o que se diz sobre Eugen Bleuler: “Segundo ele, exitiriam 4 sintomas primários ou fundamentais (perda de associação de ideias; perturbações afectivas; ambivalência e autismo). (págª28) Os autores lavram num erro, ao confundirem sintomas primários e sintomas fundamentais. Para E. Bleuler a noção de primário tem a ver com a fisiogénese, incluindo sintomas físicos e psíquicos, dos quais derivam os sintomas secundários. Esta distinção não corresponde à noção de sintomas fundamentais, por oposição a acessórios (acidentais), cujo valor tem menos a ver com a patogenia e mais a ver com a descrição e o diagnóstico. É interessante verificar que enquanto K. Schneider valoriza para o diagnóstico da doença (não para a teoria da doença) os sintomas que provêm da experiência vivida pelo doente (fenomenologia psicopatológica), Bleuler detemse fundamentalmente nas perturbações da expressão, e principalmente na perturbação formal do pensamento. informativa, não seria nada bom. Mesmo assim, com algum esforço, seria ainda melhor do que o de um doente com esquizofrenia, que se descreve assim: “O prognóstico de um doente com esquizofrenia não é bom” (págª6) Uma generalidade abstracta, desprovida de aplicação, que é um juízo de valor sem validade clínica. O prognóstico da doença, não do doente, é claro, pode ser muito variado: bom, razoável, mau e péssimo. Depende de muitos factores, entre outros do diagnóstico precoce e do tratamento apropriado. E das circunstâncias da vida. Mas é um erro dizer que “a presença de um quadro depressivo agrava o prognóstico da esquizofrenia” (págª48). Quando é sabido que as perturbações do humor nesta doença são em geral indícios clássicos de melhor prognóstico. Para abreviar razões passemos aos factos em que se comprovam erros que o leitor poderá rapidamente constatar caso não faça apenas uma leitura em diagonal. “A anedonia - na qual o doente não é capaz de sentir ou vivenciar emoções – é comum na esquizofrenia”. (págª34) - anedonia é a incapacidade de obter prazer e satisfação na vida. “As alucinações cinestésicas - nas quais o doente refere sensações nos órgãos internos do corpo”. (págª31) - deveria dizer-se cenestésicas, pois cinestésicas é a mesma coisa que “quinestésicas”, embora este último termo seja um anglicismo; mas a definição de alucinação não é feita, pois as dores são também sensações... “Estereotipias Verbais - Repetição dos mesmos conceitos em contextos diferentes, que nada têm a ver com o correcto uso da palavra”. (págª33) - As estereotipias verbais são uma repetição iterativa de frases e não de conceitos. “Logoclonia - O doente repete a última sílaba do entrevistador”. (págª34) - É uma forma especial de preseveração, em que o doente repete a última sílaba da última palavra do que está a dizer, não do entrevistador. 3 - A produção e reprodução de erros “Palilália - O doente repete a última palavra do entrevistador”. (págª34) - Uma forma de perseveração em que o doente repete com cada vez maior frequência uma e mesma palavra, em sucessivas respostas ao entrevistador. Se ficássemos por aqui já o prognóstico do texto, enquanto verdade “A sobreinclusão na qual o doente salta de hipótese para hipótese, VOLUME IV Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO 2002 39 Leituras de ideia para ideia, de um modo demasiado abrangente, perdendo a lógica do pensamento”. (págª34) - O doente é incapaz de preservar as fronteiras conceptuais, de modo que ideias apenas vagamente (remotamente) relacionadas com o conceito em causa, são incorporadas no mesmo (Cameron). “...a boca semi-aberta em protusão...” (págª89) Ficámos de boca aberta, pasmados com a série de erros, num texto com algumas pretensões, produzido por médicos especialistas... Este último erro será talvez uma gralha. É difícil dizer (e escrever?) protrusão, mas é mesmo assim e não como consta do texto. A simples leitura dos clássicos livros de psicopatologia como o “Fish´s Clinical Psychopathology” (Ed. M. Hamilton) e “Symtoms in the mind” (A. Sims) tirará quaisquer dúvidas, através do índice remissivo. 4 - Conclusão 40 A leitura já vai longa. A crítica não complacente tem de salientar o que está errado, menos correcto ou omisso. Feito esse diagnóstico, o muito do texto que está correcto já não terá o mesmo interesse: não são admissíveis erros do teor apontado numa obra, por modesta que seja, numa área científica. Resultam de um menor cuidado, dificilmente desculpável. No ano em que a nível mundial se deu grande destaque ao “estigma” da doença mental e particularmente na esquizofrenia, por inciativa da OMS e da Associação Mundial de Psiquiatria, tem de se assinalar que nem uma menção é feita ao tema, num livro publicado no ano 2001. Lisboa, 14 de Dezembro de 2001 *A(s) Esquizofrenia(s), Autores: Inês Cunha, Marina Dinis e Alice Nobre Edição de Autor, patrocinada. VOLUME IV Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO 2002