'I) LIÇÃO 11 A estrutura da vida, substância da história Na lição anterior ínsínuava eu que toda ciência de realidade, seja esta corporal ou espiritual, tem de ser uma construção e não um mero espelho dos' ratos, Porque a :física no lompo de Galileu resolveu ser isso, ficou constituída como ulõncía exemplar e norma de conhecimento durante toda a, Idade Moderna. H A história tem de adotar igual decisão e dispor-se a consíruír, Bem entendido que essa paridade entre a física, tal qual 1\ O uma história tal como deve ser se reduz;' por enquanto, I~ oste ponto: a construtividade. Os demais caracteres. da física nüo têm por que ser desejados para a história. Por exemplo; , exatidão. A exatidão da rísíca,' entenda-se, a exatidão de aproxlmação que lhe é própria, não procede -de seu método construtívo como tal, senão que lhe vem imposta por seu' objeto, " magnitude. O exatoJião é, pois, tanto o pensamento físico oomo seu objeto i - o fenômeno físico. É, pois, qUidpro (Jno prolongar-se em elegíacas manífestações csobre Il-"':: íncapaoldade de exatidão que afligirá sempre a história. O lamentávol seria antes o contrário, Se a história, que é a .cíêncía das. vidas humanas, fosse ou pudesse ser exata, significaria _que ()I;I homens eram pederneiras, pedras, corpos físíco-químícos ~ nnda mais. Mas então não haveria nem história, nem física,,' porque as pedras, mais ditosas, se assim quiserem" do que os, homens, não precisam de fazer ciência para ser o quesã,o, to é, pedras. Em troca, o homem é uma entidade estranhísíme que para ser o que é necessita antes averíguã-lo, necesítn, queira ou não, perguntar-se o que são as coisas a seu :'odor e o que é ele em meio às coisas. Porque isso o que vordadeiramente diferencia o homem da pedra: não que' o um é 3'1 -J homem tenha entendimento e a pedra careça dele. Podemos imaginar uma pedra muito inteligente mas como o ser pedra lhe é dado já feito de uma vez para sempre e não tem ela que decídí-lo -não necessita para ser pedra propor-se a cada momento o problema de si mesma perguntando: o que tenho eu que fazer agora ou, o que é o mesmo, o que tenho eu que ser? Solta no ar, sem que necessite perguntar nada e, por-tanto, sem que necessite exercitar seu entendimento, a pedra que imaginamos cairá -rumo. ao, centro 'dli terra. Suà :ihteUgência, pois, embora exista, não forma parte de seu ser, não intervém nele, mas seria um aditamento extrínseco e supérfluo. O essencial no homem é, em troca, não ter outro remédio que esforçar-se em conhecer, em fazer ciência, melhor ou pior, em resolver o problema de seu próprio ser e para isso o problema de que são as coisas entre as quaís ínexoravelmente tem que ser. Isto: que necessita saber, que necessita - queira Ou não - aranar-se com .seus meios íntelectuaís, é o que constitui índubítavelrnente aCQpdtçãQ.~numaJ;la.Em. troca, definir 'I) hQmênl.,aizimdo~qije:é 1J.m-animal int~li~epté.; ullfanF makqué :sabe~,hoino ,$ájiiens,e _s6,bremaneíra .perigoso, .po;que,' por - menor, que 'seja', o .rigor. .que , usemos eo .empregar .essas, palavras,se nos perguntamos: é 'ohomém, mesmo maior" gênio que já existiu, de verdade e em toda a" plenitude 'do' vocábulo, inteligente? De verdade entende .com plénâtude _de entendimento, de verdade sabe algo com' inalterável)' e- integral saber?, -logo advertiremos que é .cotsa sobremaneira duvidosa, e problemática. -Em troca, repito, é ínquestíonável quer neces-i sita saber. ' .;- '. -"- ; ó I" ',' Não se pode deúnir o homem pelos' dQtê~ou ' meios com': que conta, já, -que não está dito que esses dotes, esses meios, logrem que os seus nOIPe~ pretendero,porta~to, que sejam adequadcs rà-pavorosa lide em ql,l,e,:"q1,J:ei;!ia ou não., está. ,Dit9 ...deouteo rnodoro homem 'não' se .ocupa 'em conhecer, 'em saber., simplesmente 'porqúetenha' donscognoscítíyosríntelígêncía; etc. ~ 'mas adcontrãrío porque'não -tem mais remédio-que -mtentar conhecer, saber, mobílâza os meios=de quê díspõe.iembora estes-sirvam muito mal para aqueíe rrmster, Se ai íntelígêncíai humana fosse de verdade.o que a' palavra indica'-:;" capacídade, de entender -.:. o homem teria ímedíàternente. :entendido tudo; e estaria sem nenhúrhproblema, sem 'lide penosa 'pela frente: Não está, pois', 'dito que a inteligência dô homem seja, \ com - efeito, íntelígêncíá: em troca, 'a 'lide em que: o' homem" anda iiremedjavelri;lentem~tido~, ÍSSô .sim é 'que ê 'fndubitável,--;--: e, portanto', isso sím é que 0- -defip.