Ar¡Horurlro EM H0sptTAt pEDtATRtc0 PSICANALISE E RACIONALIDADE MEDICA' Assistance at a pediatr¡c hospital: psych0analysis and medical rationality Maria de Fátima Pinheiro S. Junqueiral RESU\f o A panir de sua insergáo em uma instituigáo de saúde ftospita.l pediátrico), a autora se propóe a discutir questóes que envolvem os impasses da racionalidade médica ügente e sua articulagáo com um outro tipo de racionalidade, no caso a psicanalitica- Para tal, apresenta um caso clinico quer por suas peculiaridades, envolveu diversos profissionais de saúde, tendo-se tomado emblemático náo apenas das questóes pertinentes á picanílise, mas de conllitos institucionais que espelhavam toda a estrutura hospitalar. PALAvRAS-cHAvE PsicanáLlise; Instituiqóes de Saúde; Saúde Col€tiva ABSTRACT From her insertion in a health institution (a pediatric hospital), the author proposes to discuss some questions that i¡volve the dilemmas ofthe prevailing medical rationality and its relation to anothcr t)?e of rationa.liry, that of Psychoanal)sis. For such, she presents a clinical case that, due to its peculiarities, has involved diverse health workers, becoming emblematic not only because of Peninent questrons related to psychoanalysis, but mainly fo¡ haüng aloused institutional conllicts which reflected the structure of the hospital as a whole. KEY WoRDs Psychoanalysis; Health Institutions; Collective Hea.lth (PUC/BJ), Pesqu¡sadorc V¡s¡tante IFF/FI0CRUZ/FAPERJ' 'Ps¡cóloga, Mestre en Ps¡colog¡a Clín¡ca Menbro do Fórun do Círculo Ps¡canalít¡co do R¡0 de Jane¡rc E- 1p¡l: nfjunqueia@openlink. c,n. b( C^oE¡i0s S¡úoE CoLErrv¡, nt0 oE Jaxct¡0,8 (1);39-52,2000- 39 I I M¡¡¡¡ oe FÁ¡ll¡¡ l. PrilfiEtno S. Jut0uí¡¡ IN rRo D ueAo O atendimento a pacientes durante o periodo de internagáo hospita- lar envolve diversos proñssionais de saúde que, por vezes. neo possuem os mesmos alicerces teóricos, nem as mesmas perspectivas epistemológicas no que diz respeito á abordagem realizada lrente áquele sujeito que se encontra adoecido e fragilizado. Se, por um lado, tais diferengas sáo fundamentais para um melhor acompanhamento do paciente, por ouro podem ür a acarretar conflitos institucionais entre racionalidades diver_ sas. A idéia de interdisciplinaridade, ainda que almejada como a possibilidade de estabelecimento de um modelo mais totalizante, náo se encontra sedimentada no ámbito da prática. As diverg€ncias e conflitos que se dáo em termos institucionais, espelham aspectos da racionalidade médica ügente e predominante nas intervengóes voltadas para a saúde. Falar de racionalidade médica implica entendéJa, segundo a defini9áo operacional proposta por Madel Luz (apud CamargoJr., 1994), como "um sistema lógico e teoricamente estruturado, composto de cinco ele_ mentos teóricos íundamentais": uma morfologia ou anatomia humana; uma fisiologia ou dinámica ütal humana; um sistema de diagnósticos; um sistema de intervengóes terapeuticas; uma doutrina médica. Seguindo a questáo apontada por CamargoJr. (1993) acerca do ..imaginário científico" da medicina contemporálea, percebemos a racionalidade médica baseada em um padráo caracterizado por trés proposigóes: generalizante, mecanicista e analítica, esta ultima tendo como pressupos_ to que o funcionamento do todo se dá pela soma das partes. Esse ..ima_ ginário cientíhco", com suas origens na fisica clássica, enconra-se em consonáncia com a própria história da clínica, uma vez que seu nasci_ mento se deu em pleno ügor da racionalidade da mecánica clássica, segundo a qual o Universo assume a feigáo de máquina (Foucault, l9g0). Nesse sentido, o critério de determinagáo do científico estaria ancorado na Razáo. De acordo com Camargo Jr. (1993: 7) ..a medicina que se origina a partir da anatomoclínica é uma medicina do corpo, das lesóes e das doengas. Os ganhos tecnológicos mais avangados sáo inco¡porados (...), porém sempre