7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 8
CAPÍTULO 1............................................................................................................. 12
A IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM ........................................................................ 12
CAPÍTULO 2............................................................................................................. 22
INFÂNCIA(S) ............................................................................................................ 22
2.1 A literatura e a criança...................................................................................... 31
CAPÍTULO 3............................................................................................................. 36
MONTEIRO LOBATO............................................................................................... 36
3.1 Biografia............................................................................................................. 36
3.2 Lobato e a Escola Nova .................................................................................... 47
3.3 Lobato e a literatura infantil brasileira ............................................................ 49
3.4 Reinações de Narizinho.................................................................................... 61
3.5 A Imaginação em Lobato.................................................................................. 72
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 80
ANEXO ..................................................................................................................... 86
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 90
8
INTRODUÇÃO
A minha pesquisa teve como objetivo analisar a representação de infância
contida na obra Reinações de Narizinho, lançada em 1931. Utilizo o termo
representação como sendo a reapresentação da realidade por meio da
linguagem. Nesse conceito, representação sugere um ato de recriação e
compreensão da realidade. Sendo assim, o interesse da literatura não é apenas
copiar a realidade, mas criticá-la, questioná-la e repensá-la por meio da leitura.
Reinações de Narizinho reúne dez narrativas de Monteiro Lobato: A menina do
narizinho arrebitado, O noivado de Narizinho, Aventuras do príncipe, O gato Félix,
Cara de Coruja, O irmão de Pinóquio, O Circo de Escavalinho, A pena de
papagaio, Peter Pan e O pó de pirlimpimpim.
A literatura destinada às crianças há muito tem sido objeto de preocupação
e estudo para educadores e literatos que buscam verificar se realmente existe
uma literatura para crianças, qual ou quais interesses impulsionam o surgimento
de um gênero a elas destinado e, ainda, quais são os benefícios que a criança
pode encontrar nessa literatura. Ressalto que esse não é meu objetivo; muito
embora a literatura seja o fio condutor de minha pesquisa, não busco analisar seu
surgimento ou conteúdo.
A literatura para crianças, já em seu nascedouro adultocêntrica e
autoritária, apresenta-se para a criança brasileira como uma repetição dos contos
moralistas portugueses. No caso da literatura infantil, lembrando-se aqui que o
aspecto moralizador existente em algumas narrativas tende a representar as
crianças a partir do olhar adulto, desqualifica-se o conhecimento que a criança
possui e subestima-se sua capacidade crítica e criativa. É o adulto que “sabe” o
que convém que a criança pense em determinado momento histórico e político.
Nesse contexto, o livro serve como canal condutor do “ensinamento” a ser
incorporado à mente em formação dos mais jovens.
Parto do pressuposto de que a infância é uma construção histórico-cultural
e que a formação da identidade da criança também se dá historicamente.
Ressalto que as relações interpessoais, a influência familiar, a maneira como a
9
sociedade está estabelecida, os valores e as concepções culturais têm muita
influência no modo de ser da criança e, conseqüentemente, em sua identidade.
Esses valores e concepções de mundo se revelam nos textos destinados à
criança. Tomo a literatura como instrumento que possibilita a leitura e o processo
da formação de identidade da criança, pois acredito que ela ultrapassa a
compreensão de superfície, de mera distração ou recurso didático; é mais que o
entendimento das informações explícitas, constituindo-se em um processo
dinâmico entre sujeitos que trocam experiências, fenômeno constitutivo da
realidade. A história é uma construção simbólica e não um discurso direto. Uma
história nunca tem um só significado, e é vivida como experiência enquanto é
contada e ouvida. É sabido que a leitura estimula a imaginação, que, por sua vez,
possibilita a construção do mundo real, levando ao desencadeamento de uma
sucessão de saberes e ao encontro entre o subjetivo e o objetivo.
Pelo estímulo criativo que as narrativas exercem sobre as crianças,
tornam-se referenciais de significação para elas e indicam signos concretos e
singulares relativos a momentos específicos de sua própria história. Os contos de
fadas, por exemplo, há muitas gerações vêm encantando meninos e meninas.
Pode-se dizer que, a despeito de terem sido criados por e para adultos, com
objetivos altamente pedagógicos e utilitaristas, os contos de fadas continuam
atuando como recursos fundamentais da formação das crianças, auxiliando-as na
busca de compreensão da realidade e de si mesmas.
Assim como os contos de fadas, há inúmeras outras histórias infantis
produzidas na contemporaneidade mobilizando a atenção, o carinho, o
encantamento, a fantasia, a imaginação e também a indignação das crianças
diante delas, como se nessas histórias se encontrasse uma ligação para algo
mais profundo e significativo em suas vidas. Ao escutar ou ler uma história, as
crianças tornam-se também co-autoras, na medida em que, nessa leitura, atuam
por meio da sua imaginação, das suas reações emocionais e afetivas e por meio
da sua própria produção cultural (sejam brincadeiras, jogos, desenhos, novas
narrativas, etc.).
Nesse universo, impõe-se a figura de Monteiro Lobato, que, por meio de
suas narrativas, encontra uma voz que constrói caminhos de fantasia capazes de
conduzir seus leitores ao encontro com eles mesmos, com a aventura e com a
10
liberdade de escolher e de sentir, e que, em muito se diferencia dos escritos da
época. Voltada para essa busca do maravilhoso e da liberdade interior, tão
necessários ao desenvolvimento da criança, debrucei-me sobre a narrativa
Reinações de Narizinho, de Lobato, e acompanhei as peripécias de suas
personagens. São suas falas, suas aventuras e as janelas que se abrem para a
infância que procuro destacar, apoiada em teorias sobre a linguagem
desenvolvidas pelos autores Walter Benjamin, Lev Semyanovich Vygotsky e
Mikhail Bakthin.
Também com esse objetivo, estabeleço aproximações entre os teóricos
que discutem a literatura para crianças e aponto para o surgimento do sentimento
de infância, lembrando que o reconhecimento de sua existência e a preocupação
relativa à infância evoluíram e evoluem juntamente com a humanidade e estão
diretamente ligados à sociedade e à cultura. A maneira como eram tratadas as
crianças da Idade Média em muito difere de como as vemos na atualidade, pois,
cada momento da história humana propõe àqueles que o vivem diferentes
desafios, coloca-os diante de dificuldades e premências que lhe são próprios.
Inúmeras são as discussões sobre a importância da leitura e da literatura
para a formação do sujeito. Neste trabalho, são estudadas as contribuições de
Kramer, Zilberman, Isabelle Jean, Coelho, Arroyo, Held, Jobim e Souza e
Resende.
No primeiro capítulo, discuto o significado da linguagem e apresento
pontos extraídos de leituras dos teóricos, com destaque para Bakhtin, Benjamin e
Vygotsky. Aponto a relevância da linguagem na formação do ser humano e a
importância da leitura para a formação da consciência crítica.
No segundo capítulo, enfatizo que o surgimento do sentimento de infância
se dá na e com a história da humanidade. Nessa perspectiva, afirmo que é
necessário superar a idéia de natureza infantil e considerar a criança como sujeito
histórico, social e cultural. Para melhor compreender o significado de uma infância
concreta e suas particularidades, é preciso lembrar que diferentes concepções
acerca da infância têm norteado a prática e a produção teórica no campo da
educação para crianças. Dentre elas, destaco os autores: Rousseau, Ariès,
Sarmento, Zilberman & Magalhães. Abordo o surgimento da literatura para
crianças refletindo sobre os valores e intenções nela contidos. O diálogo com
11
Lobato se faz necessário, tendo em vista a época em que suas histórias surgiram
e o respeito que ele tinha com as crianças/leitores.
No terceiro e último capítulo, trago a biografia de Monteiro Lobato. Nela
destaco que, por meio de sua obra, Lobato ressignificou a cultura popular,
contribuiu de maneira significativa para a produção e a distribuição de livros,
acreditando na importância destes para a construção de uma nação. Destaco,
também, a sua aproximação com o escolanovismo; analiso, ainda, Reinações de
Narizinho, que apresenta personagens atípicas à literatura de sua época:
personagens que têm em Lobato o respeito por suas idéias e opiniões, que criam
e recriam de acordo com suas vontades e fantasias, mas que, sobretudo, deixam
marcas de como pensam, expressam-se, sentem e agem. Personagens que
pulam dos livros para habitar no imaginário das crianças. E, por fim, direciono
meu olhar para a imaginação, a fantasia, a ludicidade e a criatividade, elementos
de extrema importância na obra lobatiana e basilares para o ser-criança.
12
CAPÍTULO 1
A IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM
“As palavras e os sons não seriam arco-íris...?
A palavra é encantadora loucura: com ela o
homem dança com todas as coisas”
(NIETZCHE apud HELD, 1977, p. 195).
Os estudos lingüísticos, no decorrer da história, teceram diferentes
considerações sobre a linguagem. Vista inicialmente como representação,1 à
linguagem foi atribuído o papel de representar o mundo. As coisas existentes ou
criadas pelo ser humano se presentificavam para ele por meio da palavra que
lhes dava reconhecimento. A crença em uma linguagem-representação tem sua
origem na Bíblia, que afirma ter Deus, após a criação de todos os seres,
apresentado a Adão tudo o que foi criado e a ele dado a incumbência de nomeálos. Haveria, assim, uma linguagem primeira da qual todas as demais derivariam.
Segundo Koch (2004), muitos filósofos também defenderam a idéia de uma língua
inicial na qual cada palavra remeteria a um significado, um ser, um fato, um
acontecimento.
Mais tarde, a importância da linguagem se deu por sua função de
comunicação. Destacava-se seu papel de transmissão de informações – as
mensagens enviadas de um emissor a um receptor – e aprofundava-se o estudo
dos elementos que caracterizavam esse processo de comunicação ou que nele
podiam interferir (KOCH, 2004).
A concepção mais recente estuda a linguagem como atividade, como
interação, capaz de provocar vínculos e compromissos entre aqueles que
participam de sua realização.
Koch ressalta que “é preciso pensar a linguagem humana como lugar de
interação, de constituição das identidades, de representação de papéis, de
1
Segundo Abbagnano (1998, p. 853) representação é um vocábulo de origem medieval que indica
imagem ou idéia, ou ambas as coisas. O uso desse termo foi sugerido aos escolásticos pelo
conceito de conhecimento como semelhança do objeto. “Representar algo” – dizia S. Tomás de
Aquino – significa conter a semelhança da coisa [...].
13
negociação de sentidos, portanto, de co-enunciação” (2004, p. 128) [grifo meu].
Os jogos de linguagem são estabelecidos por indivíduos concretos que, por meio
de uma língua, interagem socialmente. Nas situações sociais, o ser humano
vivencia e representa inúmeros e diferentes papéis; em cada um desses papéis,
diferentes ações dele são exigidas, acompanhadas estas por diferentes formas de
linguagem. A interação produzida ou provocada pelo ato de linguagem, por outro
lado, visa a preservar os territórios (espaços de apresentação e de ação) dos
indivíduos nesse ato envolvidos.
Essa concepção de linguagem procura ultrapassar o nível da descrição
frasal e entende a linguagem como forma de ação orientada para a interação
humana, estabelecida com diferentes intenções e para diferentes fins.
A linguagem é, pois, considerada uma instituição social, veículo de
ideologias, instrumento de mediação entre os homens, a sociedade e a cultura. É
por meio da e na linguagem que os conceitos são elaborados e a representação
do real é organizada. Logo, a linguagem constitui-se no elo mediador entre a
atividade cognitiva do sujeito e do objeto de conhecimento encontrado no mundo.
É por meio do potencial simbólico da linguagem que o homem representa a sua
visão de mundo e da realidade.
Kramer pontua que, por meio da linguagem, o passado, o presente e o
futuro se interpenetram e se transformam; rever a linguagem é rever a história,
pois a história existe na linguagem; a história está viva no discurso vivo.
Linguagem que é intrínseca à própria história, já que o discurso histórico
é sempre uma narrativa... fazer história é contar história... Pois na
medida em que o homem só pode receber a história numa transmissão,
a história condiciona o acesso à linguagem. (KRAMER apud
DESGRANGES, 2006, p. 54)
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Paulo Freire (1990) afirma que é
por intermédio da linguagem que os homens expressam sua visão de mundo, seu
pensamento a respeito de suas próprias experiências. Para Freire, “assim como
não é possível linguagem sem pensamento e linguagem-pensamento sem o
mundo a que se refere, a palavra humana é mais do que um vocábulo – é
palavra-ação” (idem, s/p). Assim como Freire, Vygotsky (1994) concebe a
linguagem como veículo do pensamento, em que se expressam os conteúdos da
14
inteligência da criança sobre o mundo. Dessa maneira, a linguagem tem duas
funções básicas, o intercâmbio social e o pensamento generalizante.
Somo a essas afirmações a fala de Oliveira (1992, p. 27), a qual destaca
que, “além da comunicação entre indivíduos, a linguagem simplifica e generaliza a
experiência, ordenando as instâncias do mundo real em categorias conceituais
cujo significado é compartilhado pelos usuários da linguagem”.
Bakhtin afirma que a língua é um fenômeno histórico com vínculos sociais
e que a linguagem, que é resultado das relações e interações, constitui a
identidade do sujeito.
Nossa identidade forja-se no intercâmbio de linguagem com outros, à
medida que começamos a nos ver através dos olhos de outros. Discurso
não é apenas o conteúdo ostensivo, aquilo que é dito, mas também o
suposto, tudo o que se deixa por dizer. É a entonação que comunica o
suposto ou o não dito, conferindo às simples palavras “momentum
histórico e singularidade”. (BAKHTIN apud STAM, 1992, p. 28)
Com base na afirmativa acima, pode-se dizer que o ser humano se
constitui na relação com o outro, um outro que compartilha do mesmo contexto e,
por isso, transmite os significados daquele meio em que se encontra. O outro é,
dessa forma, sempre um outro social.
Em Questões de literatura e estética, Bakhtin (1988, p. 71), ao apresentar o
discurso no romance, afirma que “a forma e o conteúdo estão unidos no discurso,
entendido como fenômeno social – social em todas as esferas de sua existência e
em todos os seus momentos – desde a imagem sonora até os estratos
semânticos mais abstratos”.
Esclarece o autor:
Tomamos a língua não como um sistema de categorias gramaticais
abstratas, mas como uma língua ideologicamente saturada, como uma
concepção de mundo, e até como uma opinião concreta que garante um
maximum de compreensão mútua, em todas as esferas da vida
ideológica. (BAKHTIN, 1988, p. 81)
As novas situações consideradas como elementos capazes de interferir na
linguagem são destacadas por Bakhtin (1988, p. 136), quando assinala que a
categoria básica da linguagem é a interação verbal, que ocorre pelo diálogo
compreendido como toda comunicação verbal. Afirmando que nada na
composição do sentido pode colocar-se acima da evolução [do sentido], o autor
acrescenta que novos aspectos da existência são integrados no círculo do
15
interesse social e, após se tornarem objetos da fala e da emoção humana,
coexistem de forma não-pacífica com elementos que se integraram à existência
antes deles. “Essa evolução dialética reflete-se na evolução semântica. Uma nova
significação se descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em
contradição com ela e reconstruí-la” (idem).
Acrescentando que entre o discurso e a personalidade do falante se
interpõe um meio formado pelos discursos alheios sobre o mesmo assunto,
Bakhtin afirma que, ao voltar-se para seu objeto, o novo discurso encontra-o já
envolvido pelas vozes que dele fizeram uso anteriormente.
O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado
momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios
dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de
um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo
do diálogo social. (p. 86)
Na sua obra, Lobato faz ecoar, além da voz do narrador, a voz do ouvinte
que interfere e questiona. Lobato traz também vozes de diferentes escritores da
literatura infantil (Andersen, os irmãos Grimm, La Fontaine, Esopo...) em contínuo
diálogo com as personagens do sítio.
Embora reforce que a concepção que o discurso tem de seu objeto é
dialógica, Bakhtin alerta que todo discurso é voltado para a resposta e por ela
diretamente determinado. A noção de recepção/compreensão apresentada por
Bakhtin caracteriza o movimento dialógico da enunciação que se faz entre locutor
e interlocutor ao colocar a linguagem em relação. O locutor enuncia em função da
existência de um interlocutor, esteja ele em presença real ou virtualmente
construído por esse locutor, aguardando do interlocutor uma atitude de resposta,
antecipando o que o outro vai dizer, isto é, experimentando ou projetando o lugar
de seu ouvinte. A enunciação propõe uma réplica, seja de negação ou
concordância, de apreciação ou ação. A compreensão se dá somente em razão
do sentido dialógico dos enunciados. Não basta reconhecer os sinais ou a forma
lingüística; o que realmente é importante é a interação dos significados das
palavras e seu conteúdo ideológico, tanto do ponto de vista da enunciação, como
das condições de produção e da interação entre o emissor e seu receptor. É o
fenômeno social que se realiza através da enunciação ou das enunciações.
Assim, a interação verbal apresenta-se como a realidade fundamental da língua.
16
Partindo da afirmação de que “para a consciência que vive nela, a língua
não é um sistema abstrato de formas normativas, porém uma opinião plurilíngüe
concreta sobre o mundo”, Bakhtin (1988, p. 100) acrescenta que, tomando a
palavra semi-alheia, o falante a povoa com sua intenção.
O dialogismo não se resume, porém, a esse encontro do enunciador com
seu ouvinte. Segundo Bakhtin (1988), o diálogo, no sentido estrito do termo, não
constitui senão uma das formas da interação verbal. A expressão diálogo deve
ser vista num sentido muito mais amplo, não apenas como a comunicação em voz
alta, de pessoas colocadas frente a frente, mas sim considerada como toda
comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. O diálogo realiza-se em qualquer
forma de discurso, quer sejam as relações dialógicas que ocorrem no cotidiano,
quer sejam textos artísticos ou literários. Embora ação histórica compartilhada
socialmente, é a linguagem sempre mutável, devido às variações do contexto.
Bakhtin (1988) vê o dialogismo como constitutivo da linguagem, que não é
um corpo único; é heterogênea, já que o discurso é sempre construído a partir do
discurso do outro, formando a cadeia discursiva sobre a qual qualquer discurso se
constrói. As palavras evocam os contextos em que já se realizaram, o que as faz
socialmente tensas e revela sua intencionalidade.
Para o falante, a palavra só se torna própria quando a povoa de suas
intenções. Até então ela lhe é semi-alheia, pois vem do território de outrem. Ao
revesti-la de sua orientação semântica e expressiva, ele a torna familiar. O
dialogismo é inerente ao próprio sentido que a palavra vai adquirindo em seu
percurso.
Bakhtin (1988), apontando as características da linguagem no discurso
romanesco, apresenta-nos as noções do plurilingüismo:
A linguagem literária é um fenômeno profundamente original, assim
como a consciência lingüística do literato que lhe é correlata; nela, a
diversidade intencional (que existe em todo dialeto vivo e fechado),
torna-se plurilíngüe: trata-se não de uma linguagem, mas de um diálogo
de linguagens. (p. 101)
Ao entrar na literatura, os dialetos se deformam e, ao mesmo tempo,
deformam a linguagem literária em que penetram. Esta, assim, deixa de ser um
sistema fechado e se torna plurilíngüe, deixa de ser uma linguagem e se
transforma em um diálogo de linguagens. “A consciência lingüística, sócio-
17
ideológica e concreta, ao se tornar artisticamente ativa, encontra-se de antemão
envolvida por um pluridiscurso, e de modo algum por uma só linguagem, única,
indiscutível e peremptória” (BAKHTIN , 1988, p. 101).
Acrescente-se, ainda, que Bakhtin, quando discute as vozes no romance
(que aqui vale lembrar pela noção de historicidade que confere à palavra),
apresenta o plurilingüismo que se manifesta no espaço da enunciação como
resultado de elaboração literária: “Todas as palavras e formas que povoam a
linguagem são vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações
concretas [...]” (BAKHTIN, 1988, p. 106).
O prosador-romancista não elimina os sons das outras vozes que ecoam
em seu discurso, as intenções dessas vozes, suas perspectivas socioideológicas.
Essas vozes permanecem no discurso e as personagens aparecem por trás das
palavras e formas de linguagem dispostas de maneira particular, refratando as
intenções do autor – daí o conceito de plurilingüismo. O autor faz uso dessas
vozes, vale-se dos discursos povoados pelas intenções sociais de outrem e os faz
servir a sua nova intenção. “O desenvolvimento do romance consiste em um
aprofundamento do diálogo, do seu alargamento e refinamento; cada vez menos,
vale-se de elementos neutros e duros, não integrantes do diálogo” (idem).
Assim, a pluridiscursividade e a dissonância organizam-se no sistema
literário.
A dialogicidade interna do discurso romanesco exige a revelação do
contexto social concreto, o qual determina toda a sua estrutura estilística,
sua “forma” e seu “conteúdo”, sendo que os determina não a partir de
fora, mas de dentro; pois o diálogo social ressoa no seu próprio discurso,
em todos os seus elementos, sejam de “conteúdo” ou de “forma”.
(BAKHTIN, 1988, p. 106)
A soma de intenções torna o discurso literário uma manifestação
plurilíngüe: trata-se não de uma linguagem, mas de um diálogo de linguagens.
“[...] o discurso romanesco [...] não pode esquecer ou ignorar as línguas múltiplas
que o circundam” (p. 136). Cabe ao prosador transformar esse discurso,
carregado de intenções sociais que lhe são alheias, no elemento central quando
da elaboração de seu discurso romanesco, impregnando-o de suas novas
intenções e enfatizando o aspecto central do plurilingüismo no romance: “o
plurilingüismo se materializa nele nas figuras das pessoas que falam, ou, então,
servindo como um fundo ao diálogo” (idem).
