7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................ 8 CAPÍTULO 1............................................................................................................. 12 A IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM ........................................................................ 12 CAPÍTULO 2............................................................................................................. 22 INFÂNCIA(S) ............................................................................................................ 22 2.1 A literatura e a criança...................................................................................... 31 CAPÍTULO 3............................................................................................................. 36 MONTEIRO LOBATO............................................................................................... 36 3.1 Biografia............................................................................................................. 36 3.2 Lobato e a Escola Nova .................................................................................... 47 3.3 Lobato e a literatura infantil brasileira ............................................................ 49 3.4 Reinações de Narizinho.................................................................................... 61 3.5 A Imaginação em Lobato.................................................................................. 72 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 80 ANEXO ..................................................................................................................... 86 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 90 8 INTRODUÇÃO A minha pesquisa teve como objetivo analisar a representação de infância contida na obra Reinações de Narizinho, lançada em 1931. Utilizo o termo representação como sendo a reapresentação da realidade por meio da linguagem. Nesse conceito, representação sugere um ato de recriação e compreensão da realidade. Sendo assim, o interesse da literatura não é apenas copiar a realidade, mas criticá-la, questioná-la e repensá-la por meio da leitura. Reinações de Narizinho reúne dez narrativas de Monteiro Lobato: A menina do narizinho arrebitado, O noivado de Narizinho, Aventuras do príncipe, O gato Félix, Cara de Coruja, O irmão de Pinóquio, O Circo de Escavalinho, A pena de papagaio, Peter Pan e O pó de pirlimpimpim. A literatura destinada às crianças há muito tem sido objeto de preocupação e estudo para educadores e literatos que buscam verificar se realmente existe uma literatura para crianças, qual ou quais interesses impulsionam o surgimento de um gênero a elas destinado e, ainda, quais são os benefícios que a criança pode encontrar nessa literatura. Ressalto que esse não é meu objetivo; muito embora a literatura seja o fio condutor de minha pesquisa, não busco analisar seu surgimento ou conteúdo. A literatura para crianças, já em seu nascedouro adultocêntrica e autoritária, apresenta-se para a criança brasileira como uma repetição dos contos moralistas portugueses. No caso da literatura infantil, lembrando-se aqui que o aspecto moralizador existente em algumas narrativas tende a representar as crianças a partir do olhar adulto, desqualifica-se o conhecimento que a criança possui e subestima-se sua capacidade crítica e criativa. É o adulto que “sabe” o que convém que a criança pense em determinado momento histórico e político. Nesse contexto, o livro serve como canal condutor do “ensinamento” a ser incorporado à mente em formação dos mais jovens. Parto do pressuposto de que a infância é uma construção histórico-cultural e que a formação da identidade da criança também se dá historicamente. Ressalto que as relações interpessoais, a influência familiar, a maneira como a 9 sociedade está estabelecida, os valores e as concepções culturais têm muita influência no modo de ser da criança e, conseqüentemente, em sua identidade. Esses valores e concepções de mundo se revelam nos textos destinados à criança. Tomo a literatura como instrumento que possibilita a leitura e o processo da formação de identidade da criança, pois acredito que ela ultrapassa a compreensão de superfície, de mera distração ou recurso didático; é mais que o entendimento das informações explícitas, constituindo-se em um processo dinâmico entre sujeitos que trocam experiências, fenômeno constitutivo da realidade. A história é uma construção simbólica e não um discurso direto. Uma história nunca tem um só significado, e é vivida como experiência enquanto é contada e ouvida. É sabido que a leitura estimula a imaginação, que, por sua vez, possibilita a construção do mundo real, levando ao desencadeamento de uma sucessão de saberes e ao encontro entre o subjetivo e o objetivo. Pelo estímulo criativo que as narrativas exercem sobre as crianças, tornam-se referenciais de significação para elas e indicam signos concretos e singulares relativos a momentos específicos de sua própria história. Os contos de fadas, por exemplo, há muitas gerações vêm encantando meninos e meninas. Pode-se dizer que, a despeito de terem sido criados por e para adultos, com objetivos altamente pedagógicos e utilitaristas, os contos de fadas continuam atuando como recursos fundamentais da formação das crianças, auxiliando-as na busca de compreensão da realidade e de si mesmas. Assim como os contos de fadas, há inúmeras outras histórias infantis produzidas na contemporaneidade mobilizando a atenção, o carinho, o encantamento, a fantasia, a imaginação e também a indignação das crianças diante delas, como se nessas histórias se encontrasse uma ligação para algo mais profundo e significativo em suas vidas. Ao escutar ou ler uma história, as crianças tornam-se também co-autoras, na medida em que, nessa leitura, atuam por meio da sua imaginação, das suas reações emocionais e afetivas e por meio da sua própria produção cultural (sejam brincadeiras, jogos, desenhos, novas narrativas, etc.). Nesse universo, impõe-se a figura de Monteiro Lobato, que, por meio de suas narrativas, encontra uma voz que constrói caminhos de fantasia capazes de conduzir seus leitores ao encontro com eles mesmos, com a aventura e com a 10 liberdade de escolher e de sentir, e que, em muito se diferencia dos escritos da época. Voltada para essa busca do maravilhoso e da liberdade interior, tão necessários ao desenvolvimento da criança, debrucei-me sobre a narrativa Reinações de Narizinho, de Lobato, e acompanhei as peripécias de suas personagens. São suas falas, suas aventuras e as janelas que se abrem para a infância que procuro destacar, apoiada em teorias sobre a linguagem desenvolvidas pelos autores Walter Benjamin, Lev Semyanovich Vygotsky e Mikhail Bakthin. Também com esse objetivo, estabeleço aproximações entre os teóricos que discutem a literatura para crianças e aponto para o surgimento do sentimento de infância, lembrando que o reconhecimento de sua existência e a preocupação relativa à infância evoluíram e evoluem juntamente com a humanidade e estão diretamente ligados à sociedade e à cultura. A maneira como eram tratadas as crianças da Idade Média em muito difere de como as vemos na atualidade, pois, cada momento da história humana propõe àqueles que o vivem diferentes desafios, coloca-os diante de dificuldades e premências que lhe são próprios. Inúmeras são as discussões sobre a importância da leitura e da literatura para a formação do sujeito. Neste trabalho, são estudadas as contribuições de Kramer, Zilberman, Isabelle Jean, Coelho, Arroyo, Held, Jobim e Souza e Resende. No primeiro capítulo, discuto o significado da linguagem e apresento pontos extraídos de leituras dos teóricos, com destaque para Bakhtin, Benjamin e Vygotsky. Aponto a relevância da linguagem na formação do ser humano e a importância da leitura para a formação da consciência crítica. No segundo capítulo, enfatizo que o surgimento do sentimento de infância se dá na e com a história da humanidade. Nessa perspectiva, afirmo que é necessário superar a idéia de natureza infantil e considerar a criança como sujeito histórico, social e cultural. Para melhor compreender o significado de uma infância concreta e suas particularidades, é preciso lembrar que diferentes concepções acerca da infância têm norteado a prática e a produção teórica no campo da educação para crianças. Dentre elas, destaco os autores: Rousseau, Ariès, Sarmento, Zilberman & Magalhães. Abordo o surgimento da literatura para crianças refletindo sobre os valores e intenções nela contidos. O diálogo com 11 Lobato se faz necessário, tendo em vista a época em que suas histórias surgiram e o respeito que ele tinha com as crianças/leitores. No terceiro e último capítulo, trago a biografia de Monteiro Lobato. Nela destaco que, por meio de sua obra, Lobato ressignificou a cultura popular, contribuiu de maneira significativa para a produção e a distribuição de livros, acreditando na importância destes para a construção de uma nação. Destaco, também, a sua aproximação com o escolanovismo; analiso, ainda, Reinações de Narizinho, que apresenta personagens atípicas à literatura de sua época: personagens que têm em Lobato o respeito por suas idéias e opiniões, que criam e recriam de acordo com suas vontades e fantasias, mas que, sobretudo, deixam marcas de como pensam, expressam-se, sentem e agem. Personagens que pulam dos livros para habitar no imaginário das crianças. E, por fim, direciono meu olhar para a imaginação, a fantasia, a ludicidade e a criatividade, elementos de extrema importância na obra lobatiana e basilares para o ser-criança. 12 CAPÍTULO 1 A IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM “As palavras e os sons não seriam arco-íris...? A palavra é encantadora loucura: com ela o homem dança com todas as coisas” (NIETZCHE apud HELD, 1977, p. 195). Os estudos lingüísticos, no decorrer da história, teceram diferentes considerações sobre a linguagem. Vista inicialmente como representação,1 à linguagem foi atribuído o papel de representar o mundo. As coisas existentes ou criadas pelo ser humano se presentificavam para ele por meio da palavra que lhes dava reconhecimento. A crença em uma linguagem-representação tem sua origem na Bíblia, que afirma ter Deus, após a criação de todos os seres, apresentado a Adão tudo o que foi criado e a ele dado a incumbência de nomeálos. Haveria, assim, uma linguagem primeira da qual todas as demais derivariam. Segundo Koch (2004), muitos filósofos também defenderam a idéia de uma língua inicial na qual cada palavra remeteria a um significado, um ser, um fato, um acontecimento. Mais tarde, a importância da linguagem se deu por sua função de comunicação. Destacava-se seu papel de transmissão de informações – as mensagens enviadas de um emissor a um receptor – e aprofundava-se o estudo dos elementos que caracterizavam esse processo de comunicação ou que nele podiam interferir (KOCH, 2004). A concepção mais recente estuda a linguagem como atividade, como interação, capaz de provocar vínculos e compromissos entre aqueles que participam de sua realização. Koch ressalta que “é preciso pensar a linguagem humana como lugar de interação, de constituição das identidades, de representação de papéis, de 1 Segundo Abbagnano (1998, p. 853) representação é um vocábulo de origem medieval que indica imagem ou idéia, ou ambas as coisas. O uso desse termo foi sugerido aos escolásticos pelo conceito de conhecimento como semelhança do objeto. “Representar algo” – dizia S. Tomás de Aquino – significa conter a semelhança da coisa [...]. 13 negociação de sentidos, portanto, de co-enunciação” (2004, p. 128) [grifo meu]. Os jogos de linguagem são estabelecidos por indivíduos concretos que, por meio de uma língua, interagem socialmente. Nas situações sociais, o ser humano vivencia e representa inúmeros e diferentes papéis; em cada um desses papéis, diferentes ações dele são exigidas, acompanhadas estas por diferentes formas de linguagem. A interação produzida ou provocada pelo ato de linguagem, por outro lado, visa a preservar os territórios (espaços de apresentação e de ação) dos indivíduos nesse ato envolvidos. Essa concepção de linguagem procura ultrapassar o nível da descrição frasal e entende a linguagem como forma de ação orientada para a interação humana, estabelecida com diferentes intenções e para diferentes fins. A linguagem é, pois, considerada uma instituição social, veículo de ideologias, instrumento de mediação entre os homens, a sociedade e a cultura. É por meio da e na linguagem que os conceitos são elaborados e a representação do real é organizada. Logo, a linguagem constitui-se no elo mediador entre a atividade cognitiva do sujeito e do objeto de conhecimento encontrado no mundo. É por meio do potencial simbólico da linguagem que o homem representa a sua visão de mundo e da realidade. Kramer pontua que, por meio da linguagem, o passado, o presente e o futuro se interpenetram e se transformam; rever a linguagem é rever a história, pois a história existe na linguagem; a história está viva no discurso vivo. Linguagem que é intrínseca à própria história, já que o discurso histórico é sempre uma narrativa... fazer história é contar história... Pois na medida em que o homem só pode receber a história numa transmissão, a história condiciona o acesso à linguagem. (KRAMER apud DESGRANGES, 2006, p. 54) Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Paulo Freire (1990) afirma que é por intermédio da linguagem que os homens expressam sua visão de mundo, seu pensamento a respeito de suas próprias experiências. Para Freire, “assim como não é possível linguagem sem pensamento e linguagem-pensamento sem o mundo a que se refere, a palavra humana é mais do que um vocábulo – é palavra-ação” (idem, s/p). Assim como Freire, Vygotsky (1994) concebe a linguagem como veículo do pensamento, em que se expressam os conteúdos da 14 inteligência da criança sobre o mundo. Dessa maneira, a linguagem tem duas funções básicas, o intercâmbio social e o pensamento generalizante. Somo a essas afirmações a fala de Oliveira (1992, p. 27), a qual destaca que, “além da comunicação entre indivíduos, a linguagem simplifica e generaliza a experiência, ordenando as instâncias do mundo real em categorias conceituais cujo significado é compartilhado pelos usuários da linguagem”. Bakhtin afirma que a língua é um fenômeno histórico com vínculos sociais e que a linguagem, que é resultado das relações e interações, constitui a identidade do sujeito. Nossa identidade forja-se no intercâmbio de linguagem com outros, à medida que começamos a nos ver através dos olhos de outros. Discurso não é apenas o conteúdo ostensivo, aquilo que é dito, mas também o suposto, tudo o que se deixa por dizer. É a entonação que comunica o suposto ou o não dito, conferindo às simples palavras “momentum histórico e singularidade”. (BAKHTIN apud STAM, 1992, p. 28) Com base na afirmativa acima, pode-se dizer que o ser humano se constitui na relação com o outro, um outro que compartilha do mesmo contexto e, por isso, transmite os significados daquele meio em que se encontra. O outro é, dessa forma, sempre um outro social. Em Questões de literatura e estética, Bakhtin (1988, p. 71), ao apresentar o discurso no romance, afirma que “a forma e o conteúdo estão unidos no discurso, entendido como fenômeno social – social em todas as esferas de sua existência e em todos os seus momentos – desde a imagem sonora até os estratos semânticos mais abstratos”. Esclarece o autor: Tomamos a língua não como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas como uma língua ideologicamente saturada, como uma concepção de mundo, e até como uma opinião concreta que garante um maximum de compreensão mútua, em todas as esferas da vida ideológica. (BAKHTIN, 1988, p. 81) As novas situações consideradas como elementos capazes de interferir na linguagem são destacadas por Bakhtin (1988, p. 136), quando assinala que a categoria básica da linguagem é a interação verbal, que ocorre pelo diálogo compreendido como toda comunicação verbal. Afirmando que nada na composição do sentido pode colocar-se acima da evolução [do sentido], o autor acrescenta que novos aspectos da existência são integrados no círculo do 15 interesse social e, após se tornarem objetos da fala e da emoção humana, coexistem de forma não-pacífica com elementos que se integraram à existência antes deles. “Essa evolução dialética reflete-se na evolução semântica. Uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em contradição com ela e reconstruí-la” (idem). Acrescentando que entre o discurso e a personalidade do falante se interpõe um meio formado pelos discursos alheios sobre o mesmo assunto, Bakhtin afirma que, ao voltar-se para seu objeto, o novo discurso encontra-o já envolvido pelas vozes que dele fizeram uso anteriormente. O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. (p. 86) Na sua obra, Lobato faz ecoar, além da voz do narrador, a voz do ouvinte que interfere e questiona. Lobato traz também vozes de diferentes escritores da literatura infantil (Andersen, os irmãos Grimm, La Fontaine, Esopo...) em contínuo diálogo com as personagens do sítio. Embora reforce que a concepção que o discurso tem de seu objeto é dialógica, Bakhtin alerta que todo discurso é voltado para a resposta e por ela diretamente determinado. A noção de recepção/compreensão apresentada por Bakhtin caracteriza o movimento dialógico da enunciação que se faz entre locutor e interlocutor ao colocar a linguagem em relação. O locutor enuncia em função da existência de um interlocutor, esteja ele em presença real ou virtualmente construído por esse locutor, aguardando do interlocutor uma atitude de resposta, antecipando o que o outro vai dizer, isto é, experimentando ou projetando o lugar de seu ouvinte. A enunciação propõe uma réplica, seja de negação ou concordância, de apreciação ou ação. A compreensão se dá somente em razão do sentido dialógico dos enunciados. Não basta reconhecer os sinais ou a forma lingüística; o que realmente é importante é a interação dos significados das palavras e seu conteúdo ideológico, tanto do ponto de vista da enunciação, como das condições de produção e da interação entre o emissor e seu receptor. É o fenômeno social que se realiza através da enunciação ou das enunciações. Assim, a interação verbal apresenta-se como a realidade fundamental da língua. 16 Partindo da afirmação de que “para a consciência que vive nela, a língua não é um sistema abstrato de formas normativas, porém uma opinião plurilíngüe concreta sobre o mundo”, Bakhtin (1988, p. 100) acrescenta que, tomando a palavra semi-alheia, o falante a povoa com sua intenção. O dialogismo não se resume, porém, a esse encontro do enunciador com seu ouvinte. Segundo Bakhtin (1988), o diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui senão uma das formas da interação verbal. A expressão diálogo deve ser vista num sentido muito mais amplo, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas frente a frente, mas sim considerada como toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. O diálogo realiza-se em qualquer forma de discurso, quer sejam as relações dialógicas que ocorrem no cotidiano, quer sejam textos artísticos ou literários. Embora ação histórica compartilhada socialmente, é a linguagem sempre mutável, devido às variações do contexto. Bakhtin (1988) vê o dialogismo como constitutivo da linguagem, que não é um corpo único; é heterogênea, já que o discurso é sempre construído a partir do discurso do outro, formando a cadeia discursiva sobre a qual qualquer discurso se constrói. As palavras evocam os contextos em que já se realizaram, o que as faz socialmente tensas e revela sua intencionalidade. Para o falante, a palavra só se torna própria quando a povoa de suas intenções. Até então ela lhe é semi-alheia, pois vem do território de outrem. Ao revesti-la de sua orientação semântica e expressiva, ele a torna familiar. O dialogismo é inerente ao próprio sentido que a palavra vai adquirindo em seu percurso. Bakhtin (1988), apontando as características da linguagem no discurso romanesco, apresenta-nos as noções do plurilingüismo: A linguagem literária é um fenômeno profundamente original, assim como a consciência lingüística do literato que lhe é correlata; nela, a diversidade intencional (que existe em todo dialeto vivo e fechado), torna-se plurilíngüe: trata-se não de uma linguagem, mas de um diálogo de linguagens. (p. 101) Ao entrar na literatura, os dialetos se deformam e, ao mesmo tempo, deformam a linguagem literária em que penetram. Esta, assim, deixa de ser um sistema fechado e se torna plurilíngüe, deixa de ser uma linguagem e se transforma em um diálogo de linguagens. “A consciência lingüística, sócio- 17 ideológica e concreta, ao se tornar artisticamente ativa, encontra-se de antemão envolvida por um pluridiscurso, e de modo algum por uma só linguagem, única, indiscutível e peremptória” (BAKHTIN , 1988, p. 101). Acrescente-se, ainda, que Bakhtin, quando discute as vozes no romance (que aqui vale lembrar pela noção de historicidade que confere à palavra), apresenta o plurilingüismo que se manifesta no espaço da enunciação como resultado de elaboração literária: “Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas [...]” (BAKHTIN, 1988, p. 106). O prosador-romancista não elimina os sons das outras vozes que ecoam em seu discurso, as intenções dessas vozes, suas perspectivas socioideológicas. Essas vozes permanecem no discurso e as personagens aparecem por trás das palavras e formas de linguagem dispostas de maneira particular, refratando as intenções do autor – daí o conceito de plurilingüismo. O autor faz uso dessas vozes, vale-se dos discursos povoados pelas intenções sociais de outrem e os faz servir a sua nova intenção. “O desenvolvimento do romance consiste em um aprofundamento do diálogo, do seu alargamento e refinamento; cada vez menos, vale-se de elementos neutros e duros, não integrantes do diálogo” (idem). Assim, a pluridiscursividade e a dissonância organizam-se no sistema literário. A dialogicidade interna do discurso romanesco exige a revelação do contexto social concreto, o qual determina toda a sua estrutura estilística, sua “forma” e seu “conteúdo”, sendo que os determina não a partir de fora, mas de dentro; pois o diálogo social ressoa no seu próprio discurso, em todos os seus elementos, sejam de “conteúdo” ou de “forma”. (BAKHTIN, 1988, p. 106) A soma de intenções torna o discurso literário uma manifestação plurilíngüe: trata-se não de uma linguagem, mas de um diálogo de linguagens. “[...] o discurso romanesco [...] não pode esquecer ou ignorar as línguas múltiplas que o circundam” (p. 136). Cabe ao prosador transformar esse discurso, carregado de intenções sociais que lhe são alheias, no elemento central quando da elaboração de seu discurso romanesco, impregnando-o de suas novas intenções e enfatizando o aspecto central do plurilingüismo no romance: “o plurilingüismo se materializa nele nas figuras das pessoas que falam, ou, então, servindo como um fundo ao diálogo” (idem). 