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P RO B L E M AS H I D RO L Ó G I COS
DA G RA N D E S Ã O PAU LO
Paula Beiguelman
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á no início do século passado, a
administração pública paulista se
preocupava com a questão do
suprimento de água à capital do
estado (de responsabilidade estadual) e também com o controle das inundações do Tietê, que cabia ao município.
Assim, em 1904, o então secretário da agricultura do estado de São Paulo, doutor Luíz
Piza, recomendava à Repartição de Águas
que “organizasse um plano definitivo de
estudos das águas do Tietê”. E, em 1912, era
apresentado pelo engenheiro Henrique
Novais um primeiro estudo, tratando da
captação e adução das águas do rio Claro,
nas cabeceiras do rio Tietê.
Na década seguinte, a administração municipal contratava os serviços do engenheiro-sanitarista Saturnino de Brito que,
em 1926, apresentava o seu importante
projeto. Tratava-se, em essência, de construir uma barragem logo acima de Mogi
das Cruzes e de pequenas barragens em
degraus no curso dos formadores do Tietê,
na altura desse mesmo município. Acresce
que as cabeceiras do Tietê se situam em
regiões sujeitas a uma das mais altas pluviosidades do mundo.
Portanto, se concretizado o projeto apresentado por Saturnino de Brito, não apenas
a vazão do rio seria regularizada e tornada
uniforme, evitando a inundação das várzeas, como se conseguiria um armazenamento hídrico substancial, que serviria ao
abastecimento de água potável à capital.
A essa altura, a poderosa Light já visava instalar uma usina hidrelétrica a partir do lançamento do rio Grande no Cubatão. Também construíra uma represa de terra no rio
Guarapiranga, afluente do Pinheiros, por
sua vez tributário do Tietê.
E, então, foi dado o xeque-mate na proposta
Saturnino de Brito, por meio da astuciosa
oferta de colaboração no abastecimento de
água à cidade, por meio da represa de Guarapiranga. Como conseqüência, a adutora
da Guarapiranga foi rapidamente construída e não se falou mais em represamento
do Alto Tietê para o saneamento da capital.
Não bastasse a manutenção do rio Tietê em
regime de vazão variável, sem regularizá-lo
através do represamento das águas a montante de São Paulo, a Light ainda represou o
rio à jusante, por meio do alteamento da
barragem de sua velha usina de Santana do
Parnaíba (Edgard de Souza) e a complementar construção de outra barragem, próxima a Pirapora.
A conseqüência notória foi o aparecimento
de inundações desusadas, que atingiam até
o Tamanduateí.
Também o suprimento de água potável
aguardava solução.
Atingido um ponto crítico, a Light decidiu
permitir, para adução aos municípios do
ABC, a retirada de água de sua represa do
rio Grande (Billings). Ocorre que esta se
encontrava muito poluída pelos esgotos de
São Paulo, obrigando a administração
pública a um caríssimo, porém indispensá4
vel, tratamento, além de outras providências destinadas a atenuar a contaminação.
Por fim, com o suprimento de água na capital já sob ameaça, eis que ela é trazida de
outras bacias. Assim, a partir de fins dos anos
1960 e início dos anos 1970, passou-se a
implantar um projeto que se resolveu arbitrariamente designar como Sistema Cantareira.
Ao invés de represar o Alto Tietê, ia-se buscar
água quase no centro do estado, captando-a
dos formadores do rio Piracicaba, prejudicando esse rio e as cidades que ele abastece.
Por outro lado, porém, ocorria que a usina
hidrelétrica do Cubatão (Henry Borden),
para cujo funcionamento pleno a Light
sujeitara a cidade a tantos agravos ecológicos, já podia começar a preparar-se para um
futuro papel secundário.
Passam a ganhar corpo, então, críticas
contundentes provindas da própria administração. Em 1973 é o prefeito da capital
que denuncia a elevação da barragem de
Santana do Parnaíba como responsável
pelo agravamento das enchentes, propondo a desapropriação dessa usina da
Light. Em seguida, é a administração estadual que, retornando à tese Saturnino de
Brito, alerta para o fato de que os reservatórios de controle no Alto Tietê, indicados por esse grande engenheiro, não
haviam sido ainda executados na medida
necessária, enquanto a ocupação da área
prosseguia. Complementarmente, essa
mesma administração propunha o tratamento dos esgotos da cidade no rio Ju-
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queri, de forma que a água já limpa
pudesse seguir Tietê abaixo.
Não obstante, a administração seguinte elaborava um plano diverso.
E então, em 1979, houve a “compra” da
Light, que aparentemente removia o principal interesse contrário ao enfrentamento
das questões conjugadas das enchentes e do
suprimento de água potável, bem como do
tratamento dos esgotos — o que, no entanto, não aconteceu.