18
Ao tratar do plurilingüismo, Bakhtin apresenta-nos também o híbrido:
O que vem a ser a hibridização? É a mistura de duas linguagens sociais
no interior de um único enunciado, é o reencontro na arena deste
enunciado de duas consciências lingüísticas, separadas por uma época,
por uma diferença social (ou por ambas) das línguas. (BAKHTIN, 1988,
p. 156)
Lembrando que no híbrido romanesco se dá a fusão num só enunciado de duas
vontades lingüísticas individualizadas, Bakhtin (1988, p. 159) ensina que ele “é
um sistema de fusão de línguas literariamente organizado, um sistema que tem
por objetivo esclarecer uma linguagem com a ajuda de uma outra, plasmar uma
imagem viva de uma outra linguagem”.
Para Bakhtin, a língua se harmoniza em conjuntos, pois não pode ser vista
como um sistema abstrato de normas.
O diálogo das linguagens não é somente o diálogo das forças sociais na
estática de suas coexistências, mas é também o diálogo dos tempos,
das épocas, dos dias, daquilo que morre, vive, nasce; aqui a
coexistência e a evolução se fundem conjuntamente na unidade concreta
e indissolúvel de uma diversidade contraditória e de linguagens diversas.
(BAKHTIN, 1988, p. 161)
A teoria bakhtiniana exposta se desenvolve em seus estudos sobre o texto
romanesco. Ela foi aqui apresentada pelo enfoque no dialogismo e no
plurilingüismo, noções que nos ajudam a entender o papel da palavra no cotidiano
dos indivíduos, mas também nos permitem enxergar com maior clareza o
entrelaçamento das vozes e personagens na teia do texto em prosa.2 Com esse
entendimento do dialogismo e do plurilingüismo que marcam a prosa literária,
pretendo também estabelecer um diálogo com os textos que Monteiro Lobato
escreveu pensando na criança brasileira.
2
Bakhtin, no capítulo O discurso na poesia e o discurso no romance, escrito em 1934-1935, integrante de
Questões de literatura e estética, p. 85-106, desenvolve seu conceito de dialogismo a partir de um enfoque
inicial daquilo por ele chamado de diálogo vivo, diálogo corrente, diálogo direto, diálogo externo
composicional, que ele assim explica: “O discurso vivo e corrente está imediata e diretamente determinado
pelo discurso resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-a e baseia-se nela. Ao se constituir
na atmosfera do ‘já dito’, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi
dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim é todo diálogo vivo” (p. 89).
“Na vida real do discurso falado, toda compreensão concreta é ativa [...]” (p. 90). Dando continuidade a essa
elaboração, acrescenta: “O fenômeno da dialogicidade interna [...], em maior ou menor grau, encontra-se
manifesto em todas as esferas do discurso vivo. Mas [...], na prosa literária, e em particular no romance, ela
penetra interiormente na própria concepção de objeto do discurso e na sua expressão, transformando
sua semântica e sua estrutura sintática. A reciprocidade da orientação dialógica torna-se aqui um fato do
próprio discurso que anima e dramatiza o discurso por dentro, em todos os seus aspectos” (p. 92). [destaques
meus]
19
A linguagem, além de ser um meio de compreensão dos outros e da
realidade, é, simultaneamente, uma forma de compreender a si mesmo,
lembrando, ainda, que o objetivo da comunicação é sempre o ser humano – este,
uma construção histórica e social que interage, transforma e é transformada pela
sociedade. Pode-se dizer que a linguagem é a dimensão pela qual nós somos.
Não se pensa o homem antes da linguagem! A linguagem é, portanto, dinâmica,
versátil, polissêmica e apresenta várias possibilidades.
De acordo com Jobim e Souza, quando a criança lida com a linguagem de
forma lúdica, ela rompe com as formas cristalizadas de seu uso cotidiano. As
crianças usam a linguagem para protestar contra “os limites da realidade,
transgredindo-a, ao mesmo tempo em que protegem a realidade contra a tirania
da linguagem. Nas brincadeiras, as crianças estão em cumplicidade com os
objetos, salvando-os de serem consumidos pelo conceito” (BUCK-MORSS apud
JOBIM E SOUZA, 1994, p. 48).
A identificação da criança com o mundo ficcional criado por Lobato propicia
ao leitor uma interação com as personagens. Essa interação, destacada por
Zilberman, permite o exercício da linguagem em sua dimensão lúdica.
Esse universo, contudo, se alimenta da fantasia do autor, que elabora
suas imagens interiores para se comunicar com o leitor. Assim, o texto, a
racionalidade da linguagem, de que é testemunha sua estrutura
gramatical, com a invenção nascida na intimidade de um indivíduo [...]
pode lidar com a ficção mais exacerbada, sem perder o contato com a
realidade, pois precisa condicionar a imaginação à ordem sintática da
língua. Por isso, a literatura não deixa de ser realista, documentando seu
tempo de modo lúcido e crítico; mas mostra-se sempre original, não
esgotando as possibilidades de criar, pois o imaginário empurra o artista
à geração de formas e expressões inusitadas. (ZILBERMAN; SILVA,
1990, p. 18-19)
Lobato também reconhecia a língua como um instrumento social e, em
suas narrativas, utilizava uma linguagem que era acessível a todos. Preocupavase em superar a dualidade social entre a língua escrita e a falada, a linguagem da
cidade e a do campo. Por meio de neologismos e metáforas, reproduzia a
linguagem oral do homem do campo, dando-lhe significado literário, acreditando
que “a tarefa do escritor de um determinado país é levantar um monumento que
reflita as coisas e a mentalidade desse país por meio da língua falada” (LOBATO
apud LANDERS, 1988, p. 76).
20
É importante salientar que a fala é um elemento marcante na obra
lobatiana. No momento em que a boneca Emília começa a falar, a narrativa tornase mais fluente, contribuindo ainda mais para a fruição lúdica da obra. Nela, todos
falam: o Príncipe Escamado (peixe), o besouro, o sapo, Dona Carochinha, Doutor
Caramujo e, por fim, a boneca de pano, que se constitui por meio da linguagem. A
partir daí, Narizinho vê na boneca a possibilidade de compartilhar, pelo diálogo,
todos os seus sonhos. Emília, além de conseguir falar, torna-se mandona, crítica
e teimosa, características percebidas assim que Doutor Caramujo, lá no Reino
das Águas Claras, dá a ela uma pílula falante:
Podemos agora curar a Senhora Emília declarou ele
depois de costurar a barriga do sapo. Veio a boneca. O doutor escolheu
uma pílula falante e pôs-lhe na boca.
Engula duma vez! Disse Narizinho, ensinando a Emília como se
engole pílula. E não faça tanta careta que arrebenta o outro olho.
Emília engoliu a pílula (retirada da barriga de sapo Major) muito bem
engolida, e começou a falar no mesmo instante. A primeira coisa que
disse foi: ‘Estou com um horrível gosto de sapo na boca!’ E falou, falou,
falou mais de uma hora sem parar. Falou tanto que Narizinho, atordoada,
disse ao doutor que era melhor fazê-la vomitar aquela pílula e engolir
outra mais fraca.
Não é preciso explicou o grande médico. Ela que fale até cansar.
Depois de algumas horas de falação, sossega e fica como toda gente.
Isto é “fala recolhida”, que tem de ser botada para fora.
E assim foi, Emília falou três horas sem tomar fôlego. Por fim calou-se.
(LOBATO, 1988, p. 27)
As histórias são contadas oralmente por Dona Benta e Tia Anastácia, e são
recontadas e ressignificadas pelas demais personagens. Durante a contação de
histórias, os moradores do sítio se reuniam e a palavra tornava-se o elemento
constitutivo daquela realidade. A narração oral é um processo importante para a
formação do leitor, pois exercita a imaginação a partir da palavra. Ouvindo e
contando
histórias,
as
crianças
aprendem
desde
muito
cedo
a
tecer
narrativamente suas experiências e ao fazê-lo vão se constituindo como sujeitos
culturais.
Cabe apontar, ainda, que a criança assume a autoria da obra; em alguns
momentos, são elas (crianças) que fazem a narrativa. Por meio da fala, a língua
se realiza plenamente. A fala, sobretudo a conversação, envolve uma interação
direta e social.
21
Para melhor compreender o significado que a literatura assume no
processo formativo da criança, assim como a representação nela contida, é
necessária uma breve passagem pela construção histórica e social da infância,
com a releitura de alguns dados de autores já mencionados, em diálogo com
pesquisadores que se debruçaram sobre o tema.
22
CAPÍTULO 2
INFÂNCIA(S)
O viés que perpassa este trabalho propõe um olhar para a criança, não
mais como coadjuvante, mas sim como protagonista de uma história em
construção.
Adotei
como
parceiros
neste
diálogo
três
estudiosos
que
estabeleceram as bases paradigmáticas para o percurso que norteou minhas
leituras e observações: Walter Benjamin, Lev Semyanovich Vygotsky e Mikhail
Bakhtin – deste último, procuro suporte em sua teoria do dialogismo.
Para Benjamin (1993; 2002), o passado, o presente e o futuro estão
interligados, e é por meio da narrativa, uma expressão da linguagem, que
resgatamos nossa história que, embora não sendo linear, está em permanente
evolução, transformação. Ao recuperar o passado, é possível compreender o
presente e vislumbrar o futuro. O autor vê as crianças como sujeitos sociais,
históricos e culturais e afirma que elas não se constituem isoladamente, mas sim
inseridas em um processo cultural e histórico: “pois se a criança não é nenhum
Robinson Crusoé, assim também as crianças não constituem nenhuma
comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que
pertencem” (BENJAMIN, 2002, p. 94).
Essas idéias contribuem de forma determinante para romper com a
concepção romântica de infância e, segundo Kramer (2002, p. 45), superam a
visão da criança como filhote de homem, ser em maturação, cidadão do futuro,
para entendê-la como “parte da humanidade, fruto da sua tradição cultural, que é
também capaz de recriá-la, refundá-la; criança que reconta e ressignifica uma
história de barbárie refazendo essa história a partir dos despojos de sua mixórdia
cultural [...]”. Despem a criança do papel de vir-a-ser para olhá-la como ser capaz
de participação criativa.
No campo da psicologia, Vygotsky (1994) defende que as funções
psicológicas se desenvolvem nas interações da criança com os diferentes
contextos históricos e culturais. Um de seus principais objetivos era entender a
relação entre a linguagem e o pensamento. Para ele, o uso da linguagem
23
representa a função psicológica mais significativa: “a criança começa a perceber o
mundo não somente através dos olhos, mas também através da fala” (p. 43).
Ainda segundo Vygotsky, é pelas trocas que estabelece com o meio que a
criança começa a dar significado a suas ações e a complexificá-las. É na relação
com o outro, com o social, que os conteúdos dessa aprendizagem adquirem
significado para o sujeito do conhecimento. E é pela fala que a criança controla
seu comportamento: “assim, com a ajuda da fala, as crianças, diferentemente dos
macacos, adquirem a capacidade de ser tanto sujeito como objeto do seu próprio
comportamento” (VYGOTSKY, 1994, p. 36).
Antes de controlar o próprio comportamento, a criança começa a
controlar o ambiente com a ajuda da fala. Isso produz novas relações
com o ambiente, além de uma nova organização do próprio
comportamento. A criação dessas formas caracteristicamente humanas
de comportamento produz, mais tarde, o intelecto, e constitui a base do
trabalho produtivo; a forma especificamente humana do uso de
instrumentos. (idem, p. 33)
É importante ressaltar que, além da interação social, sua teoria aponta para
uma interação com os produtos da cultura. Um dos pressupostos básicos de
Vygotsky é considerar a cultura como parte da natureza humana.
Rego, aprofundando-se no pensamento vygotskiano, lembra que, para
Vygotsky, o desenvolvimento ocorre como um processo em espiral gradual e
ascendente,
necessitando
apenas
acordar
na
pessoa
as
competências
adormecidas. Esse despertar se dá por rupturas e desequilíbrios provocados por
novas situações, “a partir das constantes interações com o meio social em que
vive” (REGO, 1995, p. 60-61).
Nem sempre se deu esse entendimento da criança como ser capaz de
estabelecer trocas com o meio e sua cultura, como ser capaz de interagir e
ressignificar os fatos. Durante muito tempo, o papel reservado às crianças ficou
relegado a segundo plano. Acreditava-se que, além dos valores morais, a
identidade e o conhecimento alcançado pela criança eram-lhe transmitidos e/ou
por ela adquiridos exclusivamente pelo convívio com os adultos, manifestando-se
apenas quando atingisse a idade adulta.
A compreensão histórico-cultural é fundamental para a interpretação da
infância, da educação e também do uso da leitura como determinantes para a
formação da criança.
24
A maneira de olhar e perceber a criança tem sido compreendida de formas
diversas, e o entendimento que uma sociedade possui acerca da criança está
refletido nos espaços e objetos destinados a ela; assim, vestimentas, brinquedos,
livros ou qualquer outro elemento constituem uma espécie de enciclopédia
carregada de significados culturais que permitem perceber os diferentes conceitos
coexistentes.
Phillippe Ariès (1981) revela em seus estudos, baseados em iconografias
(pinturas, esculturas), a maneira como eram vistas a infância e a família
engendradas na organização social da Idade Média. De acordo com o autor, até o
séc. XII, a infância era desconhecida, ou melhor, desconsiderada: adultos e
crianças partilhavam os mesmos espaços e atividades, sem uma preocupação
diferenciada. Nessa época, a criança muito pequena não contava, havia uma taxa
alta de mortalidade infantil e sua sobrevivência era pouco provável.
Na sociedade medieval [...] o sentimento de infância não existia, o que
não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou
desprezadas. [...] por essa razão, assim que a criança tinha condições
de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela
ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes.
(ARIÈS, 1981, p. 156)
Ariès (1981) identifica dois sentimentos distintos em relação às crianças. O
primeiro deles é a paparicação, no qual a criança, por sua ingenuidade e graça,
torna-se fonte de distração para o adulto. Esse comportamento encontra
hostilidade em Montaigne3, que considerava insuportável a atenção que se
dispensava às crianças. A paparicação recebeu muitas críticas no final do séc.
XVI e, sobretudo, no séc. XVII, impondo-se, então, outro sentimento: o da
moralização, que surgiu em decorrência de um novo conceito familiar; a família
começava a se organizar como no modelo atual (cônjuges e filhos), resultante da
preocupação disciplinar proveniente de educadores, eclesiásticos e dos homens
da lei.
De um lado, temos a criança vista como alguém que precisa ser protegida
em razão da sua “essência ou natureza” e, do outro, como um “sujeito incapaz de
3
Michel Eyquem de Montaigne forneceu a base para que Jean Jacques Rousseau pudesse
desenvolver sua tese sobre a bondade natural do ser humano. Ele nos chama a “atenção para a
necessidade de educarmos a criança logo cedo, para que se torne possível dar a elas a formação
que seja peculiar a sua natureza. É nesse sentido que nos diz o seguinte: ‘Os filhotes de ursos e
de cães mostram sua tendência natural; os homens, porém, metendo-se desde logo em hábitos,
preconceitos, leis, mudam ou se mascaram facilmente’” (DIONIZIO, 2001, [s.p.]).
25
se educar”, que, por isso, necessita da intervenção moral de um adulto. Embora
aparentemente contraditórias e antagônicas, ambas – paparicação e moralização
– referem-se à criança como ser abstrato e a-histórico, não reconhecida como
sujeito social.
Ariès ressalta ainda que a criança, como membro da comunidade
medieval, de tudo participava: da vida e da morte; das festividades e das
execuções; da comemoração das vitórias e dos preparativos para as lutas. Dentro
desse quadro mais amplo, a criança não era vista como um ser a quem se
devessem atenções particulares. Isso a deixava exposta, ao mesmo tempo, à
crueldade, de que muitas vezes era vítima, e à liberdade necessária para conviver
com sua realidade de forma profunda, absorvendo as dores, os sonhos, as
tradições, a cultura de sua gente (cultura popular, oral, viva). Não havia muita
privacidade, nascia-se e morria-se em meio ao coletivo. O conceito de família não
se referia ao pequeno núcleo familiar: era o grande grupo, formado por parentes
e/ou por aqueles que se lhe agregavam. Eram todos e ninguém.
Zilberman e Magalhães (1984) reforçam a afirmação acima e dizem que a
infância, até o advento dos tempos modernos, não era sequer reconhecida como
uma idade particular no desenvolvimento do ser humano. Durante o período
medieval, a vida urbana desenrolava-se na praça, e dela todos participavam (a
praça, o povo); ali se faziam as vendas, as trocas, os torneios, as festas, os
serões; ali os forasteiros contavam suas aventuras, os trovadores e menestréis
cantavam sua poesia, os contadores de histórias desfiavam as lendas e contos
populares.
As crianças eram freqüentemente negligenciadas, tratadas brutalmente
e até mortas; muitos adultos tratavam-se mutuamente com suspeita e
hostilidade; o afeto era baixo e difícil de ser encontrado. [...] a falta de
uma única figura materna nos primeiros dois anos de vida, a perda
constante de parentes mais próximos, irmãos, pais, amas e amigos
devido a mortes prematuras, o aprisionamento físico do infante em
fraldas apertadas nos primeiros meses de vida e a deliberada quebra da
vontade infantil, tudo contribuiu para um “entorpecimento psíquico”, que
criou muitos adultos cujas respostas aos outros eram, no melhor dos
casos, de indiferença calculada e, no pior, uma mistura de suspeita e
hostilidade, tirania e submissão, alienação e violência. (LAWRENCE
STONE apud ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1984, p. 6)
Zilberman e Magalhães (1984) apontam, ainda, que esse mundo
desapareceu com o advento da Modernidade, impulsionada pelo idealismo liberal-
26
positivista e pela decadência da aristocracia tradicional. Com a Modernidade, a
estrutura da família mudou radicalmente, estabilizando-se por meio da divisão de
trabalho entre seus membros, ao pai, cabendo a sustentação econômica, e, à
mãe, a gerência da vida doméstica privada.
A burguesia ascendente reforçou o conceito de família como o grupo
formado pelo pai, pela mãe e pelos filhos, traçando-lhe o perfil que hoje
conhecemos, e que melhor se adaptava ao capitalismo então nascente. Esse
conceito de família nuclear é de certa forma, superado em Lobato, pois a
construção da família no sítio é atípica, não existe um patriarca, e a mãe é
mencionada esporadicamente. Outro aspecto interessante é a ausência da figura
masculina, tendo em vista que lá vivem Dona Benta, Lúcia e Tia Nastácia.
Pedrinho vai para lá passear e quando está de férias.
Na Modernidade, o trabalho converteu-se na finalidade existencial do
indivíduo. Contudo, de acordo com Zilberman e Magalhães (1984), para legitimála, ainda foi necessário promover, em primeiro lugar, o beneficiário maior desse
esforço conjunto: a criança. A preservação da infância impôs-se como valor e
meta de vida; porém, visto que sua efetivação somente poderia dar-se no espaço
restrito mais eficiente da família, esta passou a canalizar um prestígio social até
então inusitado.
Sarmento (2004, p. 11) retoma essa idéia dizendo que o sentimento de
infância surgiu com o Renascimento e se autonomizou a partir do Século das
Luzes. A constituição de infância como categoria social na Modernidade é
“resultado de um processo complexo de produção de representações sobre as
crianças, de estruturação de seus cotidianos e modos de vida, e, especialmente,
de uma constituição de organizações sociais para as crianças”.
O autor faz a análise de alguns fatores que contribuíram para o que chama
de “institucionalização da infância” no início da Modernidade e destaca o
recentramento do núcleo familiar; a criação de instâncias públicas de socialização
da criança, especialmente a escola; a produção de disciplinas e saberes periciais;
e a promoção da administração simbólica da infância, que vieram a definir e
direcionar a vida da criança na sociedade de forma atrelada a essas normas,
atitudes e procedimentos que, por sua vez, não estão efetivamente escritas e/ou
27
definidas formalmente, mas estabelecidas na prática social e aceitas como
adequadas.
Sarmento (2004) enfatiza também que cabia aos adultos decidir sobre a
freqüência ou não de crianças a determinados ambientes, sobre a dieta alimentar
permitida ou proibida, sobre a admissibilidade de participação na vida coletiva em
áreas reservadas ao adulto. Criava-se um código construído socialmente para
definir o papel a ser desempenhado pela criança.
A criação da escola pública está associada à construção social da infância,
pois, em meados do séc. XVIII, a escola foi constituída (inicialmente direcionada
apenas a rapazes de classe média urbana) e progressivamente ampliada com a
proclamação da escolaridade obrigatória. Analisando as conseqüências da
Modernidade, Sarmento destaca a supremacia do capitalismo na era industrial,
momento em que o trabalho passou a ser a base social determinante para outras
funções e relações. Mudados os modos de produção, mudou radicalmente a
forma como a criança era vista.
Zilberman (1985) aponta para o surgimento dessa nova noção de família
como núcleo de convergência das relações afetivas, que retoma o cuidado, a
proteção e o estímulo para o desenvolvimento da criança, ao mesmo tempo,
tornando-a destinatária dos anseios de mobilidade social ascendente pelo
investimento na sua formação.
