Monogamia e Heterossexualidade: Um breve apanhado histórico
sob a ótica de gênero
Natalia Pietra Méndez*
A instituição do casamento é uma dos mais fortes pilares da
organização social. Ele sobrevive a diferentes regimes políticos,
religiões e ultrapassa modos de produção. É de tal forma considerado
natural na vida de homens e mulheres que – ainda no século XXI uma pessoa que opta por não casar e constituir uma família nos
moldes tradicionais é considerada "fora dos padrões". A idéia de que o
casamento é uma etapa natural da vida faz com que pouco se
questione sua origem e sua essência. Será ele de fato uma
necessidade instintiva dos seres humanos que precisam encontrar
um/uma outro/outra para compartilhar sua vida e perpetuar a espécie?
São muitas as respostas possíveis para esta questão. Contudo,
partiremos aqui do princípio de que o casamento é uma construção
histórica e cultural, que exerceu desde seus primórdios duas funções
principais: a garantia dos direitos de propriedade e o controle da
sexualidade feminina. O desenvolvimento de novas relações de
produção foi responsável pela mudança na situação social da mulher.
O surgimento da propriedade privada possibilitou que os homens se
apropriassem do excedente da produção e, ao mesmo tempo,
estabelecessem a divisão sexual do trabalho. Esta divisão reduziu o
papel da mulher à reprodução da vida e à execução do trabalho
doméstico. As mulheres deixaram de exercer tarefas fundamentais
para a manutenção do grupo e perderam a liberdade sexual. Tudo
indica que o casamento monogâmico serviu para instituir uma prática
social já decorrente nas sociedades antigas: controlar a sexualidade
feminina para não permitir que pairassem dúvidas sobre os herdeiros.
Desde as primeiras civilizações, a moral masculina esteve associada
ao comportamento da esposa. Como exemplo, no Código de
Hammurabi, o mais antigo conjunto de leis escritas de que se tem
conhecimento, há diversas passagens que apontam para a
criminilização
e
condenação
do
adultério
feminino.
Conforme Engels, em seu pioneiro estudo "A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado", a família monogâmica foi
necessária ao processo de acumulação privada de bens. Através da
união monogâmica, a função paterna passou a determinar a
organização familiar e a continuidade da propriedade privada na
mesma linhagem. Assim, de acordo com a explicação materialista o
surgimento do casamento monogâmico não foi fruto do amor ou de um
sentimento natural, mas sim de uma construção social que surgiu a
partir da necessidade de estabelecer a certeza da paternidade com a
finalidade de concentrar a propriedade e a riqueza nas mãos do
homem. Esta concentração só seria bem sucedida se houvesse o
controle
da
sexualidade
feminina.
Outra vertente de pensamento, inaugurada por Simone de Beauvoir,
localizava na maternidade o fator determinante para o estabelecimento
de relações desiguais entre homens e mulheres. O controle da
sexualidade através da divisão sexual do trabalhou foi estabelecido
antes mesmo do surgimento da propriedade privada e do casamento
monogâmico.
A gravidez, o parto e a menstruação diminuíram a capacidade de
trabalho das mulheres que, para se defender e alimentar,
conseqüentemente, precisavam da proteção dos homens guerreiros.
Conforme Simone de Beauvoir a maior maldição que pesou sobre as
mulheres foi a sua exclusão das atividades guerreiras. A sociedade
atribuiu valores diferenciados para a geração da vida e para a
preservação da vida. As expedições guerreiras, ao contrário da
maternidade possuíam um significado social, uma atribuição de valor
que fez com que estas atividades fossem reconhecidas e necessárias
para a sobrevivência do grupo. A maternidade, ao contrário, foi
considerada um “acidente” da natureza. Através desta concepção,
podemos compreender o casamento como mais uma forma de
regulamentação e controle da sexualidade feminina. Ele passa a ser
visto como uma "ocupação" da mulher. Enquanto os homens criam,
produzem, trabalham, vivenciam o mundo público, a elas foi reservado
o cuidado do espaço doméstico - relacionado à família e ao
casamento. Ou seja, a raiz das desigualdades entre homens e
mulheres está no momento em que são atribuídos valores desiguais
para
atividades
sociais
diferentes.
