Ar¡Horurlro
EM H0sptTAt pEDtATRtc0
PSICANALISE E RACIONALIDADE MEDICA'
Assistance at a pediatr¡c hospital: psych0analysis
and medical rationality
Maria de Fátima Pinheiro S. Junqueiral
RESU\f o
A panir de sua insergáo em uma instituigáo de saúde ftospita.l pediátrico), a autora
se
propóe a discutir questóes que envolvem os impasses da racionalidade médica ügente
e sua articulagáo com um outro tipo de racionalidade, no caso a psicanalitica- Para
tal, apresenta um caso clinico quer por suas peculiaridades, envolveu diversos
profissionais de saúde, tendo-se tomado emblemático náo apenas das questóes
pertinentes á picanílise, mas de conllitos institucionais que espelhavam toda a estrutura
hospitalar.
PALAvRAS-cHAvE
PsicanáLlise; Instituiqóes de Saúde; Saúde Col€tiva
ABSTRACT
From her insertion in a health institution (a pediatric hospital), the author proposes to
discuss some questions that i¡volve the dilemmas ofthe prevailing medical rationality
and its relation to anothcr t)?e of rationa.liry, that of Psychoanal)sis.
For such, she presents a clinical case that, due to its peculiarities, has involved
diverse health workers, becoming emblematic not only because of Peninent questrons
related to psychoanalysis, but mainly fo¡ haüng aloused institutional conllicts which
reflected the structure of the hospital as a whole.
KEY WoRDs
Psychoanalysis; Health Institutions; Collective Hea.lth
(PUC/BJ), Pesqu¡sadorc V¡s¡tante IFF/FI0CRUZ/FAPERJ'
'Ps¡cóloga, Mestre en Ps¡colog¡a Clín¡ca
Menbro do Fórun do Círculo Ps¡canalít¡co do R¡0 de Jane¡rc
E- 1p¡l: nfjunqueia@openlink. c,n. b(
C^oE¡i0s S¡úoE CoLErrv¡, nt0
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Jaxct¡0,8
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I
I M¡¡¡¡ oe FÁ¡ll¡¡
l.
PrilfiEtno S.
Jut0uí¡¡
IN rRo
D ueAo
O atendimento a pacientes durante o periodo de internagáo hospita-
lar envolve diversos proñssionais de saúde que, por vezes. neo possuem os
mesmos alicerces teóricos, nem as mesmas perspectivas epistemológicas
no que diz respeito á abordagem realizada lrente áquele sujeito que se
encontra adoecido e fragilizado. Se, por um lado, tais diferengas sáo
fundamentais para um melhor acompanhamento do paciente, por ouro
podem ür a acarretar conflitos institucionais entre racionalidades diver_
sas.
A idéia de interdisciplinaridade, ainda que almejada como a possibilidade de estabelecimento de um modelo mais totalizante, náo se encontra sedimentada no ámbito da prática. As diverg€ncias e conflitos que se
dáo em termos institucionais, espelham aspectos da racionalidade médica
ügente e predominante nas intervengóes voltadas para a saúde.
Falar de racionalidade médica implica entendéJa, segundo a defini9áo operacional proposta por Madel Luz (apud CamargoJr., 1994), como
"um sistema lógico e teoricamente estruturado, composto de cinco ele_
mentos teóricos íundamentais": uma morfologia ou anatomia humana;
uma fisiologia ou dinámica ütal humana; um sistema de diagnósticos; um
sistema de intervengóes terapeuticas; uma doutrina médica.
Seguindo a questáo apontada por CamargoJr. (1993) acerca do ..imaginário científico" da medicina contemporálea, percebemos a racionalidade
médica baseada em um padráo caracterizado por trés proposigóes:
generalizante, mecanicista e analítica, esta ultima tendo como pressupos_
to que o funcionamento do todo se dá pela soma das partes. Esse ..ima_
ginário cientíhco", com suas origens na fisica clássica, enconra-se em
consonáncia com a própria história da clínica, uma vez que seu nasci_
mento se deu em pleno ügor da racionalidade da mecánica clássica,
segundo a qual o Universo assume a feigáo de máquina (Foucault, l9g0).