Ao contrário do que se dera na Idade Média, a criança ganhou espaço na
Modernidade, assumindo um papel na sociedade de acordo com a condição
social em que vivia. Instalou-se, dessa forma, um novo paradoxo: de um lado,
havia a criança vista como objeto de marketing, com a economia direcionada a ela
(a criança que consome); de outro, a criança que, a serviço dessa mesma
economia, tinha sua infância dizimada pelo trabalho (a criança que produz).
Nesse contexto da Modernidade, surgiu o livro infantil, impregnado de
didatismo e utilitarismo, apoiado numa ideologia que pregava a superioridade do
adulto e a limitação passiva da criança. Embora destinada à criança, construiu-se
uma literatura infantil ainda adultocêntrica com vocabulários descontextualizados
e propósitos moralizantes.
Concomitantemente a esses novos interesses e/ou em conseqüência
deles, surgiram novos fatores que contribuíram para formar a consciência da
28
particularidade infantil, dentre eles, um conjunto de saberes que colocou a criança
como objeto do conhecimento, a pediatria, a psicologia do desenvolvimento e a
pedagogia.
Esse conjunto de saberes chega aos dias atuais permeado de
questionamentos e sujeito a críticas e novas proposições. Entendida a partir de
um determinado modelo, uniformizante, global e descolado da diversidade social
e cultural que, por sua vez, produz diferentes formas de infância, a noção de
infância está geralmente relacionada a uma visão romântica sobre a criança,
pautada na crença de uma essência ou natureza infantil e no princípio de que a
criança é igual em qualquer tempo e/ou espaço.
Benjamin (2002) contesta o conceito rousseauniano de criança romântica e
angelical. Segundo ele, essa condição não condiz com a natureza humana, e a
criança (pequeno ser humano) pode não ter a possibilidade de perceber as
conseqüências de seus atos, embora saiba o que faz. Segundo ele: “As crianças
são insolentes e alheias ao mundo” (p. 86).
Sônia Kramer (2005, p. 16) explicita a visão de infância presente na
pedagogia e no senso comum:
Um conceito de criança abstrato, delineado com base em padrões fixos
de desenvolvimento de linguagem e de socialização, uma infância
definida pela falta, por aquilo que não é, que não tem, que não conhece,
fundamentalmente, uma criança compreendida pela negação de sua
humanidade: filhote do homem, a ela cabia ser moldada ou no máximo
se desenvolver para ser alguém no dia em que adulta deixasse de ser
criança.
Cabe lembrar aqui que as crianças do sítio são representadas como
sujeitos com voz e vez, atuando de maneira ativa e participativa da e na história.
Kramer (1982, p. 16) afirma ainda que, “ao se adotar uma concepção
abstrata de infância, [...] distanciando-a de suas condições objetivas de vida, é
como se estas fossem desvinculadas das relações de produção existentes na
realidade”. Ela alerta que, ao formatar os espaços para a criança de acordo com
essa premissa, desconsideram-se as diferenças resultantes do meio em que ela
está inserida. A autora pontua que é necessário superar a visão natural de
infância, levando em consideração a criança real, constituída histórica e
socialmente, pois concebê-la como ser social que ela é significa considerar que
essa criança tem uma história e pertence a uma classe social, que estabelece
29
relações no seu contexto de origem e apresenta uma linguagem decorrente
dessas relações sociais e culturais, ocupando um espaço não apenas geográfico,
mas também de valor, ou seja, a criança é valorizada de acordo com os padrões
de seu contexto familiar.
A idéia de uma natureza infantil natural reforça duas abordagens que
produzem como orientação duas visões contrárias, que Sarmento (2004) chama
de rousseauniana4 e montaigneana. Nos dois casos, a criança continua a ser vista
como um ser abstrato, separada de uma existência concreta.
Em conseqüência dessa duplicidade, surgiram formas de intervenção
comportamental e pedagógica centradas ou no prazer de aprender ou no dever
do esforço. Essas visões ambíguas e coexistentes projetam suas manifestações
explícitas na literatura.
Fritzen (2006, p. 124) constata que a visão romântica, predominante numa
época e presente em muitas publicações da literatura brasileira, aos poucos foi
sendo suplantada pelo olhar austero que vigia e censura aqueles que passavam a
ser considerados matéria a ser moldada e preparada para a vida adulta:
Usando da imagem de ente não contaminado pela corrupção do mundo
moderno, o Romantismo a apresentou repetidamente na literatura,
sempre a associando a inocência angelical, cujo emblema mais notável
no Brasil se tornou “Meus oito anos” de Casimiro de Abreu. Porém,
embora ainda permaneça como clichê em nossa época, a natureza
anterior ao pecado e à corrupção do mundo do trabalho e da sexualidade
adultas que era atribuída à criança, conferindo-lhe traços nostálgicos de
uma estadia no Éden, indesejadamente interrompida, foi sendo alterada
ao longo do século XIX. É como ser que antecipa o adulto e que deve
ser vigiado e controlado de modo a ter seus instintos adaptados às
exigências da sociabilidade e produção econômica que, principalmente
nos discursos da pedagogia, da psicologia e da psicanálise, a infância foi
recebendo novas significações.
As preocupações relativas à infância deram-se no momento em que a
criança passou a ser reconhecida como um sujeito com identidade própria, com
especificidades e diferenças. Esse olhar sobre a infância que ouve a voz da
criança e lhe dá espaço de manifestação é um caminho de desconstrução de pré-
4
Jean Jacques Rousseau, em sua obra Emílio (1762), fala sobre uma educação baseada na
bondade natural do ser humano, cujo papel seria o de impedir que a criança fosse corrompida pela
sociedade. Para Rousseau, além de considerar a índole da infância, é preciso considerar as
particularidades de cada criança: “se, de um lado, todas nascem potencialmente iguais,
simbolizando a natureza humana em sua generalidade, cada uma possui características e traços
de caráter que lhe são inerentes. Além da desigualdade de cunho social e político, há também a
desigualdade natural e biológica” (CERISARA, 1990 p. 31).
30
conceitos adultizados, de ressignificação de significados, de rupturas de relações
de poder estabelecido entre o adulto e a criança.
Respeitar a criança como sujeito da e na história pode ser entendido como
um resgate de todas as infâncias. É atribuir à infância seu devido valor e respeito.
Essa forma outra de pensar a criança há muito está sendo discutida por teóricos e
estudiosos da sociologia, psicologia, pedagogia, educação e antropologia.
São muitas as discussões relacionadas às novas significações sobre a
infância, as quais reconhecem que há diferentes formas de ser criança,
constituídas em um contexto histórico, ressaltando que as crianças, “de fato, são,
desde que nascem, sujeitos atuantes em sua realidade, atores sociais. É, então, a
partir dessa compreensão de criança e de seu lugar como ator social, que ela
precisa ter seus direitos assegurados – sendo ouvida e respeitada” (HONORATO
et al., 2006, s/p).
As diversas áreas e os espaços destinados à criança foram organizados
levando em consideração os valores da sociedade. Instrumentos como
brinquedos, livros, entre outros, revelam na concretude uma ideologia a partir do
olhar adulto. É o adulto quem determina o que a criança irá ler, ver e consumir.
Nesses instrumentos, estão impressas as marcas do controle sobre a criança e a
idéia de prepará-la para atuar na sociedade. A literatura infantil também se
encarrega dessa tarefa.
A literatura infantil, por sua vez, é outro instrumento que tem servido à
multiplicação da norma em vigor. Transmitindo, via de regra, um
ensinamento conforme a visão adulta de mundo, ela se compromete com
padrões que estão em desacordo com os interesses do jovem. Porém
podem substituir o adulto, até com maior eficiência, quando o leitor não
está em aula ou mantém-se desatento às ordens dos mais velhos.
Ocupa, pois, a lacuna surgida nas ocasiões em que os maiores não
estão autorizados a interferir, o que acontece no momento em que os
meninos apelam à fantasia e ao lazer. (ZILBERMAN, 1985, p. 20)
Supor que a criança precisa ser preparada para a atuação social é negar
sua condição de produtora de cultura, e este é um fator que se destaca,
projetando uma idéia de mundo infantil como um mundo à parte do mundo adulto.
Essa separação coloca a criança como um “vir-a-ser” e não um “ser sujeito” agora
e real.
A criança é produtora de cultura e, ao mesmo tempo, destinatária da
cultura ancestral. Leva consigo uma bagagem de saberes com a leveza renovada
31
de que “tudo é possível”. Benjamin (2002, p.101), reforça esta idéia ao apontar
que para a criança, o tempo extrapola a linearidade, o passado e o futuro tornamse presente ressignificado em que o “de novo”, que para o adulto já foi, reaparece
de forma inaugural trazendo em si novas possibilidades. Nesse sentido, a criança
produz cultura fazendo uso do jogo, da brincadeira, da fantasia, reinventando seu
contexto e colocando-se na condição de ator social.
2.1 A literatura e a criança
“Uma história não tem necessidade de ser verdadeira,
mas de ser bela, dizia gaivota Alexandra”
(KRÜS e LE CHASSEUR apud HELD, 1977, p. 39).
A literatura, a princípio por meio de narrativas orais, preservou a história, a
cultura e os grandes feitos dos homens, “transmitindo” determinados valores e
padrões a serem “aceitos” e “respeitados” pela comunidade ou “incorporados”
pelo comportamento de cada indivíduo.
Isabelle Jean, em entrevista a Frederic Gaussen para Le monde de
l’education (1978), partindo do princípio de que “para que haja livro para crianças,
é preciso que haja crianças e livros” e considerando que até o século XVIII o
sentido de infância não existia, aponta os anos de 1750 como o período em que
se generalizou na França, na Inglaterra e na Alemanha o livro para crianças como
o entendemos hoje. À consciência que então surgia de uma existência social da
criança, somaram-se o desenvolvimento da escolarização e o progresso das
técnicas de reprodução, o que deu surgimento a livros destinados à infância.
Tinham eles, porém, objetivo didático, de educação moral, manifestada em lições
de comportamento, sob uma forma supostamente infantil, em que a criança
representada na narrativa servia de modelo a ser seguido.
Jean enfatiza que somente com a Condessa de Ségur, bem mais tarde,
mas ainda como produto dessa literatura voltada para a (con)formação, apareceu,
inspirada nos romances de costume, uma linguagem resultante da observação da
infância em que se dava lugar aos objetos concretos que faziam parte de seu
ambiente.
Salienta Jean que, sociologicamente, a fábula e o conto de fadas não
fizeram parte da literatura infantil, porque não se endereçavam às crianças, ainda
32
que elas também os lessem. Até o século XVII, as lendas e os contos não eram
pensados para crianças. Faziam parte de um acervo comum a todos os homens.
Alguns poucos foram escritos destinados a uma ou outra criança privilegiada.
Cecília Meireles, detendo-se nos “problemas da literatura infantil”, assim
resume o panorama da leitura oferecida para as crianças:
[...] se La Fontaine deu a velhas fábulas a forma incomparável do livro
destinado ao Delfim de França, os contos de Perrault e os de Mme.
D’Aulney foram recolhidos da tradição popular como quem salva um
tesouro para todas as crianças do mundo.
Entre os séculos XVII e XVIII já tinham aparecido o “Robinson Crusoé”,
de Defoë, e as “Viagens de Gulliver”, de Swift, que não eram livros
infantis, bem como “Aventuras do Barão de Münchkausen”. E um outro
livro fora escrito, cujo destino seria brilhar cerca de três séculos e
exercer sua influência em mais de um povo: “As aventuras de
Telêmaco”, que Fénelon compusera para o duque de Borgonha,
segundo Delfim de França, neto de Luiz XIV. (MEIRELES, 1979, p. 3435)
Perrault encontrou, quando inventariou esse universo, toda uma cultura
popular oral que, por meio das narrativas feitas pelas amas-de-leite, passara a
fazer parte do repertório das crianças de todas as classes sociais, tanto as da
burguesia como as do campo. Esse deslocamento permitiu que uma cultura,
nascida originalmente numa classe social alta e preservada na voz do povo,
chegasse até as gerações mais novas. Perrault restituiu ao público culto um
tesouro popular que, na cultura oral, estava se perdendo. Seu esforço foi o de
pedagogizar as histórias, de mostrar que nelas havia verdades que podiam fazer
bem às crianças e que valiam tanto quanto as fábulas da mitologia greco-latina.
Era, ao mesmo tempo, de sua parte, um empreendimento literário: reencontrar
uma cultura nacional capaz de se opor ao modelo antigo então predominante
(JEAN, 1978).
Também os irmãos Grimm foram movidos por uma busca ideológica:
representantes do romantismo alemão iam ao encontro da nação e da identidade
alemãs, a partir das forças profundas que se encontravam nas raízes populares
dos cantos, contos e danças. Essa identidade deveria ser reconhecida na criança
e na família; daí o livro de Grimm chamar-se Contos da infância e do lar. Tratavase de um objetivo político que via na infância a origem do povo. O mesmo ideal
romântico se encontra em Michelet (idem).
33
Uma grande mudança na forma de trabalhar o texto destinado aos
pequenos se deu na segunda metade do século XIX, com Lewis Carroll e
Andersen, que tinham a percepção de que toda criança possui uma personalidade
própria que vai além de sua natureza infantil. Essa percepção, somada à
convicção de que a própria infância – fonte de fantasias – tem algo a contar,
possibilitou o surgimento daquilo que modernamente se chamou de literatura
infantil. O narrador deixou de exercer o papel de mestre e se tornou livre das
relações de autoridade. Esse narrador, que veio se colocar como intermediário
entre o adulto e a criança e participar do mundo da realidade e do imaginário,
tornou-se o articulador da moderna literatura para crianças (JEAN, 1978).
Coelho debruça-se sobre essa literatura que ela reconhece como feita
pelos adultos, destinada aos adultos, mas adaptada e transformada em texto
direcionado às crianças. Fazendo uma análise sobre a natureza da literatura
infantil, afirma que: “literatura é arte: fenômeno de criatividade que representa o
Mundo, o Homem, a Vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática; o
imaginário e o real; os ideais e sua possível/impossível realização [...]” (1987, p.
10).
Destaca, ainda, sua influência significativa na formação e na segmentação
da identidade do leitor:
Daí a importância que se atribui, hoje, à orientação a ser dada às
crianças, no sentido de que ludicamente, sem tensões ou traumatismos,
elas consigam estabelecer relações fecundas entre o universo literário e
seu mundo interior, para que se forme, assim, uma consciência que
facilite ou amplie suas relações com o universo real que ela está
descobrindo dia-a-dia e onde ela precisa aprender a se situar com
segurança, para nele poder agir. (COELHO, 1987, p. 29)
Configura-se, no entanto, ao longo da trajetória da literatura, a pretensão
pedagógica, tornando-a instrumento da aprendizagem racional e levando-a a
perder, dessa forma, seu encanto. Na escola, ainda hoje, as obras são
apresentadas nos livros didáticos e/ou literários de maneira fragmentada, como
um motivo de aprendizagem do código escrito ou de conteúdos gramaticais, ou,
ainda, como fonte de elaboração de perguntas para respostas óbvias (fato que,
como facilmente se constata, afasta o texto de seu leitor). Subestima-se a criança,
tratando-a como alguém que não consegue apreender o significado e a intenção
34
da obra, ficando evidente a distinção ali estabelecida entre o leitor adulto e o leitor
criança, a literatura para adultos e a literatura para crianças.
Benjamin (2002, p. 55) denuncia o preconceito em relação às crianças
como seres distantes e incomensuráveis e afirma que seria preciso ser
especialmente inventivo para produzir um livro para elas: “[...] a criança possui
senso aguçado mesmo para uma seriedade distante e grave, contanto que essa
venha sincera e diretamente do coração”.
Superando qualquer caráter pedagógico, a literatura, sendo também arte,
deve levar o leitor a indagar sobre sua condição no mundo, considerando-se que
a consciência de mundo se dá a partir do momento em que o leitor (sujeito)
consegue estabelecer uma relação direta com o livro (objeto), e, deste, um
sentido com sua realidade. É bom lembrar, no entanto, que, no caso da literatura
infantil, essa relação pode ser muitas vezes mediatizada por um leitor adulto,
contador da história, que estabelece a ponte entre a criança e o livro.
Voltando-se os olhos para a presença do texto junto à criança brasileira,
repete-se o cenário anteriormente apontado. É, também aqui, a literatura
empregada como recurso de dominação cultural. Leonardo Arroyo (1988) aponta
que a influência de Portugal na literatura infantil brasileira foi determinante como
tentativa de imposição cultural. Em meio a esse contexto, surge a obra Narizinho
Arrebitado, de Monteiro Lobato, que, juntamente aos livros: Através do Brasil, de
Manuel Bonfim e Olavo Bilac, e Saudade, de Tales de Andrade, foi considerado
um dos grandes livros voltados para o ensino no País. Nascem esses escritos
com intenção pedagógica, ainda distantes da originalidade que o assunto estava
a reclamar.
Resende (1988, p. 97), no entanto, refere-se a Lobato como sendo, no
Brasil, o precursor para uma literatura voltada para a criança:
Se questionarmos a produção literária nacional anterior à Monteiro
Lobato, representada, por exemplo, por obras de Olavo Bilac (Poesias
Infantis; Contos Pátrios, em parceria com Coelho Neto etc.), sentiremos
o ranço forte do texto destinado ao púbico infantil, no qual era preciso
incutir bons princípios e valores, como: obediência, trabalho,
honestidade, patriotismo. Esses ensinamentos adultos se distanciavam
do momento da infância, em que a ludicidade, a liberdade e a vadiagem
positiva são marcantes. O iniciador de uma literatura prazerosa,
instigadora do potencial lúdico da criança foi Monteiro Lobato, na década
de 20, no Brasil.
35
A autora diz que as obras feitas para o leitor, sem intencionalidade de
público infantil, como as de Ana Maria Machado, Ziraldo e Bartolomeu Campos
Queiros, permitem romper com os limites e eliminar as distinções injustificadas
entre literatura para adultos e literatura infantil. Defende ela um compromisso
efetivo com o público infantil e acrescenta que “se a infância é evocada no
processo de escritura de alguns escritores, resta saber se serão suficientemente
habilidosos, para não deixar a sua seriedade adulta prejudicar a ludicidade da
criança” (RESENDE, 1988, p. 22).
36
CAPÍTULO 3
MONTEIRO LOBATO
3.1 Biografia
José Renato Monteiro Lobato nasceu em 1882 em Taubaté (SP), filho de
José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Augusta Monteiro Lobato. Mais tarde,
por volta dos 11 anos de idade, com o desejo de usar uma bengala com as
iniciais de seu pai, tornou-se José Bento Monteiro Lobato. Seu avô materno foi
personagem muito importante em sua vida. Era o visconde de Tremembé, e por
causa dele Lobato ingressou na academia de Direito de São Paulo, onde
conheceu seus grandes amigos: Ricardo Gonçalves e Godofredo Rangel
(ROCHA; MARANHÃO; LAJOLO, 1981).
Com este último, manteve uma amizade duradoura e continuada
correspondência por mais de 40 anos. As cartas que trocaram entre si foram
publicadas em A Barca de Gleyre e, ao lado das Cartas escolhidas, selecionadas
por Edgard Cavalheiro e publicadas como parte da obra completa de Monteiro
Lobato, oferecem ao leitor um retrato fiel das idéias e do posicionamento de
Monteiro Lobato perante os sucessos e insucessos que pontuaram sua vida. Ali
se revela seu envolvimento com a produção e a crítica de obras de arte, os
negócios ligados à edição e publicação de livros, o entusiasmo pelo progresso
apoiado no papel do ferro e do petróleo e, acima de tudo, sua profunda vinculação
com as coisas do Brasil.
Em 1908, casou-se com Maria Pureza da Natividade (dona Purezinha),
com quem teve os filhos Edgard, Guilherme, Martha e Ruth. Com a morte do avô
materno, do qual herdou uma fazenda, passou, em 1911, de promotor público a
fazendeiro e ali, no contato com a terra, se deu conta de que, entre os brasileiros
cultos e o mundo do interior, há uma grande distância. Começou, então, a gestar
o que viria a ser sua obra literária mais polêmica, Urupês, e a armazenar
impressões que viriam a se mostrar marcantes no desenvolvimento das
37
personagens nascidas a partir de Narizinho, que tomaram forma no Sítio do Picapau Amarelo (ROCHA, 1981, p. 4).
Na Revista do Brasil, atuou primeiro como colaborador, depois se tornou
proprietário (em 1918), voltando-se para a publicação, não apenas da sua
produção, mas também de novos autores, na então criada editora Monteiro
Lobato. Entre os autores publicados, encontram-se João do Norte, Paulo Setúbal,
Hilário Tácito, O. Vianna, Guilherme de Almeida, Francisca Júlia, Menotti del
Picchia, Martins Fontes e Lima Barreto. Com a falência desta (em 1925), criou a
Companhia Editora Nacional. Antes de Lobato, os livros do Brasil eram impressos
em Portugal (ROCHA, p. 5).
Ruth Rocha informa que Lobato foi nomeado Adido Comercial do Brasil nos
Estados Unidos e ali permaneceu de maio de 1927 a 1931, quando voltou ao
País. Impressionado com o desenvolvimento estadunidense, via na extração de
ferro e petróleo em terras brasileiras uma solução para o atraso que passara a
vida a denunciar. Com o objetivo de resgatar o Brasil dessa situação, endereçou
cartas a Getúlio Vargas e a outras autoridades, apontando possibilidades de
trocas comerciais, sugerindo ações e denunciando manobras contra os interesses
nacionais (1981, p. 5).