ê!" , ,::,'- , ' ,,:i,; s··',: '.; 11... :~~ :: ~~ '..... ...,:/ ° .... ;,. ~2 '~ Essa lide o viver consiste :unstância, que merso, projetado de agora. - segundo díssemos - se chama "viver" e em que o homem está sempre em uma círse acha de imediato e sem saber como subem um orbe ou contorno ínsubstítuível. neste i' Para sustentar-se nessa circunstância tem que fazer sempre algo - mas esse afazer não lhe é imposto pela circunstância, como ao gramoíone lhe é imposto 0' repertório de seus discos ou ao astro a linha de sua órbita. 1\' O homem, cada homem tem que decidir a cada instante o que vai fazer, o que vai ser no seguinte, Essa decisão é ín- ' transferível; ninguém pode substituir,me na faina de me decidir, de decidir a minha vida, Quando me ponho nas mãos de um outro, fui eu quem decidiu e continuo decidindo que ele me dirija: não transfiro, pois, a decisão, mas apenas o seu mecanismo. Em vez de obter a norma de conduta do mecanismo que é a minha inteligência, aproveito-me do mecanismo da inteligência do outro. Se ao sair daqui tomam os senhores uma direção e não outra é porque crêem que devem ir a determinado lugar a essa hora, e isso per sua vez - que devem estar a essa hora em tal lugar - 0' decidiram por outra razão futura e assim sucessivamente. O homem não pode dar um só passo sem antecipar, com mais ou menos claridade, todo o seu porvir, o que vai ser; entende-se, o que decidiu ser em toda a sua vida. Mas isso significa que o homem, obrigado a fazer sempre algo na circunstância, para decidir o que vai fazer não tem mais remédio que se' propor o problema de seu próprio ser. Não é preciso grande perspicácia para notar quando nos encontramos com o próximo, como vai este dirigido pelo si mesmo que decidiu ser, mas que jamais acaba de ver claro, que lhe é sempre problema. Porque cada qual ao indagar de si o ,que vai ser, portanto, o que vai ser sua vida. não tem mais remédio senão propor-se o problema de qual é o ser {10 homem, que é o que o homem geral pode ser e que é o que tem que ser. Mas isso, por sua vez, nos obriga a fazer uma idéia, a averiguar de algum modo o que é a círcunstãncía, contorno ou mundo em que vivemos. As coisas,' à volta, não nos dizem por si mesmas o que são. Temos nós que descobri-Io. Mas isso =descobrir o ser das coisas e o ser de si mesmo - não é senão o .atazer intelectual do homem, afazer que, portanto, não é um acréscimo supérfluo e extrínseco à sua vida, mas, queira ou não, é constítutivo desta, Não se trata, pois, de que o homem vive e depois, se lhe convier, se sente alguma espe- " 33 '" cial curiosidade, ocupe-se em formar algumas idéias sobre as coisas. Não; viver é já encontrar-se forçado a interpretar nossa vida. Sempre, irremissivelmente, em cada instante nos achamos com determinadas convicções radicais sobre o que são as coisas e nós entre elas: essas articulações de convicções últimas fazem de 'nossa circunstância caótica a verdade de um mundo ou universo O que ficou dito nos apresenta nossa vida constituída por duas dimensões, uma inseparável da outra e que quero deixar destacadas diante dos senhores com toda claridade. Em sua dimensão primeira viver é estar eu, o eu de cada qual, na circunstância e não ter outro remédio que enfrentá-Ia. Mas isso impõe à' vida uma segunda dimensão que consiste em que não tem outro remédio senão averiguar o que a circunstância é. Em sua primeira dimensão o que temos ao viver é um puro problema. Na segunda dimensão temos um esforço ou intento de resolver o problema. Pensamos sobre a circunstância e esse pensamento nos fabrica uma idéia, plano. ou arquitetura do puro problema, do caos que é por si, primariamente, a circunstância. A essa arquitetura que o pensamento põe sobre nosso contorno, interpretando-o, chamamos mundo ou universo. Este, pois, não nos é dado, não está