18 Ao tratar do plurilingüismo, Bakhtin apresenta-nos também o híbrido: O que vem a ser a hibridização? É a mistura de duas linguagens sociais no interior de um único enunciado, é o reencontro na arena deste enunciado de duas consciências lingüísticas, separadas por uma época, por uma diferença social (ou por ambas) das línguas. (BAKHTIN, 1988, p. 156) Lembrando que no híbrido romanesco se dá a fusão num só enunciado de duas vontades lingüísticas individualizadas, Bakhtin (1988, p. 159) ensina que ele “é um sistema de fusão de línguas literariamente organizado, um sistema que tem por objetivo esclarecer uma linguagem com a ajuda de uma outra, plasmar uma imagem viva de uma outra linguagem”. Para Bakhtin, a língua se harmoniza em conjuntos, pois não pode ser vista como um sistema abstrato de normas. O diálogo das linguagens não é somente o diálogo das forças sociais na estática de suas coexistências, mas é também o diálogo dos tempos, das épocas, dos dias, daquilo que morre, vive, nasce; aqui a coexistência e a evolução se fundem conjuntamente na unidade concreta e indissolúvel de uma diversidade contraditória e de linguagens diversas. (BAKHTIN, 1988, p. 161) A teoria bakhtiniana exposta se desenvolve em seus estudos sobre o texto romanesco. Ela foi aqui apresentada pelo enfoque no dialogismo e no plurilingüismo, noções que nos ajudam a entender o papel da palavra no cotidiano dos indivíduos, mas também nos permitem enxergar com maior clareza o entrelaçamento das vozes e personagens na teia do texto em prosa.2 Com esse entendimento do dialogismo e do plurilingüismo que marcam a prosa literária, pretendo também estabelecer um diálogo com os textos que Monteiro Lobato escreveu pensando na criança brasileira. 2 Bakhtin, no capítulo O discurso na poesia e o discurso no romance, escrito em 1934-1935, integrante de Questões de literatura e estética, p. 85-106, desenvolve seu conceito de dialogismo a partir de um enfoque inicial daquilo por ele chamado de diálogo vivo, diálogo corrente, diálogo direto, diálogo externo composicional, que ele assim explica: “O discurso vivo e corrente está imediata e diretamente determinado pelo discurso resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-a e baseia-se nela. Ao se constituir na atmosfera do ‘já dito’, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim é todo diálogo vivo” (p. 89). “Na vida real do discurso falado, toda compreensão concreta é ativa [...]” (p. 90). Dando continuidade a essa elaboração, acrescenta: “O fenômeno da dialogicidade interna [...], em maior ou menor grau, encontra-se manifesto em todas as esferas do discurso vivo. Mas [...], na prosa literária, e em particular no romance, ela penetra interiormente na própria concepção de objeto do discurso e na sua expressão, transformando sua semântica e sua estrutura sintática. A reciprocidade da orientação dialógica torna-se aqui um fato do próprio discurso que anima e dramatiza o discurso por dentro, em todos os seus aspectos” (p. 92). [destaques meus] 19 A linguagem, além de ser um meio de compreensão dos outros e da realidade, é, simultaneamente, uma forma de compreender a si mesmo, lembrando, ainda, que o objetivo da comunicação é sempre o ser humano – este, uma construção histórica e social que interage, transforma e é transformada pela sociedade. Pode-se dizer que a linguagem é a dimensão pela qual nós somos. Não se pensa o homem antes da linguagem! A linguagem é, portanto, dinâmica, versátil, polissêmica e apresenta várias possibilidades. De acordo com Jobim e Souza, quando a criança lida com a linguagem de forma lúdica, ela rompe com as formas cristalizadas de seu uso cotidiano. As crianças usam a linguagem para protestar contra “os limites da realidade, transgredindo-a, ao mesmo tempo em que protegem a realidade contra a tirania da linguagem. Nas brincadeiras, as crianças estão em cumplicidade com os objetos, salvando-os de serem consumidos pelo conceito” (BUCK-MORSS apud JOBIM E SOUZA, 1994, p. 48). A identificação da criança com o mundo ficcional criado por Lobato propicia ao leitor uma interação com as personagens. Essa interação, destacada por Zilberman, permite o exercício da linguagem em sua dimensão lúdica. Esse universo, contudo, se alimenta da fantasia do autor, que elabora suas imagens interiores para se comunicar com o leitor. Assim, o texto, a racionalidade da linguagem, de que é testemunha sua estrutura gramatical, com a invenção nascida na intimidade de um indivíduo [...] pode lidar com a ficção mais exacerbada, sem perder o contato com a realidade, pois precisa condicionar a imaginação à ordem sintática da língua. Por isso, a literatura não deixa de ser realista, documentando seu tempo de modo lúcido e crítico; mas mostra-se sempre original, não esgotando as possibilidades de criar, pois o imaginário empurra o artista à geração de formas e expressões inusitadas. (ZILBERMAN; SILVA, 1990, p. 18-19) Lobato também reconhecia a língua como um instrumento social e, em suas narrativas, utilizava uma linguagem que era acessível a todos. Preocupavase em superar a dualidade social entre a língua escrita e a falada, a linguagem da cidade e a do campo. Por meio de neologismos e metáforas, reproduzia a linguagem oral do homem do campo, dando-lhe significado literário, acreditando que “a tarefa do escritor de um determinado país é levantar um monumento que reflita as coisas e a mentalidade desse país por meio da língua falada” (LOBATO apud LANDERS, 1988, p. 76). 20 É importante salientar que a fala é um elemento marcante na obra lobatiana. No momento em que a boneca Emília começa a falar, a narrativa tornase mais fluente, contribuindo ainda mais para a fruição lúdica da obra. Nela, todos falam: o Príncipe Escamado (peixe), o besouro, o sapo, Dona Carochinha, Doutor Caramujo e, por fim, a boneca de pano, que se constitui por meio da linguagem. A partir daí, Narizinho vê na boneca a possibilidade de compartilhar, pelo diálogo, todos os seus sonhos. Emília, além de conseguir falar, torna-se mandona, crítica e teimosa, características percebidas assim que Doutor Caramujo, lá no Reino das Águas Claras, dá a ela uma pílula falante: Podemos agora curar a Senhora Emília declarou ele depois de costurar a barriga do sapo. Veio a boneca. O doutor escolheu uma pílula falante e pôs-lhe na boca. Engula duma vez! Disse Narizinho, ensinando a Emília como se engole pílula. E não faça tanta careta que arrebenta o outro olho. Emília engoliu a pílula (retirada da barriga de sapo Major) muito bem engolida, e começou a falar no mesmo instante. A primeira coisa que disse foi: ‘Estou com um horrível gosto de sapo na boca!’ E falou, falou, falou mais de uma hora sem parar. Falou tanto que Narizinho, atordoada, disse ao doutor que era melhor fazê-la vomitar aquela pílula e engolir outra mais fraca. Não é preciso explicou o grande médico. Ela que fale até cansar. Depois de algumas horas de falação, sossega e fica como toda gente. Isto é “fala recolhida”, que tem de ser botada para fora. E assim foi, Emília falou três horas sem tomar fôlego. Por fim calou-se. (LOBATO, 1988, p. 27) As histórias são contadas oralmente por Dona Benta e Tia Anastácia, e são recontadas e ressignificadas pelas demais personagens. Durante a contação de histórias, os moradores do sítio se reuniam e a palavra tornava-se o elemento constitutivo daquela realidade. A narração oral é um processo importante para a formação do leitor, pois exercita a imaginação a partir da palavra. Ouvindo e contando histórias, as crianças aprendem desde muito cedo a tecer narrativamente suas experiências e ao fazê-lo vão se constituindo como sujeitos culturais. Cabe apontar, ainda, que a criança assume a autoria da obra; em alguns momentos, são elas (crianças) que fazem a narrativa. Por meio da fala, a língua se realiza plenamente. A fala, sobretudo a conversação, envolve uma interação direta e social. 21 Para melhor compreender o significado que a literatura assume no processo formativo da criança, assim como a representação nela contida, é necessária uma breve passagem pela construção histórica e social da infância, com a releitura de alguns dados de autores já mencionados, em diálogo com pesquisadores que se debruçaram sobre o tema. 22 CAPÍTULO 2 INFÂNCIA(S) O viés que perpassa este trabalho propõe um olhar para a criança, não mais como coadjuvante, mas sim como protagonista de uma história em construção. Adotei como parceiros neste diálogo três estudiosos que estabeleceram as bases paradigmáticas para o percurso que norteou minhas leituras e observações: Walter Benjamin, Lev Semyanovich Vygotsky e Mikhail Bakhtin – deste último, procuro suporte em sua teoria do dialogismo. Para Benjamin (1993; 2002), o passado, o presente e o futuro estão interligados, e é por meio da narrativa, uma expressão da linguagem, que resgatamos nossa história que, embora não sendo linear, está em permanente evolução, transformação. Ao recuperar o passado, é possível compreender o presente e vislumbrar o futuro. O autor vê as crianças como sujeitos sociais, históricos e culturais e afirma que elas não se constituem isoladamente, mas sim inseridas em um processo cultural e histórico: “pois se a criança não é nenhum Robinson Crusoé, assim também as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem” (BENJAMIN, 2002, p. 94). Essas idéias contribuem de forma determinante para romper com a concepção romântica de infância e, segundo Kramer (2002, p. 45), superam a visão da criança como filhote de homem, ser em maturação, cidadão do futuro, para entendê-la como “parte da humanidade, fruto da sua tradição cultural, que é também capaz de recriá-la, refundá-la; criança que reconta e ressignifica uma história de barbárie refazendo essa história a partir dos despojos de sua mixórdia cultural [...]”. Despem a criança do papel de vir-a-ser para olhá-la como ser capaz de participação criativa. No campo da psicologia, Vygotsky (1994) defende que as funções psicológicas se desenvolvem nas interações da criança com os diferentes contextos históricos e culturais. Um de seus principais objetivos era entender a relação entre a linguagem e o pensamento. Para ele, o uso da linguagem 23 representa a função psicológica mais significativa: “a criança começa a perceber o mundo não somente através dos olhos, mas também através da fala” (p. 43). Ainda segundo Vygotsky, é pelas trocas que estabelece com o meio que a criança começa a dar significado a suas ações e a complexificá-las. É na relação com o outro, com o social, que os conteúdos dessa aprendizagem adquirem significado para o sujeito do conhecimento. E é pela fala que a criança controla seu comportamento: “assim, com a ajuda da fala, as crianças, diferentemente dos macacos, adquirem a capacidade de ser tanto sujeito como objeto do seu próprio comportamento” (VYGOTSKY, 1994, p. 36). Antes de controlar o próprio comportamento, a criança começa a controlar o ambiente com a ajuda da fala. Isso produz novas relações com o ambiente, além de uma nova organização do próprio comportamento. A criação dessas formas caracteristicamente humanas de comportamento produz, mais tarde, o intelecto, e constitui a base do trabalho produtivo; a forma especificamente humana do uso de instrumentos. (idem, p. 33) É importante ressaltar que, além da interação social, sua teoria aponta para uma interação com os produtos da cultura. Um dos pressupostos básicos de Vygotsky é considerar a cultura como parte da natureza humana. Rego, aprofundando-se no pensamento vygotskiano, lembra que, para Vygotsky, o desenvolvimento ocorre como um processo em espiral gradual e ascendente, necessitando apenas acordar na pessoa as competências adormecidas. Esse despertar se dá por rupturas e desequilíbrios provocados por novas situações, “a partir das constantes interações com o meio social em que vive” (REGO, 1995, p. 60-61). Nem sempre se deu esse entendimento da criança como ser capaz de estabelecer trocas com o meio e sua cultura, como ser capaz de interagir e ressignificar os fatos. Durante muito tempo, o papel reservado às crianças ficou relegado a segundo plano. Acreditava-se que, além dos valores morais, a identidade e o conhecimento alcançado pela criança eram-lhe transmitidos e/ou por ela adquiridos exclusivamente pelo convívio com os adultos, manifestando-se apenas quando atingisse a idade adulta. A compreensão histórico-cultural é fundamental para a interpretação da infância, da educação e também do uso da leitura como determinantes para a formação da criança. 24 A maneira de olhar e perceber a criança tem sido compreendida de formas diversas, e o entendimento que uma sociedade possui acerca da criança está refletido nos espaços e objetos destinados a ela; assim, vestimentas, brinquedos, livros ou qualquer outro elemento constituem uma espécie de enciclopédia carregada de significados culturais que permitem perceber os diferentes conceitos coexistentes. Phillippe Ariès (1981) revela em seus estudos, baseados em iconografias (pinturas, esculturas), a maneira como eram vistas a infância e a família engendradas na organização social da Idade Média. De acordo com o autor, até o séc. XII, a infância era desconhecida, ou melhor, desconsiderada: adultos e crianças partilhavam os mesmos espaços e atividades, sem uma preocupação diferenciada. Nessa época, a criança muito pequena não contava, havia uma taxa alta de mortalidade infantil e sua sobrevivência era pouco provável. Na sociedade medieval [...] o sentimento de infância não existia, o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. [...] por essa razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes. (ARIÈS, 1981, p. 156) Ariès (1981) identifica dois sentimentos distintos em relação às crianças. O primeiro deles é a paparicação, no qual a criança, por sua ingenuidade e graça, torna-se fonte de distração para o adulto. Esse comportamento encontra hostilidade em Montaigne3, que considerava insuportável a atenção que se dispensava às crianças. A paparicação recebeu muitas críticas no final do séc. XVI e, sobretudo, no séc. XVII, impondo-se, então, outro sentimento: o da moralização, que surgiu em decorrência de um novo conceito familiar; a família começava a se organizar como no modelo atual (cônjuges e filhos), resultante da preocupação disciplinar proveniente de educadores, eclesiásticos e dos homens da lei. De um lado, temos a criança vista como alguém que precisa ser protegida em razão da sua “essência ou natureza” e, do outro, como um “sujeito incapaz de 3 Michel Eyquem de Montaigne forneceu a base para que Jean Jacques Rousseau pudesse desenvolver sua tese sobre a bondade natural do ser humano. Ele nos chama a “atenção para a necessidade de educarmos a criança logo cedo, para que se torne possível dar a elas a formação que seja peculiar a sua natureza. É nesse sentido que nos diz o seguinte: ‘Os filhotes de ursos e de cães mostram sua tendência natural; os homens, porém, metendo-se desde logo em hábitos, preconceitos, leis, mudam ou se mascaram facilmente’” (DIONIZIO, 2001, [s.p.]). 25 se educar”, que, por isso, necessita da intervenção moral de um adulto. Embora aparentemente contraditórias e antagônicas, ambas – paparicação e moralização – referem-se à criança como ser abstrato e a-histórico, não reconhecida como sujeito social. Ariès ressalta ainda que a criança, como membro da comunidade medieval, de tudo participava: da vida e da morte; das festividades e das execuções; da comemoração das vitórias e dos preparativos para as lutas. Dentro desse quadro mais amplo, a criança não era vista como um ser a quem se devessem atenções particulares. Isso a deixava exposta, ao mesmo tempo, à crueldade, de que muitas vezes era vítima, e à liberdade necessária para conviver com sua realidade de forma profunda, absorvendo as dores, os sonhos, as tradições, a cultura de sua gente (cultura popular, oral, viva). Não havia muita privacidade, nascia-se e morria-se em meio ao coletivo. O conceito de família não se referia ao pequeno núcleo familiar: era o grande grupo, formado por parentes e/ou por aqueles que se lhe agregavam. Eram todos e ninguém. Zilberman e Magalhães (1984) reforçam a afirmação acima e dizem que a infância, até o advento dos tempos modernos, não era sequer reconhecida como uma idade particular no desenvolvimento do ser humano. Durante o período medieval, a vida urbana desenrolava-se na praça, e dela todos participavam (a praça, o povo); ali se faziam as vendas, as trocas, os torneios, as festas, os serões; ali os forasteiros contavam suas aventuras, os trovadores e menestréis cantavam sua poesia, os contadores de histórias desfiavam as lendas e contos populares. As crianças eram freqüentemente negligenciadas, tratadas brutalmente e até mortas; muitos adultos tratavam-se mutuamente com suspeita e hostilidade; o afeto era baixo e difícil de ser encontrado. [...] a falta de uma única figura materna nos primeiros dois anos de vida, a perda constante de parentes mais próximos, irmãos, pais, amas e amigos devido a mortes prematuras, o aprisionamento físico do infante em fraldas apertadas nos primeiros meses de vida e a deliberada quebra da vontade infantil, tudo contribuiu para um “entorpecimento psíquico”, que criou muitos adultos cujas respostas aos outros eram, no melhor dos casos, de indiferença calculada e, no pior, uma mistura de suspeita e hostilidade, tirania e submissão, alienação e violência. (LAWRENCE STONE apud ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1984, p. 6) Zilberman e Magalhães (1984) apontam, ainda, que esse mundo desapareceu com o advento da Modernidade, impulsionada pelo idealismo liberal- 26 positivista e pela decadência da aristocracia tradicional. Com a Modernidade, a estrutura da família mudou radicalmente, estabilizando-se por meio da divisão de trabalho entre seus membros, ao pai, cabendo a sustentação econômica, e, à mãe, a gerência da vida doméstica privada. A burguesia ascendente reforçou o conceito de família como o grupo formado pelo pai, pela mãe e pelos filhos, traçando-lhe o perfil que hoje conhecemos, e que melhor se adaptava ao capitalismo então nascente. Esse conceito de família nuclear é de certa forma, superado em Lobato, pois a construção da família no sítio é atípica, não existe um patriarca, e a mãe é mencionada esporadicamente. Outro aspecto interessante é a ausência da figura masculina, tendo em vista que lá vivem Dona Benta, Lúcia e Tia Nastácia. Pedrinho vai para lá passear e quando está de férias. Na Modernidade, o trabalho converteu-se na finalidade existencial do indivíduo. Contudo, de acordo com Zilberman e Magalhães (1984), para legitimála, ainda foi necessário promover, em primeiro lugar, o beneficiário maior desse esforço conjunto: a criança. A preservação da infância impôs-se como valor e meta de vida; porém, visto que sua efetivação somente poderia dar-se no espaço restrito mais eficiente da família, esta passou a canalizar um prestígio social até então inusitado. Sarmento (2004, p. 11) retoma essa idéia dizendo que o sentimento de infância surgiu com o Renascimento e se autonomizou a partir do Século das Luzes. A constituição de infância como categoria social na Modernidade é “resultado de um processo complexo de produção de representações sobre as crianças, de estruturação de seus cotidianos e modos de vida, e, especialmente, de uma constituição de organizações sociais para as crianças”. O autor faz a análise de alguns fatores que contribuíram para o que chama de “institucionalização da infância” no início da Modernidade e destaca o recentramento do núcleo familiar; a criação de instâncias públicas de socialização da criança, especialmente a escola; a produção de disciplinas e saberes periciais; e a promoção da administração simbólica da infância, que vieram a definir e direcionar a vida da criança na sociedade de forma atrelada a essas normas, atitudes e procedimentos que, por sua vez, não estão efetivamente escritas e/ou 27 definidas formalmente, mas estabelecidas na prática social e aceitas como adequadas. Sarmento (2004) enfatiza também que cabia aos adultos decidir sobre a freqüência ou não de crianças a determinados ambientes, sobre a dieta alimentar permitida ou proibida, sobre a admissibilidade de participação na vida coletiva em áreas reservadas ao adulto. Criava-se um código construído socialmente para definir o papel a ser desempenhado pela criança. A criação da escola pública está associada à construção social da infância, pois, em meados do séc. XVIII, a escola foi constituída (inicialmente direcionada apenas a rapazes de classe média urbana) e progressivamente ampliada com a proclamação da escolaridade obrigatória. Analisando as conseqüências da Modernidade, Sarmento destaca a supremacia do capitalismo na era industrial, momento em que o trabalho passou a ser a base social determinante para outras funções e relações. Mudados os modos de produção, mudou radicalmente a forma como a criança era vista. Zilberman (1985) aponta para o surgimento dessa nova noção de família como núcleo de convergência das relações afetivas, que retoma o cuidado, a proteção e o estímulo para o desenvolvimento da criança, ao mesmo tempo, tornando-a destinatária dos anseios de mobilidade social ascendente pelo investimento na sua formação. Ao contrário do que se dera na Idade Média, a criança ganhou espaço na Modernidade, assumindo um papel na sociedade de acordo com a condição social em que vivia. Instalou-se, dessa forma, um novo paradoxo: de um lado, havia a criança vista como objeto de marketing, com a economia direcionada a ela (a criança que consome); de outro, a criança que, a serviço dessa mesma economia, tinha sua infância dizimada pelo trabalho (a criança que produz). Nesse contexto da Modernidade, surgiu o livro infantil, impregnado de didatismo e utilitarismo, apoiado numa ideologia que pregava a superioridade do adulto e a limitação passiva da criança. Embora destinada à criança, construiu-se uma literatura infantil ainda adultocêntrica com vocabulários descontextualizados e propósitos moralizantes. Concomitantemente a esses novos interesses e/ou em conseqüência deles, surgiram novos fatores que contribuíram para formar a consciência da 28 particularidade infantil, dentre eles, um conjunto de saberes que colocou a criança como objeto do conhecimento, a pediatria, a psicologia do desenvolvimento e a pedagogia. Esse conjunto de saberes chega aos dias atuais permeado de questionamentos e sujeito a críticas e novas proposições. Entendida a partir de um determinado modelo, uniformizante, global e descolado da diversidade social e cultural que, por sua vez, produz diferentes formas de infância, a noção de infância está geralmente relacionada a uma visão romântica sobre a criança, pautada na crença de uma essência ou natureza infantil e no princípio de que a criança é igual em qualquer tempo e/ou espaço. Benjamin (2002) contesta o conceito rousseauniano de criança romântica e angelical. Segundo ele, essa condição não condiz com a natureza humana, e a criança (pequeno ser humano) pode não ter a possibilidade de perceber as conseqüências de seus atos, embora saiba o que faz. Segundo ele: “As crianças são insolentes e alheias ao mundo” (p. 86). Sônia Kramer (2005, p. 16) explicita a visão de infância presente na pedagogia e no senso comum: Um conceito de criança abstrato, delineado com base em padrões fixos de desenvolvimento de linguagem e de socialização, uma infância definida pela falta, por aquilo que