Analisando a questão, o engenheiro Catullo
Branco* observava que fazer face às enchentes anuais apenas por meio da canalização de
córregos e aumento da seção de vazão dos
rios, não atacava a raiz do problema, como o
comprovava o escasso resultado no caso do
Tamanduateí. Obviamente, era importante
a canalização conveniente dos córregos,
bem como o desentupimento dos bueiros,
para melhor receberem as águas pluviais. O
essencial, contudo, acrescentava ele, consistia em manter os rios Tietê e Tamanduateí
em nível que lhes possibilitasse receber a
contribuição dessas águas por ocasião de
chuvas locais intensas.
A premissa disso tudo era o amplo e adequado represamento do Alto Tietê. Além do
que o próprio Tamanduateí devia também
ser regularizado por meio do represamento
de suas cabeceiras, o mesmo devendo ser
feito com seus afluentes, o rio dos Couros e o
rio dos Meninos, sem o que o ABC tendia a
ser profundamente afetado por inundações.
Em meados dos anos 1980, passou a fortalecer-se na administração uma postura crítica
mais firme com referência ao status quo, traduzida no tombamento dos mananciais do
Alto Tietê e na explosão da barragem
Edgard de Souza (Santana do Parnaíba) em
novembro de 1985.
Estavam as coisas nesse pé quando, em
1986, em decorrência da estiagem que baixou o nível da represa de Guarapiranga, com
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a falta d’água trazendo tantos transtornos à
população, encetou-se, como é natural,
uma acesa discussão sobre o problema do
suprimento de água potável à capital.
De entrada, cumpre desconsiderar a alegação, então feita, de que a dificuldade se devia
ao fato do Sistema Cantareira não estar
atuando com sua capacidade total; mesmo
porque, além do sistema haver sido severamente criticado por técnicos abalizados à
época de sua implantação, é sabido que tal
ampliação ameaçaria o suprimento de
importantes cidades do interior. E também,
evidentemente, deve ser descartada a proposta do chamado Sistema Juquiá, que em
tempos de estiagem (como a deste ano de
2004) torna a ser lembrada, apesar de ser
ainda mais irracional, além de caríssima,
com água bombeada do Vale do Ribeira
para elevá-lo 500 m!
A única solução correta continua sendo a
preconizada por Saturnino de Brito, e que
sempre foi defendida pelos mais eminentes
técnicos. Ela conjuga a contenção das
enchentes ao suprimento de água potável e
não causa prejuízos hídricos a outras regiões.
Como se sabe, há várias barragens em andamento no Alto Tietê. A alegação de que
mesmo que já estivessem prontas persistiria
o déficit no suprimento de água potável não
pode servir como argumento para contestar
a importância primordial do represamento
do Alto Tietê. Ela apenas revela as limitações
decorrentes do enfoque adotado, voltado
meramente para a obtenção de um acréscimo no fornecimento.
Quanto às enchentes anuais que tanto prejuízos causam à população, a administração
estadual optou por tentar enfrentá-las por
meio do penoso processo do aprofundamento da calha do Tietê.
Por sua vez, a municipalidade pôs em curso
a implantação pontual de reservatórios de
contenção das águas (necessariamente nu5
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merosos) nos locais de enchentes, os chamados piscinões.
A proposta Saturnino de Brito, cuja efetivação requer o preliminar entendimento entre
as administrações estadual e municipal,
parte de premissas bem diversas.
Atacando as causas, ela implica em represamentos no Alto Tietê feitos em condições
tais que o rio fica regularizado em sua vazão,
passando a correr uniformemente. E, ao
mesmo tempo em que são assim evitadas as
enchentes, o amplo armazenamento resultante possibilita o adequado suprimento de
água potável à capital.
Ou seja, o projeto Saturnino de Brito enfoca
os dois problemas críticos: o controle das enchentes e o abastecimento de água potável.
Paula Beiguelman é professora emérita da
FFLCH da Universidade de São Paulo
(USP).
* Catullo Branco foi autor do projeto que resultou na bem-sucedida usina de Barra Bonita, no
rio Tietê.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Branco, C. Energia elétrica e capital estrangeiro no Brasil. São Paulo, Alfa-Ômega, 1975.
Branco, C. Enchentes em São Paulo. São Paulo,
Sindicato dos Escritores, 1985.
Beiguelman, P. Pela recuperação de uma proposta nacional. Breve estudo sobre as empresas de serviços de utilidade pública no
Brasil. São Paulo, Inep, 1986.
Affonso, A. “A Light e o legado”, Folha de S.
Paulo, edição de 16 de janeiro de 1979.
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