submetidos á racionalidade mecánico-causal',. Nessa perspectiva é que se pode entender a ünculagáo existenrc entre as nogóes de doenga e de causa. Embora o termo doenga náo seja defini- 40 - C¡or¡ros S^úDE C0[rÍv^, Rlo DE JÁrEtno, S (l): 39.52,2000 ATE¡orMENTo EM rosprrÁr rEDrarnrco I do como um conceito explícito na literatura médica, há algumas características capazes de defini-la, ainda que náo formamelmente: "doengas tém exist€ncia real, sáo 'coisas'; como tal, sáo idénticas em todos os tempos e em todos os lugares; doengas tém ccruas; doengas sáo um acometimento orgánico, isto é, deixam marcas no corpo, as lzsdef' (Camargo Jr., 1998:5). Cabe ressaltar que esse modelo de racionalidade, evidentemente, reflexos para o conceito de cura. Segundo Castiel (1994:86) "O raz pensa- mento médico está impregnado com o modelo curaülo. Como o conceito de mra est^ ünculado a alguma nonnatiüdade, no caso, é a objeüuilade cimt!fim que determina os critérios para alcangar-se a cura cientlfrca". Canguilhem, em seu livro O Nomal e o Patnhgito (1982) sinaliza que, em termos teóricos, curar envolve o ato de trazer um organ[mo ou fungáo de volta á norma, caso dela tenha se distanciado. Mas ressalta que o médico tira essa nogáo de norma prioritariamente de seus conhecimentos frsiológicos (ciéncia do homem normal) e, em seguida, de sua experi- éncia üüda em termos de fungóes orgánicas, e de como a norma é representada em seu meio social num dado momento. A prioridade dada á fisiologia reflete o modelo da biomedicina, calcado na tradigáo positiüsta. Vemos, entáo, toda essa tradigáo positivista impregnando a própria idéia de doenga e cura. Assim sendo, torna-se relevante ressaltar que, em fungáo da tend€ncia a limitar ao carnpo biológico toda a complexidade da problemática que envolve a doenga, outras perspectivas do conhecimento, tais como das áreas psicológicas e sociais, também relevantes na determinagáo assim como no enfrentamento das doengas, tendem a ser excluídas. Embora na prática discursiva haja um suposto olhar para o que seria a "totalidade do homem", envolvendo os domínios da biologia, da psicologia e da sociologia, o que se revela na prática é uma subordinagáo dos discursos em relagáo ao biológico. Isto sem mencionar o fato de que a fragmentagáo existente no desenvolvimento das disciplinas é uma característica da Modernidade, a qual náo se apaga simplesmente com a utilizaEáo de um termo que sugere justaposigóes, tal como biopsicossocial (Camargo Jr., 1993). Entretanto, esse tipo de racionalidade, ainda táo pregnante na área de assisténcia á saúde, tem se defrontado com impasses que revelam a C^0Ef,ros S^úDE CorErva, Rro DE JaNEr¡0,8 {1): 3S-52,2000- 41 I I M^nrr 0E fÁrr¡a PrilHs¡0 S, JúÍou¿rnÁ necessidade de se refletir acerca desses modelos. O próprio fato das di- mensóes psicopatológica e psicossomática náo serem possuidoras da mes- ma releváncia que os dispositivos clinico-laboratoriais, sinaliza tanto o dominio por parte de uma abordagem positivista, quanto a importáncia de se repensar tal situagáo. Por estarem imbricadas á nogáo de subjetiüdade e assim, segundo o modelo acima apontado, náo possuírem o mesmo grau de conñabilidade e precisáo diagnóstica, essas dimensóes náo sáo valorizadas. O que isto reflete, no entanto, é a grande dificuldade existente em se abordar a dimensáo singular do humano (Castiel, 1994). "O modelo prevalecente na biomedicina e na epidemiologia moderna tem pouco a dizer sobre o sofrimento e sobre a estranheza de perceberse possuidor (?) de um corpo (que, mais esranho ainda, adoece...)