não é, que não tem, que não conhece, fundamentalmente, uma criança compreendida pela negação de sua humanidade: filhote do homem, a ela cabia ser moldada ou no máximo se desenvolver para ser alguém no dia em que adulta deixasse de ser criança. Cabe lembrar aqui que as crianças do sítio são representadas como sujeitos com voz e vez, atuando de maneira ativa e participativa da e na história. Kramer (1982, p. 16) afirma ainda que, “ao se adotar uma concepção abstrata de infância, [...] distanciando-a de suas condições objetivas de vida, é como se estas fossem desvinculadas das relações de produção existentes na realidade”. Ela alerta que, ao formatar os espaços para a criança de acordo com essa premissa, desconsideram-se as diferenças resultantes do meio em que ela está inserida. A autora pontua que é necessário superar a visão natural de infância, levando em consideração a criança real, constituída histórica e socialmente, pois concebê-la como ser social que ela é significa considerar que essa criança tem uma história e pertence a uma classe social, que estabelece 29 relações no seu contexto de origem e apresenta uma linguagem decorrente dessas relações sociais e culturais, ocupando um espaço não apenas geográfico, mas também de valor, ou seja, a criança é valorizada de acordo com os padrões de seu contexto familiar. A idéia de uma natureza infantil natural reforça duas abordagens que produzem como orientação duas visões contrárias, que Sarmento (2004) chama de rousseauniana4 e montaigneana. Nos dois casos, a criança continua a ser vista como um ser abstrato, separada de uma existência concreta. Em conseqüência dessa duplicidade, surgiram formas de intervenção comportamental e pedagógica centradas ou no prazer de aprender ou no dever do esforço. Essas visões ambíguas e coexistentes projetam suas manifestações explícitas na literatura. Fritzen (2006, p. 124) constata que a visão romântica, predominante numa época e presente em muitas publicações da literatura brasileira, aos poucos foi sendo suplantada pelo olhar austero que vigia e censura aqueles que passavam a ser considerados matéria a ser moldada e preparada para a vida adulta: Usando da imagem de ente não contaminado pela corrupção do mundo moderno, o Romantismo a apresentou repetidamente na literatura, sempre a associando a inocência angelical, cujo emblema mais notável no Brasil se tornou “Meus oito anos” de Casimiro de Abreu. Porém, embora ainda permaneça como clichê em nossa época, a natureza anterior ao pecado e à corrupção do mundo do trabalho e da sexualidade adultas que era atribuída à criança, conferindo-lhe traços nostálgicos de uma estadia no Éden, indesejadamente interrompida, foi sendo alterada ao longo do século XIX. É como ser que antecipa o adulto e que deve ser vigiado e controlado de modo a ter seus instintos adaptados às exigências da sociabilidade e produção econômica que, principalmente nos discursos da pedagogia, da psicologia e da psicanálise, a infância foi recebendo novas significações. As preocupações relativas à infância deram-se no momento em que a criança passou a ser reconhecida como um sujeito com identidade própria, com especificidades e diferenças. Esse olhar sobre a infância que ouve a voz da criança e lhe dá espaço de manifestação é um caminho de desconstrução de pré- 4 Jean Jacques Rousseau, em sua obra Emílio (1762), fala sobre uma educação baseada na bondade natural do ser humano, cujo papel seria o de impedir que a criança fosse corrompida pela sociedade. Para Rousseau, além de considerar a índole da infância, é preciso considerar as particularidades de cada criança: “se, de um lado, todas nascem potencialmente iguais, simbolizando a natureza humana em sua generalidade, cada uma possui características e traços de caráter que lhe são inerentes. Além da desigualdade de cunho social e político, há também a desigualdade natural e biológica” (CERISARA, 1990 p. 31). 30 conceitos adultizados, de ressignificação de significados, de rupturas de relações de poder estabelecido entre o adulto e a criança. Respeitar a criança como sujeito da e na história pode ser entendido como um resgate de todas as infâncias. É atribuir à infância seu devido valor e respeito. Essa forma outra de pensar a criança há muito está sendo discutida por teóricos e estudiosos da sociologia, psicologia, pedagogia, educação e antropologia. São muitas as discussões relacionadas às novas significações sobre a infância, as quais reconhecem que há diferentes formas de ser criança, constituídas em um contexto histórico, ressaltando que as crianças, “de fato, são, desde que nascem, sujeitos atuantes em sua realidade, atores sociais. É, então, a partir dessa compreensão de criança e de seu lugar como ator social, que ela precisa ter seus direitos assegurados – sendo ouvida e respeitada” (HONORATO et al., 2006, s/p). As diversas áreas e os espaços destinados à criança foram organizados levando em consideração os valores da sociedade. Instrumentos como brinquedos, livros, entre outros, revelam na concretude uma ideologia a partir do olhar adulto. É o adulto quem determina o que a criança irá ler, ver e consumir. Nesses instrumentos, estão impressas as marcas do controle sobre a criança e a idéia de prepará-la para atuar na sociedade. A literatura infantil também se encarrega dessa tarefa. A literatura infantil, por sua vez, é outro instrumento que tem servido à multiplicação da norma em vigor. Transmitindo, via de regra, um ensinamento conforme a visão adulta de mundo, ela se compromete com padrões que estão em desacordo com os interesses do jovem. Porém podem substituir o adulto, até com maior eficiência, quando o leitor não está em aula ou mantém-se desatento às ordens dos mais velhos. Ocupa, pois, a lacuna surgida nas ocasiões em que os maiores não estão autorizados a interferir, o que acontece no momento em que os meninos apelam à fantasia e ao lazer. (ZILBERMAN, 1985, p. 20) Supor que a criança precisa ser preparada para a atuação social é negar sua condição de produtora de cultura, e este é um fator que se destaca, projetando uma idéia de mundo infantil como um mundo à parte do mundo adulto. Essa separação coloca a criança como um “vir-a-ser” e não um “ser sujeito” agora e real. A criança é produtora de cultura e, ao mesmo tempo, destinatária da cultura ancestral. Leva consigo uma bagagem de saberes com a leveza renovada 31 de que “tudo é possível”. Benjamin (2002, p.101), reforça esta idéia ao apontar que para a criança, o tempo extrapola a linearidade, o passado e o futuro tornamse presente ressignificado em que o “de novo”, que para o adulto já foi, reaparece de forma inaugural trazendo em si novas possibilidades. Nesse sentido, a criança produz cultura fazendo uso do jogo, da brincadeira, da fantasia, reinventando seu contexto e colocando-se na condição de ator social. 2.1 A literatura e a criança “Uma história não tem necessidade de ser verdadeira, mas de ser bela, dizia gaivota Alexandra” (KRÜS e LE CHASSEUR apud HELD, 1977, p. 39). A literatura, a princípio por meio de narrativas orais, preservou a história, a cultura e os grandes feitos dos homens, “transmitindo” determinados valores e padrões a serem “aceitos” e “respeitados” pela comunidade ou “incorporados” pelo comportamento de cada indivíduo. Isabelle Jean, em entrevista a Frederic Gaussen para Le monde de l’education (1978), partindo do princípio de que “para que haja livro para crianças, é preciso que haja crianças e livros” e considerando que até o século XVIII o sentido de infância não existia, aponta os anos de 1750 como o período em que se generalizou na França, na Inglaterra e na Alemanha o livro para crianças como o entendemos hoje. À consciência que então surgia de uma existência social da criança, somaram-se o desenvolvimento da escolarização e o progresso das técnicas de reprodução, o que deu surgimento a livros destinados à infância. Tinham eles, porém, objetivo didático, de educação moral, manifestada em lições de comportamento, sob uma forma supostamente infantil, em que a criança representada na narrativa servia de modelo a ser seguido. Jean enfatiza que somente com a Condessa de Ségur, bem mais tarde, mas ainda como produto dessa literatura voltada para a (con)formação, apareceu, inspirada nos romances de costume, uma linguagem resultante da observação da infância em que se dava lugar aos objetos concretos que faziam parte de seu ambiente. Salienta Jean que, sociologicamente, a fábula e o conto de fadas não fizeram parte da literatura infantil, porque não se endereçavam às crianças, ainda 32 que elas também os lessem. Até o século XVII, as lendas e os contos não eram pensados para crianças. Faziam parte de um acervo comum a todos os homens. Alguns poucos foram escritos destinados a uma ou outra criança privilegiada. Cecília Meireles, detendo-se nos “problemas da literatura infantil”, assim resume o panorama da leitura oferecida para as crianças: [...] se La Fontaine deu a velhas fábulas a forma incomparável do livro destinado ao Delfim de França, os contos de Perrault e os de Mme. D’Aulney foram recolhidos da tradição popular como quem salva um tesouro para todas as crianças do mundo. Entre os séculos XVII e XVIII já tinham aparecido o “Robinson Crusoé”, de Defoë, e as “Viagens de Gulliver”, de Swift, que não eram livros infantis, bem como “Aventuras do Barão de Münchkausen”. E um outro livro fora escrito, cujo destino seria brilhar cerca de três séculos e exercer sua influência em mais de um povo: “As aventuras de Telêmaco”, que Fénelon compusera para o duque de Borgonha, segundo Delfim de França, neto de Luiz XIV. (MEIRELES, 1979, p. 3435) Perrault encontrou, quando inventariou esse universo, toda uma cultura popular oral que, por meio das narrativas feitas pelas amas-de-leite, passara a fazer parte do repertório das crianças de todas as classes sociais, tanto as da burguesia como as do campo. Esse deslocamento permitiu que uma cultura, nascida originalmente numa classe social alta e preservada na voz do povo, chegasse até as gerações mais novas. Perrault restituiu ao público culto um tesouro popular que, na cultura oral, estava se perdendo. Seu esforço foi o de pedagogizar as histórias, de mostrar que nelas havia verdades que podiam fazer bem às crianças e que valiam tanto quanto as fábulas da mitologia greco-latina. Era, ao mesmo tempo, de sua parte, um empreendimento literário: reencontrar uma cultura nacional capaz de se opor ao modelo antigo então predominante (JEAN, 1978). Também os irmãos Grimm foram movidos por uma busca ideológica: representantes do romantismo alemão iam ao encontro da nação e da identidade alemãs, a partir das forças profundas que se encontravam nas raízes populares dos cantos, contos e danças. Essa identidade deveria ser reconhecida na criança e na família; daí o livro de Grimm chamar-se Contos da infância e do lar. Tratavase de um objetivo político que via na infância a origem do povo. O mesmo ideal romântico se encontra em Michelet (idem). 33 Uma grande mudança na forma de trabalhar o texto destinado aos pequenos se deu na segunda metade do século XIX, com Lewis Carroll e Andersen, que tinham a percepção de que toda criança possui uma personalidade própria que vai além de sua natureza infantil. Essa percepção, somada à convicção de que a própria infância – fonte de fantasias – tem algo a contar, possibilitou o surgimento daquilo que modernamente se chamou de literatura infantil. O narrador deixou de exercer o papel de mestre e se tornou livre das relações de autoridade. Esse narrador, que veio se colocar como intermediário entre o adulto e a criança e participar do mundo da realidade e do imaginário, tornou-se o articulador da moderna literatura para crianças (JEAN, 1978). Coelho debruça-se sobre essa literatura que ela reconhece como feita pelos adultos, destinada aos adultos, mas adaptada e transformada em texto direcionado às crianças. Fazendo uma análise sobre a natureza da literatura infantil, afirma que: “literatura é arte: fenômeno de criatividade que representa o Mundo, o Homem, a Vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática; o imaginário e o real; os ideais e sua possível/impossível realização [...]” (1987, p. 10). Destaca, ainda, sua influência significativa na formação e na segmentação da identidade do leitor: Daí a importância que se atribui, hoje, à orientação a ser dada às crianças, no sentido de que ludicamente, sem tensões ou traumatismos, elas consigam estabelecer relações fecundas entre o universo literário e seu mundo interior, para que se forme, assim, uma consciência que facilite ou amplie suas relações com o universo real que ela está descobrindo dia-a-dia e onde ela precisa aprender a se situar com segurança, para nele poder agir. (COELHO, 1987, p. 29) Configura-se, no entanto, ao longo da trajetória da literatura, a pretensão pedagógica, tornando-a instrumento da aprendizagem racional e levando-a a perder, dessa forma, seu encanto. Na escola, ainda hoje, as obras são apresentadas nos livros didáticos e/ou literários de maneira fragmentada, como um motivo de aprendizagem do código escrito ou de conteúdos gramaticais, ou, ainda, como fonte de elaboração de perguntas para respostas óbvias (fato que, como facilmente se constata, afasta o texto de seu leitor). Subestima-se a criança, tratando-a como alguém que não consegue apreender o significado e a intenção 34 da obra, ficando evidente a distinção ali estabelecida entre o leitor adulto e o leitor criança, a literatura para adultos e a literatura para crianças. Benjamin (2002, p. 55) denuncia o preconceito em relação às crianças como seres distantes e incomensuráveis e afirma que seria preciso ser especialmente inventivo para produzir um livro para elas: “[...] a criança possui senso aguçado mesmo para uma seriedade distante e grave, contanto que essa venha sincera e diretamente do coração”. Superando qualquer caráter pedagógico, a literatura, sendo também arte, deve levar o leitor a indagar sobre sua condição no mundo, considerando-se que a consciência de mundo se dá a partir do momento em que o leitor (sujeito) consegue estabelecer uma relação direta com o livro (objeto), e, deste, um sentido com sua realidade. É bom lembrar, no entanto, que, no caso da literatura infantil, essa relação pode ser muitas vezes mediatizada por um leitor adulto, contador da história, que estabelece a ponte entre a criança e o livro. Voltando-se os olhos para a presença do texto junto à criança brasileira, repete-se o cenário anteriormente apontado. É, também aqui, a literatura empregada como recurso de dominação cultural. Leonardo Arroyo (1988) aponta que a influência de Portugal na literatura infantil brasileira foi determinante como tentativa de imposição cultural. Em meio a esse contexto, surge a obra Narizinho Arrebitado, de Monteiro Lobato, que, juntamente aos livros: Através do Brasil, de Manuel Bonfim e Olavo Bilac, e Saudade, de Tales de Andrade, foi considerado um dos grandes livros voltados para o ensino no País. Nascem esses escritos com intenção pedagógica, ainda distantes da originalidade que o assunto estava a reclamar. Resende (1988, p. 97), no entanto, refere-se a Lobato como sendo, no Brasil, o precursor para uma literatura voltada para a criança: Se questionarmos a produção literária nacional anterior à Monteiro Lobato, representada, por exemplo, por obras de Olavo Bilac (Poesias Infantis; Contos Pátrios, em parceria com Coelho Neto etc.), sentiremos o ranço forte do texto destinado ao púbico infantil, no qual era preciso incutir bons princípios e valores, como: obediência, trabalho, honestidade, patriotismo. Esses ensinamentos adultos se distanciavam do momento da infância, em que a ludicidade, a liberdade e a vadiagem positiva são marcantes. O iniciador de uma literatura prazerosa, instigadora do potencial lúdico da criança foi Monteiro Lobato, na década de 20, no Brasil. 35 A autora diz que as obras feitas para o leitor, sem intencionalidade de público infantil, como as de Ana Maria Machado, Ziraldo e Bartolomeu Campos Queiros, permitem romper com os limites e eliminar as distinções injustificadas entre literatura para adultos e literatura infantil. Defende ela um compromisso efetivo com o público infantil e acrescenta que “se a infância é evocada no processo de escritura de alguns escritores, resta saber se serão suficientemente habilidosos, para não deixar a sua seriedade adulta prejudicar a ludicidade da criança” (RESENDE, 1988, p. 22). 36 CAPÍTULO 3 MONTEIRO LOBATO 3.1 Biografia José Renato Monteiro Lobato nasceu em 1882 em Taubaté (SP), filho de José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Augusta Monteiro Lobato. Mais tarde, por volta dos 11 anos de idade, com o desejo de usar uma bengala com as iniciais de seu pai, tornou-se José Bento Monteiro Lobato. Seu avô materno foi personagem muito importante em sua vida. Era o visconde de Tremembé, e por causa dele Lobato ingressou na academia de Direito de São Paulo, onde conheceu seus grandes amigos: Ricardo Gonçalves e Godofredo Rangel (ROCHA; MARANHÃO; LAJOLO, 1981). Com este último, manteve uma amizade duradoura e continuada correspondência por mais de 40 anos. As cartas que trocaram entre si foram publicadas em A Barca de Gleyre e, ao lado das Cartas escolhidas, selecionadas por Edgard Cavalheiro e publicadas como parte da obra completa de Monteiro Lobato, oferecem ao leitor um retrato fiel das idéias e do posicionamento de Monteiro Lobato perante os sucessos e insucessos que pontuaram sua vida. Ali se revela seu envolvimento com a produção e a crítica de obras de arte, os negócios ligados à edição e publicação de livros, o entusiasmo pelo progresso apoiado no papel do ferro e do petróleo e, acima de tudo, sua profunda vinculação com as coisas do Brasil. Em 1908, casou-se com Maria Pureza da Natividade (dona Purezinha), com quem teve os filhos Edgard, Guilherme, Martha e Ruth. Com a morte do avô materno, do qual herdou uma fazenda, passou, em 1911, de promotor público a fazendeiro e ali, no contato com a terra, se deu conta de que, entre os brasileiros cultos e o mundo do interior, há uma grande distância. Começou, então, a gestar o que viria a ser sua obra literária mais polêmica, Urupês, e a armazenar impressões que viriam a se mostrar marcantes no desenvolvimento das 37 personagens nascidas a partir de Narizinho, que tomaram forma no Sítio do Picapau Amarelo (ROCHA, 1981, p. 4). Na Revista do Brasil, atuou primeiro como colaborador, depois se tornou proprietário (em 1918), voltando-se para a publicação, não apenas da sua produção, mas também de novos autores, na então criada editora Monteiro Lobato. Entre os autores publicados, encontram-se João do Norte, Paulo Setúbal, Hilário Tácito, O. Vianna, Guilherme de Almeida, Francisca Júlia, Menotti del Picchia, Martins Fontes e Lima Barreto. Com a falência desta (em 1925), criou a Companhia Editora Nacional. Antes de Lobato, os livros do Brasil eram impressos em Portugal (ROCHA, p. 5). Ruth Rocha informa que Lobato foi nomeado Adido Comercial do Brasil nos Estados Unidos e ali permaneceu de maio de 1927 a 1931, quando voltou ao País. Impressionado com o desenvolvimento estadunidense, via na extração de ferro e petróleo em terras brasileiras uma solução para o atraso que passara a vida a denunciar. Com o objetivo de resgatar o Brasil dessa situação, endereçou cartas a Getúlio Vargas e a outras autoridades, apontando possibilidades de trocas comerciais, sugerindo ações e denunciando manobras contra os interesses nacionais (1981, p. 5). Entusiasmado, criou uma companhia para explorar o petróleo para, finalmente, concluir que “o governo não quer que se mexa com o petróleo” (LOBATO, 1972, p. 169). Tido por alguns como antinacionalista, por outros como entusiasta do capitalismo e, finalmente, como comunista, acabou detido em 20 de março de 1941, acusado de injúria contra o então presidente da república, Getúlio Vargas, em razão de correspondência que a ele enviara, e de pretender fugir para a Argentina, já que solicitara passaporte para aquele país. Permaneceu preso por três meses. Foi absolvido da acusação de injúria frente à argumentação desenvolvida pela defesa de que tal acusação se apoiava em uma carta particular que o autor não divulgara nem autorizara o destinatário ou terceiros a divulgar (CAVALHEIRO, 1955). A respeito dessa privação de liberdade, registra Cavalheiro (1955, p. 476): “A prisão preventiva de Monteiro Lobato era uma arbitrariedade só possível num regime ditatorial, com a liberdade de Imprensa cassada e as garantias individuais abolidas”. Ainda segundo o autor, durante o período em que esteve 38 preso, Lobato dedicou-se à causa dos outros detentos, demonstrando profundo respeito aos seres humanos que ali se encontravam. E, quando absolvido, escreveu uma carta permeada de ironia ao General Horta Barbosa, que havia decretado sua prisão: Passei nesta prisão, General, dias inolvidáveis, dos quais sempre me lembrarei com maior saudade. Tive ensejo de observar que a maioria dos detentos é gente de alma muito mais limpa e nobre do que muita gente de alto bordo que anda solta. E também tive ocasião de receber inúmeras provas de amizade e solidariedade de excelentes amigos que nunca imaginei tivessem por mim tal estima. Fui leal. A todos fiz ver que a realização do meu sonho eu a devia a uma pessoa apenas, o General Horta Barbosa, comandante superior do benemérito Conselho Nacional do Petróleo. Pesarosamente tenho talvez de deixar hoje esta prisão, mas seria o maior dos ingratos se antes de despedir-me do “chiqueiro” chamado Sala Livre, não cumprisse meu dever, batendo na máquina esta carta de agradecimento. Creia, General, que minha gratidão será eterna. (CAVALHEIRO, 1955, p. 489) Outra carta foi escrita e endereçada ao Presidente Getúlio Vargas. Nela, Lobato registrou o seguinte manifesto: “Atirei no petróleo e acertei na cadeia, o que prova bem má pontaria” (CAVALHEIRO, 1955, p. 488). Ao sair da prisão, Lobato mostrava-se desanimado e descontente com tudo e todos. Perto dos 60 anos de idade e com dívidas imensas, tendo em vista que consumira tempo e dinheiro com investimentos na companhia de petróleo, o autor retomou suas traduções. Nessa mesma época, o filho Edgard adoeceu e este fato parece ter sido o início do fim para Lobato, como registra Cavalheiro, na seguinte passagem em que Lobato diz: “Morte, morte bendita sejas. Não tenho mais gosto em viver. Guilherme acertou, morrendo aos 25 anos. Edgard acertará morrendo já. Viva a morte! É linda. [...]” (CAVALHEIRO, 1955, p. 509). Com a morte do filho mais velho, Edgard, – Guilherme, ele já perdera – e em meio à sua falta de religiosidade, Lobato buscava consolo na crença de que a vida é uma escola de aperfeiçoamento e que a morte leva os que estão prontos para viver em outro mundo, não para depois retornar a este mundo ou, ainda, para ir para o céu, mas sim para habitar um lugar melhor. Ele “crê na imortalidade do átomo e de tudo. Lavoisier está certo. Nascimento e morte, começo e fim: ilusões da nossa relatividade. Tudo é, sempre foi e sempre será. Apenas mudamos de condição. [...]” (CAVALHEIRO, 1955, p. 510). Algum tempo depois, Lobato finalmente desistiu do petróleo (embora continuasse afirmando que o Brasil o possuía) e, muitos anos antes da 39 confirmação dessa sua certeza, retomou