Artigo Original Reconstrução com retalho de platisma: uma opção viável? Reconstruction with platysma flap: a doable option? Alberto Mitsuyuki de Brito Kato1 Isamu Komatsu Lima2 Felipe Paiva Fonseca3 Flávia Sirotheau Corrêa Pontes4 RESUMO ABSTRACT Introdução: o retalho do músculo platisma (RMP) vem sendo utilizado em reconstruções cirúrgicas de cabeça e pescoço sem a devida importância que ele merece. Objetivo: avaliar os resultados de reconstruções a custa do RMP. Pacientes e método: analisamos nove casos em que se utilizou o RMP para fechar a área cruenta após a ressecção oncológica em câncer de cabeça e pescoço em instituição de referência em Oncologia. Cinco casos foram para reconstruir o soalho da boca, dois para a mucosa jugal, um para hipofaringe e um para o palato duro. Resultados: Desses nove casos, em quatro não houve qualquer complicação. Houve epidermólise em dois, deiscência parcial da sutura em dois e uma perda total. Conclusão: O RMP é uma boa opção para reconstrução em casos selecionados. Introduction: the platysma flap is used in reconstructions in head and neck surgery without the concernment that it deserves. Objective: to analyze the outcome in reconstruction with this flap. Patients and methods: We evaluated nine cases in which the platysma flap was done in order to reconstruct the wound area after the resection of head and neck cancer in a reference institution. Five cases were performed in the floor of the mouth, two in jugal mucosa, one in hypopharynx and one in the hard palate. Results: Out of the nine cases, no complications was found in four. On the other hand, we hadepidermiolisis in two cases, partial dehiscence in two, and total lost in one patient. Conclusion: The platysma flap is a good option to reconstruction in selective cases. Key words: Platima muscle; flap; oncological resection. Descritores: Músculo platisma; retalho; ressecção oncológica. INTRODUÇÃO O retalho do músculo platisma (RMP) vem sendo usado desde 1823, descrito por Delpech para reconstrução do lábio inferior1. Em 1978, Futrell utilizou-o, pela primeira vez, para reconstruir defeito intra-oral após ressecção de tumor maligno2. O RMP foi utilizado para a reconstrução do mento3, em defeitos da hipofaringe4, como solução para deformidades do lábio inferior5, para reconstruir esôfago cervical6, para reparar deformidades do traqueostoma7 e até para auxiliar no reimplante da cartilagem auricular após avulsão por mordedura de cão8. O platisma é um músculo par, fino e delgado, situado nas regiões ântero-laterais do pescoço, que se originam nas clavículas e terminam na face junto a fáscia parotidiana e parte músculo-aponeurótica do terço médio da mandíbula. O suprimento sangüíneo é dado, cranialmente, pelo ramo submental da artéria facial, ramos perfurantes da artéria cervical transversa inferiormente; medialmente, por ramos da artéria tireoidiana inferior; lateralmente, da occipital; e; caudalmente, da auricular. A inervação é feita pelo ramo cervical do nervo facial. O RMP é indicado para áreas onde a reconstrução necessita de tecido mais delgado, com o soalho da boca sendo sua principal indicação em quase todas as referências consultadas, mas pode ser usado para outros locais, sempre respeitando o ângulo de rotação de sua base fixa rente ao corpo da mandíbula, preferencialmente mantendo a integridade da artéria facial, evitando tensão e respeitando o tamanho de área a ser fechada em no máximo de 7 x 10cm. O objetivo deste trabalho é demonstrar a viabilidade da utilização do RMP em reconstruções em cirurgia de cabeça e pescoço em serviços em que a disponibilidade de outra equipe para reconstrução após a ressecção é limitada pela escassez de recursos, em hospital de referência em Oncologia do Sistema Único de Saúde. PACIENTES E MÉTODO O estudo é retrospectivo, com coleta de dados obtidos de prontuários médicos dos arquivos do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Ophir Loyola. Foram avaliados nove pacientes, que apresentavam patologia maligna localizada em região da cabeça e pescoço, com potencial chance de cura, sendo submetidos à ressecção cirúrgica com reconstrução utilizando retalho miocutâneo do músculo platisma, sendo avaliados seus resultados de acordo com viabilidade do retalho, funcionalidade, complicações, adjuvância com radioterapia e/ou quimioterapia. A escolha do paciente para ser submetido a essa reconstrução foi baseada no estadiamento clínico no momento da cirurgia e 1) Especialista em Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Chefe do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Universitário João de Barros Barreto – UFPA; Médico assistente do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Ophir Loyola, Belém. 