Entusiasmado, criou uma companhia para explorar o petróleo para,
finalmente, concluir que “o governo não quer que se mexa com o petróleo”
(LOBATO, 1972, p. 169). Tido por alguns como antinacionalista, por outros como
entusiasta do capitalismo e, finalmente, como comunista, acabou detido em 20 de
março de 1941, acusado de injúria contra o então presidente da república, Getúlio
Vargas, em razão de correspondência que a ele enviara, e de pretender fugir para
a Argentina, já que solicitara passaporte para aquele país. Permaneceu preso por
três meses. Foi absolvido da acusação de injúria frente à argumentação
desenvolvida pela defesa de que tal acusação se apoiava em uma carta particular
que o autor não divulgara nem autorizara o destinatário ou terceiros a divulgar
(CAVALHEIRO, 1955).
A respeito dessa privação de liberdade, registra Cavalheiro (1955, p.
476): “A prisão preventiva de Monteiro Lobato era uma arbitrariedade só possível
num regime ditatorial, com a liberdade de Imprensa cassada e as garantias
individuais abolidas”. Ainda segundo o autor, durante o período em que esteve
38
preso, Lobato dedicou-se à causa dos outros detentos, demonstrando profundo
respeito aos seres humanos que ali se encontravam. E, quando absolvido,
escreveu uma carta permeada de ironia ao General Horta Barbosa, que havia
decretado sua prisão:
Passei nesta prisão, General, dias inolvidáveis, dos quais sempre me
lembrarei com maior saudade. Tive ensejo de observar que a maioria
dos detentos é gente de alma muito mais limpa e nobre do que muita
gente de alto bordo que anda solta. E também tive ocasião de receber
inúmeras provas de amizade e solidariedade de excelentes amigos que
nunca imaginei tivessem por mim tal estima. Fui leal. A todos fiz ver que
a realização do meu sonho eu a devia a uma pessoa apenas, o General
Horta Barbosa, comandante superior do benemérito Conselho Nacional
do Petróleo. Pesarosamente tenho talvez de deixar hoje esta prisão, mas
seria o maior dos ingratos se antes de despedir-me do “chiqueiro”
chamado Sala Livre, não cumprisse meu dever, batendo na máquina
esta carta de agradecimento. Creia, General, que minha gratidão será
eterna. (CAVALHEIRO, 1955, p. 489)
Outra carta foi escrita e endereçada ao Presidente Getúlio Vargas. Nela,
Lobato registrou o seguinte manifesto: “Atirei no petróleo e acertei na cadeia, o
que prova bem má pontaria” (CAVALHEIRO, 1955, p. 488).
Ao sair da prisão, Lobato mostrava-se desanimado e descontente com tudo
e todos. Perto dos 60 anos de idade e com dívidas imensas, tendo em vista que
consumira tempo e dinheiro com investimentos na companhia de petróleo, o autor
retomou suas traduções. Nessa mesma época, o filho Edgard adoeceu e este fato
parece ter sido o início do fim para Lobato, como registra Cavalheiro, na seguinte
passagem em que Lobato diz: “Morte, morte bendita sejas. Não tenho mais gosto
em viver. Guilherme acertou, morrendo aos 25 anos. Edgard acertará morrendo
já. Viva a morte! É linda. [...]” (CAVALHEIRO, 1955, p. 509).
Com a morte do filho mais velho, Edgard, – Guilherme, ele já perdera – e
em meio à sua falta de religiosidade, Lobato buscava consolo na crença de que a
vida é uma escola de aperfeiçoamento e que a morte leva os que estão prontos
para viver em outro mundo, não para depois retornar a este mundo ou, ainda,
para ir para o céu, mas sim para habitar um lugar melhor. Ele “crê na imortalidade
do átomo e de tudo. Lavoisier está certo. Nascimento e morte, começo e fim:
ilusões da nossa relatividade. Tudo é, sempre foi e sempre será. Apenas
mudamos de condição. [...]” (CAVALHEIRO, 1955, p. 510).
Algum tempo depois, Lobato finalmente desistiu do petróleo (embora
continuasse afirmando que o Brasil o possuía) e, muitos anos antes da
39
confirmação dessa sua certeza, retomou as atividades intelectuais, passando a
escrever artigos, ministrar palestras, criticar o Estado Novo e seu governante e
envolver-se definitivamente com a literatura, como é possível perceber nesta
afirmação: “cortei relações com a ambição monetária e fiquei sozinho com a
literatura. E estou até em lua de mel com a coitadinha” (CAVALHEIRO, 1955, p.
530). Tratava-se de um retorno a uma atividade que nunca o decepcionara, em
especial os seus livros para crianças.
Em sua passagem pelo ensino regular, seja no ensino médio, seja na
academia, o estudante é apresentado a Monteiro Lobato por intermédio de um
discurso eivado de pesada rejeição ao artigo “Paranóia ou mistificação?”, crítica
ao estilo das pinturas de Anita Malfatti redigida por Lobato no despontar do
movimento modernista brasileiro e publicada no jornal O Estado de São Paulo de
20 de dezembro de 1917. Esse escrito serviu de estopim para o intransponível
distanciamento entre ele e alguns dos mais representativos integrantes daquele
movimento. O que causa espanto é o fato de ser esse artigo, muitas vezes, o
único contato possibilitado ao aluno com a multifacetada obra do autor,
considerada sua extensão, variedade e riqueza, porque, de acordo com Vasda
Bonafini Landers (1988, p. 30), Monteiro Lobato, no seu trabalho independente,
“chegaria a ser o autor mais publicado e mais vendido do país – antes, durante e
depois do Modernismo”.
A rejeição a Lobato em razão dessa crítica se fez tão completa que lhe foi
negado qualquer lugar na história do Modernismo, insistindo, não só muitos dos
representantes daquele movimento, como também os críticos e estudiosos das
vanguardas,
em
apontar
seu
passadismo,
seu
antimodernismo
e
sua
incapacidade de julgamento.
Sobre a exposição e as reações a ela, manifesta-se Mário de Andrade no
artigo “O movimento modernista”:
Ora, no Rio malicioso, uma exposição como a de Anita Malfatti podia dar
reações publicitárias, mas ninguém se deixava levar. Na São Paulo sem
malícia, criou uma religião. Com seus Neros também... O artigo “contra”
do pintor Monteiro Lobato, embora fosse um chorrilho de tolices, sacudiu
uma população, modificou uma vida. (ANDRADE, 1967, p. 226)
Ficou, assim, Monteiro Lobato privado do reconhecimento de seu papel de
precursor do Modernismo e de antecessor dos modernistas – autores que, aliás,
40
deram muitas voltas na obsessão europeísta antes de alcançar as marcas de
brasilidade desde sempre presentes nas obras de Lobato.
Estranhamento também causa a distância que a intelectualidade
vanguardista estabeleceu com a obra lobatiana, considerando-se que, em 1922 –
quando se deu a Semana de Arte Moderna –, Lobato já havia publicado, além de
Urupês, Cidades Mortas, Problema Vital, Idéias de Jeca Tatu e sua primeira obra
para crianças, Narizinho, escritos esses em que chama a atenção o cunho
renovador, profundamente nacional que se revelaria central na modernidade
literária brasileira.
Essas marcas são destacadas por Landers (1988, p. 24): “o nacional, o
telúrico brasileiro, o individualismo na obra de arte eram antigas armas para
serem usadas na luta pela verdadeira renovação artística brasileira”.
O caso Anita não seria, porém, seu primeiro enfrentamento. Quando da
publicação dos textos “Velha praga”, sobre o hábito das queimadas, e os
constantes de Urupês, em 1914, o retrato que Lobato faz do Jeca Tatu, caboclo
preguiçoso e carregado de doenças, atrai sobre ele as maiores pressões.
Seus biógrafos discordam das críticas, que, segundo Landers (1988, p. 25),
“só tinham uma razão de ser: aversão ao seu estilo iconoclasta e desmistificador
com que expunha todos os problemas brasileiros”. A autora acrescenta: “Galeão
Coutinho lembra apropriadamente que a repulsiva caracterização do caboclo teria
provocado a animosidade de todos quantos viviam dentro de um sonho cor-derosa” (LANDERS, 1988, p. 25).
Diferente, porém, é a posição dos teóricos e estudiosos de Literatura
Brasileira. Alfredo Bosi (1987, p. 242) apresenta um olhar crítico. Em História
concisa da literatura brasileira, embora reconheça que o papel que Lobato
exerceu na cultura nacional transcende de muito a sua inclusão entre os contistas
regionalistas, e destaque que o autor “encarnou o divulgador agressivo da
Ciência, do progressismo, do ‘mundo moderno’, tendo sido um demolidor de
tabus, à maneira dos socialistas fabianos,5 com um superávit de verve e de
sarcasmo”, vê nele um pensador doutrinário, o que o leva a concluir:
A indicação dos limites da arte lobatiana parece colidir com a relevância
da figura humana que vive na história brasileira onde já assumiu papel
5
Fabiano era o simpatizante da associação socialista inglesa The Fabian Society, que pregava
uma transformação gradual, sem tentativas de ações revolucionárias.
41
simbólico. A verdade, porém, é que os limites estéticos derivam de um
tipo de personalidade cuja direção básica não era a estética. [...] (BOSI,
1987, p. 243)
Detendo-se no regionalismo presente em Urupês, Nelson Werneck Sodré
(1982, p. 416) tece uma análise em que, mesmo destacando o papel de
transformação exercido por Lobato na linguagem dos contos regionalistas,
assinala que, além de acrescentar elementos novos, “realiza um alteração
interessante, com seu horror ao solene, ao postiço, ao rebuscado e considera que
do ponto de vista de construção os contos são deficientes, e raiam muitas vezes
os limites da anedota, ou não se completam”.
Com um olhar mais curioso, é ainda Landers (1988, p. 25), quem sintetiza:
“talvez Monteiro Lobato se preocupasse demais com o Brasil social para ser
entendido e discutido como homem de letras”.
O distanciamento é justificado por Bosi, quando analisa o papel de Lobato
no quadro dos escritores de intenções regionalistas e assim se refere à posição
assumida por Lobato em relação aos modernistas:
[...] essa mesma nota moralista e didática afastava-o do Modernismo de
22, ou ao menos das correntes irracionalistas que lhe permeavam a
estética. Lobato sentiria a vida toda, em nome do bom senso e da razão
(como se fora um velho acadêmico), total repulsa pelos “ismos” que
definiram as grandes aventuras e as grandes conquistas da arte
novecentista: futurismo, cubismo, expressionismo, surrealismo,
abstracionismo... (BOSI, 1987, p. 242)
O corolário dessa rejeição de mão dupla se manifesta na negação a
qualquer mérito inovador nos escritos de Lobato, como se constata neste
argumento do mesmo autor: “Apesar de pontilhada de raro em raro por certas
ousadias impressionistas, é uma prosa que não rompe, no fundo, nenhum molde
convencional” (BOSI, 1987, p. 242).
Sodré vê os traços com que Lobato apresenta em Urupês o homem do
interior do Brasil como “deformação caricatural” e destaca contundente:
Monteiro Lobato liquida o regionalismo, aquele regionalismo em que as
influências naturalistas haviam transformado o sertanismo, romântico,
quando cria um tipo, o Jeca Tatu [...]. Nesse tipo, verdadeiro nos traços
exteriores, falso no conteúdo, o escritor paulista busca representar, em
deformação caricatural, que por isso mesmo se vinca e se generaliza, o
homem do interior, o caipira, pobre, doente, preguiçoso, ignorante,
embora dotado de uma sorte de inteligência, a esperteza solerte,
encoberta sob uma aparência sonsa. (SODRÉ, 1982, p. 416-417)
42
Ao comentar o papel de Lobato no modernismo brasileiro, no entanto, volta
a salientar sua contribuição para a renovação e simplificação da linguagem nos
textos literários: “tido como inimigo do Modernismo, Monteiro Lobato foi, na
verdade, um renovador da prosa, fazendo-a simples, fácil, correntia” (SODRÉ,
1982, p. 559-560).
Essa renovação é apontada por Landers quando se refere às
manifestações de Lobato em Urupês:
Manifesta-se [...] Monteiro Lobato contra dois aspectos anacrônicos da
literatura: por um lado, contra o indianismo enganoso e ainda vigente e
por outro, contra o regionalismo que havia se descontrolado e caído na
mesma rotina estilística do romantismo idealizado. (1988, p. 46)
Quando Urupês completava 25 anos de sua primeira publicação, Oswald
de Andrade escreveu a “Carta a Monteiro Lobato”, incluída nos textos que
compõem Ponta de Lança. Nela, Oswald sela a paz entre o Modernismo e as
idéias de Lobato – com quem cultivava laços de confiança e amizade:
Você foi o Gandhi do Modernismo. Jejuou e produziu, quem sabe, nesse
e noutros setores a mais eficaz resistência passiva de que se possa
orgulhar uma vocação patriótica. No entanto martirizaram você por falta
de patriotismo. (ANDRADE, 1972, p. 4)
Segue-se a essa colocação toda uma análise do momento que então
viviam e do papel que nele ocupava o trabalho que cada um a seu modo
desenvolvia, análise essa antecedida pela seguinte observação:
Hoje, passados vinte e cinco anos, sua atitude aparece sob o ângulo
legitimista da defesa da nacionalidade. Se Anita e nós tínhamos razão,
sua luta significava a repulsa ao estrangeirismo afobado de Graça
Aranha, às decadências lustrais da Europa podre, ao esnobismo social
que abria os seus salões à Semana. E não percebia você que nós
também trazíamos nas nossas canções, por debaixo do futurismo, a
dolência e a revolta da terra brasileira. (ANDRADE, 1972, p. 4)
Landers (1988) não apenas destaca essas qualidades na prosa lobatiana,
como procura comprovar que, no Jeca de Lobato, estavam as matrizes que
permitiriam a Paulo Prado escrever seu Retrato do Brasil e a Mário de Andrade
construir Macunaíma, o herói sem nenhum caráter – tese que serve de base aos
estudos que a autora apresenta em De Jeca a Macunaíma.
43
O Lobato retratado por seus biógrafos6 apresenta-se também como uma
figura controvertida: segundo Edgard Cavalheiro, “espírito irrequieto, insatisfeito,
buliçoso
e
combativo”,
acrescentando
mais
adiante,
“contraditório”,
“inconformista” (Prefácio apud LOBATO, 1972, p. 12-13). Pode-se acrescentar,
acima de tudo, polêmico e fiel a si mesmo.
Sobre as características com que os autores regionalistas teimavam em
apresentar os brasileiros do interior do País, Lobato tece duras críticas. Veja-se o
tom polêmico que essas críticas apresentam no trecho seguinte da carta que
Lobato endereçou a Rangel em 20 de outubro de 1914:
[...] é preciso matar o caboclo que evoluiu dos índios de Alencar e veio
até Coelho Neto. [...] A nossa literatura é fabricada nas cidades por
sujeitos que não penetram nos campos de medo dos carrapatos. E se
por acaso um deles se atreve e faz uma “entrada”, a novidade do cenário
embota-lhe a visão, atrapalha-o, e ele, por comodidade, entra a ver o
velho caboclo romântico já cristalizado – e até vê caipirinhas cor de
jambo, como o Fagundes Varela. [...] o romantismo indianista foi todo ele
uma tremenda mentira; e morto o indianismo, os nossos escritores o que
fizeram foi mudar a ostra. Conservaram a casca... Em vez de índio,
caboclo. (LOBATO, 1972, p. 190)
É também em seus escritos que facilmente se encontra a explicação – que
os teóricos das vanguardas não quiseram enxergar – para os aspectos
levantados no artigo “Paranóia ou mistificação”. Em Idéias de Jeca Tatu – onde
também se lê o mencionado artigo – livro que enfeixa um punhado de artigos em
que Lobato expõe seu pensamento sobre o que vinha produzindo a
intelectualidade brasileira, detém-se no campo da pintura e da poesia. Em “A
paisagem brasileira”, elogia os caminhos escolhidos pelo pintor Wasth Rodrigues.
Em “Pedro Américo”, refaz a trajetória do pintor, dando destaque aos quadros
6
Muitos são os autores que se têm debruçado sobre Lobato, sua vida, sua obra. No Projeto sobre
Monteiro Lobato desenvolvido pela Professora Marisa Lajolo no Instituto de Estudos da Linguagem
da Unicamp, é dado destaque às biografias seguintes: AZEVEDO, Carmen Lúcia de;
CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia. São
Paulo: SENAC, 1997; CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato: vida e obra. São Paulo: Nacional,
1955; CONTE, Alberto. Monteiro Lobato: o homem e a obra. São Paulo: Brasiliense, 1948;
FONTES, Murillo. Perfis de brasileiros ilustres: Dom Pedro II, Oswaldo Cruz, Cardoso Fontes,
Getúlio Vargas, Martins Fontes, Homero Prates, Aloysio de Castro, Vicente de Carvalho, Monteiro
Lobato, Paulo Carneiro, Cecília Meirelles, Dinah Silveira de Queiroz, Castro Alves, Gonçalves
Dias. Rio de Janeiro: Rev. Continente, 1983; KUPSTAS, Márcia. Monteiro Lobato. São Paulo:
Editora Ática, 1988; LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: a Modernidade do contra. São Paulo:
Brasiliense, 1985; LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. São Paulo:
Moderna, 2000; MURALHA, Sidônio. Um personagem chamado Pedrinho: a vida de Monteiro
Lobato para os alunos lerem e os professores também. São Paulo: Brasiliense, 1970; RIZZINI,
Jorge Messias. Vida de Monteiro Lobato. São Paulo: Editora Difusora Cultural Ltda, 1953. Escolhi
Edgard Cavalheiro para melhor me aprofundar na vida e obra de Lobato, a cujas informações
acrescento o olhar decorrente dos estudos de Vasda Bonafini Landers.
44
capazes de ser considerados “arte genuinamente brasílica”, lamentando que o
pintor, “capaz de rasgar sendas novas, [...] desdenhou essa vereda áspera e se
fez europeu” (LOBATO, 1951, p. 76). Em “Almeida Júnior”, elogia a verdade e o
sentimento da expressão. A respeito da morte prematura do pintor, argumenta:
“por fatalidade, mal abrolha no Brasil um artista capaz corre logo a morte violenta
a amordaçá-lo” e acrescenta: “[...] mas os gordanchudos, os falsificadores do bom
gosto, os inimigos da verdade, os pachecões atravessados de Acácio e Brumel
[...] morrem todos no fim da vida, de pigarro senil...” (LOBATO, 1951, p. 87-88).
Em “A poesia de Ricardo Gonçalves”, mais uma vez é o traço de brasilidade que
vem destacar.
Nos quatro artigos em que analisa um poeta e três diferentes pintores,
Lobato desenvolve sua tese sobre a arte brasileira, deixando claro que um artista
não pode prender-se a pastiches de culturas alheias, devendo, primeiro,
compreender sua terra, para, então, bem interpretá-la. Evidencia-se, pelos
argumentos distribuídos nesses artigos, que sua posição em relação à exposição
de Anita Malfatti se dirigia, na realidade, à falta de raízes nas coisas brasileiras e
à devoção aos mandamentos das vanguardas européias que nos quadros da
pintora modernista se manifestavam. Essa leitura não foi feita pelos críticos que
se voltavam para o que de novo o movimento modernista representava na cultura
brasileira, o que continua ainda hoje confundindo os estudiosos sobre o papel de
Lobato na literatura do País.
Esse foi Lobato escritor, o Lobato crítico desejoso de uma arte que
expressasse
a
realidade
brasileira
ou
nela
buscasse
inspiração.
Seu
temperamento inovador e sua brasilidade, no entanto, conduziram também sua
atenção a diferentes e múltiplas linhas de atuação. Outros empreendimentos,
como já vimos, completam sua biografia, seja como fazendeiro, nos primeiros
tempos, ou, mais tarde, voltado para a indústria de livros, ferro, petróleo,
traduções..., mantendo por toda a vida a curiosidade diante de novos desafios.
Voltemos no tempo. Aqui e ali, nas cartas a Rangel, Monteiro Lobato
demonstrava seu entusiasmo na gestação de novas personagens. Quando do
lançamento do Saci-Pererê, em carta de 24 de setembro de 1917, ele assim o
descrevia: “O Saci é um livro sui-generis – para crianças, para gente grande fina
ou burra, para sábios folclóricos; ninguém escapa” (LOBATO, 1972, p. 270). A
45
literatura infantil viria, nos anos finais, a tomar-lhe toda a atividade intelectual,
responsável por torná-lo único na história brasileira.
A preocupação com a criança já está registrada no comentário que consta
em carta de 13 de abril de 1919 a Rangel, quando Lobato revelava:
Tive idéia de um livrinho que vai para a experiência do público infantil
escolar, que em matéria fabulística anda a nenhum. [...] Fiz então o que
vai. Tomei de La Fontaine o enredo e vesti-o à minha moda, ao sabor do
meu capricho, crente como sou de que o capricho é o melhor dos
figurinos. (LOBATO, 1972, p. 290)
Em meio às tantas atividades e interesses que tomaram a atenção de
Lobato, desenvolveu-se sua manifestação criativa, representada inicialmente por
Narizinho Arrebitado, livro que foi publicado em 1921, com intenções inicialmente
didático-pedagógicas, mas que foi se impondo com o aparecimento de inúmeras
personagens e 39 histórias – 32 originais e sete adaptações – capazes de atrair o
interesse tanto das crianças quanto dos adultos.