as atividades intelectuais, passando a escrever artigos, ministrar palestras, criticar o Estado Novo e seu governante e envolver-se definitivamente com a literatura, como é possível perceber nesta afirmação: “cortei relações com a ambição monetária e fiquei sozinho com a literatura. E estou até em lua de mel com a coitadinha” (CAVALHEIRO, 1955, p. 530). Tratava-se de um retorno a uma atividade que nunca o decepcionara, em especial os seus livros para crianças. Em sua passagem pelo ensino regular, seja no ensino médio, seja na academia, o estudante é apresentado a Monteiro Lobato por intermédio de um discurso eivado de pesada rejeição ao artigo “Paranóia ou mistificação?”, crítica ao estilo das pinturas de Anita Malfatti redigida por Lobato no despontar do movimento modernista brasileiro e publicada no jornal O Estado de São Paulo de 20 de dezembro de 1917. Esse escrito serviu de estopim para o intransponível distanciamento entre ele e alguns dos mais representativos integrantes daquele movimento. O que causa espanto é o fato de ser esse artigo, muitas vezes, o único contato possibilitado ao aluno com a multifacetada obra do autor, considerada sua extensão, variedade e riqueza, porque, de acordo com Vasda Bonafini Landers (1988, p. 30), Monteiro Lobato, no seu trabalho independente, “chegaria a ser o autor mais publicado e mais vendido do país – antes, durante e depois do Modernismo”. A rejeição a Lobato em razão dessa crítica se fez tão completa que lhe foi negado qualquer lugar na história do Modernismo, insistindo, não só muitos dos representantes daquele movimento, como também os críticos e estudiosos das vanguardas, em apontar seu passadismo, seu antimodernismo e sua incapacidade de julgamento. Sobre a exposição e as reações a ela, manifesta-se Mário de Andrade no artigo “O movimento modernista”: Ora, no Rio malicioso, uma exposição como a de Anita Malfatti podia dar reações publicitárias, mas ninguém se deixava levar. Na São Paulo sem malícia, criou uma religião. Com seus Neros também... O artigo “contra” do pintor Monteiro Lobato, embora fosse um chorrilho de tolices, sacudiu uma população, modificou uma vida. (ANDRADE, 1967, p. 226) Ficou, assim, Monteiro Lobato privado do reconhecimento de seu papel de precursor do Modernismo e de antecessor dos modernistas – autores que, aliás, 40 deram muitas voltas na obsessão europeísta antes de alcançar as marcas de brasilidade desde sempre presentes nas obras de Lobato. Estranhamento também causa a distância que a intelectualidade vanguardista estabeleceu com a obra lobatiana, considerando-se que, em 1922 – quando se deu a Semana de Arte Moderna –, Lobato já havia publicado, além de Urupês, Cidades Mortas, Problema Vital, Idéias de Jeca Tatu e sua primeira obra para crianças, Narizinho, escritos esses em que chama a atenção o cunho renovador, profundamente nacional que se revelaria central na modernidade literária brasileira. Essas marcas são destacadas por Landers (1988, p. 24): “o nacional, o telúrico brasileiro, o individualismo na obra de arte eram antigas armas para serem usadas na luta pela verdadeira renovação artística brasileira”. O caso Anita não seria, porém, seu primeiro enfrentamento. Quando da publicação dos textos “Velha praga”, sobre o hábito das queimadas, e os constantes de Urupês, em 1914, o retrato que Lobato faz do Jeca Tatu, caboclo preguiçoso e carregado de doenças, atrai sobre ele as maiores pressões. Seus biógrafos discordam das críticas, que, segundo Landers (1988, p. 25), “só tinham uma razão de ser: aversão ao seu estilo iconoclasta e desmistificador com que expunha todos os problemas brasileiros”. A autora acrescenta: “Galeão Coutinho lembra apropriadamente que a repulsiva caracterização do caboclo teria provocado a animosidade de todos quantos viviam dentro de um sonho cor-derosa” (LANDERS, 1988, p. 25). Diferente, porém, é a posição dos teóricos e estudiosos de Literatura Brasileira. Alfredo Bosi (1987, p. 242) apresenta um olhar crítico. Em História concisa da literatura brasileira, embora reconheça que o papel que Lobato exerceu na cultura nacional transcende de muito a sua inclusão entre os contistas regionalistas, e destaque que o autor “encarnou o divulgador agressivo da Ciência, do progressismo, do ‘mundo moderno’, tendo sido um demolidor de tabus, à maneira dos socialistas fabianos,5 com um superávit de verve e de sarcasmo”, vê nele um pensador doutrinário, o que o leva a concluir: A indicação dos limites da arte lobatiana parece colidir com a relevância da figura humana que vive na história brasileira onde já assumiu papel 5 Fabiano era o simpatizante da associação socialista inglesa The Fabian Society, que pregava uma transformação gradual, sem tentativas de ações revolucionárias. 41 simbólico. A verdade, porém, é que os limites estéticos derivam de um tipo de personalidade cuja direção básica não era a estética. [...] (BOSI, 1987, p. 243) Detendo-se no regionalismo presente em Urupês, Nelson Werneck Sodré (1982, p. 416) tece uma análise em que, mesmo destacando o papel de transformação exercido por Lobato na linguagem dos contos regionalistas, assinala que, além de acrescentar elementos novos, “realiza um alteração interessante, com seu horror ao solene, ao postiço, ao rebuscado e considera que do ponto de vista de construção os contos são deficientes, e raiam muitas vezes os limites da anedota, ou não se completam”. Com um olhar mais curioso, é ainda Landers (1988, p. 25), quem sintetiza: “talvez Monteiro Lobato se preocupasse demais com o Brasil social para ser entendido e discutido como homem de letras”. O distanciamento é justificado por Bosi, quando analisa o papel de Lobato no quadro dos escritores de intenções regionalistas e assim se refere à posição assumida por Lobato em relação aos modernistas: [...] essa mesma nota moralista e didática afastava-o do Modernismo de 22, ou ao menos das correntes irracionalistas que lhe permeavam a estética. Lobato sentiria a vida toda, em nome do bom senso e da razão (como se fora um velho acadêmico), total repulsa pelos “ismos” que definiram as grandes aventuras e as grandes conquistas da arte novecentista: futurismo, cubismo, expressionismo, surrealismo, abstracionismo... (BOSI, 1987, p. 242) O corolário dessa rejeição de mão dupla se manifesta na negação a qualquer mérito inovador nos escritos de Lobato, como se constata neste argumento do mesmo autor: “Apesar de pontilhada de raro em raro por certas ousadias impressionistas, é uma prosa que não rompe, no fundo, nenhum molde convencional” (BOSI, 1987, p. 242). Sodré vê os traços com que Lobato apresenta em Urupês o homem do interior do Brasil como “deformação caricatural” e destaca contundente: Monteiro Lobato liquida o regionalismo, aquele regionalismo em que as influências naturalistas haviam transformado o sertanismo, romântico, quando cria um tipo, o Jeca Tatu [...]. Nesse tipo, verdadeiro nos traços exteriores, falso no conteúdo, o escritor paulista busca representar, em deformação caricatural, que por isso mesmo se vinca e se generaliza, o homem do interior, o caipira, pobre, doente, preguiçoso, ignorante, embora dotado de uma sorte de inteligência, a esperteza solerte, encoberta sob uma aparência sonsa. (SODRÉ, 1982, p. 416-417) 42 Ao comentar o papel de Lobato no modernismo brasileiro, no entanto, volta a salientar sua contribuição para a renovação e simplificação da linguagem nos textos literários: “tido como inimigo do Modernismo, Monteiro Lobato foi, na verdade, um renovador da prosa, fazendo-a simples, fácil, correntia” (SODRÉ, 1982, p. 559-560). Essa renovação é apontada por Landers quando se refere às manifestações de Lobato em Urupês: Manifesta-se [...] Monteiro Lobato contra dois aspectos anacrônicos da literatura: por um lado, contra o indianismo enganoso e ainda vigente e por outro, contra o regionalismo que havia se descontrolado e caído na mesma rotina estilística do romantismo idealizado. (1988, p. 46) Quando Urupês completava 25 anos de sua primeira publicação, Oswald de Andrade escreveu a “Carta a Monteiro Lobato”, incluída nos textos que compõem Ponta de Lança. Nela, Oswald sela a paz entre o Modernismo e as idéias de Lobato – com quem cultivava laços de confiança e amizade: Você foi o Gandhi do Modernismo. Jejuou e produziu, quem sabe, nesse e noutros setores a mais eficaz resistência passiva de que se possa orgulhar uma vocação patriótica. No entanto martirizaram você por falta de patriotismo. (ANDRADE, 1972, p. 4) Segue-se a essa colocação toda uma análise do momento que então viviam e do papel que nele ocupava o trabalho que cada um a seu modo desenvolvia, análise essa antecedida pela seguinte observação: Hoje, passados vinte e cinco anos, sua atitude aparece sob o ângulo legitimista da defesa da nacionalidade. Se Anita e nós tínhamos razão, sua luta significava a repulsa ao estrangeirismo afobado de Graça Aranha, às decadências lustrais da Europa podre, ao esnobismo social que abria os seus salões à Semana. E não percebia você que nós também trazíamos nas nossas canções, por debaixo do futurismo, a dolência e a revolta da terra brasileira. (ANDRADE, 1972, p. 4) Landers (1988) não apenas destaca essas qualidades na prosa lobatiana, como procura comprovar que, no Jeca de Lobato, estavam as matrizes que permitiriam a Paulo Prado escrever seu Retrato do Brasil e a Mário de Andrade construir Macunaíma, o herói sem nenhum caráter – tese que serve de base aos estudos que a autora apresenta em De Jeca a Macunaíma. 43 O Lobato retratado por seus biógrafos6 apresenta-se também como uma figura controvertida: segundo Edgard Cavalheiro, “espírito irrequieto, insatisfeito, buliçoso e combativo”, acrescentando mais adiante, “contraditório”, “inconformista” (Prefácio apud LOBATO, 1972, p. 12-13). Pode-se acrescentar, acima de tudo, polêmico e fiel a si mesmo. Sobre as características com que os autores regionalistas teimavam em apresentar os brasileiros do interior do País, Lobato tece duras críticas. Veja-se o tom polêmico que essas críticas apresentam no trecho seguinte da carta que Lobato endereçou a Rangel em 20 de outubro de 1914: [...] é preciso matar o caboclo que evoluiu dos índios de Alencar e veio até Coelho Neto. [...] A nossa literatura é fabricada nas cidades por sujeitos que não penetram nos campos de medo dos carrapatos. E se por acaso um deles se atreve e faz uma “entrada”, a novidade do cenário embota-lhe a visão, atrapalha-o, e ele, por comodidade, entra a ver o velho caboclo romântico já cristalizado – e até vê caipirinhas cor de jambo, como o Fagundes Varela. [...] o romantismo indianista foi todo ele uma tremenda mentira; e morto o indianismo, os nossos escritores o que fizeram foi mudar a ostra. Conservaram a casca... Em vez de índio, caboclo. (LOBATO, 1972, p. 190) É também em seus escritos que facilmente se encontra a explicação – que os teóricos das vanguardas não quiseram enxergar – para os aspectos levantados no artigo “Paranóia ou mistificação”. Em Idéias de Jeca Tatu – onde também se lê o mencionado artigo – livro que enfeixa um punhado de artigos em que Lobato expõe seu pensamento sobre o que vinha produzindo a intelectualidade brasileira, detém-se no campo da pintura e da poesia. Em “A paisagem brasileira”, elogia os caminhos escolhidos pelo pintor Wasth Rodrigues. Em “Pedro Américo”, refaz a trajetória do pintor, dando destaque aos quadros 6 Muitos são os autores que se têm debruçado sobre Lobato, sua vida, sua obra. No Projeto sobre Monteiro Lobato desenvolvido pela Professora Marisa Lajolo no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, é dado destaque às biografias seguintes: AZEVEDO, Carmen Lúcia de; CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia. São Paulo: SENAC, 1997; CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato: vida e obra. São Paulo: Nacional, 1955; CONTE, Alberto. Monteiro Lobato: o homem e a obra. São Paulo: Brasiliense, 1948; FONTES, Murillo. Perfis de brasileiros ilustres: Dom Pedro II, Oswaldo Cruz, Cardoso Fontes, Getúlio Vargas, Martins Fontes, Homero Prates, Aloysio de Castro, Vicente de Carvalho, Monteiro Lobato, Paulo Carneiro, Cecília Meirelles, Dinah Silveira de Queiroz, Castro Alves, Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: Rev. Continente, 1983; KUPSTAS, Márcia. Monteiro Lobato. São Paulo: Editora Ática, 1988; LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: a Modernidade do contra. São Paulo: Brasiliense, 1985; LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. São Paulo: Moderna, 2000; MURALHA, Sidônio. Um personagem chamado Pedrinho: a vida de Monteiro Lobato para os alunos lerem e os professores também. São Paulo: Brasiliense, 1970; RIZZINI, Jorge Messias. Vida de Monteiro Lobato. São Paulo: Editora Difusora Cultural Ltda, 1953. Escolhi Edgard Cavalheiro para melhor me aprofundar na vida e obra de Lobato, a cujas informações acrescento o olhar decorrente dos estudos de Vasda Bonafini Landers. 44 capazes de ser considerados “arte genuinamente brasílica”, lamentando que o pintor, “capaz de rasgar sendas novas, [...] desdenhou essa vereda áspera e se fez europeu” (LOBATO, 1951, p. 76). Em “Almeida Júnior”, elogia a verdade e o sentimento da expressão. A respeito da morte prematura do pintor, argumenta: “por fatalidade, mal abrolha no Brasil um artista capaz corre logo a morte violenta a amordaçá-lo” e acrescenta: “[...] mas os gordanchudos, os falsificadores do bom gosto, os inimigos da verdade, os pachecões atravessados de Acácio e Brumel [...] morrem todos no fim da vida, de pigarro senil...” (LOBATO, 1951, p. 87-88). Em “A poesia de Ricardo Gonçalves”, mais uma vez é o traço de brasilidade que vem destacar. Nos quatro artigos em que analisa um poeta e três diferentes pintores, Lobato desenvolve sua tese sobre a arte brasileira, deixando claro que um artista não pode prender-se a pastiches de culturas alheias, devendo, primeiro, compreender sua terra, para, então, bem interpretá-la. Evidencia-se, pelos argumentos distribuídos nesses artigos, que sua posição em relação à exposição de Anita Malfatti se dirigia, na realidade, à falta de raízes nas coisas brasileiras e à devoção aos mandamentos das vanguardas européias que nos quadros da pintora modernista se manifestavam. Essa leitura não foi feita pelos críticos que se voltavam para o que de novo o movimento modernista representava na cultura brasileira, o que continua ainda hoje confundindo os estudiosos sobre o papel de Lobato na literatura do País. Esse foi Lobato escritor, o Lobato crítico desejoso de uma arte que expressasse a realidade brasileira ou nela buscasse inspiração. Seu temperamento inovador e sua brasilidade, no entanto, conduziram também sua atenção a diferentes e múltiplas linhas de atuação. Outros empreendimentos, como já vimos, completam sua biografia, seja como fazendeiro, nos primeiros tempos, ou, mais tarde, voltado para a indústria de livros, ferro, petróleo, traduções..., mantendo por toda a vida a curiosidade diante de novos desafios. Voltemos no tempo. Aqui e ali, nas cartas a Rangel, Monteiro Lobato demonstrava seu entusiasmo na gestação de novas personagens. Quando do lançamento do Saci-Pererê, em carta de 24 de setembro de 1917, ele assim o descrevia: “O Saci é um livro sui-generis – para crianças, para gente grande fina ou burra, para sábios folclóricos; ninguém escapa” (LOBATO, 1972, p. 270). A 45 literatura infantil viria, nos anos finais, a tomar-lhe toda a atividade intelectual, responsável por torná-lo único na história brasileira. A preocupação com a criança já está registrada no comentário que consta em carta de 13 de abril de 1919 a Rangel, quando Lobato revelava: Tive idéia de um livrinho que vai para a experiência do público infantil escolar, que em matéria fabulística anda a nenhum. [...] Fiz então o que vai. Tomei de La Fontaine o enredo e vesti-o à minha moda, ao sabor do meu capricho, crente como sou de que o capricho é o melhor dos figurinos. (LOBATO, 1972, p. 290) Em meio às tantas atividades e interesses que tomaram a atenção de Lobato, desenvolveu-se sua manifestação criativa, representada inicialmente por Narizinho Arrebitado, livro que foi publicado em 1921, com intenções inicialmente didático-pedagógicas, mas que foi se impondo com o aparecimento de inúmeras personagens e 39 histórias – 32 originais e sete adaptações – capazes de atrair o interesse tanto das crianças quanto dos adultos. Ironicamente, revelando-se como fator a agravar o distanciamento sempre mantido pelos teóricos do Modernismo e acentuando também as controvérsias a seu respeito, Lobato se tornou cada vez mais uma figura literária de renome e de repercussão nacional, sendo também reconhecido e traduzido em outros países.7 Na Argentina, criou também uma casa Editora e morou de 1946 a 1947. Chegou a ser comparado a Andersen. "Ele se torna o Andersen brasileiro, ou o 'Andersen caboclo' como disse pitorescamente Mário da Silva Brito” (RIBEIRO, s.d., p. 122). Cada vez mais voltado ao público infantil, Lobato demonstrou profunda preocupação com os livros ditos “infantis”, o que se pode observar na carta enviada a Rangel em 1945: Chegou-me afinal o livro infantil – mas não é livro infantil. Não é literatura para criança. É literatura geral. Para ser infantil tem o livro de ser escrito como o CAPINHA VERMELHA do Perrault. Estilo ultra direto sem nem um grânulo de “literatura”. [...] A coisa tem de ser narrativa a galope, sem nenhum enfeite literário. O enfeite literário agrada aos oficiais de mesmo ofício, aos que compreendam a Beleza literária. Mas o que é beleza literária para nós é maçada e incompreensibilidade para o cérebro ainda não envenenado das crianças [...] Resta agora a opinião do teste supremo: elas. Se elas disserem o contrário do que digo, paciência; darei as mãos à palmatória e terei de revogar minhas teorias. Consulte-as. (LOBATO, 1972, p. 372) 7 Sobre o papel que exerceu na literatura latino-americana, ler De São Paulo ao Aconcágua: uma trajetória latino americana para Monteiro Lobato. Disponível em: http:/www.unicamp.br/iel/monteirolobato/outros/ limaportugues.pdf. 46 Monteiro Lobato pretendia criar uma escrita que fosse acessível às crianças, uma escrita que fizesse da leitura um ato prazeroso e livre do ranço literário que, segundo ele, afastava os leitores do texto: Não imaginas a minha luta para extirpar a literatura dos meus livros infantis. A cada revisão nova das novas edições, mato, como quem mata pulgas, todas as “literaturas” que ainda as estragam. Assim fiz no Hércules, e na segunda edição deixá-lo-ei ainda menos literário do que está. Depois da primeira edição é que faço a caçada das pulgas – e quantas encontro, meu Deus! (LOBATO, 1972, p. 372) Esse cuidado com o emprego da palavra destinada a seu público preferencial – a criança – e a dedicação para tornar seus textos mais interessantes para aquele público podem facilmente ser comprovados nas transformações que os contos sofreram em suas sucessivas edições, parecendo realmente terem sido desbastados de excessos que pudessem desviar o leitor do mergulho na fantasia e na aventura, para proporcionar-lhe, em conseqüência, a libertação da imaginação e da criatividade. Cilza Bignotto apresenta, no ensaio “Monteiro Lobato em construção”, um interessante estudo sobre o processo de adequação dos textos destinados por Lobato às crianças, destacando nele as simplificações e substituição de termos que, contrariamente ao que o autor afirma na carta que acima mencionei, em lugar de torná-los menos literários, dão-lhes uma feição, não só mais enxuta, mas também mais elaborada, como se pode observar nos trechos que Bignotto apresenta e aqui reproduzo: A MENINA DO NARIZINHO ARREBITADO (1920) Naquela casinha branca, -lá muito longe, móra uma triste velha, de mais de setenta annos. Coitada! Bem no fim da vida que está, e tremula, e catacega, sem um só dente na bocca – jururú... Todo o mundo tem dó d’ella: -Que tristeza viver sozinha no meio do matto.. REINAÇÕES DE NARIZINHO (1946) Numa casinha branca, lá no sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta anos. Chama-se dona Benta. Quem passa pela estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando: Que tristeza viver assim tão sozinha Nesse deserto... Estranhamente, é quando está fora do Brasil que Lobato se dá conta do significado e das possibilidades do mundo encantado que criara. No período de sua permanência nos Estados Unidos, atingido pelas lembranças da infância, redescobre as origens da inspiração para as aventuras que desenvolvera nas histórias do Sítio e resolve dar a seu trabalho o tratamento de que é merecedor. 47 Retoma as três primeiras aventuras de Narizinho e as transforma em Reinações de Narizinho, um livro básico em torno do qual vão girar todas as outras histórias. Em 1921 com a publicação de Narizinho, o autor paulista iria construir para as crianças um mundo livre, utópico, baseado na sua “desadoração” aos sistemas rígidos. O Sítio do Pica-Pau Amarelo é simbólico do Brasil que ele queria para todos os brasileiros. “Aqui no Sítio do Pica-Pau Amarelo”, diz a vovó Benta, “não há coleiras. A grande desgraça do mundo é a coleira.” O Sítio é também o Brasil característico com a sua comida, o seu folclore, a sua história e, sobretudo, a sua língua coloquial e oral. É o Brasil que os modernistas só foram descobrir anos depois da Semana. (SANDERS, 1988, p. 28) É nesse universo, ao mesmo tempo espelho e caleidoscópio, que se pode adentrar, lançando um olhar mais demorado sobre a Menina do Narizinho Arrebitado e seus companheiros de aventura no portal para o mundo encantado que Lobato nos legou. Em sua última entrevista, concedida a Murilo Antunes Alves e publicada na Folha da Noite de 6 de julho de 1948, à pergunta feita por Murilo sobre como gostaria de ter vivido se lhe fosse dada a oportunidade de viver novamente, a resposta de Lobato se estende a analisar a aceitação de seu trabalho por parte das crianças e termina dizendo: [...] de maneira que eu acho que queria isso: viver de novo a minha vida, a vida que eu vivi escrevendo coisas mais variadas, de mais interesse para as crianças e mais, porque as crianças me condenam uma coisa: que eu escrevi pouco para elas; poderia ter escrito mais. E eu creio que sim. Eu perdi o tempo escrevendo para gente grande, que é uma coisa que não vale a pena. (CAVALHEIRO, 1955, p. 831) Lobato morreu no dia 3 de julho de 1948, às quatro horas da madrugada, enquanto dormia, provavelmente focado nas peripécias de Emília, nas fantasias de Narizinho e de todos os que no sítio de sua imaginação habitavam. 