CONTEÚDOS ESCOLARES: NOVAS CONCEPÇÕES, ANTIGAS PRÁTICAS
José Evangelista Fagundes
RESUMO
A comunicação tem como objetivo principal refletir sobre a história ensinada em
escolas brasileiras de 5ª a 8ª séries. Para tanto, analisa os conteúdos de história, e a
concepção historiográfica neles implícita, verificando se são compatíveis com as
inovações do ensino preconizadas na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN). A investigação é de natureza qualitativa (BIKLEN;
BOGDAN, 1994) e tomou para análise depoimentos de professores do município de
Ceará-Mirim, situado no estado do Rio Grande do Norte. Os resultados apontam a
existência de práticas docentes distantes das propostas oficiais elaboradas pelo Estado
brasileiro. Isso fica evidente nos conteúdos selecionados pelos professores, em que são
predominantes os fatos históricos nacionais e mundiais, com destaque para temas
econômicos e políticos, cabendo às questões sociais, culturais e do cotidiano,
consideradas relevantes nos PCN de história, um papel secundário. Os dados indicam,
ainda, a presença de uma concepção historiográfica conduzida por macroabordagens,
em que são privilegiadas as grandes sínteses temáticas e as explicações
homogeneizantes.
Palavras-chave: Educação Fundamental. Conteúdos Escolares. Historiografia.
RÉSUMÉ
Le principal objectif de la communication est d'avoir une réflexion sur les programmes
d'Histoire travaillés dans les écoles brésiliennes de la 5ème à la 8ème année [équivalent du
collège, Ndt]. Pour ce faire, il faut examiner les contenus d'histoire, ainsi la conception
historiographique implicite chez eux, tout en vérifiant s'ils sont en accord avec les
innovations pédagogiques prônées par la Loi de Directives et Bases (LDB) et par les
Paramètres de Programes d'Enseignement Nationaux (PCN). La recherche, de nature
qualitative (BIKLEN; BOGDAN, 1994), s'est appuyée sur les témoignages des
professeurs de la ville de Ceará-Mirim, dans le Rio Grande do Norte. L'analyse signale
l'existence de pratiques d'enseignement éloignées des propositions officielles élaborées
par l'État brésilien. Cet écart mis en évidence lorsque nous nous penchons sur les
programmes choisis par les professeurs, où prédominent les fait historiques nationaux et
mondiaux, surtout ceux à caractère économique et politique. Quant aux sujets touchant
aux questions sociales, culturelles et du quotidien, considérés d'importance pour le PCN
d'histoire, ils ne détiennent qu'un rôle secondaire. Les données indiquent encore la
présence d'une historiographie conduite par des macro-approches, où sont favorisées des
grandes synthèses thématiques et des explications homogénéisatrices.
Mots-clefs: Éducation fondamentale. Programmes scolaires. Historiographie
2
Introdução
Neste texto temos como propósito refletir sobre a história ensinada em turmas de
5ª a 8ª séries, tomando como referência as concepções de conteúdos escolares e de
historiografia presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais de história do quarto
ciclo do ensino fundamental. Este trabalho é um recorte de uma pesquisa1 desenvolvida
no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Elegemos como dados empíricos para a análise os conteúdos escolares
selecionados pelos professores que colaboraram com a investigação.
Entendemos que os conteúdos trabalhados em uma determinada disciplina são
sinalizadores da visão do professor com relação a questões teórico-metodológicas, ao
ensino e ao tipo de indivíduos que ele pretende formar. Assim sendo, a seleção de
conteúdos de ensino é algo polêmico, pois as escolhas do que será contemplado ou
deixado de fora sofrem influência da visão de mundo de seus proponentes, o que pode
representar apenas uma opção dentre outras possíveis na comunidade escolar e na
sociedade em geral.
Segundo Sacristán (1998, p. 150) “o que se ensina, se sugere ou se obriga a
aprender, expressa os valores e funções que a escola difunde num contexto social e
histórico concreto”. Essa afirmação nos ajuda a compreender o porquê de as disciplinas
não terem os mesmos conteúdos sempre: as ideias e os anseios predominantes numa
época podem ser minoritários em outros contextos históricos.
Conceitualmente, os conteúdos abrangem todas as aprendizagens que os alunos
devem alcançar para obter êxito num determinado nível de escolarização, não apenas
nas áreas de conhecimento das disciplinas, mas também fora delas. Sacristán (1998, p.