Ironicamente, revelando-se como fator a agravar o distanciamento sempre
mantido pelos teóricos do Modernismo e acentuando também as controvérsias a
seu respeito, Lobato se tornou cada vez mais uma figura literária de renome e de
repercussão nacional, sendo também reconhecido e traduzido em outros países.7
Na Argentina, criou também uma casa Editora e morou de 1946 a 1947. Chegou
a ser comparado a Andersen. "Ele se torna o Andersen brasileiro, ou o 'Andersen
caboclo' como disse pitorescamente Mário da Silva Brito” (RIBEIRO, s.d., p. 122).
Cada vez mais voltado ao público infantil, Lobato demonstrou profunda
preocupação com os livros ditos “infantis”, o que se pode observar na carta
enviada a Rangel em 1945:
Chegou-me afinal o livro infantil – mas não é livro infantil. Não é literatura
para criança. É literatura geral. Para ser infantil tem o livro de ser escrito
como o CAPINHA VERMELHA do Perrault. Estilo ultra direto sem nem
um grânulo de “literatura”. [...] A coisa tem de ser narrativa a galope, sem
nenhum enfeite literário. O enfeite literário agrada aos oficiais de mesmo
ofício, aos que compreendam a Beleza literária. Mas o que é beleza
literária para nós é maçada e incompreensibilidade para o cérebro ainda
não envenenado das crianças [...] Resta agora a opinião do teste
supremo: elas. Se elas disserem o contrário do que digo, paciência; darei
as mãos à palmatória e terei de revogar minhas teorias. Consulte-as.
(LOBATO, 1972, p. 372)
7 Sobre o papel que exerceu na literatura latino-americana, ler De São Paulo ao Aconcágua: uma trajetória
latino americana para Monteiro Lobato. Disponível em: http:/www.unicamp.br/iel/monteirolobato/outros/
limaportugues.pdf.
46
Monteiro Lobato pretendia criar uma escrita que fosse acessível às
crianças, uma escrita que fizesse da leitura um ato prazeroso e livre do ranço
literário que, segundo ele, afastava os leitores do texto:
Não imaginas a minha luta para extirpar a literatura dos meus livros
infantis. A cada revisão nova das novas edições, mato, como quem mata
pulgas, todas as “literaturas” que ainda as estragam. Assim fiz no
Hércules, e na segunda edição deixá-lo-ei ainda menos literário do que
está. Depois da primeira edição é que faço a caçada das pulgas – e
quantas encontro, meu Deus! (LOBATO, 1972, p. 372)
Esse cuidado com o emprego da palavra destinada a seu público
preferencial – a criança – e a dedicação para tornar seus textos mais
interessantes para aquele público podem facilmente ser comprovados nas
transformações que os contos sofreram em suas sucessivas edições, parecendo
realmente terem sido desbastados de excessos que pudessem desviar o leitor do
mergulho na fantasia e na aventura, para proporcionar-lhe, em conseqüência, a
libertação da imaginação e da criatividade. Cilza Bignotto apresenta, no ensaio
“Monteiro Lobato em construção”, um interessante estudo sobre o processo de
adequação dos textos destinados por Lobato às crianças, destacando nele as
simplificações e substituição de termos que, contrariamente ao que o autor afirma
na carta que acima mencionei, em lugar de torná-los menos literários, dão-lhes
uma feição, não só mais enxuta, mas também mais elaborada, como se pode
observar nos trechos que Bignotto apresenta e aqui reproduzo:
A MENINA DO NARIZINHO ARREBITADO
(1920)
Naquela casinha branca, -lá muito longe,
móra uma triste velha, de mais de setenta
annos.
Coitada! Bem no fim da vida que está, e
tremula, e catacega, sem um só dente na bocca
– jururú... Todo o mundo tem dó d’ella: -Que
tristeza viver sozinha no meio do matto..
REINAÇÕES DE NARIZINHO (1946)
Numa casinha branca, lá no sítio do Picapau
Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta
anos. Chama-se dona Benta. Quem passa pela
estrada e a vê na varanda, de cestinha de
costura e óculos de ouro na ponta do nariz,
segue seu caminho pensando:
Que tristeza viver assim tão sozinha
Nesse deserto...
Estranhamente, é quando está fora do Brasil que Lobato se dá conta do
significado e das possibilidades do mundo encantado que criara. No período de
sua permanência nos Estados Unidos, atingido pelas lembranças da infância,
redescobre as origens da inspiração para as aventuras que desenvolvera nas
histórias do Sítio e resolve dar a seu trabalho o tratamento de que é merecedor.
47
Retoma as três primeiras aventuras de Narizinho e as transforma em Reinações
de Narizinho, um livro básico em torno do qual vão girar todas as outras histórias.
Em 1921 com a publicação de Narizinho, o autor paulista iria construir
para as crianças um mundo livre, utópico, baseado na sua
“desadoração” aos sistemas rígidos. O Sítio do Pica-Pau Amarelo é
simbólico do Brasil que ele queria para todos os brasileiros. “Aqui no
Sítio do Pica-Pau Amarelo”, diz a vovó Benta, “não há coleiras. A grande
desgraça do mundo é a coleira.” O Sítio é também o Brasil característico
com a sua comida, o seu folclore, a sua história e, sobretudo, a sua
língua coloquial e oral. É o Brasil que os modernistas só foram descobrir
anos depois da Semana. (SANDERS, 1988, p. 28)
É nesse universo, ao mesmo tempo espelho e caleidoscópio, que se pode
adentrar, lançando um olhar mais demorado sobre a Menina do Narizinho
Arrebitado e seus companheiros de aventura no portal para o mundo encantado
que Lobato nos legou.
Em sua última entrevista, concedida a Murilo Antunes Alves e publicada na
Folha da Noite de 6 de julho de 1948, à pergunta feita por Murilo sobre como
gostaria de ter vivido se lhe fosse dada a oportunidade de viver novamente, a
resposta de Lobato se estende a analisar a aceitação de seu trabalho por parte
das crianças e termina dizendo:
[...] de maneira que eu acho que queria isso: viver de novo a minha vida,
a vida que eu vivi escrevendo coisas mais variadas, de mais interesse
para as crianças e mais, porque as crianças me condenam uma coisa:
que eu escrevi pouco para elas; poderia ter escrito mais. E eu creio que
sim. Eu perdi o tempo escrevendo para gente grande, que é uma coisa
que não vale a pena. (CAVALHEIRO, 1955, p. 831)
Lobato morreu no dia 3 de julho de 1948, às quatro horas da madrugada,
enquanto dormia, provavelmente focado nas peripécias de Emília, nas fantasias
de Narizinho e de todos os que no sítio de sua imaginação habitavam.
3.2 Lobato e a Escola Nova
Encontrar Monteiro Lobato é olhar também para os movimentos culturais
da República, que dava seus primeiros passos. Impossível avaliar sua dimensão
sem considerar a busca pela brasilidade e a preocupação com as transformações
que se impunham ao País, ainda mergulhado na cultura escravista poucos anos
depois da Abolição, ainda carente da consciência de suas verdadeiras raízes, sob
os reflexos do europeísmo que hipnotizava sua classe dominante. Impossível
48
mensurar o papel de Lobato na construção da literatura brasileira, sua maneira de
ver o mundo, desligada de seus tantos outros papéis: o Lobato pai, o Lobato
editor, o Lobato adido cultural, o Lobato nacionalista, capaz de – na lúcida
percepção do que isso viria a significar – apostar no sonho da exploração do
petróleo.
Mais que tudo, é impossível deixar de olhar para o homem que se debruça
sobre as teorias escolanovistas e vê nelas, transformadas em projeto de
educação, as propostas que ele realiza em seus relatos para crianças. Em
contraposição à escola tradicional, que via na infância uma etapa de preparação
para a vida adulta e, em conseqüência desse olhar, essa etapa como uma
condição transitória e inferior, a Escola Nova institucionaliza o respeito à criança e
também a suas atividades, seus interesses e necessidades.
Para melhor compreender o surgimento da Escola Nova, reproduzo aqui a
fala de Andreotti (2006), que diz que
a década de 1930 é reconhecida como o marco referencial da
Modernidade na história do Brasil, Modernidade entendida como o
processo de industrialização e urbanização, contemplada por inúmeros
estudos que destacam esse período pelas mudanças que inaugurou e
os movimentos políticos que protagonizou: a Revolução de outubro de
8
1930, a Revolução Constitucionalista de 1932 e o Estado Novo, em
1937.
O autor pontua que a Revolução de 1930 foi fruto da crise econômica
mundial que afetou as exportações do brasileiro, que se complicou com a quebra
da bolsa de Nova York em 1929. Entre crise econômica e o surgimento de novas
camadas sociais, “a educação escolar foi considerada um instrumento
fundamental de inserção social, tanto por educadores, quanto para uma ampla
parcela
da
população
que
almejava
uma
colocação
nesse
processo”
(ANDREOTTI, 2006).
As novas tendências educacionais diferenciavam-se da proposta tradicional
na medida em que tentavam transformar o espaço escolar em ambiente menos
tenso, mais flexível, onde a pesquisa fosse privilegiada. A educação era vista
como um processo ativo, privilegiando a autonomia do aluno. Embora tenha
atendido apenas uma camada privilegiada da população brasileira, a Escola Nova
se consolidou como uma nova proposta educativa no Brasil (idem 2006).
Movimento desencadeado no Estado de São Paulo visando a volta ao poder da elite paulista, segmento
hegemônico na Primeira República.
8
49
A educação passou a ser vista como uma porta para a transformação do
Brasil em um país moderno, industrializado e progressista. Esse projeto, abraçado
por Anísio Teixeira, era partilhado com Lobato, que sonhava criar todo um
programa voltado à educação da criança brasileira, conforme pode ser conferido
nas biografias do autor.
Lobato aproximou-se do escolanovismo, porque também acreditava que o
respeito à criança e ao seu universo eram fundamentais no processo educativo e
formativo dos pequenos. Com A menina do narizinho arrebitado (1920) e as
narrativas que se lhe seguiram, o autor apresentou ao público leitor inovações na
literatura infantil brasileira – que até então seguia os modelos estrangeiros e/ou
didáticos que se impunham aos pequenos – e terminaria por conquistar o status
de fundador do gênero no país.
3.3 Lobato e a literatura infantil brasileira
A literatura infantil constitui-se como uma possibilidade real e privilegiada
de diálogo entre o aspecto cognitivo e o imaginário da criança quando “sintetiza,
por meio dos recursos da ficção, uma realidade que tem amplos pontos de
contato com o cotidiano do leitor” (ZILBERMAN, 1985, p. 22).
Concordo com a autora, que afirma que Monteiro Lobato é um marco na
literatura brasileira porque foi o primeiro escritor a fazer uma literatura infantil
respeitando a inteligência da criança, valorizando a imaginação, a irreverência e o
pensamento crítico infantil, Lobato viu na criança o caminho criador de uma nova
ordem social.
Diferente e multifacetado é o fenômeno que transparece na obra de
Monteiro Lobato. Caracterizado pela unidade de tempo, espaço e
personagem, já que sempre abre o núcleo comum com atores que vivem
no Sítio do Pica-Pau Amarelo, no Brasil dos anos 30 [...].
O leitor de Lobato, acrescenta Zilberman, torna-se co-autor do texto na
medida em que lhe dá significação.
Ao partir do irreal para o real ou vice-versa, estabelecendo um diálogo
entre a ficção e a realidade, Lobato superou a lógica tradicional e as convenções
estereotipadas da época, priorizando a natureza e os elementos da cultura
brasileira para desenvolver suas narrações, como forma de crítica a um
50
nacionalismo representado pela manutenção de valores colonialistas e a todos os
discursos conservadores e representativos de uma visão fechada e ultrapassada
da sociedade brasileira. Ele era um apaixonado pela Modernidade, reconhecendo
que o processo de modernização do país estava diretamente ligado à
industrialização e à educação.
É importante ressaltar que Lobato foi o tradutor de inúmeros clássicos da
literatura estrangeira. Fez também a releitura de clássicos da literatura universal e
os adaptou à cultura brasileira. Seu intuito era nacionalizar a literatura, libertá-la
das amarras de Portugal. Como forma de valorizar a tradição folclórica, criou
personagens que representavam a cultura do país, personagens tiradas de lendas
e narrativas orais do povo. Os livros de Lobato envolvem na literatura as idéias de
progresso, desenvolvimento, crescimento econômico e transformação nacional
(nos moldes capitalistas). O autor questionava o analfabetismo, a falta de
conhecimentos, a ausência da prática de leitura e os atrasos resultantes da
colonização portuguesa. Não é de espantar, pois, que em uma de suas muitas
atividades se dedicasse à editoração de livros.
Cabe ressaltar que o objetivo de minha pesquisa não é analisar o caráter
literário, pedagógico e ou ideológico da obra lobatiana, mas sim verificar e
analisar a representação da infância nela contida. É necessário aqui registrar que
algumas de suas obras receberam e continuam recebendo críticas, dentre elas
podem ser citadas: Urupês (1918), que para os críticos apresenta uma visão
negativa em relação ao homem do campo e à linguagem por ele empregada, e
Idéias de Jeca Tatu (1919), que retrata o caboclo como preguiçoso, doente e
burro. Nessas histórias Lobato referia-se ao caboclo como representativo dos
traços culturais do povo brasileiro.
Landers (1988), ao analisar tais obras, salienta que, ao contrário de se
revelarem atitudes preconceituosas e estigmatizantes, tratam-se elas, na verdade,
de críticas ao modo de vida daquelas personagens. Para a autora, Lobato
utilizava metáforas para denunciar as circunstâncias socioeconômicas que
atingiam o homem do Brasil e a alienação em que vivia (p. 53). A ênfase de
Lobato se dá na representação do caipira como vítima do descaso governamental
e conseqüência de um sistema social decadente e excludente.
51
Ainda segundo Landers, em sua obra Urupês, Lobato buscava reproduzir a
oralidade e os coloquialismos da fala brasileira com o objetivo de mostrar que a
diferenciação entre a língua falada e a língua escrita, a língua da cidade e a
língua do campo ou ainda entre um homem educado e um homem simples é um
dos grandes problemas entre escritores e leitores. Para Lobato, era uma anomalia
o fato de o escritor brasileiro não poder ser lido pela maioria de seus
conterrâneos: “o público não os lê porque não lhes entendem nem as idéias nem
a língua” (p. 76). Tais afirmações mostram um Lobato preocupado com o aspecto
social da língua, que, segundo ele, deveria ser um bem comum a todos, assim
como a educação.
Dentre as muitas críticas feitas ao autor, está a de racismo, devido à forma
como o narrador construído por Lobato se refere aos negros em muitas
passagens de seus livros e aos papéis a eles destinados: analfabetos, feios e
executando serviços braçais. Tia Anastácia é um bom exemplo, pois o autor
refere-se a ela durante toda a narrativa chamando-a de a negra, a preta e a boa
negra, omitindo-lhe o nome, sinais do que também é conhecido como racismo
cordial, uma forma de racismo peculiar da experiência brasileira com a
escravidão.
Em Reinações de Narizinho, quando Dona Benta diz que o sítio está
virando livro de contos da Carochinha, pois ela nunca sabe quando seus netos
estão dizendo a verdade ou mentindo, referindo-se ao casamento de Narizinho
com o peixe escamado, o narrador menciona a Tia Nastácia dizendo “a negra
benzeu-se com ambas as mãos” (LOBATO, 1988, p. 97).
No final da obra, quando Dona Benta, as crianças e Emília retornam do
castelo do barão de Munchausen para o sítio e decidem não contar nada para Tia
Nastácia, o narrador diz: “todos fizeram cara de quem vinha chegando da casa do
compadre Teodorico, abriram a porteira e entraram. Mas deram logo com a preta
de mãos na cintura plantada na varanda [...] com ar de quem está ciente de tudo”
(idem p. 302). Não são as palavras que expressam o preconceito, mas sim o
sistema de relações ali explicitados que dão sustentação ao enunciado.
Abaixo apresento outra passagem em que o narrador se refere à Tia
Nastácia de modo excludente e racista, na qual, Emília, após levar uma bronca de
todos principalmente da Tia Nastácia, decide ir embora do sítio:
52
Narizinho foi espiar o que Emília estava fazendo. Encontrou-a no
cantinho da sala onde era o seu “quarto”, muito atarefada em botar os
seus vestidos e brinquedos nas caixas de papelão que lhe serviam de
mala. Mas notou que Emília só botava os vestidos e brinquedos que ela,
Narizinho, lhe havia dado. Os outros, dados pela negra jaziam no chão,
amarrotados e pisados aos pés. Emília estava seriamente ofendida e
sem dúvida nenhuma preparava-se para alguma viagem. Ia arrumando
as malas, ao mesmo tempo que dialogava com o cavalinho.
Não é à toa que ela é preta como carvão.
?
Mentira de Narizinho! Essa negra não é fada nenhuma, nem nunca foi
branca. Nasceu preta e ainda mais preta há de morrer. (LOBATO, 1988,
p. 203).
Discordo da maneira estigmatizante e preconceituosa como Tia Nastácia é
representada na obra lobatiana, mas é importante lembrar que Lobato escreveu
sua obra há mais de cinco décadas e seria injusto olhá-la ou mesmo interpretá-la
com os olhos de hoje. Reforço que a literatura reflete uma sociedade em
andamento e no caso da obra lobatiana caracteriza uma produção surgida num
país cuja sociedade buscava seus caminhos em meio às conseqüências de um
demorado escravismo e de um recente encontro com os ideais republicanos. Os
estertores de um sistema deixado para trás se mesclavam com os preconceitos e
com um acentuado europeísmo, e neles se prolongavam.
No que diz respeito a este assunto, considerados os registros da realidade
nacional nas narrativas de Lobato, é significativa a leitura do artigo de Cilza Carla
Bignotto (2007), em projeto publicado pelo Instituto de Estudos da Linguagem da
Unicamp, no qual a autora traça um paralelo entre a trama e o desfecho do conto
Negrinha, no livro de mesmo nome, publicado por Lobato em 1920 – anterior,
portanto, a menina de narizinho arrebitado –, e os episódios deste último.
Primeiramente, a autora chama atenção para as diferenças históricas, culturais e
ideológicas entre os primeiros leitores de Lobato e os leitores atuais. Para ela:
O horizonte de perspectivas do leitor atual abrange conceitos como o de
“direitos da criança”, conceito este que serve, pelo menos em teoria,
para todas as crianças. Diferente era o modo de pensar de alguém que
fosse senhor de escravos – e esse modo de pensar não desapareceu
com a abolição da escravatura, infelizmente. (s.p.)
Negrinha, como Narizinho, tem sua vida transformada por uma boneca.
Mas, ao contrário de Narizinho, para quem a boneca representa parceria e
descoberta para a vida, em “Negrinha”, em que a personagem que dá título ao
conto é filha de ex-escrava, essa descoberta leva a menina à morte. Em
53
“Negrinha”, encontra-se o registro da criança pobre, negra, que não encontra
lugar sequer para o sonho em seu cotidiano de rejeição: a tristeza nela se instala
e a leva à morte depois de ter podido a menina conhecer uma linda boneca loira e
com ela brincar (registro de um Brasil que não tinha espaço na sociedade
europeizada que aqui se constituía?). Em Narizinho, a menina branca, mas de
pele morena (a mescla, a miscigenação?), que ganha de Tia Nastácia (negra)
uma boneca – produto de suas mãos laboriosas, feita com restos de pano, o rosto
bordado com fios (rejeição ao europeísmo que se refletia nos rostos das bonecas
loiras de porcelana?).
Com referência àquele momento da sociedade brasileira, a autora
acrescenta que a mudança ocorreu lentamente ao longo da história. Não foi um
processo brusco nem automático. Segundo ela, é a permanência do preconceito e
da opressão que Lobato registra no conto em questão.
Lobato situa a história de Negrinha em um tempo em que a escravidão
havia sido abolida por lei - mas leis não têm força para abolir costumes
culturais entranhados em pessoas que conheceram uma época em que
a lei era outra. O mundo (ou o Brasil, a vida, o “certo”) para Dona Inácia
ainda é aquele da escravidão. A ideologia da ex-senhora de escravos
choca-se violentamente com a nova ideologia decretada no 13 de maio.
Para o narrador Negrinha é uma criança, e é assim que ele a apresenta
ao leitor - não é à toa que a palavra criança aparece 8 vezes no conto,
sempre ligada à menina. Mais: ele mostra o interior da menina, diz que
ela tem alma – portanto – é gente. (BIGNOTTO, 2007, s.p.)
Bignotto demora-se na análise do comportamento com que o narrador
caracteriza a personagem Dona Inácia e sua relação com Negrinha, lembrando a
seu leitor que na revelação está a denúncia:
É natural para Dona Inácia que Negrinha seja “boa para uns croques”,
viva dentro de sua casa como um enfeite da sala e, a princípio, não
possa brincar com suas sobrinhas. Negrinha é a boneca de Dona Inácia,
que a conserva como “remédio para os frenesis” - daí as marcas de
espancamentos no corpo da menina, como as marcas que as crianças
deixam em alguns brinquedos. Boneca que não corresponde, porém, ao
ideal físico imaginado para as bonecas da época. Razão pela qual,
talvez, receba apenas os croques, e não carinhos. (2007, s.p.)
Sobre as relações que colocam as personagens negras em situação de
inferioridade nas narrativas de Monteiro Lobato, Marisa Lajolo (1998) desenvolve
interessante análise em que evidencia a ambigüidade aparente nos textos de
Lobato e pouco esclarecedoras nas críticas a eles. Relembrando que toda
produção literária está por si mesma comprometida com a verossimilhança, afirma
54
que “os xingamentos de Emília [são] absolutamente verossímeis e, portanto,
esteticamente necessários numa obra cuja qualidade literária tem lastro forte na
verossimilhança das situações e na coloquialidade da linguagem” (s.p.).