." (ibid.: 189). Logo, é preciso náo deixar de lado aquilo que emerge da dimensáo intrapsíquica humana, capaz de exercer rün papel de participagáo até mesmo na produgáo de uma doenga. Essa co-participagáo da dimensáo inrapsíquica náo se restringe aos acometimentos específicos de saúde mental, que costumam ser tratados em unidades psiquiátricas. No presente trabalho parto, em termos psicanalíticos, do pressuposto de que o inconsciente náo se manifesta somente nos locais aos quais, tradicionalmente, lhe foi designado um lugar (consultórios e clínicas/hospitais especializados), assim como dos aspectos dis- cutidos anteriormente a respeito da importáncia de se trazer üsibilidade á complexidade envolüda no adoecer humano. A partir de minha insergáo em um hospital pediátrico, me proponho a apresentar um caso clíni- co numa perspectiva psicanalitica que, por suas peculiaridades, mostrouse emblemático das questóes que envolvem os impasses da racionalidade médica ügente e sua articulagáo com um outro tipo de racionalidade, no caso a psicanalitica. 2. C¡so cLlNrco E ALGUMAS REFLEXóEs Carlos tinha pouco mais de 4 anos quando o ü pela primeira vez. Após 5 meses de internagáo no CTI, haüa sido transferido para a enfer- maria daquele mesmo hospital, no qual eu vinha atuando tanto na área de pesquisa quanto na de assisténcia há 3 meses. Muito magro, pequeno, com uma cor quase indescritivel de táo branca, e olhos grandes, profundos que expressavam uma imensa tristeza, mesclada com um certo des- 42 - C¡o¡¡¡os S¡ú¡r CorEr|v^, Rto oc J¡rEtso,8 (1):39.52,2000 ATENDT¡rtiTo E[ flosPtraL Pt0tÁrntc0 | prezo por tudo o que o cercava. Um olhar envelhecido para uma crianga pequena, um olhar de sofrimento, mas também de desafio que chegava a assustar. Nas palavras de uma médica residente: "Ele olha com ódio" (sic), ou como desabafou uma outra médica: "Fiquei muito deprimida quando tive que acompanháJo. Ele tem olhar de morte" (sic). Um olhar de morte que desafiou toda uma racionalidade que perpassa a prática hospitalar. Carlos adoecera há pouco mais de um ano, quando ainda náo haüa completado 3 anos de idade. Durante 6 meses foi sendo tratado em alguns sewigos de saúde, todos tentando entender o seu problema intestinal- Isto culminou em uma intervengáo cirurgica, após a qual ele foi ransferido para a unidade hospitalar mencionada anteriormente, voltada para o atendimento de casos graves. No decorrer dessa internaqao seu quadro foi se agravando, surgindo a necessidade de se fazer gastrostomia e traqueostomia, esta última em fungáo de um problema pulmonar tmportante ocorrido durante a própria internagáo. Mas qual era a sua doenga? Esta questáo Permanecia em aberto. Sabíamos que ele tinha uma obstrugáo intestinal. Mas onde estava a causa? Como seu quadro p6de ter tido uma piora de tamanha proporgeo, com comprometimento de outros órgáos, somente em fungáo de uma obstrugáo intestinal? Q¡restóes estas que o modelo biomédico de causa e efeito náo dava conta, justamente Por estar baseado em uma perspectiva positiüsta, a qual pode acarretar a perda de um olhar acerca da complexidade própria do ser humano (Santa Roza, 1997). Como sinaliza Castiel (1994: 5): "Vai se tornando cada vez mais eüdente a insuficiéncia do modelo de causa e cura vigente no discurso biomédico pautado na ótica fragmentadora", ou seja, numa ótica de inspiragáo cartesiana na qual há uma cisáo entre indivíduo e organismo. Em sua tenra idade Carlos desafiou o saber da biomedicina, tornando-se emblemático de conflitos institucionais que espelhavam os impasses da racionalidade médica ügente. Se, no ámbito geral, os médicos tendem a diagnosticar e a tratar as doengas independentemente da subjetividade do paciente, no caso de Carlos era como se a sua subjetiüdade invadisse e pusesse á prova, insistentemente, todas as hipóteses diagnósticas pautadas na metáfora do organismo como uma máquina bioquímica (Castiel' C^DEnios SÁúoE C0tE¡rv¡, RIo DE J^¡n¡0,8 (1):39'52,2000- 43 M¡¡ta 0E f¡r¡Ír Pt¡Níno S. Jur0uEtR¡ 1994). Logo, esse modelo de medicina náo se mostrava suficiente nara compreender aquele pequeno sujeito adoecido, em sofrimento, c que o lnterrogava em seus limites. Até mesmo porque o modo como