Nesse sentido, o critério de determinagáo do científico estaria ancorado
na Razáo. De acordo com Camargo Jr. (1993: 7) ..a medicina que se
origina a partir da anatomoclínica é uma medicina do corpo, das lesóes e
das doengas. Os ganhos tecnológicos mais avangados sáo inco¡porados
(...), porém sempre submetidos á racionalidade mecánico-causal',.
Nessa perspectiva é que se pode entender a ünculagáo existenrc entre
as nogóes de doenga e de causa. Embora o termo doenga náo seja defini-
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C¡or¡ros
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do como um conceito explícito na literatura médica, há algumas características capazes de defini-la, ainda que náo formamelmente: "doengas
tém exist€ncia real, sáo 'coisas'; como tal, sáo idénticas em todos os
tempos e em todos os lugares; doengas tém ccruas; doengas sáo um acometimento orgánico, isto é, deixam marcas no corpo, as lzsdef' (Camargo
Jr., 1998:5).
Cabe ressaltar que esse modelo de racionalidade, evidentemente,
reflexos para o conceito de cura. Segundo Castiel (1994:86)
"O
raz
pensa-
mento médico está impregnado com o modelo curaülo. Como o conceito
de mra est^ ünculado a alguma nonnatiüdade, no caso, é a objeüuilade
cimt!fim que determina os critérios para alcangar-se a cura cientlfrca".
Canguilhem, em seu livro O Nomal e o Patnhgito (1982) sinaliza que,
em termos teóricos, curar envolve o ato de trazer um organ[mo ou
fungáo de volta á norma, caso dela tenha se distanciado. Mas ressalta que
o médico tira essa nogáo de norma prioritariamente de seus conhecimentos frsiológicos (ciéncia do homem normal) e, em seguida, de sua experi-
éncia üüda em termos de fungóes orgánicas, e de como a norma é
representada em seu meio social num dado momento. A prioridade dada
á fisiologia reflete o modelo da biomedicina, calcado na tradigáo positiüsta.
Vemos, entáo, toda essa tradigáo positivista impregnando a própria
idéia de doenga e cura. Assim sendo, torna-se relevante ressaltar que, em
fungáo da tend€ncia a limitar ao carnpo biológico toda a complexidade
da problemática que envolve a doenga, outras perspectivas do conhecimento, tais como das áreas psicológicas e sociais, também relevantes na
determinagáo assim como no enfrentamento das doengas, tendem a ser
excluídas. Embora na prática discursiva haja um suposto olhar para o
que seria a "totalidade do homem", envolvendo os domínios da biologia,
da psicologia e da sociologia, o que se revela na prática é uma subordinagáo dos discursos em relagáo ao biológico. Isto sem mencionar o fato de
que a fragmentagáo existente no desenvolvimento das disciplinas é uma
característica da Modernidade, a qual náo se apaga simplesmente com a
utilizaEáo de um termo que sugere justaposigóes, tal como biopsicossocial
(Camargo
Jr.,
1993).
Entretanto, esse tipo de racionalidade, ainda táo pregnante na área
de assisténcia á saúde, tem se defrontado com impasses que revelam a
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M^nrr
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JúÍou¿rnÁ
necessidade de se refletir acerca desses modelos.
O próprio fato das di-
mensóes psicopatológica e psicossomática náo serem possuidoras da mes-
ma releváncia que os dispositivos clinico-laboratoriais, sinaliza tanto o
dominio por parte de uma abordagem positivista, quanto a importáncia
de se repensar tal situagáo. Por estarem imbricadas á nogáo de subjetiüdade e assim, segundo o modelo acima apontado, náo possuírem o mesmo grau de conñabilidade e precisáo diagnóstica, essas dimensóes náo
sáo valorizadas. O que isto reflete, no entanto, é a grande dificuldade
existente em se abordar a dimensáo singular do humano (Castiel, 1994).
"O modelo prevalecente na biomedicina e na epidemiologia moderna
tem pouco a dizer sobre o sofrimento e sobre a estranheza de perceberse possuidor (?) de um corpo (que, mais esranho ainda, adoece...)." (ibid.:
189). Logo, é preciso náo deixar de lado aquilo que emerge da dimensáo
intrapsíquica humana, capaz de exercer rün papel de participagáo até
mesmo na produgáo de uma doenga.