3.2 Lobato e a Escola Nova Encontrar Monteiro Lobato é olhar também para os movimentos culturais da República, que dava seus primeiros passos. Impossível avaliar sua dimensão sem considerar a busca pela brasilidade e a preocupação com as transformações que se impunham ao País, ainda mergulhado na cultura escravista poucos anos depois da Abolição, ainda carente da consciência de suas verdadeiras raízes, sob os reflexos do europeísmo que hipnotizava sua classe dominante. Impossível 48 mensurar o papel de Lobato na construção da literatura brasileira, sua maneira de ver o mundo, desligada de seus tantos outros papéis: o Lobato pai, o Lobato editor, o Lobato adido cultural, o Lobato nacionalista, capaz de – na lúcida percepção do que isso viria a significar – apostar no sonho da exploração do petróleo. Mais que tudo, é impossível deixar de olhar para o homem que se debruça sobre as teorias escolanovistas e vê nelas, transformadas em projeto de educação, as propostas que ele realiza em seus relatos para crianças. Em contraposição à escola tradicional, que via na infância uma etapa de preparação para a vida adulta e, em conseqüência desse olhar, essa etapa como uma condição transitória e inferior, a Escola Nova institucionaliza o respeito à criança e também a suas atividades, seus interesses e necessidades. Para melhor compreender o surgimento da Escola Nova, reproduzo aqui a fala de Andreotti (2006), que diz que a década de 1930 é reconhecida como o marco referencial da Modernidade na história do Brasil, Modernidade entendida como o processo de industrialização e urbanização, contemplada por inúmeros estudos que destacam esse período pelas mudanças que inaugurou e os movimentos políticos que protagonizou: a Revolução de outubro de 8 1930, a Revolução Constitucionalista de 1932 e o Estado Novo, em 1937. O autor pontua que a Revolução de 1930 foi fruto da crise econômica mundial que afetou as exportações do brasileiro, que se complicou com a quebra da bolsa de Nova York em 1929. Entre crise econômica e o surgimento de novas camadas sociais, “a educação escolar foi considerada um instrumento fundamental de inserção social, tanto por educadores, quanto para uma ampla parcela da população que almejava uma colocação nesse processo” (ANDREOTTI, 2006). As novas tendências educacionais diferenciavam-se da proposta tradicional na medida em que tentavam transformar o espaço escolar em ambiente menos tenso, mais flexível, onde a pesquisa fosse privilegiada. A educação era vista como um processo ativo, privilegiando a autonomia do aluno. Embora tenha atendido apenas uma camada privilegiada da população brasileira, a Escola Nova se consolidou como uma nova proposta educativa no Brasil (idem 2006). Movimento desencadeado no Estado de São Paulo visando a volta ao poder da elite paulista, segmento hegemônico na Primeira República. 8 49 A educação passou a ser vista como uma porta para a transformação do Brasil em um país moderno, industrializado e progressista. Esse projeto, abraçado por Anísio Teixeira, era partilhado com Lobato, que sonhava criar todo um programa voltado à educação da criança brasileira, conforme pode ser conferido nas biografias do autor. Lobato aproximou-se do escolanovismo, porque também acreditava que o respeito à criança e ao seu universo eram fundamentais no processo educativo e formativo dos pequenos. Com A menina do narizinho arrebitado (1920) e as narrativas que se lhe seguiram, o autor apresentou ao público leitor inovações na literatura infantil brasileira – que até então seguia os modelos estrangeiros e/ou didáticos que se impunham aos pequenos – e terminaria por conquistar o status de fundador do gênero no país. 3.3 Lobato e a literatura infantil brasileira A literatura infantil constitui-se como uma possibilidade real e privilegiada de diálogo entre o aspecto cognitivo e o imaginário da criança quando “sintetiza, por meio dos recursos da ficção, uma realidade que tem amplos pontos de contato com o cotidiano do leitor” (ZILBERMAN, 1985, p. 22). Concordo com a autora, que afirma que Monteiro Lobato é um marco na literatura brasileira porque foi o primeiro escritor a fazer uma literatura infantil respeitando a inteligência da criança, valorizando a imaginação, a irreverência e o pensamento crítico infantil, Lobato viu na criança o caminho criador de uma nova ordem social. Diferente e multifacetado é o fenômeno que transparece na obra de Monteiro Lobato. Caracterizado pela unidade de tempo, espaço e personagem, já que sempre abre o núcleo comum com atores que vivem no Sítio do Pica-Pau Amarelo, no Brasil dos anos 30 [...]. O leitor de Lobato, acrescenta Zilberman, torna-se co-autor do texto na medida em que lhe dá significação. Ao partir do irreal para o real ou vice-versa, estabelecendo um diálogo entre a ficção e a realidade, Lobato superou a lógica tradicional e as convenções estereotipadas da época, priorizando a natureza e os elementos da cultura brasileira para desenvolver suas narrações, como forma de crítica a um 50 nacionalismo representado pela manutenção de valores colonialistas e a todos os discursos conservadores e representativos de uma visão fechada e ultrapassada da sociedade brasileira. Ele era um apaixonado pela Modernidade, reconhecendo que o processo de modernização do país estava diretamente ligado à industrialização e à educação. É importante ressaltar que Lobato foi o tradutor de inúmeros clássicos da literatura estrangeira. Fez também a releitura de clássicos da literatura universal e os adaptou à cultura brasileira. Seu intuito era nacionalizar a literatura, libertá-la das amarras de Portugal. Como forma de valorizar a tradição folclórica, criou personagens que representavam a cultura do país, personagens tiradas de lendas e narrativas orais do povo. Os livros de Lobato envolvem na literatura as idéias de progresso, desenvolvimento, crescimento econômico e transformação nacional (nos moldes capitalistas). O autor questionava o analfabetismo, a falta de conhecimentos, a ausência da prática de leitura e os atrasos resultantes da colonização portuguesa. Não é de espantar, pois, que em uma de suas muitas atividades se dedicasse à editoração de livros. Cabe ressaltar que o objetivo de minha pesquisa não é analisar o caráter literário, pedagógico e ou ideológico da obra lobatiana, mas sim verificar e analisar a representação da infância nela contida. É necessário aqui registrar que algumas de suas obras receberam e continuam recebendo críticas, dentre elas podem ser citadas: Urupês (1918), que para os críticos apresenta uma visão negativa em relação ao homem do campo e à linguagem por ele empregada, e Idéias de Jeca Tatu (1919), que retrata o caboclo como preguiçoso, doente e burro. Nessas histórias Lobato referia-se ao caboclo como representativo dos traços culturais do povo brasileiro. Landers (1988), ao analisar tais obras, salienta que, ao contrário de se revelarem atitudes preconceituosas e estigmatizantes, tratam-se elas, na verdade, de críticas ao modo de vida daquelas personagens. Para a autora, Lobato utilizava metáforas para denunciar as circunstâncias socioeconômicas que atingiam o homem do Brasil e a alienação em que vivia (p. 53). A ênfase de Lobato se dá na representação do caipira como vítima do descaso governamental e conseqüência de um sistema social decadente e excludente. 51 Ainda segundo Landers, em sua obra Urupês, Lobato buscava reproduzir a oralidade e os coloquialismos da fala brasileira com o objetivo de mostrar que a diferenciação entre a língua falada e a língua escrita, a língua da cidade e a língua do campo ou ainda entre um homem educado e um homem simples é um dos grandes problemas entre escritores e leitores. Para Lobato, era uma anomalia o fato de o escritor brasileiro não poder ser lido pela maioria de seus conterrâneos: “o público não os lê porque não lhes entendem nem as idéias nem a língua” (p. 76). Tais afirmações mostram um Lobato preocupado com o aspecto social da língua, que, segundo ele, deveria ser um bem comum a todos, assim como a educação. Dentre as muitas críticas feitas ao autor, está a de racismo, devido à forma como o narrador construído por Lobato se refere aos negros em muitas passagens de seus livros e aos papéis a eles destinados: analfabetos, feios e executando serviços braçais. Tia Anastácia é um bom exemplo, pois o autor refere-se a ela durante toda a narrativa chamando-a de a negra, a preta e a boa negra, omitindo-lhe o nome, sinais do que também é conhecido como racismo cordial, uma forma de racismo peculiar da experiência brasileira com a escravidão. Em Reinações de Narizinho, quando Dona Benta diz que o sítio está virando livro de contos da Carochinha, pois ela nunca sabe quando seus netos estão dizendo a verdade ou mentindo, referindo-se ao casamento de Narizinho com o peixe escamado, o narrador menciona a Tia Nastácia dizendo “a negra benzeu-se com ambas as mãos” (LOBATO, 1988, p. 97). No final da obra, quando Dona Benta, as crianças e Emília retornam do castelo do barão de Munchausen para o sítio e decidem não contar nada para Tia Nastácia, o narrador diz: “todos fizeram cara de quem vinha chegando da casa do compadre Teodorico, abriram a porteira e entraram. Mas deram logo com a preta de mãos na cintura plantada na varanda [...] com ar de quem está ciente de tudo” (idem p. 302). Não são as palavras que expressam o preconceito, mas sim o sistema de relações ali explicitados que dão sustentação ao enunciado. Abaixo apresento outra passagem em que o narrador se refere à Tia Nastácia de modo excludente e racista, na qual, Emília, após levar uma bronca de todos principalmente da Tia Nastácia, decide ir embora do sítio: 52 Narizinho foi espiar o que Emília estava fazendo. Encontrou-a no cantinho da sala onde era o seu “quarto”, muito atarefada em botar os seus vestidos e brinquedos nas caixas de papelão que lhe serviam de mala. Mas notou que Emília só botava os vestidos e brinquedos que ela, Narizinho, lhe havia dado. Os outros, dados pela negra jaziam no chão, amarrotados e pisados aos pés. Emília estava seriamente ofendida e sem dúvida nenhuma preparava-se para alguma viagem. Ia arrumando as malas, ao mesmo tempo que dialogava com o cavalinho. Não é à toa que ela é preta como carvão. ? Mentira de Narizinho! Essa negra não é fada nenhuma, nem nunca foi branca. Nasceu preta e ainda mais preta há de morrer. (LOBATO, 1988, p. 203). Discordo da maneira estigmatizante e preconceituosa como Tia Nastácia é representada na obra lobatiana, mas é importante lembrar que Lobato escreveu sua obra há mais de cinco décadas e seria injusto olhá-la ou mesmo interpretá-la com os olhos de hoje. Reforço que a literatura reflete uma sociedade em andamento e no caso da obra lobatiana caracteriza uma produção surgida num país cuja sociedade buscava seus caminhos em meio às conseqüências de um demorado escravismo e de um recente encontro com os ideais republicanos. Os estertores de um sistema deixado para trás se mesclavam com os preconceitos e com um acentuado europeísmo, e neles se prolongavam. No que diz respeito a este assunto, considerados os registros da realidade nacional nas narrativas de Lobato, é significativa a leitura do artigo de Cilza Carla Bignotto (2007), em projeto publicado pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, no qual a autora traça um paralelo entre a trama e o desfecho do conto Negrinha, no livro de mesmo nome, publicado por Lobato em 1920 – anterior, portanto, a menina de narizinho arrebitado –, e os episódios deste último. Primeiramente, a autora chama atenção para as diferenças históricas, culturais e ideológicas entre os primeiros leitores de Lobato e os leitores atuais. Para ela: O horizonte de perspectivas do leitor atual abrange conceitos como o de “direitos da criança”, conceito este que serve, pelo menos em teoria, para todas as crianças. Diferente era o modo de pensar de alguém que fosse senhor de escravos – e esse modo de pensar não desapareceu com a abolição da escravatura, infelizmente. (s.p.) Negrinha, como Narizinho, tem sua vida transformada por uma boneca. Mas, ao contrário de Narizinho, para quem a boneca representa parceria e descoberta para a vida, em “Negrinha”, em que a personagem que dá título ao conto é filha de ex-escrava, essa descoberta leva a menina à morte. Em 53 “Negrinha”, encontra-se o registro da criança pobre, negra, que não encontra lugar sequer para o sonho em seu cotidiano de rejeição: a tristeza nela se instala e a leva à morte depois de ter podido a menina conhecer uma linda boneca loira e com ela brincar (registro de um Brasil que não tinha espaço na sociedade europeizada que aqui se constituía?). Em Narizinho, a menina branca, mas de pele morena (a mescla, a miscigenação?), que ganha de Tia Nastácia (negra) uma boneca – produto de suas mãos laboriosas, feita com restos de pano, o rosto bordado com fios (rejeição ao europeísmo que se refletia nos rostos das bonecas loiras de porcelana?). Com referência àquele momento da sociedade brasileira, a autora acrescenta que a mudança ocorreu lentamente ao longo da história. Não foi um processo brusco nem automático. Segundo ela, é a permanência do preconceito e da opressão que Lobato registra no conto em questão. Lobato situa a história de Negrinha em um tempo em que a escravidão havia sido abolida por lei - mas leis não têm força para abolir costumes culturais entranhados em pessoas que conheceram uma época em que a lei era outra. O mundo (ou o Brasil, a vida, o “certo”) para Dona Inácia ainda é aquele da escravidão. A ideologia da ex-senhora de escravos choca-se violentamente com a nova ideologia decretada no 13 de maio. Para o narrador Negrinha é uma criança, e é assim que ele a apresenta ao leitor - não é à toa que a palavra criança aparece 8 vezes no conto, sempre ligada à menina. Mais: ele mostra o interior da menina, diz que ela tem alma – portanto – é gente. (BIGNOTTO, 2007, s.p.) Bignotto demora-se na análise do comportamento com que o narrador caracteriza a personagem Dona Inácia e sua relação com Negrinha, lembrando a seu leitor que na revelação está a denúncia: É natural para Dona Inácia que Negrinha seja “boa para uns croques”, viva dentro de sua casa como um enfeite da sala e, a princípio, não possa brincar com suas sobrinhas. Negrinha é a boneca de Dona Inácia, que a conserva como “remédio para os frenesis” - daí as marcas de espancamentos no corpo da menina, como as marcas que as crianças deixam em alguns brinquedos. Boneca que não corresponde, porém, ao ideal físico imaginado para as bonecas da época. Razão pela qual, talvez, receba apenas os croques, e não carinhos. (2007, s.p.) Sobre as relações que colocam as personagens negras em situação de inferioridade nas narrativas de Monteiro Lobato, Marisa Lajolo (1998) desenvolve interessante análise em que evidencia a ambigüidade aparente nos textos de Lobato e pouco esclarecedoras nas críticas a eles. Relembrando que toda produção literária está por si mesma comprometida com a verossimilhança, afirma 54 que “os xingamentos de Emília [são] absolutamente verossímeis e, portanto, esteticamente necessários numa obra cuja qualidade literária tem lastro forte na verossimilhança das situações e na coloquialidade da linguagem” (s.p.). Acrescenta a autora que o apagamento da tensão entre diferentes mundos da cultura (o de um negro analfabeto e o de crianças brancas) pode ter um sentido alienante. Para ela, não tematizar a diferença e diluir em afeto complacente o choque de culturas proporciona ao leitor “a experiência apaziguante de uma situação na qual fica apagada toda a violência do modo pelo qual se processava a modernização brasileira” (s.p.). Apontando para o europeísmo que dominava a cultura e os costumes dos anos trinta, Lajolo questiona: “se não havia lugar para os dois negros no sítio da Dona Benta como haveria lugar para eles no Brasil de Lobato?” (1998, s.p.) Lembremos Bakhtin (1988) quando destaca, a respeito das vozes que constituem o texto romanesco, que o diálogo do romance é um diálogo particular. Nele se dá um encontro de linguagens que ecoam nos híbridos e no pano de fundo dialógico dos enunciados. Esse hibridismo exige do escritor, pela necessidade de estilização que lhe cobra, além do aguçamento, expansão e aprofundamento do horizonte lingüístico. O próprio argumento se submete à tarefa da correlação e da descoberta mútua das linguagens. O argumento do romance deve organizar o desmascaramento das linguagens sociais e das ideologias, mostrá-las e experimentá-las: a experimentação da palavra, da visão de mundo e do fundamento comportamental ideológico da ação, a demonstração dos hábitos, dos mundos e dos micromundos sociais, históricos e nacionais (romances descritivos, de costumes e romances geográficos) ou dos mundos sócio-ideológicos de uma época (memórias romanescas, as variantes do romance histórico) ou ainda das idades e gerações ligadas às épocas, aos mundos sócio-ideológicos (o romance de aprendizagem e formação). Em resumo, o argumento do romance serve para a representação dos sujeitos falantes e de seus universos ideológicos. No romance, realiza-se o reconhecimento de sua própria linguagem numa linguagem do outro, o reconhecimento de sua própria visão na visão de mundo do outro. (p. 162) Embora as narrativas de Lobato não possam ser caracterizadas como romances, podemos nos valer dessa particularidade que Bakhtin destaca para a correlação de linguagens e o desvelamento dos micromundos sociais na análise de seus textos. Com base nas afirmações acima, é possível constatar que Lobato, a despeito de usar uma linguagem pejorativa, desvela a realidade, a forma como 55 eram tratados os negros daquela época (preconceito que tantas vezes perdura em nossos dias). Com ironia e deboche, o autor criticava uma sociedade que se autodenominava européia. Curiosamente, Lobato vai encontrar elementos para contrapor a influência européia justamente nos ingredientes folclóricos e mitológicos da cultura brasileira, resultado da mestiçagem entre brancos, índios e negros. Outro fator marcante e sempre apontado na obra de Lobato refere-se ao didatismo existente em boa parte de sua obra para a criança. De acordo com Coelho (1987), Lobato foi o precursor de uma literatura voltada para a infância, porém seus escritos estavam comprometidos com o didatismo “ainda sob o magistério do pensamento materialista/positivista em que foi formado, Monteiro Lobato via o mundo real e o da fantasia perfeitamente delimitados, – cada qual com sua natureza específica” (p. 96). A autora acrescenta que em A menina do narizinho arrebitado (um precursor dos livros paradidáticos no Brasil), há o predomínio do racionalismo sobre a livre fantasia. O autor fazia uso da fantasia, mas a disciplinava com a lógica e o didatismo. Contudo, conforme evoluem os escritos de Lobato, evolui também a forma como ele vê a fantasia e o real, surgindo, então, uma forma outra de perceber e ver a criança. No entanto, cabe aqui salientar que em obras como Os doze trabalhos de Hércules, O poço do Visconde e A geografia de Dona Benta, predomina o caráter didático. Nesse caso, a literariedade cede espaço para o pedagógico. Destaque-se, todavia, que Lobato utilizou uma linguagem que a criança da época entendia, buscando também resgatar a memória cultural, os mitos e as lendas do povo brasileiro, fazendo-os contracenar com narrativas de outras culturas. O autor tinha uma visão crítica do mundo e pretendia, com sua obra, desmascarar a permanência de valores que implicavam a estagnação social, histórica e cultural do Brasil. A identificação da criança com o mundo ficcional criado por Lobato propicia ao leitor uma interação com as personagens. Essa interação, destacada por Zilberman, permite o exercício da linguagem em sua dimensão lúdica. Esse universo, contudo, se alimenta da fantasia do autor, que elabora suas imagens interiores para se comunicar com o leitor. Assim, o texto, a racionalidade da linguagem, de que é testemunha sua estrutura 56 gramatical, com a invenção nascida na intimidade de um indivíduo [...] pode lidar com a ficção mais exacerbada, sem perder o contato com a realidade, pois precisa condicionar a imaginação à ordem sintática da língua. Por isso, a literatura não deixa de ser realista, documentando seu tempo de modo lúcido e crítico; mas mostra-se sempre original, não esgotando as possibilidades de criar, pois o imaginário empurra o artista à geração de formas e expressões inusitadas. (ZILBERMAN e SILVA, 1990, p. 18-19) O destaque que envolve a palavra falada nos textos de Lobato se repete na valorização à palavra escrita. Aspecto importante da obra lobatiana é a leitura associada ao prazer e ao dia-a-dia das personagens, muitas vezes sendo ressignificada, “reescrita” de acordo com a realidade dos leitores, apresentando uma linguagem que entra em dissonância com a linguagem da época. Lobato utiliza o lúdico, a fantasia, a criatividade como estímulo à leitura, como se pode perceber na seguinte passagem em que Dona Benta lê a história sobre o irmão do Pinóquio: – Coitada de vovó! – disse um dia Narizinho. – De tanto contar histórias ficou que nem bagaço de caju; a gente espreme e não sai mais nem um pingo. Era a pura verdade aquilo – tão verdade que a boa senhora teve de escrever a um livreiro de São Paulo, pedindo que lhe mandasse quanto livro fosse aparecendo. O livreiro assim fez. Mandou um e depois outro e depois outro e por fim mandou Pinóquio. – Viva! – exclamou Pedrinho quando o correio entregou o pacote. – Vou lê-lo para mim só, debaixo da jabuticabeira. – Alto lá! – interveio Dona Benta. – Quem vai ler o Pinóquio, para que todos ouçam, sou eu, e só lerei três capítulos por dia, de modo que o livro dure e nosso prazer se prolongue. A sabedoria da vida é essa. – Que pena! – murmurou o menino fazendo bico. – Não fosse a tal sabe-do-ri-a da vida, que nunca vi mais gorda, e hoje mesmo eu dava conta do livro e ficava sabendo toda a história do Pinóquio. Mas não! Temos de ir na toada de carro de boi em dia de sol quente – nhen, nhen, nhen... Sua zanga, porém, não durou muito, e assim que chegou a noite e Tia Nastácia acendeu o lampião e gritou o “É hora!”, ninguém se mostrava mais assanhado que ele. – Leia de sua moda, vovó! pediu Narizinho. A moda de Dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo, “lume”, lia “fogo”; onde estava “lareira”, lia “varanda”. E sempre que dava com um “botou-o” ou “comeu-o”, lia “botou ele”, “comeu ele” — e ficava o dobro mais interessante. (LOBATO, 1988, p. 193-194) 57 Ao final de sua vida, com a visão já comprometida em decorrência de um espasmo cerebral, em carta enviada a Rangel, Lobato escreve sobre a importância da leitura para ele: Tenho estado, todo este tempo, privado de leitura – e que falta me faz! A civilização me fez um “animal que lê”, como o porco é um animal que come – e dois meses já sem leitura me vêm deixando estranhamente faminto. Imagine Rabicó sem cascas de abóboras por 30 dias! (LOBATO, 1972, p. 378) Parto do pressuposto de que a leitura não é um processo isolado e está intrinsecamente ligada à formação do sujeito, de sua identidade e suas ideologias, além de garantir a continuidade do processo de aperfeiçoamento da sociedade, capacitando-o para exercer seus direitos e deveres. Por meio da leitura, é possível o desenvolvimento do pensamento crítico organizado pela utilização do simbólico e pela percepção da plurissignificação contida nas narrativas, ampliando, dessa maneira, as possibilidades conseguidas com o imaginário e com o faz-de-conta que retratam a infância, na qual a criança é capaz de se misturar com a ficção, alterando-a conforme sua realidade, reconstruindo sentidos diferentes por meio da linguagem. Durante toda sua narrativa, Lobato reforça a importância da leitura para a formação da consciência crítica: Dona Benta era outra que achava muita graça nas maluquices da boneca. Todas as noites punha-a ao colo para lhe contar histórias. Porque não havia no mundo quem gostasse mais de histórias do que a boneca. Vivia pedindo que lhe contassem a história de tudo – do tapete, do cuco, do