ele se posicionava frente a sua doenga era táo peculiar, que tornava_se um tanto incompreensível para uma tradigáo positiüsta. Na realidade, sua maneira de estar no mundo provocava incdmodos e questionamentos em toda a equipe de saúde. Um pequeno trrano, diriam alguns. Com fortes sintomas obsessivos, diriam outros. O fato é que Carlos controlava absolutamente tudo o que acontecia a sua volta, comegando por seus pais e atingindo toda a equipe de saúde envolüda em seu tratamento. Desse modo eüdenciava uma solidáo, talvez precoce demais para alguém táo crianga. E preciso ressaltar que ele também controlava os aspectos de seu tratamento: a medicagáo que corria, as gotas do soro, os aparelhos que utilizava, o momento para se realizar determinados procedimemos, quem poderia efetuáJos. Q;lando contrariado, Carlos ficava completamente desesperado: gritava - mesmo sem som deüdo á traqueostomia - dava ordens, ameagava, balangava o bergo com ódio, e seus sintomas fisicos imediatamente se agravavam. Ia ficando cianótico, comeQava a suar e assumia um aspecto táo assustador, que mobilizava todos ao seu redor a ponto de fazerem o que ele queria e, de uma forma aparentemente incompreensível, seus sintomas fisicos diminuíam. Como era possível uma crianga dispor de tantos adultos assim? Carlos quase náo brincava, náo sorria. Ou melhor dizendo, como que para aumentar ainda mais a angústia da equipe de saúde, ele somen_ te esbogava um sorriso quando submetido a procedimentos dolorosos, isto é, só sorria quando lhe furavam tentando pegar uma veia ou colhiam sangue para exame. Tais eventos pareciam insuportáveis para a equipe, uma vez que aparentava haver uma inversáo no ser crianga. Carlos era uma crianga diferente, no sentido de encontrar-se onde náo esperada, isto é, longe do nosso ideal de crianga. Mas o fato é que as indagagóes pernaneceram, seu estado se agravou e ele foi transferido para o CTI. Retorno, entAo, ao meu primeiro encontro com Carlos na enfermaria geral. Sem a proposta inicial de realizar um atendimento, mas como parte da rotina do trabalho que ünha realizando, entrei em seu box, me 44 - C¡o¡nros S¡úor ColEÍv¡, R¡o oE J^r0¡o, g (l):39-52,2000 ArrilDrr!riTo EI aosprtar ptDralnrco I apresentei e estabelecemos uma brincadeira com luvas esterilizadas. Ele náo sorriu, mas náo me mandou sair. Ficou me olhando com aquele olhar perscrutador, como se quisesse adiünhar o que eu Pensava, ou talvez quem eu era, o que poderia receber dele e o quanto sustentaria. Eu já sabia de sua história e até mesmo da sensagáo de medo que ele provocava em algumas pessoas, mas eu só conseguia ver, na minha frente, um menino de apenas 4 anos muito doente e em profundo sofrimento. Acredito ter sido esse primeiro contato, isto é, meu modo de olhálo sem medo, fundamental para o vínculo que se estabeleceu entre nós a partir daí. Carlos precisava ser olhado como uma crianga; como uma crianga terrivelmente assustada com tudo o que lhe ocorria, defendendose desse pavor colocando-o no outro. Suas escolhas baseavam-se nesse ponto. Os profissionais com os quais ele melhor se relacionava eram aqueles que tratavam-no como mais uma crianEa entre tantas outras internadas, e que se aproximavam dele pela primeira vez, geralmente sem saber de seu histórico e sem tem€-lo. Como aponta Camargo Jr. (1998: l2): "os resultados da intervengáo dependem fundamentalmente da habilidade pessoal do médico, e a necessidade dessa intervengáo, por sua vez, se inscreve na ordem da ética, náo da ciéncia." Com o retorno de Carlos á enfermaria, um novo médico assumtu a responsabilidade pelo seu tratamento. Houve, entáo, uma solicitagáo de que eu o atendesse de uma forma sistemática. Para esse médico, a crianga tinha uma pseudo obstrugáo intestinal, ou seja, algo de ordem psicossomática. Importa ressaltar que esta náo era uma leitura unánime em relagáo ao caso de Carlos. Nesse ponto