Essa co-participagáo da dimensáo inrapsíquica náo se restringe aos
acometimentos específicos de saúde mental, que costumam ser tratados
em unidades psiquiátricas. No presente trabalho parto, em termos psicanalíticos, do pressuposto de que o inconsciente náo se manifesta somente
nos locais aos quais, tradicionalmente, lhe foi designado um lugar (consultórios e clínicas/hospitais especializados), assim como dos aspectos dis-
cutidos anteriormente a respeito da importáncia de se trazer üsibilidade
á complexidade envolüda no adoecer humano. A partir de minha insergáo em um hospital pediátrico, me proponho a apresentar um caso clíni-
co numa perspectiva psicanalitica que, por suas peculiaridades, mostrouse emblemático das questóes que envolvem os impasses da racionalidade
médica ügente e sua articulagáo com um outro tipo de racionalidade, no
caso a psicanalitica.
2. C¡so cLlNrco E ALGUMAS
REFLEXóEs
Carlos tinha pouco mais de 4 anos quando o ü pela primeira vez.
Após 5 meses de internagáo no CTI, haüa sido transferido para a enfer-
maria daquele mesmo hospital, no qual eu vinha atuando tanto na área
de pesquisa quanto na de assisténcia há 3 meses. Muito magro, pequeno,
com uma cor quase indescritivel de táo branca, e olhos grandes, profundos que expressavam uma imensa tristeza, mesclada com um certo des-
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ATENDT¡rtiTo
E[ flosPtraL Pt0tÁrntc0
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prezo por tudo o que o cercava. Um olhar envelhecido para uma crianga
pequena, um olhar de sofrimento, mas também de desafio que chegava a
assustar. Nas palavras de uma médica residente: "Ele olha com ódio"
(sic),
ou como desabafou uma outra médica: "Fiquei muito deprimida
quando tive que acompanháJo. Ele tem olhar de morte" (sic). Um olhar
de morte que desafiou toda uma racionalidade que perpassa a prática
hospitalar.
Carlos adoecera há pouco mais de um ano, quando ainda náo haüa
completado 3 anos de idade. Durante 6 meses foi sendo tratado em
alguns sewigos de saúde, todos tentando entender o seu problema intestinal- Isto culminou em uma intervengáo cirurgica, após a qual ele foi
ransferido para a unidade hospitalar mencionada anteriormente, voltada
para o atendimento de casos graves. No decorrer dessa internaqao seu
quadro foi se agravando, surgindo a necessidade de se fazer gastrostomia
e traqueostomia, esta última em fungáo de um problema pulmonar tmportante ocorrido durante a própria internagáo.
Mas qual era a sua doenga? Esta questáo Permanecia em aberto.
Sabíamos que ele tinha uma obstrugáo intestinal. Mas onde estava a
causa? Como seu quadro p6de ter tido uma piora de tamanha proporgeo, com comprometimento de outros órgáos, somente em fungáo de
uma obstrugáo intestinal? Q¡restóes estas que o modelo biomédico de
causa e efeito náo dava conta, justamente Por estar baseado em uma
perspectiva positiüsta, a qual pode acarretar a perda de um olhar acerca
da complexidade própria do ser humano (Santa Roza, 1997). Como
sinaliza Castiel (1994: 5): "Vai se tornando cada vez mais eüdente a
insuficiéncia do modelo de causa e cura vigente no discurso biomédico
pautado na ótica fragmentadora", ou seja, numa ótica de inspiragáo
cartesiana na qual há uma cisáo entre indivíduo e organismo.