armário. Quando soube que Pedrinho, o outro neto de Dona Benta, estava para vir passar uns tempos no sítio, pediu a história de Pedrinho. – Pedrinho não tem história – respondeu Dona Benta rindo-se. – É um menino de dez anos que nunca saiu da casa de minha filha Antonica e, portanto, nada fez ainda e nada conhece do mundo. Como há de ter história? – Essa é boa! replicou a boneca. – Aquele livro de capa vermelha da sua estante também nunca saiu de casa e, no entanto, tem mais de dez histórias dentro. (Lobato, 1988, p. 32) Mesmo ao serem apresentadas situações de oralidade, não deixa de ser ressaltada a importância do livro como princípio da cultura. É sempre a partir de uma leitura que Dona Benta dá vida às histórias que conta. Mesmo sofrendo, sua narrativa, mudanças em função de sua forma própria de leitura do texto, é a partir 58 do texto escrito – que desenvolve e/ou registra e resgata as narrativas – que ela conta a história ao grupo. A criança inicia seu aprendizado a partir de sentidos anteriores aos da visão: aprende a respirar e, aos poucos, troca um modo de viver por outro, percebendo novas realidades pelo tato, olfato, paladar etc. Adapta seus instintos às condições que o meio lhe oferece, estabelecendo, desse modo, relações de sentido com o outro e com o mundo. Acrescenta mais tarde, a essa vida quase sensitiva, o mundo da linguagem oral e, depois, o da escrita que a primeira palavra inaugura. E ler significará para sempre o ato de compreender, estabelecer relações inicialmente individuais com cada objeto ou ser que nomeia, ampliandoas mais tarde, momento único no qual a criança está fascinada pelo mistério dos signos e supostamente pelo encantamento do texto, que deveria possibilitar além da decodificação uma forma de se conhecer e reconhecer a realidade. Lendo, a criança identifica-se com o mundo, assumindo inúmeras vezes o papel da personagem, podendo ressignificar ou não a sua realidade. A leitura é uma maneira de conhecer o mundo, e a literatura é uma forma simbólica de conhecimento do real. Conseqüentemente, a leitura propicia respostas para seus questionamentos: “para criança o livro é todo um mundo [...] Ainda acabo fazendo livros onde nossas crianças possam morar” (LOBATO apud ARROYO, 1988, p. 205). Vânia Maria Resende (1983, [s.p]) acrescenta: Na infância, a leitura deve guardar uma finalidade lúdica, porque é essencial a convivência recreativa com estórias e poemas, a fim de se ativar o potencial do imaginário infantil pelo potencial de inventividade dos textos literários. É conveniente que esses textos sejam impregnados de surpresa, liberdade de atitudes das personagens, saídas originais por parte do escritor, para estimular a percepção da criança e a sua conduta após a leitura. Letras e palavras representam para a criança instrumentos que poderão levá-la a respostas para além de seus significados. São resultados que agem expressivamente, aprofundando na criança a consciência de si mesma e, também, auxiliando-a na aquisição de competências para decodificação dos símbolos que se apresentam para ela numa realidade determinada. Acrescenta, ainda, a autora que o contato com a arte literária possibilita um olhar mais sensível e perceptivo para o mundo exterior. Ao entrar em contato com 59 um universo ficcional, a criança toma consciência de seu poder de criação e se reconhece como alguém que pode modificar, ainda que ficcionalmente, a história e o mundo (RESENDE, 1983 [s/p]). O encontro com o espaço que a fruição da palavra favorece permite o encontro do ser com a fantasia, com o maravilhoso e também consigo mesmo, em suas múltiplas dimensões. Benjamin (2002), analisando a leitura, salienta que, ao entrar em contato com a leitura, mais propriamente com o conto maravilhoso, “a criança torna-se produtora de sentidos, ressignificando a história”, surgindo, a partir desses jogos de percepção, um olhar mais crítico para o contexto inaugurado pela reinterpretação. Ao ler, a criança, reescreve e recria. A leitura pode ser entendida como o estabelecimento de uma relação dinâmica que vincula a linguagem à realidade. A criança consegue lidar com os conteúdos do conto maravilhoso de maneira tão soberana e descontraída como o faz com retalhos de tecidos e material de construção. Ela constrói seu mundo com motivos do conto maravilhoso ou pelo menos estabelece vínculos entre os elementos do seu mundo. (BENJAMIN, 2002, p. 58) Cada palavra carrega sua história, história aberta a novas aventuras, o que faz de cada leitor/ouvinte um recriador, capaz de retomá-la, de revesti-la de novas nuances e emoções e de perceber nela a soma de linguagens e de momentos que traduz. Nesse sentido, a leitura favorece a auto-percepção, a percepção do outro e influencia na formação da consciência e da cidadania. Ler pressupõe inteirar-se, integrar-se e interagir com o mundo e com o mundo do leitor. Tal afirmação encontra respaldo em Paulo Freire (2003 p. 11), que diz que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente”. Despida de sua neutralidade e atuando num processo de subversão do estabelecido, pode ser utilizada para a abertura, o encontro com o outro e consigo mesmo, para a efetivação do processo de conhecimento e o respeito às individualidades. Outro aspecto de extrema relevância é o da leitura como reprodutora do status quo, que leva ao empobrecimento criativo, resultado da passividade obediente, e ao esvaziamento da consciência crítica; esta, por ser incompatível 60 com a alienação, poderia propiciar rupturas. Nessa situação, a leitura apresentase paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que é democrática, pode tornar-se instrumento de exclusão. É importante ressaltar que o ensino de literatura, vista como elemento que estimula o imaginário, a criação, a fantasia e a multiplicidade da linguagem, ajudando dessa forma na elaboração e percepção da realidade, tem-se dado de maneira estereotipada, limitando a relação do texto com o leitor. Esse enfoque é reforçado por Osman Lins que, em seu livro Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros (1977), denuncia que a didatização dos textos literários na escola contribui para que a literatura se torne fragmentada e sem significado. Sendo assim, muitos dos alunos têm nos livros escolares seu primeiro e muitas vezes único contato com a literatura e o único meio de chegar a conclusões sobre o que são as letras e os escritores. Evita-se o texto, substituindo-o por resumos, enredos, caracterização de períodos e/ou biografias, e, em decorrência disso, afasta-se o leitor do livro. O aprofundamento da leitura em sua multiplicidade de possibilidades é capaz de oferecer ao homem contemporâneo grande conhecimento quando somado à construção de sua história, perseguindo o objetivo maior de torná-lo senhor de seu próprio desenvolvimento e, como Riobaldo,9 consciente de que o homem é um permanente aprendiz. É preciso que os educadores encontrem a melhor maneira de fazer da leitura uma forma de diálogo incessante com o processo de transformação. Com base nessa convicção, acredito que ensinar a ler ultrapassa os limites pedagógicos e técnicos do ensino, consiste na formação de sujeitos que, além de saberem ler e escrever, são capazes de criar, re-criar, imaginar, ressignificar e pensar, atitudes que contribuem para a construção de suas identidades, seja por meio dos questionamentos acerca do mundo ou da busca de soluções para problemáticas individuais e/ou coletivas. Também aqui, na valorização da palavra escrita e do hábito de leitura que permeia suas narrativas, encontramos o gesto de abrir as cortinas, não só para o 9 “O Senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior” (ROSA, 1979, p. 20). 61 conhecimento, mas também para o mundo da ludicidade e do encantamento que caracteriza a obra de Monteiro Lobato. Lobato também reconhecia a língua como um instrumento social, e em suas narrativas utilizava uma linguagem que era acessível a todos. Preocupavase em superar a dualidade social entre a língua escrita e a falada, a linguagem da cidade e a do campo. Por meio de neologismos e metáforas, reproduzia a linguagem oral do homem do campo, dando-lhe significado literário, acreditando que “a tarefa do escritor de um determinado país é levantar um monumento que reflita as coisas e a mentalidade desse país por meio da língua falada” (LOBATO apud LANDERS,1988, p. 76). Considere-se que as palavras não são neutras. Elas não só revelam a imagem que traduzem como estão impregnadas pelo momento histórico-social que lhes deu significado. Além do sentido que trazem de seu nascedouro, vão-se contaminando com os novos usos que delas fazem os grupos sociais, profissionais, confessionais, culturais, ou seja, a comunidade, a política, as religiões, a mídia, enfim, o ser humano em seus múltiplos papéis. Em razão desse movimento permanente – o que faz da língua um organismo de expressão social, enquanto certas palavras deixam de ser usadas, outras são criadas e outras tantas adquirem novos significados. 3.4 Reinações de Narizinho Narizinho Arrebitado é a porta de entrada para o mundo de encantos e aventuras que Lobato vai desenvolver nas histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo. A partir desse portal, toda uma nova aventura está reservada ao público infantil. Monteiro Lobato, em sua obra literária, ao mesmo tempo, registra o imaginário coletivo e o impulsiona com as novas idéias sobre infância nessa obra presentes. Da mesma forma, registra as idéias sobre infância que existiam nos segmentos sociais que constituíam o Brasil arcaico. Observar o universo lobatiano é recuperar um pouco o encontro do escritor com essa profusão de idéias e impulsos de mudanças que era o Brasil, e especialmente São Paulo, no começo do século vinte. Muitas das personagens que fazem as histórias do Sítio – como, 62 por exemplo, o tio Barnabé – parecem saídas desse caldeirão para as páginas do livro, onde vão iniciar os netos de Dona Benta na cultura popular brasileira. Especial atenção merece a relação linguagem/mundo presente em suas narrativas. Monteiro Lobato demonstra particular interesse pela linguagem, para que ela seja limpa e clara – sem estar presa a gramatiquices ou academicismos – ou seja, uma linguagem expressiva, capaz de reproduzir a vida em movimento. Suas personagens brincam com as palavras, como se evidencia não só em Emília no País da Gramática, mas em muitos momentos em que histórias são apresentadas aos pequenos por meio de leituras ou narrativas orais. Narizinho é a criança-símbolo de outras tantas crianças que com ela vão mergulhar na aventura lobatiana. Lúcia personifica muitas crianças e Lobato faz questão de mantê-la assim durante toda a sua narrativa. Ela sonha com príncipes encantados e castelos. Fantasia e imagina o tempo inteiro. E dá vida a todos os seres: a boneca, o peixe, a vespa etc. Narizinho conversa com sua boneca e os animais; assim o fazem muitas crianças absortas em suas imaginações. Essa menina, Monteiro Lobato presenteou com a boneca feita de retalhos, tagarela e curiosa, que lhe apontaria caminhos de descoberta, mesclados de encanto e de conhecimento, provando que estes não se excluem, pelo contrário, somam-se na leitura do mundo. Aponto Narizinho como representante da infância lobatiana, justamente por perceber a ambigüidade existente na obra de Lobato. Mesmo vendo a infância a partir de uma concepção de natureza infantil homogênea e romântica, Lobato percebe e respeita a sensibilidade da criança, evidenciado assim, a consideração que o autor tinha com seu público infantil, o carinho pela criança, a certeza de que a criatividade é fundamental para a formação da personalidade. Um aspecto de extrema importância é o uso de uma linguagem própria, lúdica, que vai muito além dos discursos narrativos. O narrador de Lobato, inúmeras vezes, escreve como se fosse uma criança relatando uma história. Somente quem tem respeito pela imaginação, pela fantasia e pelas crianças conseguiria fazer tal descrição, como podemos perceber na seguinte passagem: Após serem aprisionados pelos macacos, Emília convence o Rei-Sol que seu alfinete de pombinha é um passaporte e, portanto, ela poderia por ali passear. O rei, que desconhecia tal objeto, deixou-se convencer pela boneca e decidiu soltá-la. Os guardas começaram a desamarrar Emília. Enquanto isso Pedrinho achou jeito de lhe dizer na linguagem do P, que 63 os macacos não entendem: Apavipisepe Pepenipinhapa quepe espestapamospos naspas upunhaspas despestapa hoporrenpendapa mapacapacapadapa. (Avise Peninha que estamos que estamos nas unhas desta horrenda macacada). (LOBATO, 1988, p. 275) No resumo dos contos que compõem a obra Reinações de Narizinho que apresento a seguir, busco retomar essas personagens e trazê-las para dentro da discussão que, a partir delas, me propus desenvolver. Acompanhar sua trajetória e suas peripécias vai me permitir apresentar o panorama em que me debruço para melhor ouvir suas vozes e o significado delas para a criança brasileira e para aqueles que fazem da criança o foco de seu olhar. 3.4.1 Narizinho arrebitado O livro conta a história de uma menina chamada Lúcia, a quem todos chamavam de Narizinho Arrebitado (por causa de seu nariz empinadinho) que vivia em companhia de sua avó Dona Benta, Tia Nastácia e de sua boneca de pano Emília. Narizinho amava aventurar-se pelo sítio e aonde quer que fosse arrastava sua boneca junto, passava seus dias brincando, subia em árvores colhia frutas nos pés, corria atrás dos bichos, mas o que ela mais adorava era deitar-se à beira do rio e, foi justamente lá que em uma tarde num breve cochilo ela recebeu a inesperada visita do Príncipe Escamado. O Príncipe, por sua vez, convidou-a para conhecer o reino das águas claras com a promessa de que lhe apresentaria o Doutor Caramujo, um sábio médico que faria com que a boneca de pano falasse. Quando lá chegaram, Narizinho e o Príncipe passearam por todo o palácio. A menina conheceu os ilustres moradores do reino das águas, viu polvos, enguias, baleias, uma infinidade de belas coisas, e tudo lhe pareceu maravilhoso. Sentiu-se importante na companhia de tão estimado Príncipe e encontrou até mesmo a Dona Baratinha. Isto obviamente causou um incidente, pois ambas não simpatizavam nem um pouco uma com a outra. Narizinho tinha aversão à maneira como a empertigada barata contava suas histórias. Em meio a tanta novidade, foi apresentada à Dona Aranha, uma encantada e encantadora costureira e suas seis filhinhas, conhecendo seu ateliê de costura. 64 Dona Aranha era a melhor costureira do reino e a ela cabia fazer os vestidos das princesas e rainhas. Por fim, após tantas aventuras, conseguiu que o Doutor Caramujo desse a pílula falante a Emília, que imediatamente começou a falar. A partir desse dia a vida da menina não seria mais a mesma. Narizinho considerou aquele o melhor passeio de sua vida e teria ficado no reino para sempre, não fosse pelo berro da Tia Nastácia, que ecoava lá fora dizendo que a avó estava chamando... 3.4.2 O noivado de Narizinho Muito tempo passou desde a ida de Narizinho até o Reino das Águas Claras, e com isso o príncipe Escamado ficou extremamente triste, desejando a volta da menina. Ele adoeceu e foi diagnosticado de amor recolhido e que somente ficaria curado com o casamento. Tomaram, assim, todas as providências: chamaram a Senhora Lula, que é a escrevente do Mar, e encomendaram uma carta com o pedido de casamento para que fosse levado pelos peixinhos escoteiros até o sítio. Pedrinho foi quem encontrou a carta e entregou para Narizinho, que aceitou de imediato. A partir daquele dia, os noivos corresponderam-se com muita freqüência, até o dia em que Narizinho voltou ao Reino da Águas Claras acompanhada por Emília, Pedrinho, Visconde e Rabicó. Narizinho e Emília ficaram às voltas com os vestidos da festa; enquanto isso, os outros iniciaram sua expedição pelo Reino das Águas Claras e assim, como a menina, ficaram encantados com tudo o que viram por lá. Emília, por sua vez, falou sem parar, sempre questionando tudo e todos. Visconde, como um bom estudioso, interessa-se pelas novidades. Todavia, como tudo é muito diferente do sítio em que vivem, os desbravadores se metem em algumas confusões. Um bom exemplo é o dia em que Rabicó, faminto, confundiu um tentáculo de um polvo com uma mandioca ou ainda quando ocorreu o sumiço da coroa do Príncipe Escamado, o que gerou uma imensa confusão. Os cinco tiveram de voltar correndo para o sítio. 65 3.4.3 Aventuras do príncipe Após a expedição ao Reino da Águas Claras, Narizinho e Emília encontraram o Gato Félix, que, de acordo com a menina, era um gato muito inteligente e reinador. Ele lhes disse que estava a percorrer o mundo para descobrir que país possui o rato mais gostoso. Félix informou também que o Príncipe Escamado estava vindo até o sítio para visitar-lhes. Com a chegada do príncipe e sua comitiva ao sítio, Dona Benta e Tia Nastácia ficaram muito assustadas e não quiseram deixar que eles entrassem na casa. O que foi inútil, pois com a ajuda de Pedrinho a casa logo estava cheia de peixes, conchas, caranguejos e os mais variados e estranhos bichos do fundo do mar, e foram logo se apresentando, causando grande espanto nas duas senhoras. Recuperada do susto inicial, Dona Benta entrosou-se com o doutor Caramujo. Tia Nastácia, por sua vez, fugiu para a cozinha, seguida por uma sardinha curiosa. A visita inusitada daqueles seres marinhos prosseguiu normalmente. E, assim como os visitantes do sítio fizeram em seu reino, o Príncipe Escamado, acompanhado de Narizinho, quis conhecer o sítio. Em seu passeio, ficou impressionado com a vaca mocha e queria levá-la para seu reino. Contudo, a boa impressão acabou no momento em que a vaca mugiu, pois o pobre príncipe levou um susto que só foi maior quando retornou para a casa e descobriu que Miss Sardine (a sardinha que grudou em Tia Nastácia) havia mergulhado na frigideira de gordura pensando que fosse uma lagoa e ficou “fritinha da silva”. 3.4.4 O Gato Félix Com a partida do príncipe Escamado, o Gato Félix tornou-se o centro das atenções e passava as noites contando histórias fantasiosas sobre seus antepassados que, segundo ele, haviam sido todos ilustres personagens dos mais diversos acontecimentos. Gato Félix afirmava ser um “cinqüentaneto” do Gato de Botas, que era um escudeiro do Marquês de Carabas. Seu avô, por exemplo, viera para a América junto com Cristóvão Colombo. As aventuras em diversos 66 países e as descrições feitas pelo gato deixavam todos muito curiosos, pois eram permeadas de detalhes verídicos. O Gato Félix explicou-lhes que estava, assim como seus antecessores, à procura do lugar “onde o Demo perdera as botas”. 3.4.5 Cara de coruja Enquanto estavam no reino da águas claras aguardando pelas pílulas do Doutor Caramujo que haviam desaparecido, Emília foi seqüestrada. Tão logo deu por sua falta Narizinho sai a sua procura e a encontra toda arranhada e desacordada. Todos no reino ficaram perplexos com tamanha brutalidade, mas como a boneca sofria de “mudez” somente descobririam o criminoso quando ela estivesse falando. Doutor Caramujo, que havia perdido suas pílulas propõe que matem um papagaio falador do reino para tirar sua “falinha” e colocar dentro da boneca. Narizinho, chocada com a proposta, pois considerava um crime matar qualquer animal, diz que prefere a mudez de Emília ao sacrifício do papagaio. O problema é resolvido quando o sapo Major Agarra procura pelo médico pedindo que ele abra sua barriga para tirar umas pedras que havia engolido. Para felicidade de todos não eram pedras, mas sim as pílulas falantes. Após darem uma das pílulas a Emília, ela desandou a falar e relatar a sua maneira que foi Dona Carochinha que a seqüestrou e bateu em sua cabeça deixando-a desacordada até que o “Doutor Cara de Coruja” lhe deu a pílula. Narizinho tratou logo de corrigi-la dizendo: Doutor Caramujo Emília! Doutor CARA DE CORUJA. Só acordei quando o doutor CARA DE CORUJÍSSIMA me pregou um liscabão. Beliscão. Emendou Narizinho pela última vez [...]. (LOBATO, 1988, p. 28.) E esse passou a ser o pior dos xingamentos de e para Emília. 3.4.6 O Irmão do Pinóquio 67 Logo após ouvir Dona Benta contar a história do Pinóquio, Emília convence Pedrinho a procurar um pedaço de pau vivente para que, assim como Gepeto, pudessem construir um boneco falante. Esse seria, então, o irmão de Pinóquio. Ela pede que o menino lhe dê seu cavalinho de pau. Após procurar durante uma semana inteira pela mata, Pedrinho questiona Emília sobre a veracidade da história. A boneca, com medo de perder seu já afeiçoado cavalinho de madeira, pede ajuda a Visconde. O sabugo, que sempre se deixava levar por tudo que ela dizia, escondeuse em um buraquinho de um tronco de árvore e, no momento em que Pedrinho deu uma machadada no tronco, soltou fortes gemidos. Feliz com seu achado, o menino levou uma grande lasca do tronco para casa e lá decidiram, por meio de um concurso (era um sítio bem democrático), que Tia Nastácia faria o boneco, o que resultou em grande desastre, mas democracia é democracia. Além da aparência do boneco, “que mais parecia um monstro”, ele continuava “mudinho da silva”, para decepção de Pedrinho. Emília apenas lançava olhares furtivos para Visconde (ambos loucos para cair na gargalhada). O tempo passou e nada de João faz-de-conta falar. Esse nome foi escolhido por Emília, que era a “botadeira de nome” do sítio e justificou sua escolha da seguinte maneira: – João, porque ele tem cara de João. Todo sujeito desajeitado é mais ou menos João. E, Faz-de-Conta, porque só mesmo fazendo de conta se pode admitir uma feiúra desta. Faz-de-conta que não é feio. Faz-deconta que não tem ponta de prego nas costas. Faz-de-Conta que... (LOBATO, 1988, p. 206) O boneco já tinha nome, contudo ainda não falava. Então Pedrinho, depois de dar ouvidos à idéia do sábio Visconde, passou três dias assoprando no nariz do boneco para que ele vivesse, o que resultou apenas em uma bochecha inchada. Isso foi a gota d’água, e ele decidiu jogar o pedaço de madeira em cima de um armário. “Após brigar com Emília, Pedrinho saiu indignado para floresta e deu de cara com o tronco gemedor (pai de João-faz-de-conta) e para sua surpresa encontrou dentro de um buraco uma cartolinha...” (LOBATO, 1988, p. 202). Mas isso é outra história! 3.4.7 O circo de escavalinhos 68 Após mais um concurso para ver quem tinha melhor idéia, Emília venceu com a idéia de montar um “círculo de escavalinho”. Dona Benta tentou explicar para a boneca que o correto é “circo de cavalinhos”. Inutilmente, é claro, devido à teimosia de Emília, que decidiu pôr “circo de escavalinho”. A todos designou papéis para atuar no circo: Pedrinho seria o diretor; Emília seria a dama que corre no cavalo e pula os arcos; João-faz-de-conta, o engolidor de espadas e fogo; e Visconde seria o palhaço. Para isso, decidiram chamar o doutor Caramujo e lhe pediram que operasse o sabugo, tirando de dentro dele o conhecimento e a ciência que o deixavam sem graça. Após retirarem toda a álgebra, enfiaram dentro dele umas anedotas e lhe deram uma roupa bem espalhafatosa. Iniciaram as vendas das cadeiras, a construção do circo, arranjaram um cachorro para impedir furões de entrar, discutiram, ensaiaram e discutiram de novo até que chegou o dia da apresentação. Os mais ilustres convidados apareceram: Doutor Caramujo, Dona Aranha e suas seis filhinhas, os dois Bernardos Eremitas, os siris couraceiros, o Major Agarra, o Gato Félix, Aladino, a Menina da Capinha Vermelha, Rosa Branca, Rosa Vermelha, Ali Babá e os quarenta ladrões até o Barba Azul, mas foi colocado para correr pelo guardião canino de Pedrinho. Todos vieram, exceto o Príncipe Escamado, o que deixou Narizinho muito triste. Mas o espetáculo tinha que começar e não era hora para tristezas. Emília montadinha em seu cavalinho de pau, João-faz-de-conta engolindo espadas e Rabicó disfarçado de elefante deram um show à parte, levando todos às gargalhadas e tornando o espetáculo um verdadeiro fiasco. Só o Visconde não apareceu, pois graças a umas letrinhas para semente esquecidas dentro dele pelo Doutor Caramujo, o velho Sabugo voltou aos seus livros: “Não há nada mais perigoso do que a semente da ciência” (LOBATO, 1988, p. 245). 