aí, casualmente, mas é fabricado por nossas convicções. Não há modo de se esclarecer um pouco o que é a vida humana se não se tem em conta que o mundo ou universo é a solução intelectual com que o homem reage aos problemas dados, .inexoráveis, inescusáveis que lhe propõe a circunstância. Ora pois: 19 quais sejam as soluções. depende de quais sejam os problemas; 29 uma solução só o é autenticamente na medida em que seja autêntico o problema; quero dizer, na medida em que nos sintamos efetivamente angustiados por ele. Quando, por um· ou outro motivo, o problema deixa de ser efetivamente sentido por nós, a solução, por mais acertada que seja.. perde vigor ante nosso espírito, isto é, deixa de cumprir seu papel de solução, converte-se numa idéia morta. Interessá-me sublinhar tudo isso porque formula com energia a dualidade inerente ao viver humano em virtude da qual o homem está sempre no problema que é sua círcuns, tãncía, mas por isso mesmo forçado a reagir ante esse problema,está sempre em uma relativa solução. O homem mais cético vive já com certas convicções radicais, vive em um mundo, em uma interpretação. O mundo em que está o cético se chama "o duvidoso": vive nele, está, na dúvida, no mar do duvidoso, no mar de confusões, como o chama muí acertada- 34 mente a expressão vulgar; e esse mundo do duvidoso é tão mundo como o mundo do dogmático, ainda que seja um mundo pavorosamente pobre. Quando se fala, pois; de um "homem sem convicções", cuide-se de advertir que isso é só um modo de falar. Não há vida sem últimas certezas: o cético está convencido de que tudo é duvidoso, Quando indiquei que nossa vida, a de cada qual, é, por força, interpretação de si mesma, é formar-se idéias sobre si e os demais, o ouvinte terá dito consigo que não se deu conta nunca de haver realizado esse esforço. E tem razão se entendeu minhas palavras no sentido de que cada homem só por seu esforço original cria para si uma interpretação. do universo. Por desgraça - ou por ventura - isso não acontece. Ao nos encontrarmos vivendo, encontramo-nos não apenas entre as coisas, mas entre os homens; não apenas na terra, mas na sociedade. E esses homens, essa sociedade onde caímos ao viver tem já uma interpretação da vida, um repertório de idéias sobre o universo, de convicções vigentes. De sorte que o que' podemos chamar "o pensamento de nossa época" entra a rormar parte de nossa circunstância, envolve-nos, penetra-nos e nos conduz. uni dos fatores constitutivos de nossa fatalidade é o conjunto de convicções ambientes com que nos encontramos. Sem nos darmos conta, achamo-nos instalados nessa rede de soluções já feitas para os problemas de nossa vida. Quando um destes nos aperta, recorremos a esse tesouro, perguntamos a nossos próximos, aos livros dos nossos proxímos: o que é o mundo? o que é o homem? o que é a morte? 'o que é o além? Ou então: o que é o espaço? o que é a luz? o que é o organismo animal? Mas nem é necessário que nós façamos tais perguntas: desde que nascemos executamos um esforço constante de recepção, de absorção, na convivência familiar, na escola, leitura e trato social que transvaza em nós essas convicções coletivas antes, quase sempre, de que tenhamos sentido os problemas de que elas são ou pretendem ser soluções. De sorte' que quando em nós brota a efetiva angústia ante uma questão vital e queremos de verdade achar a sua solução, orientarmo-nos com respeito a ela, não só temos que lutar com ela como nos encontramos presos nas soluções recebidas e temos que lutar também contra estas O idioma mesmo em que por força temos de pensar nossos próprios pensamentos é já um pensamento alheio, uma filosofia coletiva, uma elementar interpretação da vida, que fortemente nos aprisiona. ' Vimos como a idéia do mundo ou universo é o plano que o homem para si forma, queira ou não, a fim de andar entre as coisas e realizar sua vida, a fim de se orientar no caos da 35 circunstância. Mas essa idéia lhe é de imediato dada por seu contorno humano, é a idéia dominante em seu tempo. Com ela tem que viver, ·seja aceitando-a, seja polemizando neste ou naquele ponto contra ela. Além de pensar