2) Ex-Médico Residente em Cirurgia Oncológica do Hospital Ophir Loyola, Belém. 3) Acadêmico do Curso de Odontologia da Universidade Federal do Pará; Estagiário do Serviço de Patologia, Estomatologia e Traumatologia Buco-Maxilo-Facial do Hospital Universitário João de Barros Barreto – UFPA. 4) Aluna de Doutorado em Patologia Bucal pela Universidade de São Paulo. Mestre em Estomatologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Instituições: Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Ophir Loyola, Belém. Correspondência: Av. Conselheiro Furtado, 1911/401 – 66040-100 Belém, PA. E-mail: [email protected] Recebido em 18/05/2007; aceito para publicação em: 01/07/2007; publicado on line em: 18/08/2007. 174 Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 36, nº 3, p. 174-177, julho / agosto / setembro 2007 no sítio cirúrgico. Os sítios tumorais foram: soalho de boca, gengiva inferior, região jugal, hipofaringe e palato duro. O estadiamento tumoral clínico foram T2 e T3, sendo eventualmente usado em T4 e pescoço N0 e N1 (figura 1). Figura 4 – RMP fechando hipofaringe. Figura 1 – Área cruenta em hipofaringe. A técnica cirúrgica com a confecção do retalho pode ser feita antes ou depois de realizar o esvaziamento cervical, devendo observar a preservação da artéria facial homolateral. Antes de iniciar a incisão do retalho, é delimitada a ilha de pele na área doadora de até 10 x 4cm, sempre próxima da clavícula, para aumentar o ângulo de rotação de retalho. Dissecamos o músculo na sua fáscia sub-platismal, preservando sua vascularização arterial e venosa. Em seguida, o retalho pode sofrer uma rotação de 45° a 180° em torno do seu eixo para recobrir a área receptora (figuras 2 e 3). O sítio doador é facilmente fechado com a pele da parede torácica e cervical sobre a clavícula, não provocando prejuízo à função motora (figuras 4 e 5). Figura 5 – RMP fechando hemipalato duro direito. RESULTADOS Figura 2 – RMP preparado e viável. Nove pacientes foram submetidos a procedimento cirúrgico com ressecção da neoplasia maligna com intenção curativa e reconstrução, utilizando RMP, sendo que em dois casos, foi combinado com o músculo peitoral maior, sendo obedecidos os princípios oncológicos de radicalidade, funcionalidade do sistema e aspecto estético. Desses nove pacientes, oito eram do gênero masculino e apenas uma do feminino. Todos eram portadores de carcinoma espinocelular de região de cabeça e pescoço, sendo cinco em soalho da boca, dois na região jugal esquerda (associados ao retalho do músculo peitoral maior para fechamento da pele da região bucinadora, um em hipofaringe e um para reconstrução da gengiva superior direita e palato duro, sendo este o único caso de perda total do retalho, talvez devido a ter ficado sem sustentação na cavidade sinusal maxilar direita, comparável a uma tenda e a uma possível tensão sobre o retalho. A recidiva tumoral esteve presente em um caso de soalho de boca, no qual foi realizada cirurgia de resgate com mandibulectomia seguimentar. Outro paciente apresentou recidiva irressecável no pescoço, realizando radioterapia e quimioterapia e evoluindo para óbito após 10 meses. Apenas um evoluiu com segundo tumor primário em esôfago proximal e seis estão livres de doença após período de acompanhamento que variou de cinco a quarenta e oito meses (tabela 1 e figuras 6 e 7). Figura 3 – Área cruenta em palato duro. RMP sai por túnel criado em partes moles da bochecha direita. 