3.4.8 Pena de papagaio “O mundo das Maravilhas é velhíssimo. Começou a existir quando nasceu a primeira criança e há de existir enquanto houver um velho sobre a terra” (LOBATO, 1988, p. 250). 69 Em cima de uma goiabeira, Pedrinho pensava nas histórias contadas por Dona Benta. Pensando particularmente em Peter Pan, o menino que nunca quis crescer, Pedrinho também não queria crescer e, para seu desapontamento, ele estava crescendo. Foi justamente em meio a esses pensamentos, trepado na árvore, que Pedrinho ouviu uma vozinha e descobriu um novo amigo, invisível desta vez! Para sua surpresa, o amigo disse que iria ensiná-lo a ser invisível como ele. Para isso, ele precisaria merecer e, como prova, ambos teriam de viajar pelo Mundo das Maravilhas. Pedrinho convidou Narizinho, Emília e seu fiel escudeiro Visconde e, na manhã seguinte, eles foram até o local combinado e encontraram o ser invisível. Por não conseguirem enxergá-lo, Pedrinho sugeriu que ele amarrasse uma peninha na cabeça. Era uma pena de papagaio, que Emília trazia em meio a suas tranqueiras, assim a pena flutuante indicaria sua presença. Para que pudessem partir, tiveram de fazer uso do pó de pirlimpimpim: Deu uma pitada a cada um, e mandou que o cheirassem. Todos o cheiraram sem espirrar, porque não era rapé. Só Emília espirrou. A boneca espirrava com qualquer pó que fosse desde o dia em que viu 10 Tia Nastácia tomar rapé. Assim que cheiraram o pó de pirlimpimpim, que é o pó mais mágico que as fadas inventaram, sentiram-se leves como plumas, e tontos, com uma zoeira nos ouvidos. As árvores começaram a girar-lhes em torno como dançarinas de saiote de folhas e depois foram se apagando. Parecia um sonho. Eles boiavam no espaço como bolhas de sabão levadas por um vento de extraordinária rapidez. Ninguém falava nem podia falar, a não ser a boneca, que em certo ponto gritou: Preciso de mais pó, Peninha! Sinto que estou caindo! (LOBATO, 1988, p. 256) Ao chegarem ao País das Fábulas, encontram o senhor de La Fontaine, que tanto já tinham ouvido falar das histórias de Dona Benta. Ao vê-lo, perceberam que ele acompanhava, de lápis na mão, uma discussão entre um lobo e um cordeiro. Algum tempo depois, viram também uma cigarrinha tuberculosa pedindo guarita a uma formiga. Esta, por sua vez, a destratou e fechou a porta em sua cara, o que deixou Emília muito brava. A boneca aqueceu e alimentou à cigarra e então as duas, cigarra e boneca, partiram para o contra ataque: Emília mandou que a cigarra batesse na porta outra vez. A cigarra obedeceu, batendo três toc-tocs. Veio a formiga espiar quem era. Dando 10 Rapé, segundo o Dicionário Aurélio (p. 681), é tabaco em pó para cheirar. 70 com a mesma cigarra, disse-lhe um grande desafora e já lhe ia batendo com a porta no nariz outra vez, quando Emília a agarrou pela perna seca e a puxou para fora. Chegou tua vez malvada! Há mil anos que a senhora me anda a dar com essa porcaria de porta no focinho das cigarras, mas chegou o dia da vingança. Quem vai levar porta no nariz és tu, sua cara de coruja seca! (LOBATO, 1988, p. 265.) La Fontaine interveio, obviamente a formiga já tinha recebido o que merecia. Após esse incidente, as crianças e o fabulista continuaram seu passeio pelo Mundo das Maravilhas. Encontram por lá Esopo, o primeiro fabulista, vestido com roupas características da Grécia Antiga, e Emília, só para variar, imaginou que o pobre homem estivesse enrolado em uma toalha. Todos acharam muita graça e retomaram seu passeio, encontrando as personagens das mais diversas fábulas. Interferiram nas histórias, salvaram o burro falante das garras do leão, ficaram aprisionados no País dos Macacos, conheceram o Rei-Sol, conseguiram fugir com ajuda do Peninha e, por fim, chegaram ao sítio para jantar. 3.4.9 O pó do Pirlimpimpim Dona Benta e Tia Nastácia já estavam aflitas com a demora das crianças quando, de repente, depararam-se com eles na garupa de um burro. Emília estava no bolso de Narizinho e o Visconde, para espanto das senhoras, vinha pendurado em uma peninha voadora. Espanto maior só o de Tia Nastácia ao descobrir que o burro realmente falava. Pedrinho relatou à Dona Benta seu encontro com La Fontaine, deixando-a muito entusiasmada. Decidiram, então, levá-la junto na próxima aventura pelo País das Fábulas, tudo tinha de ser bem escondido para que Tia Nastácia não pensasse que Dona Benta estava caduca. Montados no burro, deram o pó de pirlimpimpim para boa avó cheirar: Não é fácil lidar com o pó de pirlimpimpim. A gente tem de cheirá-lo na quantidade certa, nem mais nem menos, senão vai para lá ou para cá do ponto que pretende alcançar. Pedrinho, sem prática ainda errou na dose, deu-lhes pó demais, de modo que foram parar numa terra muito diferente do país das Fábulas. Em vez do lindo campo de veludo verde, cortado pelo rio à beira do qual os fabulistas tinham ficado a discutir a origem das fábulas, acharam-se num verdadeiro deserto africano com enormes rochas negras dum lado e o mar do outro. Nem floresta, nem vegetação nenhuma além de duas árvores gêmeas a cuja sombra o burro parara. (LOBATO, 1988, p. 288) 71 Foram parar nas terras das Mil e uma noites, e aquilo que pensavam ser as árvores eram justamente as patas do gigantesco Pássaro Roca. Com ajuda do Barão de Munchausen, eles salvaram o burro falante das patas da furiosa ave. Após árdua batalha, a ave fugiu e eles descobriram que o Visconde de Sabugosa estava morto; ficaram tristes, mas tinham a certeza de que Tia Nastácia iria consertá-lo. Ela sempre arrumava tudo! Cansados de mais esta aventura, foram todos para o castelo do Barão. Dona Benta achou sua primeira aventura muito complicada e quis voltar para o sítio, mas o pó do pirlimpimpim não funcionou, pois ficou molhado durante a luta de Pedrinho para tirar o burro falante da água. Foi então que Emília mandou que todos fechassem os olhos com muita força: Instintivamente todos obedeceram. Fecharam os olhos com toda a força como a gente faz nos sonhos quando vai caindo num precipício. Ficaram um minuto assim. Quando de novo abriram os olhos... estavam no sítio outra vez, perto da porteira! Dona Benta respirou aliviada e assoprou várias vezes, como quem está ressuscitando... (LOBATO, 1988, p. 302) Felizmente, os viajantes retornaram para o sítio sãos e salvos: “Fim da aventura e fim das férias de Pedrinho. O menino despede-se de todos e volta para cidade” (LOBATO, 1988, p. 304). 3.4.10 Peter Pan Essa narrativa tem seu início quando as crianças, na sala em que costumavam ouvir as histórias contadas por Dona Benta, tendo ouvido falar de Peter Pan, perguntam à avó quem é essa personagem. Dona Benta, então, escreve a uma livraria de São Paulo pedindo que lhe mandem a história. Dias depois, recebe um livro em inglês, com muitas gravuras coloridas. O título desse livro era Peter Pan and Wendy. Depois de ler o livro, Dona Benta diz entusiasmada: “– Pronto! Já sei quem é o senhor Peter Pan, e sei melhor do que o gato Félix, pois duvido que ele haja lido esse livro” (LOBATO, 1988). Dona Benta, “leitora culta e conhecedora de outra língua, traduz o texto em inglês não apenas para o português, mas para uma linguagem simplificada e oralizada, mais compreensível às personagens do Sítio e às crianças brasileiras” (idem). 72 Peter Pan provoca grande entusiasmo nos pequenos, que estabelecem uma relação entre a história “Pena de Papagaio” e o Peter Pan, já que em ambas aparecia o pó mágico que os fazia voar. Emília, não contente em apenas comentar os fatos, acaba se misturando com a história que ouvia, “cortando” a sombra de Tia Nastácia, da mesma forma como ouvira Dona Benta falar que a sombra de Peter Pan fora “cortada” pela mãe de Wendy. Assim, começou por cortar a cabeça da sombra de Tia Nastácia, que enrolou e foi guardar no fundo da gaveta A partir daí, todos os capítulos se iniciam com Tia Nastácia reclamando da diminuição de sua sombra que, a cada dia, tinha uma de suas partes cortada. Esse desaparecimento da sombra de Tia Nastácia deixava todos os demais intrigados, até que, no último capítulo, o Visconde descobre ser Emília a autora do roubo. Quando Dona Benta finaliza a história e narra a derrota do Capitão Gancho por Peter Pan, desperta os maiores entusiasmos: – Bravos! exclamou Pedrinho. Eu sabia que ia suceder isso. Menino protegido pelas fadas acaba sempre vencendo... Tia Nastácia arregalou os olhos. – Credo! Imaginem um menino desses aqui no sítio! Era capaz até de serrar o chifre do Quindim... (LOBATO, 1988) Interessante é notar como os ouvintes vão-se apropriando da história narrada aos poucos. Ao final, todos demonstram o desejo de que Peter Pan venha visitá-los. 3.5 A Imaginação em Lobato “A imaginação não é um estado. É toda a existência humana” (WILLIAM BLAKE apud HELD, p. 19). Segundo o Aurélio, imaginário é um adjetivo que designa o “que só existe na imaginação”; o “ilusório”; o “fantástico”. Na sua forma substantiva, designa “quem faz estátuas”, o “santeiro”. O verbo imaginar designa, de maneira geral, algumas formas de pensar; mais precisamente significa “construir ou conceber na imaginação; fantasiar, idear, inventar”. O substantivo é imaginação, a qual 73 designa a “faculdade” de “representar imagens”, de “evocar imagens de objetos que não foram percebidos”, a “fantasia”. Angel Pino11 diz que a palavra imaginário, que é diferente de imaginação, tem uma relação etimológica com o termo imagem, e que na sua origem tem a ver com a percepção do sensível e não com a atividade racional: [...]. Neste sentido, o imaginário constitui ao mesmo tempo a esfera da produção e a força que torna a produção humana possível [...] Se aceitarmos designar pelo termo “imaginário” a fonte do poder criador do ser humano, então a função imaginária ou função de imaginar é a possibilidade permanente do homem de realizar ações criadoras. Portanto, a produção imaginária é resultado da atividade criadora, que consiste em criar novas imagens ou ações, ou ainda, em combinar de forma nova aquelas já vividas, resultantes da reprodução que consiste em reviver ou rememorar experiências passadas gerando assim a memória. Held (1977) afirma com muita propriedade que a imaginação, assim como a inteligência ou a sensibilidade, é cultivada ou se atrofia. Portanto, a imaginação de uma criança deve ser estimulada, e a leitura é um instrumento em potencial para caracterizar o elo entre real e imaginário. A ficção, reforça a autora, se assemelha a um brinquedo e responde a uma necessidade muito profunda da criança: a de não contentar-se com a própria vida. O livro é um segundo caminho, como o sonho, mas o sonho que dura, pois sendo legível, tem o poder de se repetir. Ao me representar eu me crio, ao me criar eu me repito. Donde a evidência de que a imaginação é tanto o instrumento da criação quanto da experiência anterior, donde a necessidade de reconhecer que o imaginário é o motor do real, o que o movimenta. (HELD, 1977, p. 18) Por meio da leitura a criança experimenta sensações sobre a condição humana como, por exemplo, a vida, a morte, a amizade o amor e outros. Essas descobertas, diz Held, se dão primeiramente num plano simbólico, proporcionadas pelas lendas e mitos, para em seguida serem decifradas no plano do intelecto: “É a magia do verbo, sob a forma múltipla das sonoridades, ritmos, encantamentos, pequenas fórmulas e qualquer tipo de linguagem selvagem que virá enriquecer, afinar, na criança, as possibilidades imaginativas” (HELD, 1977, p. 207). 10 Em palestra sobre “Real, Imaginário e Simbólico”, ministrada no IV Seminário Educação, Imaginação e Linguagens Artístico-Culturais, 2 a 4 de junho de 2008, PPGE-UNESC. 74 A cada nova descoberta a criança vai se constituindo enquanto sujeito. Por meio do exercício da imaginação é possível a criança superar a fronteira do eu e do não eu, ou melhor, do que é imaginário e do que é real, percebendo-os não como antagônicos, mas sim essenciais para sua formação. Dessa forma, ela toma consciência de si, iniciando assim a construção de sua personalidade. Held (1977, p. 45), aponta também que a criança, ao exercitar sua imaginação, experimenta novas forças: “exercita sua imaginação, assim como exercita seus músculos, ou descobre e constrói, pouco a pouco os mecanismos lógicos”. Os livros de Lobato, ao contrário do sentimentalismo tão em voga na época, são permeados de ironia e humor, apresentando-se como incentivo à liberdade interior, à criatividade e à imaginação, ressaltando, dessa maneira, sua função lúdica e cultural. A obra de Lobato apresenta uma amplitude de possibilidades conseguidas com o faz-de-conta e o imaginário, entendido aqui como representações de imagens e idéias construídas pela linguagem, que retratam uma infância em que a criança é capaz de se misturar com a ficção, alterando-a conforme sua realidade. Narizinho, como já foi dito anteriormente, é o clássico exemplo da criança que se deixa levar pelo imaginário. A passagem abaixo é um claro exemplo da forma como Lobato, por meio das suas personagens, buscava instigar o imaginário do leitor: Assim como no dia em que Narizinho conheceu o príncipe Escamado, ela, como de costume foi passear no ribeirão em companhia de João Faz-de-Conta (o boneco de madeira que fizeram para ser irmão de Pinóquio), sentou-se na raiz do tronco de um pé de ingá e fechou seus olhos e então tudo aconteceu: Recostou a cabeça no tronco e cerrou os olhos, porque o mundo ficava mais bonito quando cerrava os olhos. De todos os lugares que ela conhecia era aquele o mais gostado. Fora ali que vira pela primeira vez o Príncipe das Águas Claras, e era ali que costumava pensar na vida, resolver seus problemazinhos e sonhar com castelos. O sol ia descambando no horizonte (“horizonte” era o nome do morro atrás do qual o sol costumava esconder-se) e seus últimos raios vinham brincar de acende e apaga brilhinhos na correnteza. Volta e meia um lambari prateava o ar com um pulo. De repente Narizinho ouviu um bocejo – ahh! Olhou... Era Faz-de-Conta que se espreguiçava, como quem sai de um longo sono. Achando aquilo a coisa mais natural do mundo, a menina apenas disse: – Ora graças! Eu tinha certeza de que os ares do ribeirão fariam você mudar. 75 – Eu sou sempre o mesmo – respondeu o boneco. – Não mudei. Não mudo nunca. Quem muda são vocês, criaturas humanas. Você mudou muito Narizinho. – Como isso? – exclamou a menina franzindo a testa. – Estou no que sempre fui... – Parece. Tanto mudou que está entendendo a minha linguagem e vai ver coisas que sempre existiu neste sítio e, no entanto você nunca viu. Olha lá! A menina olhou para onde ele apontava e realmente viu um bando de lindas criaturas, envoltas em véus de finíssimo tule, dançando por entre as árvores do pomar. No meio deles estava um ente estranho, de orelhas bicudas como as de Mefístófeles, dois chifrinhos na testa e cauda de bode. Soprava músicas numa flauta de Pã, isto é, uma flauta feita de canudos incões, tal qual a casa de barro que uma das vespas chamadas “Nhá Inacinhas” haviam feito na parede do fundo da casa de Dona Benta. (LOBATO, 1988, p. 213) A personagem Emília, por sua vez, é o retrato da criança que quer inverter a ordem do mundo real pela imaginação. A boneca diz o que quer quando quer e como quer reinventando o português, resignificando as histórias ao seu modo: Era uma vez um “rei”, um “príncipe” e uma “fada”, que moravam juntos num lindo palácio de cristal, na beira do lago mais azul de todos. Uma beleza esse palácio, todo cheio de fios de ouro, que quando dava o vento iam para lá e vinham para cá. E quando dava o sol, os cristais e os ouros brilhavam tanto que quem olhava sentia logo uma tontura e precisa agarrar-se a qualquer coisa para não cair. E o príncipe foi e disse: Meu pai: quero casar-me, mas as moças daqui não são bonitas, nem boas de coração. Vou procurar uma pastora bem pobrezinha, mas que tenha coração de ouro. Vai, meu filho disse o rei mas leva contigo a fada do palácio. Sozinho, não te deixarei ir. O príncipe chamou a fada, virou a fada numa bengalinha e virou-se a si mesmo numa formiguinha [...] (LOBATO, 1988, p. 155). Todo mundo, diz Lobato, tem uma Emília em si. A boneca é apontada por muitos estudiosos de Lobato como sendo seu alter ego. Cavalheiro (1955) define Emília como sendo independente e dominadora e diz que nem Lobato consegue dominá-la. Afirma também que “Emília é mais do que um ser humano, é uma idéia, um pensamento”. E continua: “É Lobato criança. Mas é também Lobato adulto. Nela mais do que em qualquer outra personagem, encontra-se o autor. A respeito de tudo Emília pensa de um modo especial. Suas idéias hão de ser sempre novidades” (CAVALHEIRO, 1955, p. 585). Emília tem mania de franqueza. “Nunca viveu em sociedade, e ainda não sabe mentir. Não é como nosso Visconde de 76 Sabugosa que fala, fala e ninguém nunca sabe o que ele realmente está pensando” (idem). Por meio de suas personagens, Lobato deu espaço aos vôos da imaginação, estabelecendo um diálogo com seus leitores por meio da ludicidade e da fantasia, evidenciando o comprometimento e respeito pela infância. A fantasia, como releitura da realidade, o brincar e a interação são permanentes nas narrativas de Lobato. A criança estabelece relação com as personagens, ampliando, dessa forma, seu universo imaginário. O autor possibilita a identificação da criança com o mundo ficcional, brincando dá voltas pelo universo e leva a criança de carona. Utiliza a literatura para formar, informar, brincar e sonhar, possibilitando que a criança perceba as significações múltiplas de um mesmo texto. Tanto os jogos quanto os brinquedos artesanais – como Emília, uma boneca de pano, Visconde de Sabugosa, um sabugo de milho – são elementos importantes nas histórias de Lobato. A brincadeira e o jogo são associados à aprendizagem, ao cotidiano e à vida das crianças. Pois é o jogo, e nada mais, que dá à luz todo hábito. Comer, dormir, vestir-se, lavar-se devem ser inculcados no pequeno irrequieto de maneira lúdica, com o acompanhamento do ritmo de versinhos. O hábito entra na vida como brincadeira. Formas petrificadas e irreconhecíveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro terror, eis o que são os hábitos. E mesmo o pedante mais insípido brinca, sem o saber, de maneia pueril, não infantil, brinca ao máximo quando é pedante ao máximo. Acontece apenas que ele não se lembrará de suas brincadeiras; somente para ele uma obra como essa permanecerá muda. Mas quando um poeta moderno diz que para cada um existe uma imagem em cuja contemplação o mundo inteiro submerge, para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma velha caixa de brinquedos? (BENJAMIN, 2002, p. 101) Recorro aqui a Vygotsky (1994, s/p) quando afirma que, “através do brinquedo, a criança aprende a atuar numa esfera cognitiva que depende de motivações internas”. Nessa fase, ocorre uma diferenciação entre os campos de significado e da visão. A criança poderá utilizar materiais que servirão para representar uma realidade ausente, imaginando e abstraindo características dos objetos reais e se detendo no significado definido pela brincadeira. Veer e Valsiner, em texto dedicado ao pensamento de Vygotsky, argumentam que o brinquedo funciona como um espaço de aprendizagem. Nele a criança assume diferentes papéis e se comporta, muitas vezes, como 77 personagem de idade cronológica maior que a sua, já que nesse espaço coexistem diferentes tendências que vêm a ser transformadas em fonte de desenvolvimento (1996, p. 373). Assim como Vygotsky, Benjamin também considerava a brincadeira e o jogo como experiências fundamentais para a formação das crianças: Não há dúvida que brincar significa sempre libertação. Rodeadas por um mundo de gigantes, as crianças criam, brincando, o pequeno mundo próprio; mas o adulto, que se vê acossado por uma realidade ameaçadora, sem perspectivas de solução, liberta-se dos horrores do real mediante a sua reprodução. (2002, p. 85) O autor aponta ainda que a essência do brincar não é um “fazer como se”, mas “fazer sempre de novo”, e todas as vezes que a criança o faz é como se fosse única: Tudo seria perfeito se o homem pudesse fazer as coisas duas vezes – é de acordo com este pequeno ditado de Goethe que a criança age. Só que a criança não quer apenas duas vezes. Isto não é apenas o caminho para se dominar experiências primárias terríveis, através do embotamento, do exorcismo maligno e da paródia, mas também o caminho para se experimentarem, cada vez mais intensamente, triunfos e vitórias. O adulto, com coração liberto do medo, goza uma felicidade redobrada quando narra uma experiência. A criança recria toda a situação, começa tudo de novo. (BENJAMIN, 1992, p. 101) A psicologia tem-se debruçado sobre a criança e sua relação com o mundo, numa busca por um melhor entendimento da infância. Erikson (1998) define o brincar como sendo uma forma infantil da capacidade humana de lidar com a experiência, ao criar situações-modelo e ao dominar a realidade por meio do experimento e do planejamento e um incentivo à capacidade da criança de cultivar seu auto-conhecimento: “o mundo dos brinquedos em miniatura e o espaço-tempo compartilhado dos jogos podem absorver os sonhos de conquista” (p. 45). As personagens Pedrinho e Visconde são um exemplo da afirmação acima, pois vivem em busca de aventuras, de conquistas e de conhecimento. Emília decidiu fazer um irmão para Pinóquio e pede que Pedrinho lhe de seu cavalinho de pau para que possa concluir seu feito. A grande idéia de Emília não deixou mais a cabeça de Pedrinho. Só pensava em ir à Itália, ver se no quintal do homem que fez Pinóquio não existiria ainda um resto do tal pau. Mas ir como? A pé não podia ser, porque era muito longe e teria de atravessar o oceano. De navio também não, porque Dona Benta tinha um medo horrível de naufrágios e jamais consentiria que ele embarcasse. Como resolver o problema? 