Todavia, as modificações na condição social da mulher ocorridas no
último século contribuíram para desestruturar as relações de gênero e,
conseqüentemente, o casamento. O massivo ingresso feminino no
mercado de trabalho, o aumento da escolaridade e o acesso à
métodos anticonceptivos possibilitaram repensar o casamento como
única finalidade da vida. Novas possibilidades se colocam a partir do
momento em que as mulheres reivindicam a igualdade social e jurídica
com os homens. Entretanto, este é um fenômeno recente. Até a
década de 1980, o código civil brasileiro ainda apontava o homem
como provedor da família, sendo que a esposa só poderia trabalhar
fora com seu consentimento. Esta lei já foi derrubada. Mas sua
essência ainda está introjetada na cultura patriarcal ainda
hegemônica. Assim, apesar das grandes transformações vivenciadas
no último século, traços de uma cultura misógena se perpetuam na
sociedade.
O casamento monogâmico tradicional possui ainda um outro elemento
constitutivo. Trata-se de uma relação heterossexual. Desta maneira,
uma relação não monogâmica e não heterossexual foge aos padrões
de conduta aceitos como naturais. Mas nem sempre foi assim. Em
outras sociedades as relações homossexuais eram não somente
aceitas como também consideradas um comportamento "normal". Na
Grécia e na Roma antiga, por exemplo, faziam parte dos rituais de
iniciação sexual de jovens. O livro Satiricon é um excelente relato
sobre como eram vividas de forma não excludente relações homo e
heterossexuais. Entretanto, se a homossexualidade masculina era
aceita naturalmente, o mesmo não ocorria com as mulheres, que eram
consideradas uma extensão da propriedade dos homens (pais,
maridos
ou
irmãos).
A paulatina transformação da homossexualidade em pecado está
vinculada à era cristã, associada à necessidade de controlar a
sexualidade para fins reprodutivos. Se por um lado verificamos que o
homossexualismo (tanto masculino quanto feminino) sempre existiu,
vemos que a partir do cristianismo ele passa a ser condenado como
prática pecaminosa. Posteriormente, somaram-se às justificativas
morais, explicações pretensamente científicas. A partir do século XIX,
a biologia e a psicanálise dedicaram-se a estudar o homossexualismo
tanto como uma anomalia genética quanto um desvio psíquico e
comportamental.
Atualmente, estudiosos das relações de gênero buscam compreender
que a identidade não é uma construção fixa, com base em um sexo
biológico. Desta forma, a homossexualidade é uma expressão de uma
identidade social, construída a partir de uma vivência subjetiva da
masculinidade e da feminilidade. Se a homossexualidade sempre fez
parte da humanidade, cabe questionar porque até nossos dias ela é
tão rechaçada. A sociedade, através das suas instituições, busca
exercer um domínio e um controle sobre os corpos, e,
conseqüentemente, sobre a sexualidade. Vimos que no caso feminino,
este controle está vinculado principalmente à necessidade de manter
certos padrões sociais aceitáveis de conduta e reprodução. Para isso,
são construídas identidades de gênero hegemônicas, que procuram
definir padrões de feminilidade e masculinidade. Contudo, é preciso
perceber que estas identidades também são construídas a partir de
outras vivências coletivas (classe, raça) e da experiência subjetiva de
cada indivíduo. Desta forma, a questão da opção sexual passa a ser
um "problema sociológico" a partir do momento em que a
homossexualidade é identificada como uma "minoria", "anomalia" ou
"doença", ou seja, a partir do momento em que se atribui valores
sociais - desiguais - para comportamentos sexuais diferentes.
¹ se contra a esposa de um awilum foi apontado o dedo por causa de
outro homem, mas ela não foi surpreendida dormindo com outro
homem, para o seu marido ela mergulhará no rio. (p. 141)Se uma
mulher tomou aversão a seu esposo e disse-lhe: "tu não terás relações
comigo" seu caso será examinado em seu distrito. Se ela se guarda e
não tem falta e o seu marido é um saidor e a despreza muito, essa
mulher não tem culpa, ela tomará seu dote e irá para a casa de seu
pai. Se ela não se guarda, mas é uma saidora, dilapida sua casa e
despreza seu marido, lançarão essa mulher n"agua. (p. 148)
(*)Professora e Doutoranda em História pelo PPGH/UFRGS
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