Em sua tenra idade Carlos desafiou o saber da biomedicina, tornando-se emblemático de conflitos institucionais que espelhavam os impasses
da racionalidade médica ügente. Se, no ámbito geral, os médicos tendem
a diagnosticar e a tratar as doengas independentemente da subjetividade
do paciente, no caso de Carlos era como se a sua subjetiüdade invadisse
e pusesse á prova, insistentemente, todas as hipóteses diagnósticas pautadas na metáfora do organismo como uma máquina bioquímica (Castiel'
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M¡¡ta
0E
f¡r¡Ír
Pt¡Níno S. Jur0uEtR¡
1994). Logo, esse modelo de medicina náo se mostrava suficiente
nara
compreender aquele pequeno sujeito adoecido, em sofrimento, c que
o
lnterrogava em seus limites. Até mesmo porque o modo como ele se
posicionava frente a sua doenga era táo peculiar, que tornava_se um tanto
incompreensível para uma tradigáo positiüsta.
Na realidade, sua maneira de estar no mundo provocava incdmodos
e questionamentos em toda a equipe de saúde. Um pequeno trrano,
diriam alguns. Com fortes sintomas obsessivos, diriam outros. O fato é
que Carlos controlava absolutamente tudo o que acontecia a sua volta,
comegando por seus pais e atingindo toda a equipe de saúde envolüda
em seu tratamento. Desse modo eüdenciava uma solidáo, talvez precoce
demais para alguém táo crianga.
E preciso ressaltar que ele também controlava os aspectos de seu
tratamento: a medicagáo que corria, as gotas do soro, os aparelhos que
utilizava, o momento para se realizar determinados procedimemos, quem
poderia efetuáJos. Q;lando contrariado, Carlos ficava completamente
desesperado: gritava - mesmo sem som deüdo á traqueostomia - dava
ordens, ameagava, balangava o bergo com ódio, e seus sintomas fisicos
imediatamente se agravavam. Ia ficando cianótico, comeQava a suar e
assumia um aspecto táo assustador, que mobilizava todos ao seu redor a
ponto de fazerem o que ele queria e, de uma forma aparentemente
incompreensível, seus sintomas fisicos diminuíam. Como era possível uma
crianga dispor de tantos adultos assim?
Carlos quase náo brincava, náo sorria. Ou melhor dizendo, como
que para aumentar ainda mais a angústia da equipe de saúde, ele somen_
te esbogava um sorriso quando submetido a procedimentos dolorosos,
isto é, só sorria quando lhe furavam tentando pegar uma veia ou colhiam
sangue para exame. Tais eventos pareciam insuportáveis para a equipe,
uma vez que aparentava haver uma inversáo no ser crianga. Carlos era
uma crianga diferente, no sentido de encontrar-se onde náo esperada,
isto é, longe do nosso ideal de crianga. Mas o fato é que as indagagóes
pernaneceram, seu estado se agravou e ele foi transferido para o CTI.
Retorno, entAo, ao meu primeiro encontro com Carlos na enfermaria
geral. Sem a proposta inicial de realizar um atendimento, mas como
parte da rotina do trabalho que ünha realizando, entrei em seu box, me
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ArrilDrr!riTo EI aosprtar ptDralnrco
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apresentei e estabelecemos uma brincadeira com luvas esterilizadas. Ele
náo sorriu, mas náo me mandou sair. Ficou me olhando com aquele
olhar perscrutador, como se quisesse adiünhar o que eu Pensava, ou
talvez quem eu era, o que poderia receber dele e o quanto sustentaria. Eu
já sabia de sua história e até mesmo da sensagáo de medo que ele provocava em algumas pessoas, mas eu só conseguia ver, na minha frente, um
menino de apenas 4 anos muito doente e em profundo sofrimento.
Acredito ter sido esse primeiro contato, isto é, meu modo de olhálo
sem medo, fundamental para o vínculo que se estabeleceu entre nós a
partir daí. Carlos precisava ser olhado como uma crianga; como uma
crianga terrivelmente assustada com tudo o que lhe ocorria, defendendose desse pavor colocando-o no outro. Suas escolhas baseavam-se nesse
ponto. Os profissionais com os quais ele melhor se relacionava eram
aqueles que tratavam-no como mais uma crianEa entre tantas outras
internadas, e que se aproximavam dele pela primeira vez, geralmente
sem saber de seu histórico e sem tem€-lo. Como aponta Camargo Jr.
(1998: l2): "os resultados da intervengáo dependem fundamentalmente
da habilidade pessoal do médico, e a necessidade dessa intervengáo, por
sua vez, se inscreve na ordem da ética, náo da ciéncia."