150) ressalta que “é preciso referir-se não apenas a informações que precisam ser
adquiridas, mas também os efeitos que se derivam de determinadas atividades. [...] nem
tudo o que é real na prática é explícito, existem conteúdos tácitos ou ocultos”.
A legitimidade dos conteúdos factuais e conceituais não está em si mesma, mas
em valores de caráter social e moral vigentes numa sociedade, tornando-se imperativa
aos alunos e aos professores a aquisição de outros conhecimentos cuja origem pode
1
A pesquisa, desenvolvida em nível de doutorado, foi defendida no ano de 2006 com o título A história
local e seu lugar na história: histórias ensinadas em Ceará-Mirim.
3
estar relacionada a fatores de ordem psicológica, antropológica, cultural etc. Os PCN, ao
negarem uma concepção de conteúdo escolar como algo que se constitui apenas de fatos
e conceitos, abrem a perspectiva para uma visão mais ampla em que o conhecimento
necessário ao aluno não se restringe apenas à aquisição de informações. Segundo os
Parâmetros Curriculares de história para o terceiro e quarto ciclos, “os conteúdos a
serem trabalhados com os alunos não se restringem unicamente ao estudo de
acontecimentos e conceituações históricas. É preciso ensinar procedimentos e incentivar
atitudes nos estudantes que sejam coerentes com os objetivos da História” (BRASIL,
1998b).
Para efeito da reflexão que trazemos aqui, no entanto, tomamos apenas um
aspecto dos conteúdos escolares, qual seja: o referente aos conhecimentos factuais e
conceituais relacionados ao ensino de história da 5ª a 8ª séries de escolas situadas no
município de Ceará-Mirim. Essa opção baseia-se na compreensão de que, a partir da
seleção dos conteúdos de uma determinada disciplina, poderemos identificar, dentre
outros aspectos, a opção historiográfica de seus professores.
Ceará-Mirim, o espaço de atuação dos professores envolvidos na pesquisa, está
situado na Mesorregião do Leste Potiguar e na Microrregião de Macaíba, cuja sede dista
vinte e oito quilômetros da capital, Natal. Por situar-se à margem do rio Ceará-Mirim,
toma de empréstimo o seu nome.
Entendemos que o fazer pedagógico, no caso do ensino de história, é fortemente
influenciado pelo campo historiográfico com o qual o professor interage. Do mesmo
modo, entendemos que os conteúdos históricos de uma disciplina possibilitam
identificar a filiação historiográfica do responsável por sua seleção.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) apóiam-se em contribuições
historiográficas inovadoras, cuja abertura possibilita o trabalho com novas fontes
históricas, novos objetos e novas abordagens, o que tem contribuído para mudanças
significativas na escrita e no ensino da história. Entendemos que a Nova História, a
História Social inglesa e a Nova História Cultural convergem no sentido de favorecer
abordagens da história numa perspectiva inovadora. Essas correntes serviram de
orientação aos PCN.
Com o objetivo de saber se há influência dessa nova historiografia no trabalho
dos professores de história de Ceará-Mirim, decidimos conhecer os conteúdos de ensino
selecionados por esses profissionais.
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Tomamos por base os depoimentos de três professores do nível fundamental de
ensino (então de 5ª a 8ª séries), licenciados em história e que exercem a profissão no
município de Ceará-Mirim, sob os pseudônimos de Rui, Mateus e Alberto. Escolhemos
os professores como interlocutores por considerarmos esses profissionais os agentes
principais na organização e condução das disciplinas e do processo educativo que ocorre
na escola. O professor é o agente principal do que “efetivamente acontece nas escolas e
se pratica nas salas de aula. [...] é quem transforma o saber a ser ensinado em saber
apreendido, ação fundamental no processo de produção do conhecimento”
(BITTENCOURT, 2004, p. 50-51).
A técnica de construção dos dados utilizada foi a entrevista semiestruturada, por
ela ser um instrumento importante de apreensão dos significados que os interlocutores
da pesquisa têm acerca da questão abordada. As entrevistas permitem uma maior
interação entre entrevistador e entrevistados e um contato imediato com a informação
desejada, além de facilitar possíveis correções e esclarecimentos no próprio processo.
Elas possibilitam, ainda, compreender as representações que os sujeitos formam e os
conceitos que elaboram, condição importante para as análises e interpretações, na pesquisa
qualitativa (BIKLEN; BOGDAN, 1994), estabelecendo assim uma inter-relação entre o
mundo vivenciado por eles no dia a dia profissional e as concepções teóricas.