sobre as coisas ou saber, o homem faz instrumentos, fabrica utensílios, vive materialmente com uma técnica. A circunstância é diferente conforme seja a técnica já alcançada com que se encontra ao nascer. Ao homem de hoje não lhe apertam como ao paleolítico os problemas materiais. Dedica-se a outros. Sua vida é, pois, de idêntica estrutura fundamental, mas a perspectiva de problemas, distinta. A vida é sempre preocupação, mas em cada época preocupam mais umas coisas que outras. Hoje não preocupa a varíola, que preocupava em 1850. Hoje, em troca, preocupa o regime parlamentarista que não preocupava então. Sem ter feito mais que deixar entrever o assunto, encontramo-nos, pois, com estas verdades claras: 1 toda vida de homem parte de certas convicções radicais sobre o que é o mundo e o lugar do homem nele - parte delas e se move dentro delas -; 2Q toda vida se encontra numa circunstância com mais ou menos técnica ou domínio sobre o contorno material. Q Eis aí duas funções permanentes, dois fatores essenciais de toda vida humana, que, além disso, se influenciam mutuamente: ideologia e técnica Um estudo completo nos levaria a descobrir as restantes dimensões da vida. Mas agora bastam essas duas porque nos bastam para entrever que a vida humana tem sempre uma estrutura, isto é, que consiste em ter o homem que enfrentar um mundo determinado cujo perfil podemos delinear. Esse mundo apresenta relativamente resolvidos certos problemas e exalta, em troca, outros, dando assim uma determinada e não vaga figura à luta do homem por seu destino. A história se ocupa em averiguar como foram as vidas humanas, mas costuma-se entender mal a expressão, como se se tratasse de inquirir qual foi o caráter dos sujeitos humanes~-·A..-vida não é, sem mais nem mais, o homem, isto é, o sujeito que vive. É o drama desse sujeito tendo que bracejar, que nadar náufrago no mundo. A história não é, pois, primordialmente psicologia dos homens, mas reconstrução da estrutura desse drama que se dispara entre o homem e o mundo. Num mundo determinado e diante dele, os homens de psicologia mais diversa se encontram com certo repertório iniludível e 36 'omum de problemas strutura fundamental. são subalternas e não dades no esquema de que dá à sua existência uma idêntica As diferenças psicológicas,' subjetivas, fazem mais que pôr miúdas irregulariseu drama comum. Darei um exemplo para esclarecer meu pensamento. Imaínem os senhores dois indivíduos de caráter oposto, um muito alegre, outro muito triste, mas ambos vivendo num mundo onde Deus existe e onde a técnica material é elementaríssima (Em geral, as épocas com Deus são épocas de técnica rudimentar, e vice-versa). A primeira vista nos inclinaremos a atribuir grande importância a essa diferença de caracteres na configuração dessas duas vidas. Mas se em seguida comparamos um desses homens, por exemplo, o alegre, com outro tão alegre como ele mas que vive num mundo distinto, num mundo onde não há Deus e há, em troca, uma civilização técnica desenvolvidíssima, surpreendemo-nos de que, apesar de gozar ambos do mesmo caráter, suas vidas se diferenciam muito mais do que as daquela outra dupla, distinta de caráter porém submersas no mesmo mundo. É preciso que a história abandone o psicologismo ou subjetivismo . em que suas mais finas produções atuais andam perdidas, e reconheça que sua missão é reconstruir as condições objetivas em que os indivíduos, os sujeitos humanos estiveram submersos. Daí que sua pergunta radical tem de ser, não como variaram os seres humanos, mas como variou a estrutura objetiva da vida. Cada um de nós se encontra, com efeito, submerso hoje em um sistema de problemas, perigos, felicidades, dificuldades, possibilidades e impossibilidades que não são ele, mas que, ao contrário, são aquilo em que está, com que tem de contar, em manobrar e lutar com o qual consiste a sua vida. Houvéramos nascido há cem anos, ainda que possuindo o mesmo caráter e iguais dons, o drama de nossa vida seria muito diferente. A pergunta radical da história se precisa, pois, assim: que mudanças da estrutura vital houve? Como, quando e por que muda a vida? 37