Com o retorno de Carlos á enfermaria, um novo médico assumtu a
responsabilidade pelo seu tratamento. Houve, entáo, uma solicitagáo de
que eu o atendesse de uma forma sistemática. Para esse médico, a crianga
tinha uma pseudo obstrugáo intestinal, ou seja, algo de ordem
psicossomática. Importa ressaltar que esta náo era uma leitura unánime
em relagáo ao caso de Carlos. Nesse ponto apareciam divergéncias em
torno do seu diagnóstico, refletindo a dificuldade na abordagem da dimensáo singular do adoecer humano. E mais, trazia üsibilidade aos próprios critérios de diagnóstico que permeiam as ciéncias da saúde, quer
fossem dos médicos, quer dos psicológicos. Todos em busca de uma
objetiüdade, mesmo que para tal fosse necessário tentar objetivar a própria subjetiüdade.
Um pouco da história de Carlos. Ele era o quinto filho de uma
família pobre e morava com a máe. No relato desta, sempre teve problemas intestinais, mas adoeceu realmente com 2 anos e l0 meses. Em casa
ele costumava presenciar brigas violentas entre os pais que culmrnavam
C¡o¡¡ros
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M¡er¡
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F¡'|ra
PtilNEtno S. Ju¡ouÜRA
em agressóes fisicas- Segundo a máe, Carlos ficava encolhido num canto,
sem esbogar reagáo, acuado, durante longos períodos.
euando adoeceu,
sua máe acabara de engraüdar do bebé que veio a nascer na época em
que foi operado, seus pais já estavam separados e Carlos encontrava-se
morando na casa de uma madrinha. Cabe ressaltar que o mesmo já haüa
ocorrido com outros irmáosr que acabaram ficando definitivamen¡e, ou
por um longo período, com suas respectivas madrinhas.
A máe dizia que Carlos sempre fora uma crianga diffcil e que náo aceitava
ser con[ariado. Importa sinalizar que a relagáo entre a crianga e seus pais náo
era fácil. Se por seu lado, Carlos tiranizala os pa.is, etes respondiam com uma
prolunda ambivaléncia, ficando ao seu lado contra¡iados e impacientes. A máe
sempre cedia aos apelos, ou melhor, ás ordens da crianga, dizendo senhr-se
nuito culpada por tudo o que ele vinha
passando. Mas logo em seguida,
exercia algum tipo de retaliagáo, tamanha era a raiva que ñcara do menino.
Pa¡a espanto da médica que acompanhava o c¿so ainda no CTI e presencrou
a cena, a máe chegou a dizer a Carlos que era melhor que ele morresse, pois
assim náo exigiria tanto e tudo se acabaria logo. Tais eventos so contribuíam
para mobilizar ainda mais a equipe de saúde. Afinal, que mee era esta? Náo
haviam respostas únicas. Havia sim uma relagáo permeada por um ceno grau
de desespero ent¡e os pais e a crianga, mas ambern uma rela@o quase simbiótica,
de muito controle e, acima de nrdo, ambivalente de amor e ódio.
Comecei a atender Carlos diariamente, junto a seu leito, em plena
enfermaria. Esta apresentava-se diüdida em boxes, com dois leitos em
cada. Como náo era possível levá-lo para um local com maior privacidade, optei por atend€-lo ali mesmo. Tal escolha envolüa algumas questóes.
Panicu.larmente em relagáo á prática psicanalítica, eu me defrontava
com aspectos relacionados ao estabelecimento do setting. Em relagáo i
prática médico-hospitalar, eu realizava um atendimento que fugia á rotina das enfermarias e, em fungáo do envoMmento da própria crianga, por
vezes mobilizava aqueles que se encontravam no espago da enfermaria,
ainda que nao no mesmo box de Carlos.