A pesquisa tem em vista responder as seguintes questões: que conteúdos são
privilegiados pelos professores colaboradores no ensino de história (da 5ª a 8ª séries) em
Ceará-Mirim? As escolhas feitas estão de acordo com a perspectiva historiográfica
presente nos PCN?
O ensino de história na perspectiva do Estado brasileiro: a LDB e os PCN
A década de 1990 representa uma nova fase para o ensino de história. Com ela,
surgem novas propostas visando mudanças na educação brasileira, na sua maioria
capitaneadas pelo poder estatal. Professores, instituições de ensino e poder público,
influenciados por novas contribuições no campo da historiografia elaboram currículos
sintonizados com os reclames da época. A União, por sua vez, toma para si a
responsabilidade de reestruturar a educação brasileira, e o faz a partir de várias ações,
como, por exemplo, a aprovação, em 20 dezembro de 1996, da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB), em substituição à LDB de 1971.
5
A nova LDB enfatiza a necessidade de se focalizar diferentes áreas de
conhecimento que possam ajudar na formação plena dos alunos, levando em
consideração os conhecimentos clássicos, a realidade social e política, especialmente no
que diz respeito ao conhecimento da história do Brasil, sob a justificativa da
necessidade de o aluno conhecer
[...] as nossas matrizes constituintes e sentir-se pertencente à nação. Explicita
também a necessidade de uma base comum de conhecimentos para todos e o
tratamento de questões específicas de cada localidade. É nessa perspectiva que
os Parâmetros Curriculares Nacionais foram organizados em áreas e temas
transversais, prevendo adequações às peculiaridades de cada local (BRASIL,
1998a, p. 57-58).
A legislação determina no artigo 9º, que é de responsabilidade da União, em
colaboração com os estados, os municípios e o distrito federal, a elaboração do: “[...]
Plano Nacional de Educação”, e a definição de “[...] competências e diretrizes para a
educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e
seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum”. A lei
determina, ainda, que “os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma
base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características
regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela” (BRASIL, 1996).
Com a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais, aprovados em 1997
pelo MEC, o Estado cumpre com a determinação da LDB de elaborar parâmetros
curriculares para orientação do ensino fundamental.
O MEC distribuiu aos professores de escolas públicas de 5a à 8a série dois
documentos formatados em 3 volumes: um denominado Introdução, outro,
Apresentação dos Temas Transversais, e um terceiro, específico da área, dirigido aos
docentes de acordo com a sua disciplina. No caso dos professores de história, o volume
denomina-se História.
No volume que trata dos chamados Temas Transversais, são contempladas
questões sociais amplas, vistas como imprescindíveis na contemporaneidade e que
envolvem valores de interesse geral da sociedade. Coerentes com a ideia geral dos
Parâmetros, os temas deverão ser abordados de forma a não se restringirem ao universo
de conhecimento de uma determinada área. Dessa forma, as questões propostas são
consideradas de abrangência nacional ou mesmo universal, ao mesmo tempo em que
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podem ganhar materialidade no diálogo com as questões do cotidiano do professor e do
aluno.
O volume intitulado História está dividido em duas partes: na primeira, consta a
caracterização da área de história e sua relação com o ensino fundamental, e estabelece
os objetivos gerais da história e os critérios de seleção e organização dos conteúdos. A
segunda parte está subdividida em ciclos (terceiro e quarto) e orientações e métodos
didáticos. O terceiro e quarto ciclos estão pontuados por questões como ensino e
aprendizagem, objetivos e conteúdos, para cada um.
Ao estudar a história, segundo consta nos PCN, pressupõe-se que
[...] o aluno pode apreender a realidade na sua diversidade e nas múltiplas
dimensões temporais. Destacam [os PCN] os compromissos e as atitudes de
indivíduos, de grupos e de povos na construção e na reconstrução das
sociedades, propondo estudos das questões locais, regionais e mundiais, das
diferenças e semelhanças entre culturas, das mudanças e permanências no
modo de viver, de pensar, de fazer e das heranças legadas por gerações
(BRASIL, 1998a, p. 60).