Acrescenta a autora que o apagamento da tensão entre diferentes mundos da
cultura (o de um negro analfabeto e o de crianças brancas) pode ter um sentido
alienante. Para ela, não tematizar a diferença e diluir em afeto complacente o
choque de culturas proporciona ao leitor “a experiência apaziguante de uma
situação na qual fica apagada toda a violência do modo pelo qual se processava a
modernização brasileira” (s.p.).
Apontando para o europeísmo que dominava a cultura e os costumes dos
anos trinta, Lajolo questiona: “se não havia lugar para os dois negros no sítio da
Dona Benta como haveria lugar para eles no Brasil de Lobato?” (1998, s.p.)
Lembremos Bakhtin (1988) quando destaca, a respeito das vozes que
constituem o texto romanesco, que o diálogo do romance é um diálogo particular.
Nele se dá um encontro de linguagens que ecoam nos híbridos e no pano de
fundo dialógico dos enunciados. Esse hibridismo exige do escritor, pela
necessidade de estilização que lhe cobra, além do aguçamento, expansão e
aprofundamento do horizonte lingüístico.
O próprio argumento se submete à tarefa da correlação e da descoberta
mútua das linguagens. O argumento do romance deve organizar o
desmascaramento das linguagens sociais e das ideologias, mostrá-las e
experimentá-las: a experimentação da palavra, da visão de mundo e do
fundamento comportamental ideológico da ação, a demonstração dos
hábitos, dos mundos e dos micromundos sociais, históricos e nacionais
(romances descritivos, de costumes e romances geográficos) ou dos
mundos sócio-ideológicos de uma época (memórias romanescas, as
variantes do romance histórico) ou ainda das idades e gerações ligadas
às épocas, aos mundos sócio-ideológicos (o romance de aprendizagem
e formação). Em resumo, o argumento do romance serve para a
representação dos sujeitos falantes e de seus universos ideológicos. No
romance, realiza-se o reconhecimento de sua própria linguagem numa
linguagem do outro, o reconhecimento de sua própria visão na visão de
mundo do outro. (p. 162)
Embora as narrativas de Lobato não possam ser caracterizadas como
romances, podemos nos valer dessa particularidade que Bakhtin destaca para a
correlação de linguagens e o desvelamento dos micromundos sociais na análise
de seus textos.
Com base nas afirmações acima, é possível constatar que Lobato, a
despeito de usar uma linguagem pejorativa, desvela a realidade, a forma como
55
eram tratados os negros daquela época (preconceito que tantas vezes perdura
em nossos dias). Com ironia e deboche, o autor criticava uma sociedade que se
autodenominava européia. Curiosamente, Lobato vai encontrar elementos para
contrapor a influência européia justamente nos ingredientes folclóricos e
mitológicos da cultura brasileira, resultado da mestiçagem entre brancos, índios e
negros.
Outro fator marcante e sempre apontado na obra de Lobato refere-se ao
didatismo existente em boa parte de sua obra para a criança. De acordo com
Coelho (1987), Lobato foi o precursor de uma literatura voltada para a infância,
porém seus escritos estavam comprometidos com o didatismo “ainda sob o
magistério do pensamento materialista/positivista em que foi formado, Monteiro
Lobato via o mundo real e o da fantasia perfeitamente delimitados, – cada qual
com sua natureza específica” (p. 96).
A autora acrescenta que em A menina do narizinho arrebitado (um
precursor dos livros paradidáticos no Brasil), há o predomínio do racionalismo
sobre a livre fantasia. O autor fazia uso da fantasia, mas a disciplinava com a
lógica e o didatismo. Contudo, conforme evoluem os escritos de Lobato, evolui
também a forma como ele vê a fantasia e o real, surgindo, então, uma forma outra
de perceber e ver a criança.
No entanto, cabe aqui salientar que em obras como Os doze trabalhos de
Hércules, O poço do Visconde e A geografia de Dona Benta, predomina o caráter
didático. Nesse caso, a literariedade cede espaço para o pedagógico.
Destaque-se, todavia, que Lobato utilizou uma linguagem que a criança da
época entendia, buscando também resgatar a memória cultural, os mitos e as
lendas do povo brasileiro, fazendo-os contracenar com narrativas de outras
culturas. O autor tinha uma visão crítica do mundo e pretendia, com sua obra,
desmascarar a permanência de valores que implicavam a estagnação social,
histórica e cultural do Brasil.
A identificação da criança com o mundo ficcional criado por Lobato propicia
ao leitor uma interação com as personagens. Essa interação, destacada por
Zilberman, permite o exercício da linguagem em sua dimensão lúdica.
Esse universo, contudo, se alimenta da fantasia do autor, que elabora
suas imagens interiores para se comunicar com o leitor. Assim, o texto, a
racionalidade da linguagem, de que é testemunha sua estrutura
56
gramatical, com a invenção nascida na intimidade de um indivíduo [...]
pode lidar com a ficção mais exacerbada, sem perder o contato com a
realidade, pois precisa condicionar a imaginação à ordem sintática da
língua. Por isso, a literatura não deixa de ser realista, documentando seu
tempo de modo lúcido e crítico; mas mostra-se sempre original, não
esgotando as possibilidades de criar, pois o imaginário empurra o artista
à geração de formas e expressões inusitadas. (ZILBERMAN e SILVA,
1990, p. 18-19)
O destaque que envolve a palavra falada nos textos de Lobato se repete na
valorização à palavra escrita. Aspecto importante da obra lobatiana é a leitura
associada ao prazer e ao dia-a-dia das personagens, muitas vezes sendo
ressignificada, “reescrita” de acordo com a realidade dos leitores, apresentando
uma linguagem que entra em dissonância com a linguagem da época. Lobato
utiliza o lúdico, a fantasia, a criatividade como estímulo à leitura, como se pode
perceber na seguinte passagem em que Dona Benta lê a história sobre o irmão
do Pinóquio:
– Coitada de vovó! – disse um dia Narizinho. – De tanto contar histórias
ficou que nem bagaço de caju; a gente espreme e não sai mais nem um
pingo.
Era a pura verdade aquilo – tão verdade que a boa senhora teve de
escrever a um livreiro de São Paulo, pedindo que lhe mandasse quanto
livro fosse aparecendo. O livreiro assim fez. Mandou um e depois outro e
depois outro e por fim mandou Pinóquio.
– Viva! – exclamou Pedrinho quando o correio entregou o pacote. – Vou
lê-lo para mim só, debaixo da jabuticabeira.
– Alto lá! – interveio Dona Benta. – Quem vai ler o Pinóquio, para que
todos ouçam, sou eu, e só lerei três capítulos por dia, de modo que o
livro dure e nosso prazer se prolongue. A sabedoria da vida é essa.
– Que pena! – murmurou o menino fazendo bico. – Não fosse a tal sabe-do-ri-a da vida, que nunca vi mais gorda, e hoje mesmo eu dava
conta do livro e ficava sabendo toda a história do Pinóquio. Mas não!
Temos de ir na toada de carro de boi em dia de sol quente – nhen, nhen,
nhen...
Sua zanga, porém, não durou muito, e assim que chegou a noite e Tia
Nastácia acendeu o lampião e gritou o “É hora!”, ninguém se mostrava
mais assanhado que ele.
– Leia de sua moda, vovó! pediu Narizinho. A moda de Dona Benta ler
era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros para
crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do
tempo do onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo
aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava,
por exemplo, “lume”, lia “fogo”; onde estava “lareira”, lia “varanda”. E
sempre que dava com um “botou-o” ou “comeu-o”, lia “botou ele”,
“comeu ele” — e ficava o dobro mais interessante. (LOBATO, 1988, p.
193-194)
57
Ao final de sua vida, com a visão já comprometida em decorrência de
um espasmo cerebral, em carta enviada a Rangel, Lobato escreve sobre a
importância da leitura para ele:
Tenho estado, todo este tempo, privado de leitura – e que falta me faz! A
civilização me fez um “animal que lê”, como o porco é um animal que
come – e dois meses já sem leitura me vêm deixando estranhamente
faminto. Imagine Rabicó sem cascas de abóboras por 30 dias!
(LOBATO, 1972, p. 378)
Parto do pressuposto de que a leitura não é um processo isolado e está
intrinsecamente ligada à formação do sujeito, de sua identidade e suas ideologias,
além de garantir a continuidade do processo de aperfeiçoamento da sociedade,
capacitando-o para exercer seus direitos e deveres. Por meio da leitura, é
possível o desenvolvimento do pensamento crítico organizado pela utilização do
simbólico e pela percepção da plurissignificação contida nas narrativas,
ampliando, dessa maneira, as possibilidades conseguidas com o imaginário e
com o faz-de-conta que retratam a infância, na qual a criança é capaz de se
misturar com a ficção, alterando-a conforme sua realidade, reconstruindo sentidos
diferentes por meio da linguagem.
Durante toda sua narrativa, Lobato reforça a importância da leitura para a
formação da consciência crítica:
Dona Benta era outra que achava muita graça nas maluquices da
boneca. Todas as noites punha-a ao colo para lhe contar histórias.
Porque não havia no mundo quem gostasse mais de histórias do que a
boneca. Vivia pedindo que lhe contassem a história de tudo – do tapete,
do cuco, do armário. Quando soube que Pedrinho, o outro neto de Dona
Benta, estava para vir passar uns tempos no sítio, pediu a história de
Pedrinho.
– Pedrinho não tem história – respondeu Dona Benta rindo-se. – É um
menino de dez anos que nunca saiu da casa de minha filha Antonica e,
portanto, nada fez ainda e nada conhece do mundo. Como há de ter
história?
– Essa é boa! replicou a boneca. – Aquele livro de capa vermelha da sua
estante também nunca saiu de casa e, no entanto, tem mais de dez
histórias dentro. (Lobato, 1988, p. 32)
Mesmo ao serem apresentadas situações de oralidade, não deixa de ser
ressaltada a importância do livro como princípio da cultura. É sempre a partir de
uma leitura que Dona Benta dá vida às histórias que conta. Mesmo sofrendo, sua
narrativa, mudanças em função de sua forma própria de leitura do texto, é a partir
58
do texto escrito – que desenvolve e/ou registra e resgata as narrativas – que ela
conta a história ao grupo.
A criança inicia seu aprendizado a partir de sentidos anteriores aos da
visão: aprende a respirar e, aos poucos, troca um modo de viver por outro,
percebendo novas realidades pelo tato, olfato, paladar etc. Adapta seus instintos
às condições que o meio lhe oferece, estabelecendo, desse modo, relações de
sentido com o outro e com o mundo. Acrescenta mais tarde, a essa vida quase
sensitiva, o mundo da linguagem oral e, depois, o da escrita que a primeira
palavra inaugura. E ler significará para sempre o ato de compreender, estabelecer
relações inicialmente individuais com cada objeto ou ser que nomeia, ampliandoas mais tarde, momento único no qual a criança está fascinada pelo mistério dos
signos e supostamente pelo encantamento do texto, que deveria possibilitar além
da decodificação uma forma de se conhecer e reconhecer a realidade.
Lendo, a criança identifica-se com o mundo, assumindo inúmeras vezes o
papel da personagem, podendo ressignificar ou não a sua realidade. A leitura é
uma maneira de conhecer o mundo, e a literatura é uma forma simbólica de
conhecimento do real. Conseqüentemente, a leitura propicia respostas para seus
questionamentos: “para criança o livro é todo um mundo [...] Ainda acabo fazendo
livros onde nossas crianças possam morar” (LOBATO apud ARROYO, 1988, p.
205).
Vânia Maria Resende (1983, [s.p]) acrescenta:
Na infância, a leitura deve guardar uma finalidade lúdica, porque é
essencial a convivência recreativa com estórias e poemas, a fim de se
ativar o potencial do imaginário infantil pelo potencial de inventividade
dos textos literários. É conveniente que esses textos sejam impregnados
de surpresa, liberdade de atitudes das personagens, saídas originais por
parte do escritor, para estimular a percepção da criança e a sua conduta
após a leitura.
Letras e palavras representam para a criança instrumentos que poderão
levá-la a respostas para além de seus significados. São resultados que agem
expressivamente, aprofundando na criança a consciência de si mesma e,
também, auxiliando-a na aquisição de competências para decodificação dos
símbolos que se apresentam para ela numa realidade determinada.
Acrescenta, ainda, a autora que o contato com a arte literária possibilita um
olhar mais sensível e perceptivo para o mundo exterior. Ao entrar em contato com
59
um universo ficcional, a criança toma consciência de seu poder de criação e se
reconhece como alguém que pode modificar, ainda que ficcionalmente, a história
e o mundo (RESENDE, 1983 [s/p]).
O encontro com o espaço que a fruição da palavra favorece permite o
encontro do ser com a fantasia, com o maravilhoso e também consigo mesmo,
em suas múltiplas dimensões. Benjamin (2002), analisando a leitura, salienta que,
ao entrar em contato com a leitura, mais propriamente com o conto maravilhoso,
“a criança torna-se produtora de sentidos, ressignificando a história”, surgindo, a
partir desses jogos de percepção, um olhar mais crítico para o contexto
inaugurado pela reinterpretação. Ao ler, a criança, reescreve e recria. A leitura
pode ser entendida como o estabelecimento de uma relação dinâmica que vincula
a linguagem à realidade.
A criança consegue lidar com os conteúdos do conto maravilhoso de
maneira tão soberana e descontraída como o faz com retalhos de
tecidos e material de construção. Ela constrói seu mundo com motivos
do conto maravilhoso ou pelo menos estabelece vínculos entre os
elementos do seu mundo. (BENJAMIN, 2002, p. 58)
Cada palavra carrega sua história, história aberta a novas aventuras, o que
faz de cada leitor/ouvinte um recriador, capaz de retomá-la, de revesti-la de novas
nuances e emoções e de perceber nela a soma de linguagens e de momentos
que traduz.
Nesse sentido, a leitura favorece a auto-percepção, a percepção do outro e
influencia na formação da consciência e da cidadania. Ler pressupõe inteirar-se,
integrar-se e interagir com o mundo e com o mundo do leitor. Tal afirmação
encontra respaldo em Paulo Freire (2003 p. 11), que diz que “a leitura do mundo
precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir
da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente”. Despida de sua neutralidade e atuando num processo de
subversão do estabelecido, pode ser utilizada para a abertura, o encontro com o
outro e consigo mesmo, para a efetivação do processo de conhecimento e o
respeito às individualidades.
Outro aspecto de extrema relevância é o da leitura como reprodutora do
status quo, que leva ao empobrecimento criativo, resultado da passividade
obediente, e ao esvaziamento da consciência crítica; esta, por ser incompatível
60
com a alienação, poderia propiciar rupturas. Nessa situação, a leitura apresentase paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que é democrática, pode tornar-se
instrumento de exclusão.
É importante ressaltar que o ensino de literatura, vista como elemento que
estimula o imaginário, a criação, a fantasia e a multiplicidade da linguagem,
ajudando dessa forma na elaboração e percepção da realidade, tem-se dado de
maneira estereotipada, limitando a relação do texto com o leitor. Esse enfoque é
reforçado por Osman Lins que, em seu livro Do ideal e da glória: problemas
inculturais brasileiros (1977), denuncia que a didatização dos textos literários na
escola contribui para que a literatura se torne fragmentada e sem significado.
Sendo assim, muitos dos alunos têm nos livros escolares seu primeiro e muitas
vezes único contato com a literatura e o único meio de chegar a conclusões sobre
o que são as letras e os escritores. Evita-se o texto, substituindo-o por resumos,
enredos, caracterização de períodos e/ou biografias, e, em decorrência disso,
afasta-se o leitor do livro.
O aprofundamento da leitura em sua multiplicidade de possibilidades é
capaz de oferecer ao homem contemporâneo grande conhecimento quando
somado à construção de sua história, perseguindo o objetivo maior de torná-lo
senhor de seu próprio desenvolvimento e, como Riobaldo,9 consciente de que o
homem é um permanente aprendiz. É preciso que os educadores encontrem a
melhor maneira de fazer da leitura uma forma de diálogo incessante com o
processo de transformação.
Com base nessa convicção, acredito que ensinar a ler ultrapassa os limites
pedagógicos e técnicos do ensino, consiste na formação de sujeitos que, além de
saberem ler e escrever, são capazes de criar, re-criar, imaginar, ressignificar e
pensar, atitudes que contribuem para a construção de suas identidades, seja por
meio dos questionamentos acerca do mundo ou da busca de soluções para
problemáticas individuais e/ou coletivas.
Também aqui, na valorização da palavra escrita e do hábito de leitura que
permeia suas narrativas, encontramos o gesto de abrir as cortinas, não só para o
9 “O Senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou
desafinam. Verdade maior” (ROSA, 1979, p. 20).
61
conhecimento, mas também para o mundo da ludicidade e do encantamento que
caracteriza a obra de Monteiro Lobato.
Lobato também reconhecia a língua como um instrumento social, e em
suas narrativas utilizava uma linguagem que era acessível a todos. Preocupavase em superar a dualidade social entre a língua escrita e a falada, a linguagem da
cidade e a do campo. Por meio de neologismos e metáforas, reproduzia a
linguagem oral do homem do campo, dando-lhe significado literário, acreditando
que “a tarefa do escritor de um determinado país é levantar um monumento que
reflita as coisas e a mentalidade desse país por meio da língua falada” (LOBATO
apud LANDERS,1988, p. 76).
Considere-se que as palavras não são neutras. Elas não só revelam a
imagem que traduzem como estão impregnadas pelo momento histórico-social
que lhes deu significado. Além do sentido que trazem de seu nascedouro, vão-se
contaminando com os novos usos que delas fazem os grupos sociais,
profissionais, confessionais, culturais, ou seja, a comunidade, a política, as
religiões, a mídia, enfim, o ser humano em seus múltiplos papéis. Em razão desse
movimento permanente – o que faz da língua um organismo de expressão social,
enquanto certas palavras deixam de ser usadas, outras são criadas e outras
tantas adquirem novos significados.
3.4 Reinações de Narizinho
Narizinho Arrebitado é a porta de entrada para o mundo de encantos e
aventuras que Lobato vai desenvolver nas histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
A partir desse portal, toda uma nova aventura está reservada ao público infantil.
Monteiro Lobato, em sua obra literária, ao mesmo tempo, registra o
imaginário coletivo e o impulsiona com as novas idéias sobre infância nessa obra
presentes. Da mesma forma, registra as idéias sobre infância que existiam nos
segmentos sociais que constituíam o Brasil arcaico. Observar o universo lobatiano
é recuperar um pouco o encontro do escritor com essa profusão de idéias e
impulsos de mudanças que era o Brasil, e especialmente São Paulo, no começo
do século vinte. Muitas das personagens que fazem as histórias do Sítio – como,
62
por exemplo, o tio Barnabé – parecem saídas desse caldeirão para as páginas do
livro, onde vão iniciar os netos de Dona Benta na cultura popular brasileira.
Especial atenção merece a relação linguagem/mundo presente em suas
narrativas. Monteiro Lobato demonstra particular interesse pela linguagem, para
que ela seja limpa e clara – sem estar presa a gramatiquices ou academicismos –
ou seja, uma linguagem expressiva, capaz de reproduzir a vida em movimento.
Suas personagens brincam com as palavras, como se evidencia não só em Emília
no País da Gramática, mas em muitos momentos em que histórias são
apresentadas aos pequenos por meio de leituras ou narrativas orais.
Narizinho é a criança-símbolo de outras tantas crianças que com ela vão
mergulhar na aventura lobatiana. Lúcia personifica muitas crianças e Lobato faz
questão de mantê-la assim durante toda a sua narrativa. Ela sonha com príncipes
encantados e castelos. Fantasia e imagina o tempo inteiro. E dá vida a todos os
seres: a boneca, o peixe, a vespa etc. Narizinho conversa com sua boneca e os
animais; assim o fazem muitas crianças absortas em suas imaginações.
Essa menina, Monteiro Lobato presenteou com a boneca feita de retalhos,
tagarela e curiosa, que lhe apontaria caminhos de descoberta, mesclados de
encanto e de conhecimento, provando que estes não se excluem, pelo contrário,
somam-se na leitura do mundo.
Aponto Narizinho como representante da infância lobatiana, justamente por
perceber a ambigüidade existente na obra de Lobato. Mesmo vendo a infância a
partir de uma concepção de natureza infantil homogênea e romântica, Lobato
percebe e respeita a sensibilidade da criança, evidenciado assim, a consideração
que o autor tinha com seu público infantil, o carinho pela criança, a certeza de que
a criatividade é fundamental para a formação da personalidade. Um aspecto de
extrema importância é o uso de uma linguagem própria, lúdica, que vai muito
além dos discursos narrativos. O narrador de Lobato, inúmeras vezes, escreve
como se fosse uma criança relatando uma história. Somente quem tem respeito
pela imaginação, pela fantasia e pelas crianças conseguiria fazer tal descrição,
como podemos perceber na seguinte passagem:
Após serem aprisionados pelos macacos, Emília convence o Rei-Sol que
seu alfinete de pombinha é um passaporte e, portanto, ela poderia por ali
passear. O rei, que desconhecia tal objeto, deixou-se convencer pela
boneca e decidiu soltá-la. Os guardas começaram a desamarrar Emília.