Com isto em mente iniciei o atendimento, tendo como refer€ncia
primeira o fato de Carlos ficar melhor quando se percebia sofrendo procedimentos invasivos e dolorosos, que pareciam contribuir ainda mais
pam a manutengáo de um corpo fragmentado. Ou talvez fossem eles, os
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(l): 33.52,2000
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procedimentos invasivos, que estavam exercendo a lunEáo de demarcar,
delimitar o corpo próprio. Com todo aquele masoquismo, com suas repetigóes incessantes, Carlos aparentava uma vontade de morrer como que
para desafiar a tudo e a todos. O desejo de manutengáo da üda encontrava-se nas intervengóes médicas voltadas para a cura. Mas qual era o
desejo de Carlos? Que morte esta crianga de 4 anos queria?
No decorrer de atendimentos, nos quais utilizávamos material lúdico,
como blocos de madeira e bonecos, comegamos a trabalhar aspectos
ünculados á fragmentagáo corporal e a seu aparente desejo de morte.
Através de moümentos de destruigáo e reconstrugáo Carlos p6de expressar, agora náo mais apenas em seu próprio corpo, toda a sua üvencia de
crianga aterrorizada e fragmentada. Foi possível, inclusive, abordar a
questáo da morte, uma vez que, a partir de seus jogos, disse-lhe que
anteriormente parecia querer morrer. Olhou-me seriamente e falou que
sim, que queria morrer. Mas nesse momento demonstrava querer brincar
o que, para a crianga, possui um sentido de üda.
Carlos voltou a sorúr e a demonstrar prazer, um prazer expücitamente
infantil, em brincar. Ainda mostrava-se irritado, exigente e agressivo,
particularmente com a máe, mas seus sintomas fisicos melhoraram a
ponto dele voltar a caminhar. Ainda muito fraco, disse-me que queria ir
andando até o banheiro. Acompanhei-o nessa sua primeira aventura para
fora do leito, após quase 7 meses sem se locomover por conta própria. Ele
sorria levemente e mobilizou a atenEáo de todos a sua volta. Carlos me
elegeu como a pessoa que o acompanharia em sua primeira caminhada
depois de um longo período. Entendo este fato a partir da transferéncia
estabelecida, no caso uma transfer€ncia arnorosa, no sentido de estar me
oferecendo algo que lhe era muito caro, e do qual chegou a pensar em
desistir, ou seja, seu próprio desejo de üver, assim como de poder e
precisar estar junto e poder e precisar se separar.
Com uma forte relagáo transferencial, na qual eu era colocada no
lugar da máe, Carlos passou entáo a reproduzir comigo as cenas de
desespero que fazia quando sua máe saía ou o contrariava, Tars cenas
acabavam, geralmente, por precipitar a saída da máe, ou mesmo forgavam sua presenga, mas de uma forma distanciada e impaciente. Diversas
vezes, segundo esta alegava, haüa ido embora sem aüsáJo em fungáo do
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estado no qual o menino ficava. Assim, cada vez mais, Carlos nao acre_
ditava na fala de sua máe e exigia sua presenga em tempo integral. Estas
questóes foram conversadas com a mee em momentos específicos.
Em relagáo a mim, a crianga passou a agir da mesma forma. Através
do brincar e de intervengóes fomos trabalhando o aspecto relacionado a
minha saída e a meu retorno. Também sempre lhe dizia quando e a que
horas iria retornar, e cumpria tal horário precisamente. Carlos necessita-
va de refer€ncias estáveis, e o atendimento podia se colocar nesse lugar.
Winnicott (1960) nos fala que cabe ao analista dar ao paciente a oporrunidade de reparar as falhas que possam ter ocorrido no seu desenvolümento emocional. Um desenvolvimento contínuo, que náo alcanga um
fim e onde diversas experiéncias podem ser üüdas e reüüdas pelos
indivíduos em diferentes etapas de suas üdas. Carlos repetia comrgo as
situagóes üvenciadas com sua máe, numa tentativa de lhes dar um signihcado. Aos poucos, mas ainda de forma incipiente, comegou a aceitar as
auséncias da máe, significando que passou a poder guardáJa urn pouco
dentro de si e náo "ir-se embora" quando ela ia.