O ensino fundamental deve possibilitar ao aluno a compreensão da realidade na
qual está inserido, assim como relacioná-la e compará-la com outras realidades
históricas de diferentes lugares, para que ele possa fazer as suas escolhas e ações,
enquanto cidadão defensor da democracia, do respeito às diferenças e contra as
desigualdades sociais. Nessa perspectiva, os alunos deverão ser capazes de identificar
relações sociais no seu próprio convívio, assim como outras localizadas em espaços e
tempos diferentes; questionar sua realidade, identificando problemas e possíveis
soluções; conhecer e respeitar o modo de vida de diferentes grupos, em diversos tempos
e espaços; dominar procedimentos de pesquisa escolar e de produção de texto; colher
informações de diferentes paisagens e registros escritos (BRASIL, 1998b, p. 43).
Os PCN ressaltam a dimensão social da aprendizagem no processo de construção
da cidadania, sendo recomendados conteúdos que tenham relevância social e que sejam
significativos no desenvolvimento de capacidades, trazendo as seguintes considerações:
a preocupação central que o professor deve ter ao selecionar os conteúdos deve ser a de
“[...] propiciar aos alunos o dimensionamento de si mesmos e de outros indivíduos e
grupos em temporalidades históricas”; não se deve limitar a abordagens dos
acontecimentos e das conceituações históricas, mas incluir o ensino de “[...]
procedimentos e incentivar atitudes coerentes com os objetivos da história”; deve-se
7
proceder à abordagem e problematização do mundo em que o professor e o estudante
estão inseridos, em suas várias dimensões, e fazer as relações, quando pertinente, às
situações de outros tempos e espaços; o estudo dos eventos históricos não deve ser
prescrito “[...] de uma ordem de graduação espacial e sem a ordenação temporal, como
se encontra no que se denomina ‘História Integrada’”. Opta-se pela organização do
ensino a partir de eixos temáticos e subtemas; privilegia-se a autonomia e a reflexão do
professor quanto às escolhas no que diz respeito aos conteúdos e aos métodos, assim
como na criação de intervenções pedagógicas significativas para a aprendizagem do
aluno (BRASIL, 1998b, p. 45-47).
O ensino de história é conduzido numa abordagem que favorece o trabalho
interdisciplinar e fica evidente o seu não comprometimento com a construção de uma
identidade nacional comum. Inspirada na historiografia francesa, a proposta sugere a
substituição da seriação tradicional por ciclos, bem como o trabalho por eixo temático,
sem negar, no entanto, a possibilidade da totalidade histórica. Influenciada pela história
social, cultural e do cotidiano, faz crítica à história progressiva por ela deixar implícita a
ideia de deslocamento dos acontecimentos a partir de uma segmentação do tipo
princípio/meio/fim. Assim, a proposta busca romper com concepções antigas de
história, rejeitando a cronologia unidirecional até então predominante no ensino. Ou
seja, a proposta se contrapõe às concepções positivista e marxista (pelo menos na sua
forma ortodoxa) de história, cuja influência foi marcante, tanto na historiografia, quanto
no ensino.
Da época de sua aprovação até os dias atuais, os PCN têm se constituído em um
referencial para os professores do ensino fundamental. Muitos professores e escolas têm
usado esse documento como verdadeiro currículo. No que diz respeito às escolas
situadas em Ceará-Mirim, estaduais ou municipais, os PCN preencheram uma lacuna
existente, pois escolas e professores, à época da pesquisa, desconheciam a existência de
propostas curriculares locais que pudessem servir de referência nas suas atividades
docentes (FAGUNDES, 2006).
Os Parâmetros de história foram distribuídos amplamente entre os professores e
discutidos em encontros promovidos por iniciativa do poder público, o que possibilitou
a esses profissionais da rede de ensino oficial a oportunidade de debater acerca da
historiografia contemporânea e das novas questões pedagógicas. A mobilização desses
profissionais foi feita segundo as orientações existentes nos “Parâmetros em Ação”,
documento produzido sob a supervisão do MEC. Esse documento tem como “propósito
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apoiar e incentivar o desenvolvimento profissional de professores e especialistas em
educação, de forma articulada com a implementação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais e dos Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e para a
Educação Indígena e da Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos”
(BRASIL, 2000).
Em Ceará-Mirim, os professores de história da rede pública têm participado de
encontros de formação profissional, tendo como base as orientações que constam nos
Parâmetros em Ação.