Enquanto isso Pedrinho achou jeito de lhe dizer na linguagem do P, que
63
os macacos não entendem: Apavipisepe Pepenipinhapa quepe
espestapamospos naspas upunhaspas despestapa hoporrenpendapa
mapacapacapadapa. (Avise Peninha que estamos que estamos nas
unhas desta horrenda macacada). (LOBATO, 1988, p. 275)
No resumo dos contos que compõem a obra Reinações de Narizinho que
apresento a seguir, busco retomar essas personagens e trazê-las para dentro da
discussão que, a partir delas, me propus desenvolver. Acompanhar sua trajetória
e suas peripécias vai me permitir apresentar o panorama em que me debruço
para melhor ouvir suas vozes e o significado delas para a criança brasileira e para
aqueles que fazem da criança o foco de seu olhar.
3.4.1 Narizinho arrebitado
O livro conta a história de uma menina chamada Lúcia, a quem todos
chamavam de Narizinho Arrebitado (por causa de seu nariz empinadinho) que
vivia em companhia de sua avó Dona Benta, Tia Nastácia e de sua boneca de
pano Emília. Narizinho amava aventurar-se pelo sítio e aonde quer que fosse
arrastava sua boneca junto, passava seus dias brincando, subia em árvores
colhia frutas nos pés, corria atrás dos bichos, mas o que ela mais adorava era
deitar-se à beira do rio e, foi justamente lá que em uma tarde num breve cochilo
ela recebeu a inesperada visita do Príncipe Escamado. O Príncipe, por sua vez,
convidou-a para conhecer o reino das águas claras com a promessa de que lhe
apresentaria o Doutor Caramujo, um sábio médico que faria com que a boneca de
pano falasse.
Quando lá chegaram, Narizinho e o Príncipe passearam por todo o palácio.
A menina conheceu os ilustres moradores do reino das águas, viu polvos,
enguias, baleias, uma infinidade de belas coisas, e tudo lhe pareceu maravilhoso.
Sentiu-se importante na companhia de tão estimado Príncipe e encontrou até
mesmo a Dona Baratinha. Isto obviamente causou um incidente, pois ambas não
simpatizavam nem um pouco uma com a outra. Narizinho tinha aversão à maneira
como a empertigada barata contava suas histórias.
Em meio a tanta novidade, foi apresentada à Dona Aranha, uma encantada
e encantadora costureira e suas seis filhinhas, conhecendo seu ateliê de costura.
64
Dona Aranha era a melhor costureira do reino e a ela cabia fazer os vestidos das
princesas e rainhas.
Por fim, após tantas aventuras, conseguiu que o Doutor Caramujo desse a
pílula falante a Emília, que imediatamente começou a falar. A partir desse dia a
vida da menina não seria mais a mesma. Narizinho considerou aquele o melhor
passeio de sua vida e teria ficado no reino para sempre, não fosse pelo berro da
Tia Nastácia, que ecoava lá fora dizendo que a avó estava chamando...
3.4.2 O noivado de Narizinho
Muito tempo passou desde a ida de Narizinho até o Reino das Águas
Claras, e com isso o príncipe Escamado ficou extremamente triste, desejando a
volta da menina. Ele adoeceu e foi diagnosticado de amor recolhido e que
somente ficaria curado com o casamento. Tomaram, assim, todas as
providências: chamaram a Senhora Lula, que é a escrevente do Mar, e
encomendaram uma carta com o pedido de casamento para que fosse levado
pelos peixinhos escoteiros até o sítio. Pedrinho foi quem encontrou a carta e
entregou para Narizinho, que aceitou de imediato.
A partir daquele dia, os noivos corresponderam-se com muita freqüência,
até o dia em que Narizinho voltou ao Reino da Águas Claras acompanhada por
Emília, Pedrinho, Visconde e Rabicó. Narizinho e Emília ficaram às voltas com os
vestidos da festa; enquanto isso, os outros iniciaram sua expedição pelo Reino
das Águas Claras e assim, como a menina, ficaram encantados com tudo o que
viram por lá. Emília, por sua vez, falou sem parar, sempre questionando tudo e
todos. Visconde, como um bom estudioso, interessa-se pelas novidades. Todavia,
como tudo é muito diferente do sítio em que vivem, os desbravadores se metem
em algumas confusões. Um bom exemplo é o dia em que Rabicó, faminto,
confundiu um tentáculo de um polvo com uma mandioca ou ainda quando ocorreu
o sumiço da coroa do Príncipe Escamado, o que gerou uma imensa confusão. Os
cinco tiveram de voltar correndo para o sítio.
65
3.4.3 Aventuras do príncipe
Após a expedição ao Reino da Águas Claras, Narizinho e Emília
encontraram o Gato Félix, que, de acordo com a menina, era um gato muito
inteligente e reinador. Ele lhes disse que estava a percorrer o mundo para
descobrir que país possui o rato mais gostoso. Félix informou também que o
Príncipe Escamado estava vindo até o sítio para visitar-lhes. Com a chegada do
príncipe e sua comitiva ao sítio, Dona Benta e Tia Nastácia ficaram muito
assustadas e não quiseram deixar que eles entrassem na casa. O que foi inútil,
pois com a ajuda de Pedrinho a casa logo estava cheia de peixes, conchas,
caranguejos e os mais variados e estranhos bichos do fundo do mar, e foram logo
se apresentando, causando grande espanto nas duas senhoras.
Recuperada do susto inicial, Dona Benta entrosou-se com o doutor
Caramujo. Tia Nastácia, por sua vez, fugiu para a cozinha, seguida por uma
sardinha curiosa. A visita inusitada daqueles seres marinhos prosseguiu
normalmente. E, assim como os visitantes do sítio fizeram em seu reino, o
Príncipe Escamado, acompanhado de Narizinho, quis conhecer o sítio. Em seu
passeio, ficou impressionado com a vaca mocha e queria levá-la para seu reino.
Contudo, a boa impressão acabou no momento em que a vaca mugiu, pois o
pobre príncipe levou um susto que só foi maior quando retornou para a casa e
descobriu que Miss Sardine (a sardinha que grudou em Tia Nastácia) havia
mergulhado na frigideira de gordura pensando que fosse uma lagoa e ficou
“fritinha da silva”.
3.4.4 O Gato Félix
Com a partida do príncipe Escamado, o Gato Félix tornou-se o centro das
atenções e passava as noites contando histórias fantasiosas sobre seus
antepassados que, segundo ele, haviam sido todos ilustres personagens dos mais
diversos acontecimentos. Gato Félix afirmava ser um “cinqüentaneto” do Gato de
Botas, que era um escudeiro do Marquês de Carabas. Seu avô, por exemplo,
viera para a América junto com Cristóvão Colombo. As aventuras em diversos
66
países e as descrições feitas pelo gato deixavam todos muito curiosos, pois eram
permeadas de detalhes verídicos. O Gato Félix explicou-lhes que estava, assim
como seus antecessores, à procura do lugar “onde o Demo perdera as botas”.
3.4.5 Cara de coruja
Enquanto estavam no reino da águas claras aguardando pelas pílulas do
Doutor Caramujo que haviam desaparecido, Emília foi seqüestrada. Tão logo deu
por sua falta Narizinho sai a sua procura e a encontra toda arranhada e
desacordada. Todos no reino ficaram perplexos com tamanha brutalidade, mas
como a boneca sofria de “mudez” somente descobririam o criminoso quando ela
estivesse falando.
Doutor Caramujo, que havia perdido suas pílulas propõe que matem um
papagaio falador do reino para tirar sua “falinha” e colocar dentro da boneca.
Narizinho, chocada com a proposta, pois considerava um crime matar qualquer
animal, diz que prefere a mudez de Emília ao sacrifício do papagaio. O problema
é resolvido quando o sapo Major Agarra procura pelo médico pedindo que ele
abra sua barriga para tirar umas pedras que havia engolido. Para felicidade de
todos não eram pedras, mas sim as pílulas falantes. Após darem uma das pílulas
a Emília, ela desandou a falar e relatar a sua maneira que foi Dona Carochinha
que a seqüestrou e bateu em sua cabeça deixando-a desacordada até que o
“Doutor Cara de Coruja” lhe deu a pílula. Narizinho tratou logo de corrigi-la
dizendo:
Doutor Caramujo Emília!
Doutor CARA DE CORUJA. Só acordei quando o doutor CARA DE
CORUJÍSSIMA me pregou um liscabão.
Beliscão. Emendou Narizinho pela última vez [...]. (LOBATO, 1988, p.
28.)
E esse passou a ser o pior dos xingamentos de e para Emília.
3.4.6 O Irmão do Pinóquio
67
Logo após ouvir Dona Benta contar a história do Pinóquio, Emília convence
Pedrinho a procurar um pedaço de pau vivente para que, assim como Gepeto,
pudessem construir um boneco falante. Esse seria, então, o irmão de Pinóquio.
Ela pede que o menino lhe dê seu cavalinho de pau. Após procurar durante uma
semana inteira pela mata, Pedrinho questiona Emília sobre a veracidade da
história. A boneca, com medo de perder seu já afeiçoado cavalinho de madeira,
pede ajuda a Visconde.
O sabugo, que sempre se deixava levar por tudo que ela dizia, escondeuse em um buraquinho de um tronco de árvore e, no momento em que Pedrinho
deu uma machadada no tronco, soltou fortes gemidos. Feliz com seu achado, o
menino levou uma grande lasca do tronco para casa e lá decidiram, por meio de
um concurso (era um sítio bem democrático), que Tia Nastácia faria o boneco, o
que resultou em grande desastre, mas democracia é democracia.
Além da aparência do boneco, “que mais parecia um monstro”, ele
continuava “mudinho da silva”, para decepção de Pedrinho. Emília apenas
lançava olhares furtivos para Visconde (ambos loucos para cair na gargalhada). O
tempo passou e nada de João faz-de-conta falar. Esse nome foi escolhido por
Emília, que era a “botadeira de nome” do sítio e justificou sua escolha da seguinte
maneira:
– João, porque ele tem cara de João. Todo sujeito desajeitado é mais ou
menos João. E, Faz-de-Conta, porque só mesmo fazendo de conta se
pode admitir uma feiúra desta. Faz-de-conta que não é feio. Faz-deconta que não tem ponta de prego nas costas. Faz-de-Conta que...
(LOBATO, 1988, p. 206)
O boneco já tinha nome, contudo ainda não falava. Então Pedrinho, depois
de dar ouvidos à idéia do sábio Visconde, passou três dias assoprando no nariz
do boneco para que ele vivesse, o que resultou apenas em uma bochecha
inchada. Isso foi a gota d’água, e ele decidiu jogar o pedaço de madeira em cima
de um armário. “Após brigar com Emília, Pedrinho saiu indignado para floresta e
deu de cara com o tronco gemedor (pai de João-faz-de-conta) e para sua
surpresa encontrou dentro de um buraco uma cartolinha...” (LOBATO, 1988, p.
202). Mas isso é outra história!
3.4.7 O circo de escavalinhos
68
Após mais um concurso para ver quem tinha melhor idéia, Emília venceu
com a idéia de montar um “círculo de escavalinho”. Dona Benta tentou explicar
para a boneca que o correto é “circo de cavalinhos”. Inutilmente, é claro, devido à
teimosia de Emília, que decidiu pôr “circo de escavalinho”. A todos designou
papéis para atuar no circo: Pedrinho seria o diretor; Emília seria a dama que corre
no cavalo e pula os arcos; João-faz-de-conta, o engolidor de espadas e fogo; e
Visconde seria o palhaço. Para isso, decidiram chamar o doutor Caramujo e lhe
pediram que operasse o sabugo, tirando de dentro dele o conhecimento e a
ciência que o deixavam sem graça. Após retirarem toda a álgebra, enfiaram
dentro dele umas anedotas e lhe deram uma roupa bem espalhafatosa. Iniciaram
as vendas das cadeiras, a construção do circo, arranjaram um cachorro para
impedir furões de entrar, discutiram, ensaiaram e discutiram de novo até que
chegou o dia da apresentação.
Os mais ilustres convidados apareceram: Doutor Caramujo, Dona Aranha e
suas seis filhinhas, os dois Bernardos Eremitas, os siris couraceiros, o Major
Agarra, o Gato Félix, Aladino, a Menina da Capinha Vermelha, Rosa Branca,
Rosa Vermelha, Ali Babá e os quarenta ladrões até o Barba Azul, mas foi
colocado para correr pelo guardião canino de Pedrinho.
Todos vieram, exceto o Príncipe Escamado, o que deixou Narizinho muito
triste. Mas o espetáculo tinha que começar e não era hora para tristezas. Emília
montadinha em seu cavalinho de pau, João-faz-de-conta engolindo espadas e
Rabicó disfarçado de elefante deram um show à parte, levando todos às
gargalhadas e tornando o espetáculo um verdadeiro fiasco. Só o Visconde não
apareceu, pois graças a umas letrinhas para semente esquecidas dentro dele
pelo Doutor Caramujo, o velho Sabugo voltou aos seus livros: “Não há nada mais
perigoso do que a semente da ciência” (LOBATO, 1988, p. 245).
3.4.8 Pena de papagaio
“O mundo das Maravilhas é velhíssimo.
Começou a existir quando nasceu a primeira criança
e há de existir enquanto houver um velho sobre a terra”
(LOBATO, 1988, p. 250).
69
Em cima de uma goiabeira, Pedrinho pensava nas histórias contadas por
Dona Benta. Pensando particularmente em Peter Pan, o menino que nunca quis
crescer, Pedrinho também não queria crescer e, para seu desapontamento, ele
estava crescendo. Foi justamente em meio a esses pensamentos, trepado na
árvore, que Pedrinho ouviu uma vozinha e descobriu um novo amigo, invisível
desta vez! Para sua surpresa, o amigo disse que iria ensiná-lo a ser invisível
como ele. Para isso, ele precisaria merecer e, como prova, ambos teriam de viajar
pelo Mundo das Maravilhas.
Pedrinho convidou Narizinho, Emília e seu fiel escudeiro Visconde e, na
manhã seguinte, eles foram até o local combinado e encontraram o ser invisível.
Por não conseguirem enxergá-lo, Pedrinho sugeriu que ele amarrasse uma
peninha na cabeça. Era uma pena de papagaio, que Emília trazia em meio a suas
tranqueiras, assim a pena flutuante indicaria sua presença. Para que pudessem
partir, tiveram de fazer uso do pó de pirlimpimpim:
Deu uma pitada a cada um, e mandou que o cheirassem. Todos o
cheiraram sem espirrar, porque não era rapé. Só Emília espirrou. A
boneca espirrava com qualquer pó que fosse desde o dia em que viu
10
Tia Nastácia tomar rapé. Assim que cheiraram o pó de pirlimpimpim,
que é o pó mais mágico que as fadas inventaram, sentiram-se leves
como plumas, e tontos, com uma zoeira nos ouvidos. As árvores
começaram a girar-lhes em torno como dançarinas de saiote de folhas e
depois foram se apagando. Parecia um sonho. Eles boiavam no espaço
como bolhas de sabão levadas por um vento de extraordinária rapidez.
Ninguém falava nem podia falar, a não ser a boneca, que em certo
ponto gritou:
Preciso de mais pó, Peninha! Sinto que estou caindo! (LOBATO,
1988, p. 256)
Ao chegarem ao País das Fábulas, encontram o senhor de La Fontaine,
que tanto já tinham ouvido falar das histórias de Dona Benta. Ao vê-lo,
perceberam que ele acompanhava, de lápis na mão, uma discussão entre um
lobo e um cordeiro. Algum tempo depois, viram também uma cigarrinha
tuberculosa pedindo guarita a uma formiga. Esta, por sua vez, a destratou e
fechou a porta em sua cara, o que deixou Emília muito brava. A boneca aqueceu
e alimentou à cigarra e então as duas, cigarra e boneca, partiram para o contra
ataque:
Emília mandou que a cigarra batesse na porta outra vez. A cigarra
obedeceu, batendo três toc-tocs. Veio a formiga espiar quem era. Dando
10
Rapé, segundo o Dicionário Aurélio (p. 681), é tabaco em pó para cheirar.
70
com a mesma cigarra, disse-lhe um grande desafora e já lhe ia batendo
com a porta no nariz outra vez, quando Emília a agarrou pela perna seca
e a puxou para fora.
Chegou tua vez malvada! Há mil anos que a senhora me anda a dar
com essa porcaria de porta no focinho das cigarras, mas chegou o dia da
vingança. Quem vai levar porta no nariz és tu, sua cara de coruja seca!
(LOBATO, 1988, p. 265.)
La Fontaine interveio, obviamente a formiga já tinha recebido o que
merecia. Após esse incidente, as crianças e o fabulista continuaram seu passeio
pelo Mundo das Maravilhas. Encontram por lá Esopo, o primeiro fabulista, vestido
com roupas características da Grécia Antiga, e Emília, só para variar, imaginou
que o pobre homem estivesse enrolado em uma toalha. Todos acharam muita
graça e retomaram seu passeio, encontrando as personagens das mais diversas
fábulas. Interferiram nas histórias, salvaram o burro falante das garras do leão,
ficaram aprisionados no País dos Macacos, conheceram o Rei-Sol, conseguiram
fugir com ajuda do Peninha e, por fim, chegaram ao sítio para jantar.
3.4.9 O pó do Pirlimpimpim
Dona Benta e Tia Nastácia já estavam aflitas com a demora das crianças
quando, de repente, depararam-se com eles na garupa de um burro. Emília
estava no bolso de Narizinho e o Visconde, para espanto das senhoras, vinha
pendurado em uma peninha voadora. Espanto maior só o de Tia Nastácia ao
descobrir que o burro realmente falava. Pedrinho relatou à Dona Benta seu
encontro com La Fontaine, deixando-a muito entusiasmada. Decidiram, então,
levá-la junto na próxima aventura pelo País das Fábulas, tudo tinha de ser bem
escondido para que Tia Nastácia não pensasse que Dona Benta estava caduca.
Montados no burro, deram o pó de pirlimpimpim para boa avó cheirar:
Não é fácil lidar com o pó de pirlimpimpim. A gente tem de cheirá-lo na
quantidade certa, nem mais nem menos, senão vai para lá ou para cá
do ponto que pretende alcançar. Pedrinho, sem prática ainda errou na
dose, deu-lhes pó demais, de modo que foram parar numa terra muito
diferente do país das Fábulas. Em vez do lindo campo de veludo verde,
cortado pelo rio à beira do qual os fabulistas tinham ficado a discutir a
origem das fábulas, acharam-se num verdadeiro deserto africano com
enormes rochas negras dum lado e o mar do outro. Nem floresta, nem
vegetação nenhuma além de duas árvores gêmeas a cuja sombra o
burro parara. (LOBATO, 1988, p. 288)
71
Foram parar nas terras das Mil e uma noites, e aquilo que pensavam ser as
árvores eram justamente as patas do gigantesco Pássaro Roca. Com ajuda do
Barão de Munchausen, eles salvaram o burro falante das patas da furiosa ave.
Após árdua batalha, a ave fugiu e eles descobriram que o Visconde de Sabugosa
estava morto; ficaram tristes, mas tinham a certeza de que Tia Nastácia iria
consertá-lo. Ela sempre arrumava tudo! Cansados de mais esta aventura, foram
todos para o castelo do Barão.
Dona Benta achou sua primeira aventura muito complicada e quis voltar
para o sítio, mas o pó do pirlimpimpim não funcionou, pois ficou molhado durante
a luta de Pedrinho para tirar o burro falante da água. Foi então que Emília
mandou que todos fechassem os olhos com muita força:
Instintivamente todos obedeceram. Fecharam os olhos com toda a força
como a gente faz nos sonhos quando vai caindo num precipício. Ficaram
um minuto assim. Quando de novo abriram os olhos... estavam no sítio
outra vez, perto da porteira! Dona Benta respirou aliviada e assoprou
várias vezes, como quem está ressuscitando... (LOBATO, 1988, p. 302)
Felizmente, os viajantes retornaram para o sítio sãos e salvos: “Fim da
aventura e fim das férias de Pedrinho. O menino despede-se de todos e volta
para cidade” (LOBATO, 1988, p. 304).
3.4.10 Peter Pan
Essa narrativa tem seu início quando as crianças, na sala em que
costumavam ouvir as histórias contadas por Dona Benta, tendo ouvido falar de
Peter Pan, perguntam à avó quem é essa personagem. Dona Benta, então,
escreve a uma livraria de São Paulo pedindo que lhe mandem a história. Dias
depois, recebe um livro em inglês, com muitas gravuras coloridas. O título desse
livro era Peter Pan and Wendy. Depois de ler o livro, Dona Benta diz
entusiasmada: “– Pronto! Já sei quem é o senhor Peter Pan, e sei melhor do que
o gato Félix, pois duvido que ele haja lido esse livro” (LOBATO, 1988).
Dona Benta, “leitora culta e conhecedora de outra língua, traduz o texto em
inglês não apenas para o português, mas para uma linguagem simplificada e
oralizada, mais compreensível às personagens do Sítio e às crianças brasileiras”
(idem).
72
Peter Pan provoca grande entusiasmo nos pequenos, que estabelecem
uma relação entre a história “Pena de Papagaio” e o Peter Pan, já que em ambas
aparecia o pó mágico que os fazia voar.
Emília, não contente em apenas comentar os fatos, acaba se misturando
com a história que ouvia, “cortando” a sombra de Tia Nastácia, da mesma forma
como ouvira Dona Benta falar que a sombra de Peter Pan fora “cortada” pela mãe
de Wendy. Assim, começou por cortar a cabeça da sombra de Tia Nastácia, que
enrolou e foi guardar no fundo da gaveta
A partir daí, todos os capítulos se iniciam com Tia Nastácia reclamando da
diminuição de sua sombra que, a cada dia, tinha uma de suas partes cortada.