78 Desta vez foi o Visconde quem teve a melhor idéia. Esse sábio estava ficando cada vez mais sabido, depois da temporada que passou atrás da estante, entalado entre uma álgebra e uma aritmética. (LOBATO, 1988, p. 195) O mundo imaginário criado por Lobato retrata um lugar onde quase tudo é possível para as crianças. Os animais falam, os brinquedos têm vida própria, a natureza interage com as personagens, os livros se escrevem e, acima de tudo, a infância é construída a partir das experiências de narrativas, aventuras e mitos. Com uma linguagem vinculada à realidade, transparente e ao mesmo tempo rebuscada, o autor deixava fluir nas páginas de seus livros elementos importantes para a fantasia e o imaginário infantil. Lobato não buscava definições sobre a imaginação. Entendia-a como sendo algo natural da criança: Quando falo às crianças no pó de pirlimpimpim, não há uma só que duvide dessa maravilha. Já o adulto sorri imbecilmente – e tenho de explicar-lhe ao pé do ouvido que “pó de pirlimpimpim” é sinônimo pitoresco do que sem pitoresco nenhum, eles chamam imaginação. (CAVALHEIRO, 1955, p. 600) As crianças de Lobato mostram-se seguras e determinadas. São livres, inteligentes, críticas, estabelecem equilíbrio com a natureza, são alegres e curiosas acerca do que acontece fora do sítio. Os que lá moram, de lá não querem sair, a não ser para aventuras em mundos imaginários e fantásticos. Assim também se sentem os visitantes (leitores). Em minha opinião, é importante pontuar que Lobato apresentava as crianças de maneira universalizante e, talvez, aí esteja a limitação de sua obra, pois as crianças não “são em todos os tempos e lugares as mesmas”. Todavia, a obra Reinações de Narizinho (1921), como dito anteriormente, foi originalmente produzida para utilização no ambiente escolar, surgindo em um momento histórico no qual a criança ainda não tinha seu espaço reconhecido, ela inaugurou novas perspectivas para o texto que então se construía. A narrativa se desenvolvia em uma linguagem acessível, sem artificialismos, e buscava aproximar-se o mais que possível da língua falada, valorizando e reconhecendo a especificidade do leitor infantil. É como se o autor escrevesse sobre e para as crianças a partir de sua própria vivência. Isso pode ser comprovado com a seguinte passagem na qual Cavalheiro relata o momento em que Lobato, aos 50 anos de idade morando em Nova York, relembra sua infância: 79 Na metrópole de aço e cimento-armado, em meio ao bruaá acachapante e milhares de autos e milhões de pessoas estranhas que passam, sentado numa praça acolhedora, em que pensa o homem solitário? Na fazenda, na velha Paraíso, no ribeirão, nos lambaris ariscos, no cavalinho pangaré, no pomar, na rede rangedora, na batida da velha porteira. A infância volta inteira, insubstituível. A primeira entrada na floresta. O circo de cavalinhos. As irmãs. O alpendre. O colo materno... O mundo da criança se reconstitui, sereno, perfeito, e aquilo lhe dá prazer. Um prazer inusitado. Como há tempos não sentia. Ao regressar a casa, fecha-se no escritório, toma os livrinhos largados num canto da estante, relendo-os com infinito agrado. Chega a ficar comovido. Não pensara, até aquele momento, que naquelas historietas o melhor era o seu próprio mundo infantil que meio inconsciente reconstituíra, com a pureza e a inocência que só as lembranças da infância permitiam ao adulto. (CAVALHEIRO, 1955, p. 576) Na obra de Lobato destacam-se características diversas do comportamento e desenvolvimento infantil como, por exemplo, a importância dada à leitura, à busca por conhecimento, à criticidade e ao domínio da linguagem, que é o meio de expressão entre as pessoas feito por meio da fala. Por ela, torna-se possível a organização das atividades mentais, da inteligência, da afetividade e da socialização da criança. 80 CONSIDERAÇÕES FINAIS Viajar no tempo e acompanhar a história da infância proporcionou-me um conhecimento diversificado e uma preocupação mais profunda com a criança, ser social e participativo. Olhar a palavra como elemento capaz de permitir o acesso à história da criança e a literatura como chave que a leva a indagar sobre seu papel na sociedade e despertar nela um olhar crítico me fez atribuir renovado valor aos contos que Lobato elaborou para a criança de seu tempo e de todos os tempos. Reafirmo que a noção de infância não foi sempre a mesma e foi mudando de acordo com a sociedade e a cultura. Na Idade Média, a criança não era vista; somente a partir do século XVIII ela passou a ser reconhecida. A infância passou a ser considerada não apenas uma faixa etária diferenciada, mas também como um período da existência humana com características singulares. Tal reconhecimento se deu de acordo com entendimento que a sociedade tinha sobre a família, sendo a criança vista como miniatura do adulto, incompleto, ou ainda como um ser frágil que precisa de proteção. Essa imagem de infância é refletida no espaço escolar, que se tornou um espaço autoritário e contraditório que pretendia introduzir a criança na vida adulta, mas, ao mesmo tempo, protegê-la do mundo exterior negando-lhe assim, um papel social (ZILBERMAN, 1985, p. 19). Esses conceitos têm prejudicado a relação da criança com o universo social e cultural em que vive e repercutido em sua inserção nesse universo. À escola cabia também reproduzir os valores da sociedade vigente utilizando a literatura para transmitir a norma em vigor. As produções destinadas às crianças brasileiras surgiram com a intenção de moralizá-las e formá-las de acordo com a visão do adulto, ou ainda, de acordo com a visão européia. Monteiro Lobato pretendia romper com esses padrões e criou uma literatura que retratava a realidade da época, valorizando sua nação, estimulando o imaginário e a ludicidade e, principalmente, dando às crianças o papel de protagonistas em seus textos. São essas características que o diferenciam e estabelecem o papel que veio a ocupar na história da cultura brasileira. 81 A figura de Lobato está presente na memória de muitas pessoas, seja por sua crítica às manifestações artísticas na Semana de Arte Moderna, seja por seu trabalho precursor de busca de petróleo em terras nacionais, seja como pioneiro no trabalho de editoração de livros, seja como prisioneiro na ditadura Vargas, seja, principalmente, como criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo, obra que há décadas acompanha o imaginário de nossas crianças. Lobato desenvolveu uma literatura que pretendia inscrever a criança numa perspectiva de educação com uma visão ampla de ser humano, prenunciando, assim, uma nova literatura para esse público leitor. Por meio de uma leitura não apenas decodificativa, pressupunha a busca de respostas para questionamentos diversos. A imaginação e a criatividade sempre presentes nas ações de suas personagens apresentam-se como elementos capazes de motivar o leitor a mergulhar também num espaço de liberdade criativa. A escolha que fiz pela obra Reinações de Narizinho se deu porque suas personagens representam a infância dentro de uma perspectiva criadora, livre e com múltiplas possibilidades, o que acredito ser determinante no processo de educação. As crianças que Lobato apresenta no sítio são co-autoras: interferem, questionam, mudam o enredo e, acima de tudo, mostram-se crianças que, brincando, expressam de modo simbólico suas fantasias, seus desejos e suas experiências vividas. São crianças que se reapropriam do discurso e são consideradas e respeitadas pelos adultos com quem convivem. A obra lobatiana dá voz à criança e asas para alcançar os espaços para onde a imaginação e a criatividade pode conduzi-la. Em Reinações de Narizinho, ocorre a quebra da fronteira entre a fantasia e a realidade, as personagens viajam no tempo e no espaço. As personagens de Lobato transitam pelas lendas do folclore brasileiro, pela mitologia grega pelo mundo das fábulas misturando ficção e realidade e entrecruzando o passado e o presente. Esse mundo mágico, presente nas histórias ali vividas, encontra eco na imaginação infantil. O estímulo ao processo imaginativo, as diferentes manifestações de linguagem, a subjetividade, a unidade e a complexidade vai ao encontro da tentativa de alojar o particular no mundo coletivo. Nesse sentido, a obra lobatiana torna-se contraditória, pois, se de um lado as crianças são 82 mostradas de forma romântica por outro, elas são apresentadas de maneira respeitosa e ao mesmo tempo crítica e, acima de tudo, não são reduzidas a “objetos” da pesquisa, da ciência ou do mercado. Em Lobato o exercício da leitura é um aspecto importante da representação da infância. O incentivo à leitura participativa como experiência coletiva e autoral e como forma de encontro com o lúdico e também de descoberta do conhecimento – que atravessa toda a obra de Lobato – é tarefa que cabe a todos os que se permitem olhar para a criança com respeito por sua subjetividade, suas características próprias e sua individualidade. A trajetória de Lobato se mostra tão fascinante quanto as histórias que escreveu. Descobrir o homem em seu tempo, com todas as conseqüências que as influências de uma época provocam, foi um encontro com o Brasil vivendo os primeiros anos da República, as contradições e anseios que esse fato desencadeava. Lobato, porém, não foi um observador dos acontecimentos; foi um provocador, um idealista, um desencadeador de ações. Traduzindo o sentido de dialogismo em Bakhtin, pude sentir a palavra impregnada de sentido e de história, à qual o falante acrescenta, no uso, a sua intenção particular. Aprendi que todo discurso é voltado para a resposta que espera, que o plurilingüismo se faz no discurso romanesco como forma de integrar a fala de outrem no discurso que produz a narrativa. Esse entendimento foi ao encontro da percepção que eu já estabelecera de que as falas das personagens de Monteiro Lobato eram formas de levar a criança para as páginas de seus livros. Entendi também que o espaço social neles se revelava como registro das contradições de seu tempo. Ao escolher um livro é importante analisar a ideologia, os aspectos moralizantes, os valores transmitidos, mas, acima de tudo, a(s) representação (ões) de infância(s) que ele (livro) apresenta. Na produção cultural para criança, há sempre o risco da reprodução de uma cultura dominante, assim como o endosso de uma relação de poder do adulto sobre a criança, o que se constitui como elemento determinante para a formação da identidade infantil. Voltei-me para seus escritos para crianças por ver nesse mergulho uma oportunidade de mais de perto observar a representação de infância que ali se revela. 83 A obra infantil de Monteiro Lobato, cuja importância para a criação literária brasileira já não cabe mais discutir, desperta questionamentos e descobertas. O questionamento maior que aqui posso registrar diz respeito ao papel da criança nas narrativas de Lobato: “Quem é a criança presente nos contos de Lobato?” “Que lugar lhe é dado na construção de sua história? É ela protagonista ou simples observadora?”. Neste momento, desenvolvidas tantas leituras, pesquisas, comparações, atrevo-me a concluir que, embora sua visão de infância seja romântica e universalista, Lobato criou uma literatura que valoriza a criança. A aproximação entre a criança e o texto de ficção que criou para seu público infantil, revelada em seu anseio "Ainda acabo fazendo livros onde as crianças possam morar", serve de caminho que possibilita essa pretensão. Atente-se aqui para o emprego do verbo morar, revelador de um espaço de leitura capaz de transportar seu leitor para um mundo de magia (onde possa morar), recurso representado pelo pó de pirlimpimpim em grande parte das aventuras vividas por suas personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo. A valorização desse espaço mágico permite à criança leitora de Lobato, por meio do mergulho na fantasia, encontrar um lugar em que se faça protagonista de sua trajetória. É importante também assinalar que Lobato criou personagens que, de alguma forma, parecem familiares ao leitor. Narizinho, apresentada como uma menina de tez morena e olhos escuros, distancia-se, na aparência, das heroínas sempre presentes nas histórias de fadas e nas histórias divulgadas no Brasil no início do século XX. Emília, criada a partir da junção de panos velhos, macela, retroses, pelas mãos de Tia Nastácia, é a figuração e a valorização da mescla, a mesma mescla encontrada na aproximação de crianças com bichos mágicos, sabugos falantes, políticos, pensadores, a cultura popular e a cultura clássica. Caberia aqui todo um estudo sobre a representação da cultura popular em Lobato. Quando essa cultura se apresenta por meio das narrativas trazidas por Em Histórias de Tia Nastácia, a narradora (no caso, uma pessoa simples, inculta, resgatando uma cultura oral) sofre intensa crítica por parte de seus ouvintes, assim também as histórias que apresenta – diferentemente das narrativas trazidas por dona Benta, sejam elas ligadas a contos tradicionais, nacionais ou estrangeiros. O autor parece sugerir que mesmo a cultura popular necessita se 84 elevar a uma linguagem mais elaborada para ser ouvida. Seria preconceito de sua parte? Não é objetivo deste trabalho nem me seria permitido sem que fugisse de minha intenção central enveredar por essa trilha, já que meu foco aqui é a criança e a forma como ela é tratada nos textos lobatianos. Considere-se, também, que a literatura por Monteiro Lobato dirigida a crianças se iniciou pedagógica, com intenções formadoras, como se dava, em geral, na época, com os escritos que tivessem como alvo a infância. Também nesse aspecto, como em muitos outros, Lobato age em consonância com seu tempo e com a história de um Brasil que se queria moderno ao se construir como república. Só com o amadurecimento de sua obra é que o autor se volta para o faz-de-conta e a magia da literatura. Essa marca original prejudica, muitas vezes, a avaliação que pode fazer o crítico de seu texto como um todo. A representação do negro na obra de Monteiro Lobato é outro aspecto que chama atenção. Ambígua, sua forma de retratar suas personagens negras parece revelar o mais profundo preconceito. Essa ambigüidade abre espaço para que se discuta a imagem de negritude nos diversos livros que escreveu. Seria o vocabulário utilizado ao referir-se a Tia Nastácia e a outras personagens negras reflexo de um preconceito pessoal? Inconsciência (num homem tão absolutamente lúcido com relação às coisas da sociedade em que viveu)? Intencionalidade (ao mostrar o contraste, revelaria uma situação)? O trabalho de pesquisa e comparação de textos que essas perguntas podem desencadear se mostra um desafio e um caminho a ser percorrido. Os limites deste trabalho não me levaram por esse caminho, já que o enfoque que norteou minhas leituras foi a criança no processo cultural e histórico. Ficam aqui as perguntas, para que outro pesquisador nos proporcione as respostas. Tenho consciência de que a concepção de infância que hoje norteia a ação na educação em muito difere de outras concepções que têm servido de base para ações voltadas para a criança no decorrer dos séculos e décadas que nos antecederam, contudo considero fundamental o entendimento da criança como um sujeito com identidade própria, com especificidades e diferenças. A meu ver, esse é um caminho de desconstrução de pré-conceitos adultos, de ressignificação de sentidos, de rupturas de relações de poder estabelecidas entre o adulto e a criança. Esse processo pode ser concebido como reflexão sobre a infância, 85 atribuindo-lhe seu devido valor e respeito. Somente após perceber a criança em sua pluralidade, respeitando-a como um sujeito criador que dialeticamente transforma e é transformado, será possível alcançar mudanças efetivas na maneira pela qual as crianças são vistas e tratadas. Sem dúvida, esse é o horizonte a ser focalizado pelos profissionais que atuam com e para a criança, a perspectiva de infância que surge como realidade social, mas o esforço precisa ser intensificado, pois apesar de a discussão teórica se mostrar avançada; na prática, a autoridade e o controle do adulto constituemse discurso corrente, aceito e efetivado, em grau maior ou menor, dependendo do contexto sociocultural. Não obstante, ela [a criança] não absorve de forma passiva a cultura, os valores, a ideologia do meio. A criança questiona, duvida e transgride, e essa interação infratora também contribui para que as transformações na relação criança-adulto se efetivem. Emília – com suas impertinências, seus questionamentos, sua espontaneidade – apresenta-se como espelho e metáfora dessa forma de interação e dessa possibilidade de transformação. 86 ANEXO As obras de Monteiro Lobato Apresento a seguir a bibliografia de Monteiro Lobato, organizada, ainda em vida, pelo próprio autor, e dividida em duas seções: Literatura Geral e Literatura Infantil. Os dados que aqui exponho foram publicados por Ruth Rocha (1981) a partir de um panorama da época realizado por Ricardo Maranhão e da seleção de textos, contextualizações, notas, cronologias, características e exercícios feitos por Marisa Lajolo. Em Literatura Geral, estão as obras: O Saci Pererê (resultado de um inquérito), Seção de Obras do Estado de São Paulo, São Paulo, 1918; Urupês (contos), Revista do Brasil, São Paulo, 1918; Problema Vital, Revista do Brasil, São Paulo, 1918; Cidades Mortas, Revista do Brasil, São Paulo, 1919; Idéias de Jeca Tatu, Revista do Brasil, 1919; Negrinha, Revista do Brasil – Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1920; Os Negros (ou “Ele e o outro”) (novela), Sociedade Editora Olegário Ribeiro, São Paulo, 1921; A Onda Verde, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1921; Mundo da Lua, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1923; O Macaco que se fez Homem, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1923; Jeca Tatuzinho, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1924; O choque das Raças ou o Presidente Negro, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1926; Mr. Slang e o Brasil, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927; Ferro, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1931; América, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1932; Na Antevéspera, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1933; 87 O Escândalo do Petróleo (depoimentos apresentados à Comissão de Inquéritos sobre o Petróleo), Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1936; A Barca de Gleyre (Quarenta Anos de Correspondência Literária), Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1944; Prefácios e Entrevistas, Editora Brasiliense Ltda., São Paulo, 1946; Zé Brasil, Editora Vitória, Rio de Janeiro, 1947. No gênero infantil produzido pelo autor, encontramos as seguintes obras: Narizinho Arrebitado (segundo livro de leitura escolar), Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1921; O Saci, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1921; Fábulas de Narizinho, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1921; Fábulas, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1922; O Marquês de Rabicó, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1922; A Caçada da Onça, Cia. Gráfica Editora Monteiro Lobato, São Paulo, 1924; O Garimpeiro do Rio das Garças, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1924; Aventuras do Príncipe, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927; A Cara de Coruja, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927; O Irmão de Pinóquio, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927; O Gato Félix, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927; O Noivado de Narizinho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927; O Circo de Escavalinho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927; Aventuras de Hans Staden, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927; Peter Pan, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1930; A Pena do Papagaio, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1930; O Pó de Pirlimpimpim, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1930; Reinações de Narizinho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1931; Novas Reinações de Narizinho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1932; Viagem ao Céu, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1932; 88 Histórias do Mundo para Crianças, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1933; As Caçadas de Pedrinho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1933. Emília no País da Gramática, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1934; História das Invenções, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1935; Aritmética da Emília, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1935; Geografia da Dona Benta, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1935. Memórias da Emília, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1936. Dom Quixote das Crianças, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1936. Serões de Dona Benta (Ciências Físicas Naturais, ensinadas por Dona Benta a seus netinhos), Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1937; Histórias de Tia Nastácia, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1937; O Poço do Visconde, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1937; O Pica-Pau Amarelo, Biblioteca Pedagógica, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1939; O Minotauro (Maravilhosas Aventuras dos Netos de dona Benta na Grécia Antiga), Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1939; O Espanto das Gentes, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1941; A Reforma da Natureza, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1941; A Chave do Tamanho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1942; O Touro de Creta, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; A Hidra de Lerna, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; Hércules e Cérbero, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; O Leão de Neméia, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; O Javali de Erimato, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; A Corça dos Pés de Bronze, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; As Cavalariças de Diomedes, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; Os Bois de Gerião, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; O Cinto de Hipólita, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; As Aves do Lago Estinfale, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; O Pomo das Hespérides, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944; 89 Uma Fada Moderna, Códex, Buenos Aires, 1947; A Lampreia, Códex, Buenos Aires, 1947; No Tempo de Nero, Códex, Buenos Aires, 1947; A Casa da Emília, Códex, Buenos Aires, 1947; O Centaurinho, Códex, Buenos Aires, 1947. É importante destacar que essa bibliografia está longe de ser completa. Segundo Cavalheiro, existem mais de duas centenas de edições das obras de Lobato, e cerca de quinhentas e tantas referências em livros, revistas e jornais. Isso sem levar em conta a imensa gama de cartas por ele recebidas. 90 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: ______. Aspectos da literatura brasileira. Obras completas de Mário de Andrade. São Paulo: Livraria Martins, 1967. ANDRADE, Oswald de. Carta a Monteiro Lobato. In:_____. Ponta de lança. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. ANDREOTTI, Azilde L. O Governo Vargas e o equilíbrio entre a pedagogia tradicional e a pedagogia nova. In: LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Demerval; NASCIMENTO, Maria Isabel Moura (orgs.). Navegando pela História da Educação Brasileira. Campinas: Graf. FE; HISTEDBR, 2006. AURÉLIO. Dicionário Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.1.ed. 1988. ARIÈS, Philippe. 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