apareciam divergéncias em torno do seu diagnóstico, refletindo a dificuldade na abordagem da dimensáo singular do adoecer humano. E mais, trazia üsibilidade aos próprios critérios de diagnóstico que permeiam as ciéncias da saúde, quer fossem dos médicos, quer dos psicológicos. Todos em busca de uma objetiüdade, mesmo que para tal fosse necessário tentar objetivar a própria subjetiüdade. Um pouco da história de Carlos. Ele era o quinto filho de uma família pobre e morava com a máe. No relato desta, sempre teve problemas intestinais, mas adoeceu realmente com 2 anos e l0 meses. Em casa ele costumava presenciar brigas violentas entre os pais que culmrnavam C¡o¡¡ros S^r¡DE CoLEÍv¡, Rr0 oE J^i€r¡0,8 (1): 39-52, 2000- 45 I I M¡er¡ oE F¡'|ra PtilNEtno S. Ju¡ouÜRA em agressóes fisicas- Segundo a máe, Carlos ficava encolhido num canto, sem esbogar reagáo, acuado, durante longos períodos. euando adoeceu, sua máe acabara de engraüdar do bebé que veio a nascer na época em que foi operado, seus pais já estavam separados e Carlos encontrava-se morando na casa de uma madrinha. Cabe ressaltar que o mesmo já haüa ocorrido com outros irmáosr que acabaram ficando definitivamen¡e, ou por um longo período, com suas respectivas madrinhas. A máe dizia que Carlos sempre fora uma crianga diffcil e que náo aceitava ser con[ariado. Importa sinalizar que a relagáo entre a crianga e seus pais náo era fácil. Se por seu lado, Carlos tiranizala os pa.is, etes respondiam com uma prolunda ambivaléncia, ficando ao seu lado contra¡iados e impacientes. A máe sempre cedia aos apelos, ou melhor, ás ordens da crianga, dizendo senhr-se nuito culpada por tudo o que ele vinha passando. Mas logo em seguida, exercia algum tipo de retaliagáo, tamanha era a raiva que ñcara do menino. Pa¡a espanto da médica que acompanhava o c¿so ainda no CTI e presencrou a cena, a máe chegou a dizer a Carlos que era melhor que ele morresse, pois assim náo exigiria tanto e tudo se acabaria logo. Tais eventos so contribuíam para mobilizar ainda mais a equipe de saúde. Afinal, que mee era esta? Náo haviam respostas únicas. Havia sim uma relagáo permeada por um ceno grau de desespero ent¡e os pais e a crianga, mas ambern uma rela@o quase simbiótica, de muito controle e, acima de nrdo, ambivalente de amor e ódio. Comecei a atender Carlos diariamente, junto a seu leito, em plena enfermaria. Esta apresentava-se diüdida em boxes, com dois leitos em cada. Como náo era possível levá-lo para um local com maior privacidade, optei por atend€-lo ali mesmo. Tal escolha envolüa algumas questóes. Panicu.larmente em relagáo á prática psicanalítica, eu me defrontava com aspectos relacionados ao estabelecimento do setting. Em relagáo i prática médico-hospitalar, eu realizava um atendimento que fugia á rotina das enfermarias e, em fungáo do envoMmento da própria crianga, por vezes mobilizava aqueles que se encontravam no espago da enfermaria, ainda que nao no mesmo box de Carlos. Com isto em mente iniciei o atendimento, tendo como refer€ncia primeira o fato de Carlos ficar melhor quando se percebia sofrendo procedimentos invasivos e dolorosos, que pareciam contribuir ainda mais pam a manutengáo de um corpo fragmentado. Ou talvez fossem eles, os 46 - Cro¡¡¡os S^tiDr Co[EÍv^, Rro or Jrlrno, S (l): 33.52,2000 . ATENDTür lo Er.r Hos¡rrAt pEDrar¡rco I procedimentos invasivos, que estavam exercendo a lunEáo de demarcar, delimitar o corpo próprio. Com todo aquele masoquismo, com suas repetigóes incessantes, Carlos aparentava uma vontade de morrer como que para desafiar a tudo e a todos. O desejo de manutengáo da üda encontrava-se nas intervengóes médicas voltadas para a cura. Mas qual era o desejo de Carlos? Que morte esta crianga de 4 anos queria? No decorrer de atendimentos, nos quais utilizávamos material lúdico, como blocos de madeira e bonecos, comegamos a trabalhar aspectos ünculados á fragmentagáo