Vejamos, então, os posicionamentos dos professores que colaboraram na
pesquisa. Estariam eles sintonizados com o debate sobre o ensino presente na LDB e
nos PCN? Para identificar o lugar das falas desses professores, tomamos como
referência os seus depoimentos acerca dos conteúdos ensinados.
Os conteúdos trabalhados pelos professores
Os professores entrevistados afirmaram que os conteúdos com os quais
trabalham, e as respectivas estratégias de ensino, têm sido definidos nos encontros
periódicos promovidos pelas escolas em que trabalham. O professor Alberto, no
entanto, afirma a existência de interferência dos interesses de órgãos controladores das
escolas (Secretarias de Educação) quanto à escolha dos conteúdos. O professor Rui, por
sua vez, ressalta a existência de certa cobrança por parte da escola e dos pais dos alunos
para cumprir o conteúdo que está nos livros adotados. Não obstante essas ressalvas, os
professores não veem as interferências como algo que venha a comprometer a atuação
docente como um todo, conforme mostram abaixo seus depoimentos acerca dos
conteúdos de ensino e dos critérios de seleção:
Mateus: Didaticamente, eu procuro seguir as orientações inseridas nos livros
didáticos. Então na quinta série eu discuto com eles história do Brasil colônia,
na sexta série eu trabalho Brasil império, Brasil república, na sétima série eu
inicio com um pouco de teoria da história, depois eu vou inserir pré-história,
história antiga e o período medieval e vou finalizar, na oitava série, com
história moderna e contemporânea.
Rui: O conteúdo que eu trabalho de 5ª a 8ª series está dividido de acordo com
os livros didáticos da seguinte maneira: em relação à 5ª serie, é pré-história e
história antiga; e na 6ª já começa com história medieval e já começa a inserir, a
integrar a história do Brasil; na 7ª, já entra um pouco de história moderna e
contemporânea; e no caso da 8ª série, também, agora, contextualizando um
pouco mais da história mais recente – do século XX no mundo e a história do
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Brasil. Isso claro que olhando a periodização, segue essa periodização da
história como é feita.
Alberto: Eu trabalho em escolas públicas, então a gente segue aquilo que é
determinado pela Secretaria de Educação do estado e do município, não me
apego apenas aos livros didáticos, eu vejo apenas o livro didático como
complemento e, nas quintas séries, de acordo com a proposta curricular, o que
se coloca no ensino de história na rede municipal é trabalhar a história do
Brasil que diz respeito à pré-história, e a todo o período colonial, bem como o
período monárquico; no que diz respeito às sextas séries, desenvolvemos a
história da América, e a parte que diz respeito à história do Brasil, republicana
e os fatos históricos que marcam, que estão bem próximo de nós; nas sétimas
séries trabalhamos muito com a história antiga e medieval; e nas oitavas séries
trabalhamos com a história moderna e contemporânea. É uma linha que eu sou
contra porque dá aquele caráter de fazer da história símbolo de ‘meia idade’, de
ter aquela linha como se tudo fosse acontecer dentro daquele tempo, tudo
tivesse uma evolução, eu sou contra essa formação e dentro do possível eu
procuro interagir com os alunos, procurando trazer discussões novas,
comparando textos dentro de uma determinada temática, e de diferentes autores
para daí analisar e eles descobrirem qual a linha de pesquisa, qual a linha
interpretativa que aquele autor tomou, então dentro do possível eu procuro
trazer isso aí. É lógico que também uso a questão da história local porque a
partir do momento em que começamos a buscar o entendimento a partir da
história local o aluno começa a se situar dentro da história, então eu gosto
muito também de, dentro desse contexto, dessa linearidade que é proposta, eu
procuro buscar temáticas, partindo da história local nós podemos chegar a uma
história mais globalizante.
O que primeiro nos chama a atenção é a periodização adotada pelos professores.
Opta-se por uma noção de tempo histórico homogêneo e progressivo a partir da
concepção de história ainda do século XIX, que divide o estudo do homem em préhistória, história antiga, média, moderna e contemporânea. Essa divisão da história, ao
ser consagrada pela historiografia europeia, foi adotada no Brasil por historiadores,
professores e livros didáticos e se apresentou ao ensino como a única possibilidade de
se abordar a história. É essa a proposta dos professores Mateus e Alberto, para quem
estudar a história do Brasil significa iniciar na pré-história americana e passar pelas
etapas colonial, monárquica e republicana até chegar às décadas mais recentes. Os
professores Mateus e Alberto trabalham com livros didáticos que trazem como proposta
a história seriada, enquanto o professor Rui optou por uma proposta de história
integrada. Não obstante as diferenciações que tais propostas possam trazer na sua forma
de organização, os livros adotados2 por esses professores se assemelham em relação à
periodicidade e aos temas expostos.