175 DISCUSSÃO Figura 6 – RMP para região jugal esquerda, com deiscência em retromolar. Figura 7 – Retalho peitoral para bochecha esquerda, com pequena deiscência superior. Tabela 1 – Relação dos pacientes submetidos ao RMP. (*) RMP associado ao retalho de músculo peitoral Sítio Idade Gênero TNM (anos) soalho 67 Viabilidade do Adjuvância/Evolução retalho ? T3N1M0 Total esquerdo RXT/Recidiva em 1ano e 4 meses/ reoperado soalho 71 ? T2N0M0 total 65 ? T3N0M0 epidermólise RXT/ sem recidiva 57 ? T2N1M0 total RXT/ 2? primário de 69 ? T4N0M0 deiscência esquerdo soalho Recidiva cervical/RXT/óbito direito soalho anterior região Jugal esôfago/ óbito esquerda RXT/ sem recidiva parcial retromolar (*) região jugal 71 ? T4N0M0 esquerda deiscência RXT/ sem recidiva parcial em O suprimento sangüíneo do retalho do músculo platisma dá-se através de ramos de várias artérias, diferente do retalho do músculo peitoral maior, que possui um pedículo vascular bem visível e definido9, o que dificulta a identificação da arcada do músculo platisma e, por vezes, a ligadura inadvertida da artéria facial durante o esvaziamento cervical, comprometendo seu suprimento sangüíneo e possibilitando complicações do retalho. Entretanto, outros autores defendem o uso deste tipo de retalho, mesmo após a ligadura da artéria facial sem a perda do mesmo10. Estudos avaliaram a nutrição do músculo platisma, identificando os troncos arteriais que o nutrem, sendo as artérias facial, submentoniana, tireoidiana superior, occipital e cervical transversa11,12. A ligadura da artéria facial inadvertidamente poderá levar à perda parcial ou total do retalho em até 40% das vezes. A drenagem venosa dá-se para a veia jugular interna e veia submentoniana13,14. Alguns trabalhos descrevem uma rede vascular dos planos do músculo platisma, dividindo em três tipos de ramificação, que vão da fáscia adiposa, músculo platisma e plano sub-dérmico15. A radioterapia neoadjuvante no tratamento de neoplasias malignas, embora comprometa a vascularização dos tecidos doadores e favoreça a possibilidade de complicações, não é considerada uma contra-indicação absoluta16,17. Muitos fatores contribuem para a sobrevida do retalho, como comorbidades (diabetes, doença vascular periférica), outros tipos de terapia prévia (quimioterapia, radioterapia), localização do tumor, técnica cirúrgica e a experiência do cirurgião. Das complicações mais comuns, temos a fístula, perda total ou parcial do retalho, deiscência da pele e epidermiólise18.As vantagens encontradas na técnica de reconstrução descrita estão relacionadas às facilidades de confecção de retalho, não sendo necessária formação técnica em microcirurgia nem a não utilização de material especial; à rapidez de preparar-se a área doadora, gastando-se, em média, 30 a 40 minutos; à indicação de retalho delgado, sendo mais delicado para preencher a região da cabeça e pescoço; a resultados comparáveis com o retalho microcirúrgico radial de antebraço19; à facilidade técnica de confeccioná-lo; ao retorno do paciente a suas atividades colaborativas; e a menores custos com material e dias de internação. Os resultados foram bons em relação à viabilidade do retalho, preservação das funções das áreas acometidas e bom aspecto estético com cicatrizes menores. As vantagens desta técnica deram-se em relação à facilidade da realização da mesma, sem a necessidade de outra equipe de cirurgiões, bem como de materiais e técnicas especiais. Observaram-se benefícios em relação aos custos, em um centro de tratamento de câncer de atendimento em saúde pública, além de uma maior rapidez em confeccionar o retalho e resultados funcionais satisfatórios. Quanto às desvantagens desta técnica, deram-se pela limitação do ângulo de rotação para áreas distantes da mandíbula e à artéria facial, tornando-a exeqüível em casos selecionados. É importante ter o RMP como uma opção dentre os meios de minimizar as seqüelas provocadas pelo tratamento da neoplasia de cabeça e pescoço. pele de zigoma (*) soalho REFERÊNCIAS 45 ? T2N2bM0 epidermólise RXT/ sem recidiva 59 ? T2N0M0 deiscência no pescoço / esquerdo hipofaringe total direita palato duro direito 176 sem recidiva 78 ? T3N0M0 perda total desbridamento /RXT 1. Hunt PM, Burkey BB. 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