Quando eu, por algum motivo, o contrariava, Carlos reagia gritando,
balangando o bergo e exigindo a minha saída. Exatamente como fazia
com a sua mAe, a qual, náo suportando tal situagáo, realmente saía, o que
provocava maior desespero na crianga que acreditava em seu próprio
poder destrutivo: a máe náo voltaria nunca mais. Tendo como referéncia
a proposigáo de Winnicott (1988), de que a crianga precisa experimentar
sua agressiüdade de forma a perceber que o seu objeto de ódio/amor é
capaz de sobreüver a seus ataques, desconstruindo a sua crenga em urna
onipoténcia sua extremamente assustadora, eu procurava sustentar aquele momento náo me retirando. Dizialhe o que estava entendendo da
situagáo, abordando as questóes que se davam com sua máe e como ele
ficava depois. Dizia que iria sobreüver a seu ataque, e que sua raiva
passaria. Paulatinamente ele ia se acalmando e, como num moümento
de reparagáo, fazia algum gesto carinhoso.
Para Winnicott (1988), o analista funciona como um ego auxiliar e,
através do hoHbg e do manejo da relagáo analítica, vai faci.litando ao
paciente reüver experi€ncias traumáticas em doses que sejam possíveis
dentro de um ambiente sustentador. Ao suprir necessidades. mas também
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Arr{orMrilro Er hosprraL pEDrarnrco
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ao falhar e sobreüver ás reagóes de irritagáo do paciente, o analista pode
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proporcionar um ambiente facilitador, de forma que o paciente possa
preencher lacunas no seu desenvolvimento e tolerar o até entáo üüdo
como intolerável em seu psiquismo.
O fato é que Carlos apresentou uma melhora significativa. Eu estava
todo o tempo em comunicagáo com seu médico e toda a equipe, acreditando na necessidade de uma abordagem mais integral e menos fragmentada. Perguntavam-me sobre como deviam abordálo em determinados
acontecimentos, enquanto eu procurava saber dos aspectos fisiológicos,
üsto que continuavam investigando seu diagnóstico. Nesse ponto devo
trazer algo que permeou toda a internagáo de Carlos: a investigagáo
incessante em busca de um diagnóstico em termos orgánicos, o que implicou exames dolorosos para a crianga, resultados negativos e a insisténcia em mais exames invasivos. Este procedimento apontava para diverg€ncias entre os próprios médicos, visto que muitos náo concordavam
com a abordagem, o que mais uma vez refletia a problemática envolvida
no modelo biomédico, no qual a influ€ncia exercida pelos aspectos
psicossdmicos e contextuais tendem a ser minimizados, quando nao ignorados (Castiel, 1994). Nas palavras de Camargo Jr. (1993: l0):
"Muito embora a idéia de 'multicausaüdade' seja freqüentemente proposta
como modelo explicativo, os modelos de causalidade linear predominam
na prática (quando alguma causa é postulada), fazendo com que discursos
disciplinares tidos como complementares acabem por se tornar
concorrentes."
Mas o que se deu foi que Carlos parou de sorrir quando submetido a
procedimentos dolorosos. Pelo contrário, passou a chorar, a dizer que doía
muito e a tentar impedir que lhe puncionassem a veia. Interessante notar
que se o seu comportamento anterior causava horror. este agora passava a
incomodar. Algumas vezes escutei a seguinte fa.la: "Vocé era táo bonzinho,
náo reclamava, agora fica chorando asim" (sic). Quantas vezes a ouü, e
quantas vezes afirmei que ele chorava porque doia, bem como por que náo
era um super herói, como diziam. Carlos me olhava atentamente e balangava a cabega afirrnativamente. Diria que o acompanhamento que fiz náo
foi só com seus pais, mas com a equipe de saúde também, já que estas eram
transferéncias que se cruzavam em seu tratamento.
C¡otnIos
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FÁrr¡ Pril[fiso
S. Juto0Et¡^
De qualquer forma, esta situagáo se apresentava como emblemática
neo apenas das questóes pertinentes i psicanálise, mas de toda a estrutura
hospitalar, onde a racionalidade médica se confrontava com um outro
tipo de racionalidade. Em certos aspectos, o trabalho que eu desenvolüa
com Carlos e que era reconhecido por apenas uma parte da equipe, abria
sintomas nessa própria equipe, visto que colocava-os perante problemáticas latentes tais como a solicitagáo de passiüdade e concordáncia de uma
crianqa adoecida.