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Livros adotados pelos professores: professor Rui: Projeto Araribá – História – Ensino Fundamental.
Editora responsável: Maria Raquel Apolinário. São Paulo: Moderna, 2004; professor Mateus: História:
Memória Viva, de Cláudio Vicentino, São Paulo: Scipione, 2000; História e Vida, de Nelson Piletti e
Claudino Piletti, São Paulo: Ática, 2001 e Viver a História. Ensino Fundamental, de Cláudio Vicentino,
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A periodização, tal qual apresentada pelos professores, tem sido criticada por ser
portadora de uma concepção de história que conduz a uma separação rígida do tempo
em passado/presente/futuro e a uma visão processual progressiva com princípio, meio e
fim. Ao adotar sequências preestabelecidas, a proposta traz consigo a ideia de uma
trajetória progressiva e homogênea para a humanidade. O aluno da 5ª série estuda
inicialmente a origem do homem, e nas séries seguintes, paulatinamente, vai seguindo o
caminho, ininterrupto, percorrido pela humanidade. Dessa forma, as dimensões
temporais (passado, presente e futuro) deixam de se colocarem como objetos de
conhecimento para os alunos, pois elas se apresentam como algo pronto e acabado. A
história seria um encadeamento de eventos ordenados teleologicamente e inscritos num
percurso único.
Quanto aos temas, a periodização pressupõe a abordagem de grandes eventos da
humanidade, desconsiderando perspectivas temáticas circunscritas a recortes espaciais e
temporais que não venham nessa direção. A concepção do tempo a partir da perspectiva
de múltiplas temporalidades sugerida por Braudel não se faz presente em nenhum
depoimento. Ou seja, se as experiências sociais permitem a percepção dos diferentes
ritmos (continuidade, ruptura e simultaneidade) existentes num processo histórico,
necessário se faz criar oportunidade aos alunos para que eles compreendam essas
diversas temporalidades.
Em cada série são abordados temas clássicos da historiografia escolar: as
civilizações antigas, o feudalismo europeu, as revoluções industriais, o imperialismo, o
socialismo, as guerras mundiais, a guerra fria, entre outros, para a história geral. No
caso do conteúdo da história do Brasil: os primeiros habitantes da América, a chegada
do europeu no Brasil, a exploração colonial, a escravidão, a independência brasileira, as
conturbadas regências, a implementação da república, dentre outros. No primeiro
volume de cada coleção, está reservado um espaço para explicar a natureza da produção
historiográfica, sendo focalizadas questões como a relação passado e presente, as fontes
históricas, os sujeitos da história.
Em geral, os depoimentos indicam que há intercalação dos temas quando
trabalhados em sala de aula. A intercalação geralmente acontece entre temáticas de
história geral com história do Brasil e desta com história local. Prevalece, no entanto,
São Paulo: Scipione, 2003; professor Alberto: Viver a História, de Cláudio Vicentino. São Paulo:
Scipione, 2005.
11
um discurso circunscrito aos esquemas explicativos que levam à elaboração de visões
globais e de sínteses históricas, desprezando os pequenos recortes, sejam espaciais,
sejam temáticos.
Apesar de anunciada a preocupação com as inquietações do presente, percebe-se
uma história em que o presente é refém do passado, só aparecendo para o aluno no final
da oitava série.
Outro aspecto a se considerar está relacionado com as formas como o espaço e o
tempo vêm posicionados nos depoimentos dos professores. Uma determinada dimensão
espacial (mundo ou nação) sobrepõe-se a outros espaços (região, município), enquanto
uma ordenação temporal linear dá o ritmo e o rumo dos fatos. Assim, ao ressaltar uma
história universal e uma história nacional, a história local quase é deixada de lado. Ou
seja, os conteúdos selecionados não contemplam as experiências de vida dos alunos,
conforme recomendam os PCN. Apresentam-se como algo relacionado com outro
mundo, outra época e outros sujeitos históricos, levando-nos a duvidar se esse
conhecimento histórico possibilitaria “[...] ajudar o aluno no seu cotidiano [...] e na
prática do exercício da cidadania”, como diz Mateus, e “[...] preparar o homem para o
presente”, como sugere Aberto.