corporal e a seu aparente desejo de morte. Através de moümentos de destruigáo e reconstrugáo Carlos p6de expressar, agora náo mais apenas em seu próprio corpo, toda a sua üvencia de crianga aterrorizada e fragmentada. Foi possível, inclusive, abordar a questáo da morte, uma vez que, a partir de seus jogos, disse-lhe que anteriormente parecia querer morrer. Olhou-me seriamente e falou que sim, que queria morrer. Mas nesse momento demonstrava querer brincar o que, para a crianga, possui um sentido de üda. Carlos voltou a sorúr e a demonstrar prazer, um prazer expücitamente infantil, em brincar. Ainda mostrava-se irritado, exigente e agressivo, particularmente com a máe, mas seus sintomas fisicos melhoraram a ponto dele voltar a caminhar. Ainda muito fraco, disse-me que queria ir andando até o banheiro. Acompanhei-o nessa sua primeira aventura para fora do leito, após quase 7 meses sem se locomover por conta própria. Ele sorria levemente e mobilizou a atenEáo de todos a sua volta. Carlos me elegeu como a pessoa que o acompanharia em sua primeira caminhada depois de um longo período. Entendo este fato a partir da transferéncia estabelecida, no caso uma transfer€ncia arnorosa, no sentido de estar me oferecendo algo que lhe era muito caro, e do qual chegou a pensar em desistir, ou seja, seu próprio desejo de üver, assim como de poder e precisar estar junto e poder e precisar se separar. Com uma forte relagáo transferencial, na qual eu era colocada no lugar da máe, Carlos passou entáo a reproduzir comigo as cenas de desespero que fazia quando sua máe saía ou o contrariava, Tars cenas acabavam, geralmente, por precipitar a saída da máe, ou mesmo forgavam sua presenga, mas de uma forma distanciada e impaciente. Diversas vezes, segundo esta alegava, haüa ido embora sem aüsáJo em fungáo do CaorRxos S^r¡DE CorEf|v^, Rro or J¡[¡r¡0, I (1)t 39-52,2000- 47 I I Ma¡r^ DE FArM¡ PtNilÉt¡o S. JuiloüEr¡¡ estado no qual o menino ficava. Assim, cada vez mais, Carlos nao acre_ ditava na fala de sua máe e exigia sua presenga em tempo integral. Estas questóes foram conversadas com a mee em momentos específicos. Em relagáo a mim, a crianga passou a agir da mesma forma. Através do brincar e de intervengóes fomos trabalhando o aspecto relacionado a minha saída e a meu retorno. Também sempre lhe dizia quando e a que horas iria retornar, e cumpria tal horário precisamente. Carlos necessita- va de refer€ncias estáveis, e o atendimento podia se colocar nesse lugar. Winnicott (1960) nos fala que cabe ao analista dar ao paciente a oporrunidade de reparar as falhas que possam ter ocorrido no seu desenvolümento emocional. Um desenvolvimento contínuo, que náo alcanga um fim e onde diversas experiéncias podem ser üüdas e reüüdas pelos indivíduos em diferentes etapas de suas üdas. Carlos repetia comrgo as situagóes üvenciadas com sua máe, numa tentativa de lhes dar um signihcado. Aos poucos, mas ainda de forma incipiente, comegou a aceitar as auséncias da máe, significando que passou a poder guardáJa urn pouco dentro de si e náo "ir-se embora" quando ela ia. Quando eu, por algum motivo, o contrariava, Carlos reagia gritando, balangando o bergo e exigindo a minha saída. Exatamente como fazia com a sua mAe, a qual, náo suportando tal situagáo, realmente saía, o que provocava maior desespero na crianga que acreditava em seu próprio poder destrutivo: a máe náo voltaria nunca mais. Tendo como referéncia a proposigáo de Winnicott (1988), de que a crianga precisa experimentar sua agressiüdade de forma a perceber que o seu objeto de ódio/amor é capaz de sobreüver a seus ataques, desconstruindo a sua crenga em urna onipoténcia sua extremamente assustadora, eu procurava sustentar aquele momento náo me retirando. Dizialhe o que estava entendendo da situagáo, abordando as questóes que se davam com sua máe e como ele ficava depois. Dizia que iria sobreüver a seu