Entre jogos, cantos e dangas, o atendimento foi-se dando. A partir de
um certo ponto Carlos comegou a cantar e a dangar, a princípio comigo,
depois com outras pessoas, relacionando-se com seu coryo de outra forma Com a sua melhora, ele foi para casa nos moldes de uma internagáo
domiciliar e solicitou que eu o acompanhasse em seu retorno i casa. Ele
queria sair do hospital, mas também estava com muito medo de retornar
a sua casa, tanto que na primeira vez que tal hipótese foi aventada, ele de
repente piorou, sem nenhuma explicagáo mais palpável em termos médicos. Eu optei por acompanhá-lo, tendo como refer€ncia os aspectos
transferenciais.
Durante as duas semanas que ficou em casa, fui atendé-lo dentro da
estrutura de hnme care adotada. Após tanto tempo de sofrimento, Carlos
p6de rir, brincar, soltar pipa como outras criangas, ainda que conectado
a aparelhos. Mas ele piorou e retornou ao hospital. Fez-se mais uma
tentativa de enüá-lo para c¿r:ia, mas novamente ele retornou, ainda em
estado mais grave. Carlos haüa experimentado prazer em üver após ter
desejado a morte, mas por um período determinado.
Em sua reinternagáo, Carlos apresentou-se deprimido, regredido,
aparentando uma desisténcia em relagáo á vida. Continuei trabalhando
com ele, mas devo dizer que foi uma etapa dificil para toda a equipe e
para seus pais, pois o movimento de desisténcia do menino, nos confrontava com a nossa própria impoténcia. Diferentemente daquele momento
no qual ele demonstrava querer morrer, mas se posicionava de manerra
agressiva em alguns instantes, frágil e necessitando de cuidados em outros, agora a crianga aparentava uma apatia angustiante.
Carlos foi para o CTI muito grave. Haüa um movimento na equipe
sinalizando a dificuldade em aceitar oue Carlos estava desistindo de ü-
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ver. Isto era inadmissível. Náo haüa uma razáo, em termos orgánicos,
que justificasse tal piora, embora o fato concreto fosse um menino extremamente comprometido e com uma qualidade de vida muito precária.
Era preciso salválo. Mas qual era o desejo de Carlos? Q¡ral seria a
postura ética pertinente ao caso?
Continuei os atendimentos neste setor. Muito fraco, ele me pediu
para lhe contar a história de Chapeuzinho Vermelho, como já fizera
antes. Interrompeu-me algumas vezes perguntando pelo cagador, onde
estava o cagador. Disselhe que o cagador era aquele que salvava e lhe
perguntei de que forma o cagador poderia lhe salvar, uma vez quc €u
percebia que ele estava muito cansado. "O que vocé quer?", lhe perguntei. Terminei o atendimento reafirmando que gostava muito dele. Eu
precisava me despedir.
No dia seguinte, quando cheguei ao hospital, soube que Carlos havia
morrido naquela noite. Ouso dizer que, dentro das possibilidades, ele fez
uma escolha: náo mais üver no corpo que tinha e que lhe promeúa mais
dores e frustragóes. De qualquer forma, uma escolha dificil de se entender dentro da perspectiva da racionalidade médica ügente. Haüa algo de
subjetivo em Carlos que náo aceitava regras e definigóes diagnósticas.
Nas palawas de Castiel (1994: 25):
É nessa perspectiva da subjetiüdade que se deveria localizar um modo
mais abrangente de encarar o complexo saúde-doenga, .compatível com
as questóes de saúde contemporeneas. E preciso considerar que há produgóes originais de subjetiüdade, de acordo (ou em desacordo) com os
variados elementos do contexto, de tal forma, que podem intervir de
modo cabal nos processos de adoecimento (e recuperagáo).
*O
mesmo caso clínico discutido neste artigo sob a ótica da racionalidade médica e da
psicanálise, foi trabalhado po¡ mim também em outro artigo (publicado nos Calaws d¿
Psüanólise do Círculo Psicanalítico do fuo de Janeiro, 2000), sob um enfoque mais
osicanalítico.
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