A considerar a abrangência temporal (do homem pré-histórico à sociedade
contemporânea) e espacial (da Ásia Ocidental à Europa e América) das propostas, temse a sensação de elas pretenderem abarcar toda a experiência humana a partir da
abordagem de algumas temáticas. Mesmo que a escola assuma o papel de mera
transmissora de conhecimento, tal pretensão seria impossível de se realizar, pois as
experiências humanas se apresentam de forma muito mais rica e complexa.
Apesar de explicitamente rechaçada pelos professores colaboradores da
pesquisa, a periodização com viés evolutivo, sequencial e linear é recorrente em seus
depoimentos e nos livros adotados.
Conclusão
Tem sido cada vez mais propagada a necessidade de se trabalhar conteúdos que
permitam a inserção de questões com as quais os agentes escolares tenham afinidades.
No entanto, observamos que a incorporação de questões ligadas ao cotidiano dos
alunos, de novas fontes históricas e de novos objetos de estudo, conforme a proposta
dos PCN, ainda é algo que precisa ser concretizado pelo conhecimento histórico escolar.
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A inserção de uma história a partir do espaço vivido pelos que fazem a comunidade
escolar, embora encontre apoio na historiografia contemporânea, especialmente na
Nova História, é algo que só aparece de forma incipiente no ensino de 5ª a 8ª séries.
Nessa nova perspectiva historiográfica, inúmeras fontes e muitos eventos locais poderão
se constituir em elementos importantes no processo de reflexão histórica.
Portanto, o que emerge dos depoimentos em análise é uma visão de história
enquanto processo linear e de abordagem generalizante, conduzida a partir de grandes
sínteses temáticas e da legitimação de uma história nacional (embora não assumida
explicitamente) e universal que tendem a explicações homogeneizantes nas quais os
pequenos recortes, temporais e espaciais, estão ausentes ou se apresentam como algo
complementar e secundário.
Iniciada na década de 1980, a mobilização em torno da inovação do ensino da
história vem garantindo a continuidade das reflexões, sem, no entanto, ainda ter
provocado grandes transformações no trabalho em sala de aula, embora haja avanços do
debate, o que é visível nos encontros e fóruns do ensino de história. Nesses espaços,
junto às críticas ao poder público pelas condições precárias do ensino como um todo,
está a autocrítica de diversos professores no sentido de reconhecer que muitas das
respostas buscadas passam também pelas ações dos agentes ligados ao ensino,
especificamente os professores. Nesse sentido, são ilustrativas as palavras de Caimi
(2001, p. 120) ao afirmar que
Atualmente, precisamos avançar para análises mais profundas e, sobretudo,
para o nível das proposições concretas. Não é mais possível permanecer na
posição que aponta os inimigos externos da história ensinada, como se ainda
hoje a única razão para a crise da disciplina residisse nas políticas
educacionais, no livro didático, no estado autoritário, etc. A responsabilidade,
segundo nos parece, é de todos os envolvidos com o ensino de história e a sua
renovação depende do esforço conjunto.
Isso aponta para a necessidade de nós, docentes, nos imbuirmos de novas
posturas que apontem numa direção em que a história ensinada considere as
reclamações do mundo contemporâneo. Entendemos que as novas contribuições da
historiografia, ao expandirem o campo da história e ampliarem a percepção do
professor, permitem oferecer aos alunos inovações que o campo historiográfico já
conhece há décadas, mas até hoje estão ausentes na escola fundamental.
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Referências
BIKLEN, Sari Knopp; BOGDAN, Robert C. Investigação qualitativa em educação:
uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto, 1994.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes (Org.). O saber histórico na sala de aula. São
Paulo: Contexto, 1998.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos.
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Nacional (Lei n. 9.394, de 20/12/1996). Brasília, 23 dez. 1996. Disponível em:
<http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 18 maio 2006.
BRASIL. Ministério da Educação do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.
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BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da
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CAIMI, Flávia Eloísa. Conversa e controvérsias: o ensino de história no Brasil (19801998). Passo Fundo: UPF, 2001.
SACRISTÁN, J. Gimeno. O que são os conteúdos de história? In: SACRISTÁN, J.
Gimeno; GÓMEZ, A. I. Pérez. Compreender e transformar o ensino. 4. ed. Porto
Alegre: ArtMed, 1998.
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