ataque, e que sua raiva passaria. Paulatinamente ele ia se acalmando e, como num moümento de reparagáo, fazia algum gesto carinhoso. Para Winnicott (1988), o analista funciona como um ego auxiliar e, através do hoHbg e do manejo da relagáo analítica, vai faci.litando ao paciente reüver experi€ncias traumáticas em doses que sejam possíveis dentro de um ambiente sustentador. Ao suprir necessidades. mas também 48 - C¡o¡¡¡os S^tDE Co¡.rÍv^, Rro oE J¡ilí¡o, O (11:39-S2,2000 , Arr{orMrilro Er hosprraL pEDrarnrco I ao falhar e sobreüver ás reagóes de irritagáo do paciente, o analista pode I proporcionar um ambiente facilitador, de forma que o paciente possa preencher lacunas no seu desenvolvimento e tolerar o até entáo üüdo como intolerável em seu psiquismo. O fato é que Carlos apresentou uma melhora significativa. Eu estava todo o tempo em comunicagáo com seu médico e toda a equipe, acreditando na necessidade de uma abordagem mais integral e menos fragmentada. Perguntavam-me sobre como deviam abordálo em determinados acontecimentos, enquanto eu procurava saber dos aspectos fisiológicos, üsto que continuavam investigando seu diagnóstico. Nesse ponto devo trazer algo que permeou toda a internagáo de Carlos: a investigagáo incessante em busca de um diagnóstico em termos orgánicos, o que implicou exames dolorosos para a crianga, resultados negativos e a insisténcia em mais exames invasivos. Este procedimento apontava para diverg€ncias entre os próprios médicos, visto que muitos náo concordavam com a abordagem, o que mais uma vez refletia a problemática envolvida no modelo biomédico, no qual a influ€ncia exercida pelos aspectos psicossdmicos e contextuais tendem a ser minimizados, quando nao ignorados (Castiel, 1994). Nas palavras de Camargo Jr. (1993: l0): "Muito embora a idéia de 'multicausaüdade' seja freqüentemente proposta como modelo explicativo, os modelos de causalidade linear predominam na prática (quando alguma causa é postulada), fazendo com que discursos disciplinares tidos como complementares acabem por se tornar concorrentes." Mas o que se deu foi que Carlos parou de sorrir quando submetido a procedimentos dolorosos. Pelo contrário, passou a chorar, a dizer que doía muito e a tentar impedir que lhe puncionassem a veia. Interessante notar que se o seu comportamento anterior causava horror. este agora passava a incomodar. Algumas vezes escutei a seguinte fa.la: "Vocé era táo bonzinho, náo reclamava, agora fica chorando asim" (sic). Quantas vezes a ouü, e quantas vezes afirmei que ele chorava porque doia, bem como por que náo era um super herói, como diziam. Carlos me olhava atentamente e balangava a cabega afirrnativamente. Diria que o acompanhamento que fiz náo foi só com seus pais, mas com a equipe de saúde também, já que estas eram transferéncias que se cruzavam em seu tratamento. C¡otnIos S^r¡DE C0LEr{a, nro o€ J^¡Etn0, I (1): 39-52, 2000 - 49 I I llair^ oE FÁrr¡ Pril[fiso S. Juto0Et¡^ De qualquer forma, esta situagáo se apresentava como emblemática neo apenas das questóes pertinentes i psicanálise, mas de toda a estrutura hospitalar, onde a racionalidade médica se confrontava com um outro tipo de racionalidade. Em certos aspectos, o trabalho que eu desenvolüa com Carlos e que era reconhecido por apenas uma parte da equipe, abria sintomas nessa própria equipe, visto que colocava-os perante problemáticas latentes tais como a solicitagáo de passiüdade e concordáncia de uma crianqa adoecida. Entre jogos, cantos e dangas, o atendimento foi-se dando. A partir de um certo ponto Carlos comegou a cantar e a dangar, a princípio comigo, depois com outras pessoas, relacionando-se com seu coryo de outra forma Com a sua melhora, ele foi para casa nos moldes de uma internagáo domiciliar e solicitou que eu o acompanhasse em seu retorno i casa. Ele queria sair do hospital, mas também estava com muito medo de retornar a sua casa, tanto que na primeira vez que tal hipótese foi aventada, ele de repente piorou, sem nenhuma explicagáo mais palpável em termos médicos. Eu optei por acompanhá-lo, tendo como refer€ncia os aspectos transferenciais. Durante as duas semanas que ficou em casa, fui atendé-lo dentro da estrutura de hnme care adotada. Após tanto tempo de sofrimento, Carlos p6de rir, brincar, soltar pipa como outras criangas, ainda que conectado a aparelhos. Mas ele piorou e retornou ao hospital. Fez-se mais uma tentativa de enüá-lo para c¿r:ia, mas novamente ele retornou, ainda em estado mais grave. Carlos haüa experimentado prazer em üver após ter desejado a morte, mas por um período determinado. Em sua reinternagáo, Carlos apresentou-se deprimido, regredido, aparentando uma desisténcia em relagáo á vida. Continuei trabalhando com ele, mas devo dizer que foi uma etapa dificil para toda a equipe e para seus pais, pois o movimento de desisténcia do menino, nos confrontava com a nossa própria impoténcia. Diferentemente daquele momento no qual ele demonstrava querer morrer, mas se posicionava de manerra agressiva em alguns instantes, frágil e necessitando de cuidados em outros, agora a crianga aparentava uma apatia angustiante. Carlos foi para o CTI muito grave. Haüa um movimento na equipe sinalizando a dificuldade em aceitar oue Carlos estava desistindo de ü- 50 - C¡o¡n¡os S^úDc CorrÍv^, Rro DE J^NEr¡0,8 (1):39-52,2000 AIE[Dtrt¡iro Et lt0sptt¡L ?E0tAr¡tc0 .: | ver. Isto era inadmissível. Náo haüa uma razáo, em termos orgánicos, que justificasse tal piora, embora o fato concreto fosse um menino extremamente comprometido e com uma qualidade de vida muito precária. Era preciso salválo. Mas qual era o desejo de Carlos? Q¡ral seria a postura ética pertinente ao caso? Continuei os atendimentos neste setor. Muito fraco, ele me pediu para lhe contar a história de Chapeuzinho Vermelho, como já fizera antes. Interrompeu-me algumas vezes perguntando pelo cagador, onde estava o cagador. Disselhe que o cagador era aquele que salvava e lhe perguntei de que forma o cagador poderia lhe salvar, uma vez quc €u percebia que ele estava muito cansado. "O que vocé quer?", lhe perguntei. Terminei o atendimento reafirmando que gostava muito dele. Eu precisava me despedir. No dia seguinte, quando cheguei ao hospital, soube que Carlos havia morrido naquela noite. Ouso dizer que, dentro das possibilidades, ele fez uma escolha: náo mais üver no corpo que tinha e que lhe promeúa mais dores e frustragóes. De qualquer forma, uma escolha dificil de se entender dentro da perspectiva da racionalidade médica ügente. Haüa algo de subjetivo em Carlos que náo aceitava regras e definigóes diagnósticas. Nas palawas de Castiel (1994: 25): É nessa perspectiva da subjetiüdade que se deveria localizar um modo mais abrangente de encarar o complexo saúde-doenga, .compatível com as questóes de saúde contemporeneas. E preciso considerar que há produgóes originais de subjetiüdade, de acordo (ou em desacordo) com os variados elementos do contexto, de tal forma, que podem intervir de modo cabal nos processos de adoecimento (e recuperagáo). *O mesmo caso clínico discutido neste artigo sob a ótica da racionalidade médica e da psicanálise, foi trabalhado po¡ mim também em outro artigo (publicado nos Calaws d¿ Psüanólise do Círculo Psicanalítico do fuo de Janeiro, 2000), sob um enfoque mais osicanalítico. C^DE¡Ios Sar¡0E Colrrvr, Rro or Jrrtrro, S (1)t 39-52,2000- 51 I I MÁ¡rA oE Flr¡a PrrsEr¡0 S. Jui0uflna Rrr¡REHcms BtBuocRAFrcAs CeuencoJr., K. R. (1993) "Racionalidades Médicas: a medicina ocidental contemporánea" in Estudos em Saúde Coktúta, n' 65. Rio deJaneiro: UERJ, IMS. (1994) l¡ Ciin¡ins da AIDS e a AIDS das Ciíncins: o discurso midin e a constnqda da IIDS. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: ABIA: IMS, UERI. 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