Esse desaparecimento da sombra de Tia Nastácia deixava todos os demais
intrigados, até que, no último capítulo, o Visconde descobre ser Emília a autora do
roubo.
Quando Dona Benta finaliza a história e narra a derrota do Capitão Gancho
por Peter Pan, desperta os maiores entusiasmos:
– Bravos! exclamou Pedrinho. Eu sabia que ia suceder isso.
Menino protegido pelas fadas acaba sempre vencendo...
Tia Nastácia arregalou os olhos.
– Credo! Imaginem um menino desses aqui no sítio! Era capaz até
de serrar o chifre do Quindim... (LOBATO, 1988)
Interessante é notar como os ouvintes vão-se apropriando da história
narrada aos poucos. Ao final, todos demonstram o desejo de que Peter Pan
venha visitá-los.
3.5 A Imaginação em Lobato
“A imaginação não é um estado.
É toda a existência humana”
(WILLIAM BLAKE apud HELD, p. 19).
Segundo o Aurélio, imaginário é um adjetivo que designa o “que só existe
na imaginação”; o “ilusório”; o “fantástico”. Na sua forma substantiva, designa
“quem faz estátuas”, o “santeiro”. O verbo imaginar designa, de maneira geral,
algumas formas de pensar; mais precisamente significa “construir ou conceber na
imaginação; fantasiar, idear, inventar”. O substantivo é imaginação, a qual
73
designa a “faculdade” de “representar imagens”, de “evocar imagens de objetos
que não foram percebidos”, a “fantasia”.
Angel Pino11 diz que a palavra imaginário, que é diferente de imaginação,
tem uma relação etimológica com o termo imagem, e que na sua origem tem a ver
com a percepção do sensível e não com a atividade racional:
[...]. Neste sentido, o imaginário constitui ao mesmo tempo a esfera da
produção e a força que torna a produção humana possível [...] Se
aceitarmos designar pelo termo “imaginário” a fonte do poder criador do
ser humano, então a função imaginária ou função de imaginar é a
possibilidade permanente do homem de realizar ações criadoras.
Portanto, a produção imaginária é resultado da atividade criadora, que
consiste em criar novas imagens ou ações, ou ainda, em combinar de forma nova
aquelas já vividas, resultantes da reprodução que consiste em reviver ou
rememorar experiências passadas gerando assim a memória.
Held (1977) afirma com muita propriedade que a imaginação, assim como
a inteligência ou a sensibilidade, é cultivada ou se atrofia. Portanto, a imaginação
de uma criança deve ser estimulada, e a leitura é um instrumento em potencial
para caracterizar o elo entre real e imaginário. A ficção, reforça a autora, se
assemelha a um brinquedo e responde a uma necessidade muito profunda da
criança: a de não contentar-se com a própria vida.
O livro é um segundo caminho, como o sonho, mas o sonho que dura,
pois sendo legível, tem o poder de se repetir. Ao me representar eu me
crio, ao me criar eu me repito. Donde a evidência de que a imaginação é
tanto o instrumento da criação quanto da experiência anterior, donde a
necessidade de reconhecer que o imaginário é o motor do real, o que o
movimenta. (HELD, 1977, p. 18)
Por meio da leitura a criança experimenta sensações sobre a condição
humana como, por exemplo, a vida, a morte, a amizade o amor e outros. Essas
descobertas,
diz
Held,
se
dão
primeiramente
num
plano
simbólico,
proporcionadas pelas lendas e mitos, para em seguida serem decifradas no plano
do intelecto: “É a magia do verbo, sob a forma múltipla das sonoridades, ritmos,
encantamentos, pequenas fórmulas e qualquer tipo de linguagem selvagem que
virá enriquecer, afinar, na criança, as possibilidades imaginativas” (HELD, 1977,
p. 207).
10
Em palestra sobre “Real, Imaginário e Simbólico”, ministrada no IV Seminário Educação,
Imaginação e Linguagens Artístico-Culturais, 2 a 4 de junho de 2008, PPGE-UNESC.
74
A cada nova descoberta a criança vai se constituindo enquanto sujeito. Por
meio do exercício da imaginação é possível a criança superar a fronteira do eu e
do não eu, ou melhor, do que é imaginário e do que é real, percebendo-os não
como antagônicos, mas sim essenciais para sua formação. Dessa forma, ela toma
consciência de si, iniciando assim a construção de sua personalidade.
Held (1977, p. 45), aponta também que a criança, ao exercitar sua
imaginação, experimenta novas forças: “exercita sua imaginação, assim como
exercita seus músculos, ou descobre e constrói, pouco a pouco os mecanismos
lógicos”.
Os livros de Lobato, ao contrário do sentimentalismo tão em voga na
época, são permeados de ironia e humor, apresentando-se como incentivo à
liberdade interior, à criatividade e à imaginação, ressaltando, dessa maneira, sua
função lúdica e cultural. A obra de Lobato apresenta uma amplitude de
possibilidades conseguidas com o faz-de-conta e o imaginário, entendido aqui
como representações de imagens e idéias construídas pela linguagem, que
retratam uma infância em que a criança é capaz de se misturar com a ficção,
alterando-a conforme sua realidade.
Narizinho, como já foi dito anteriormente, é o clássico exemplo da criança
que se deixa levar pelo imaginário. A passagem abaixo é um claro exemplo da
forma como Lobato, por meio das suas personagens, buscava instigar o
imaginário do leitor:
Assim como no dia em que Narizinho conheceu o príncipe Escamado,
ela, como de costume foi passear no ribeirão em companhia de João
Faz-de-Conta (o boneco de madeira que fizeram para ser irmão de
Pinóquio), sentou-se na raiz do tronco de um pé de ingá e fechou seus
olhos e então tudo aconteceu:
Recostou a cabeça no tronco e cerrou os olhos, porque o mundo ficava
mais bonito quando cerrava os olhos. De todos os lugares que ela
conhecia era aquele o mais gostado. Fora ali que vira pela primeira vez o
Príncipe das Águas Claras, e era ali que costumava pensar na vida,
resolver seus problemazinhos e sonhar com castelos. O sol ia
descambando no horizonte (“horizonte” era o nome do morro atrás do
qual o sol costumava esconder-se) e seus últimos raios vinham brincar
de acende e apaga brilhinhos na correnteza. Volta e meia um lambari
prateava o ar com um pulo. De repente Narizinho ouviu um bocejo – ahh!
Olhou... Era Faz-de-Conta que se espreguiçava, como quem sai de um
longo sono. Achando aquilo a coisa mais natural do mundo, a menina
apenas disse:
– Ora graças! Eu tinha certeza de que os ares do ribeirão fariam você
mudar.
75
– Eu sou sempre o mesmo – respondeu o boneco. – Não mudei. Não
mudo nunca. Quem muda são vocês, criaturas humanas. Você mudou
muito Narizinho.
– Como isso? – exclamou a menina franzindo a testa. – Estou no que
sempre fui...
– Parece. Tanto mudou que está entendendo a minha linguagem e vai
ver coisas que sempre existiu neste sítio e, no entanto você nunca viu.
Olha lá! A menina olhou para onde ele apontava e realmente viu um
bando de lindas criaturas, envoltas em véus de finíssimo tule, dançando
por entre as árvores do pomar. No meio deles estava um ente estranho,
de orelhas bicudas como as de Mefístófeles, dois chifrinhos na testa e
cauda de bode. Soprava músicas numa flauta de Pã, isto é, uma flauta
feita de canudos incões, tal qual a casa de barro que uma das vespas
chamadas “Nhá Inacinhas” haviam feito na parede do fundo da casa de
Dona Benta. (LOBATO, 1988, p. 213)
A personagem Emília, por sua vez, é o retrato da criança que quer inverter
a ordem do mundo real pela imaginação. A boneca diz o que quer quando quer e
como quer reinventando o português, resignificando as histórias ao seu modo:
Era uma vez um “rei”, um “príncipe” e uma “fada”, que moravam juntos
num lindo palácio de cristal, na beira do lago mais azul de todos. Uma
beleza esse palácio, todo cheio de fios de ouro, que quando dava o
vento iam para lá e vinham para cá. E quando dava o sol, os cristais e os
ouros brilhavam tanto que quem olhava sentia logo uma tontura e
precisa agarrar-se a qualquer coisa para não cair. E o príncipe foi e
disse:
Meu pai: quero casar-me, mas as moças daqui não são bonitas, nem
boas de coração. Vou procurar uma pastora bem pobrezinha, mas que
tenha coração de ouro.
Vai, meu filho disse o rei mas leva contigo a fada do palácio.
Sozinho, não te deixarei ir.
O príncipe chamou a fada, virou a fada numa bengalinha e virou-se a si
mesmo numa formiguinha [...] (LOBATO, 1988, p. 155).
Todo mundo, diz Lobato, tem uma Emília em si. A boneca é apontada por
muitos estudiosos de Lobato como sendo seu alter ego. Cavalheiro (1955) define
Emília como sendo independente e dominadora e diz que nem Lobato consegue
dominá-la.
Afirma também que “Emília é mais do que um ser humano, é uma idéia, um
pensamento”. E continua: “É Lobato criança. Mas é também Lobato adulto. Nela
mais do que em qualquer outra personagem, encontra-se o autor. A respeito de
tudo Emília pensa de um modo especial. Suas idéias hão de ser sempre
novidades” (CAVALHEIRO, 1955, p. 585). Emília tem mania de franqueza. “Nunca
viveu em sociedade, e ainda não sabe mentir. Não é como nosso Visconde de
76
Sabugosa que fala, fala e ninguém nunca sabe o que ele realmente está
pensando” (idem).
Por meio de suas personagens, Lobato deu espaço aos vôos da
imaginação, estabelecendo um diálogo com seus leitores por meio da ludicidade e
da fantasia, evidenciando o comprometimento e respeito pela infância.
A fantasia, como releitura da realidade, o brincar e a interação são
permanentes nas narrativas de Lobato. A criança estabelece relação com as
personagens, ampliando, dessa forma, seu universo imaginário. O autor
possibilita a identificação da criança com o mundo ficcional, brincando dá voltas
pelo universo e leva a criança de carona. Utiliza a literatura para formar, informar,
brincar e sonhar, possibilitando que a criança perceba as significações múltiplas
de um mesmo texto.
Tanto os jogos quanto os brinquedos artesanais – como Emília, uma
boneca de pano, Visconde de Sabugosa, um sabugo de milho – são elementos
importantes nas histórias de Lobato. A brincadeira e o jogo são associados à
aprendizagem, ao cotidiano e à vida das crianças.
Pois é o jogo, e nada mais, que dá à luz todo hábito. Comer, dormir,
vestir-se, lavar-se devem ser inculcados no pequeno irrequieto de
maneira lúdica, com o acompanhamento do ritmo de versinhos. O
hábito entra na vida como brincadeira. Formas petrificadas e
irreconhecíveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro terror,
eis o que são os hábitos. E mesmo o pedante mais insípido brinca, sem
o saber, de maneia pueril, não infantil, brinca ao máximo quando é
pedante ao máximo. Acontece apenas que ele não se lembrará de suas
brincadeiras; somente para ele uma obra como essa permanecerá
muda. Mas quando um poeta moderno diz que para cada um existe
uma imagem em cuja contemplação o mundo inteiro submerge, para
quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma velha caixa de
brinquedos? (BENJAMIN, 2002, p. 101)
Recorro aqui a Vygotsky (1994, s/p) quando afirma que, “através do
brinquedo, a criança aprende a atuar numa esfera cognitiva que depende de
motivações internas”. Nessa fase, ocorre uma diferenciação entre os campos de
significado e da visão. A criança poderá utilizar materiais que servirão para
representar uma realidade ausente, imaginando e abstraindo características dos
objetos reais e se detendo no significado definido pela brincadeira.
Veer e Valsiner, em texto dedicado ao pensamento de Vygotsky,
argumentam que o brinquedo funciona como um espaço de aprendizagem. Nele a
criança assume diferentes papéis e se comporta, muitas vezes, como
77
personagem de idade cronológica maior que a sua, já que nesse espaço
coexistem diferentes tendências que vêm a ser transformadas em fonte de
desenvolvimento (1996, p. 373).
Assim como Vygotsky, Benjamin também considerava a brincadeira e o
jogo como experiências fundamentais para a formação das crianças:
Não há dúvida que brincar significa sempre libertação. Rodeadas por
um mundo de gigantes, as crianças criam, brincando, o pequeno mundo
próprio; mas o adulto, que se vê acossado por uma realidade
ameaçadora, sem perspectivas de solução, liberta-se dos horrores do
real mediante a sua reprodução. (2002, p. 85)
O autor aponta ainda que a essência do brincar não é um “fazer como se”,
mas “fazer sempre de novo”, e todas as vezes que a criança o faz é como se
fosse única:
Tudo seria perfeito se o homem pudesse fazer as coisas duas vezes – é
de acordo com este pequeno ditado de Goethe que a criança age. Só
que a criança não quer apenas duas vezes. Isto não é apenas o
caminho para se dominar experiências primárias terríveis, através do
embotamento, do exorcismo maligno e da paródia, mas também o
caminho para se experimentarem, cada vez mais intensamente, triunfos
e vitórias. O adulto, com coração liberto do medo, goza uma felicidade
redobrada quando narra uma experiência. A criança recria toda a
situação, começa tudo de novo. (BENJAMIN, 1992, p. 101)
A psicologia tem-se debruçado sobre a criança e sua relação com o
mundo, numa busca por um melhor entendimento da infância. Erikson (1998)
define o brincar como sendo uma forma infantil da capacidade humana de lidar
com a experiência, ao criar situações-modelo e ao dominar a realidade por meio
do experimento e do planejamento e um incentivo à capacidade da criança de
cultivar seu auto-conhecimento: “o mundo dos brinquedos em miniatura e o
espaço-tempo compartilhado dos jogos podem absorver os sonhos de conquista”
(p. 45).
As personagens Pedrinho e Visconde são um exemplo da afirmação acima,
pois vivem em busca de aventuras, de conquistas e de conhecimento. Emília
decidiu fazer um irmão para Pinóquio e pede que Pedrinho lhe de seu cavalinho
de pau para que possa concluir seu feito.
A grande idéia de Emília não deixou mais a cabeça de Pedrinho. Só
pensava em ir à Itália, ver se no quintal do homem que fez Pinóquio não
existiria ainda um resto do tal pau. Mas ir como? A pé não podia ser,
porque era muito longe e teria de atravessar o oceano. De navio
também não, porque Dona Benta tinha um medo horrível de naufrágios
e jamais consentiria que ele embarcasse. Como resolver o problema?
78
Desta vez foi o Visconde quem teve a melhor idéia. Esse sábio estava
ficando cada vez mais sabido, depois da temporada que passou atrás
da estante, entalado entre uma álgebra e uma aritmética. (LOBATO,
1988, p. 195)
O mundo imaginário criado por Lobato retrata um lugar onde quase tudo é
possível para as crianças. Os animais falam, os brinquedos têm vida própria, a
natureza interage com as personagens, os livros se escrevem e, acima de tudo, a
infância é construída a partir das experiências de narrativas, aventuras e mitos.
Com uma linguagem vinculada à realidade, transparente e ao mesmo
tempo rebuscada, o autor deixava fluir nas páginas de seus livros elementos
importantes para a fantasia e o imaginário infantil. Lobato não buscava definições
sobre a imaginação. Entendia-a como sendo algo natural da criança:
Quando falo às crianças no pó de pirlimpimpim, não há uma só que
duvide dessa maravilha. Já o adulto sorri imbecilmente – e tenho de
explicar-lhe ao pé do ouvido que “pó de pirlimpimpim” é sinônimo
pitoresco do que sem pitoresco nenhum, eles chamam imaginação.
(CAVALHEIRO, 1955, p. 600)
As crianças de Lobato mostram-se seguras e determinadas. São livres,
inteligentes, críticas, estabelecem equilíbrio com a natureza, são alegres e
curiosas acerca do que acontece fora do sítio. Os que lá moram, de lá não
querem sair, a não ser para aventuras em mundos imaginários e fantásticos.
Assim também se sentem os visitantes (leitores). Em minha opinião, é importante
pontuar que Lobato apresentava as crianças de maneira universalizante e, talvez,
aí esteja a limitação de sua obra, pois as crianças não “são em todos os tempos
e lugares as mesmas”.
Todavia, a obra Reinações de Narizinho (1921), como dito anteriormente,
foi originalmente produzida para utilização no ambiente escolar, surgindo em um
momento histórico no qual a criança ainda não tinha seu espaço reconhecido, ela
inaugurou novas perspectivas para o texto que então se construía.
A
narrativa
se
desenvolvia
em
uma
linguagem
acessível,
sem
artificialismos, e buscava aproximar-se o mais que possível da língua falada,
valorizando e reconhecendo a especificidade do leitor infantil. É como se o autor
escrevesse sobre e para as crianças a partir de sua própria vivência. Isso pode
ser comprovado com a seguinte passagem na qual Cavalheiro relata o momento
em que Lobato, aos 50 anos de idade morando em Nova York, relembra sua
infância:
79
Na metrópole de aço e cimento-armado, em meio ao bruaá
acachapante e milhares de autos e milhões de pessoas estranhas que
passam, sentado numa praça acolhedora, em que pensa o homem
solitário? Na fazenda, na velha Paraíso, no ribeirão, nos lambaris
ariscos, no cavalinho pangaré, no pomar, na rede rangedora, na batida
da velha porteira. A infância volta inteira, insubstituível. A primeira
entrada na floresta. O circo de cavalinhos. As irmãs. O alpendre. O colo
materno... O mundo da criança se reconstitui, sereno, perfeito, e aquilo
lhe dá prazer. Um prazer inusitado. Como há tempos não sentia. Ao
regressar a casa, fecha-se no escritório, toma os livrinhos largados num
canto da estante, relendo-os com infinito agrado. Chega a ficar
comovido. Não pensara, até aquele momento, que naquelas historietas
o melhor era o seu próprio mundo infantil que meio inconsciente
reconstituíra, com a pureza e a inocência que só as lembranças da
infância permitiam ao adulto. (CAVALHEIRO, 1955, p. 576)
Na obra de Lobato destacam-se características diversas do comportamento
e desenvolvimento infantil como, por exemplo, a importância dada à leitura, à
busca por conhecimento, à criticidade e ao domínio da linguagem, que é o meio
de expressão entre as pessoas feito por meio da fala. Por ela, torna-se possível a
organização das atividades mentais, da inteligência, da afetividade e da
socialização da criança.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Viajar no tempo e acompanhar a história da infância proporcionou-me um
conhecimento diversificado e uma preocupação mais profunda com a criança, ser
social e participativo. Olhar a palavra como elemento capaz de permitir o acesso à
história da criança e a literatura como chave que a leva a indagar sobre seu papel
na sociedade e despertar nela um olhar crítico me fez atribuir renovado valor aos
contos que Lobato elaborou para a criança de seu tempo e de todos os tempos.
Reafirmo que a noção de infância não foi sempre a mesma e foi mudando
de acordo com a sociedade e a cultura. Na Idade Média, a criança não era vista;
somente a partir do século XVIII ela passou a ser reconhecida. A infância passou
a ser considerada não apenas uma faixa etária diferenciada, mas também como
um
período
da
existência
humana
com
características
singulares.
Tal
reconhecimento se deu de acordo com entendimento que a sociedade tinha sobre
a família, sendo a criança vista como miniatura do adulto, incompleto, ou ainda
como um ser frágil que precisa de proteção. Essa imagem de infância é refletida
no espaço escolar, que se tornou um espaço autoritário e contraditório que
pretendia introduzir a criança na vida adulta, mas, ao mesmo tempo, protegê-la do
mundo exterior negando-lhe assim, um papel social (ZILBERMAN, 1985, p. 19).
Esses conceitos têm prejudicado a relação da criança com o universo social e
cultural em que vive e repercutido em sua inserção nesse universo.
À escola cabia também reproduzir os valores da sociedade vigente
utilizando a literatura para transmitir a norma em vigor. As produções destinadas
às crianças brasileiras surgiram com a intenção de moralizá-las e formá-las de
acordo com a visão do adulto, ou ainda, de acordo com a visão européia.
Monteiro Lobato pretendia romper com esses padrões e criou uma literatura que
retratava a realidade da época, valorizando sua nação, estimulando o imaginário
e a ludicidade e, principalmente, dando às crianças o papel de protagonistas em
seus textos. São essas características que o diferenciam e estabelecem o papel
que veio a ocupar na história da cultura brasileira.
81
A figura de Lobato está presente na memória de muitas pessoas, seja por
sua crítica às manifestações artísticas na Semana de Arte Moderna, seja por seu
trabalho precursor de busca de petróleo em terras nacionais, seja como pioneiro
no trabalho de editoração de livros, seja como prisioneiro na ditadura Vargas,
seja, principalmente, como criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo, obra que há
décadas acompanha o imaginário de nossas crianças.
Lobato desenvolveu uma literatura que pretendia inscrever a criança numa
perspectiva de educação com uma visão ampla de ser humano, prenunciando,
assim, uma nova literatura para esse público leitor. Por meio de uma leitura não
apenas decodificativa, pressupunha a busca de respostas para questionamentos
diversos. A imaginação e a criatividade sempre presentes nas ações de suas
personagens apresentam-se como elementos capazes de motivar o leitor a
mergulhar também num espaço de liberdade criativa.
A escolha que fiz pela obra Reinações de Narizinho se deu porque suas
personagens representam a infância dentro de uma perspectiva criadora, livre e
com múltiplas possibilidades, o que acredito ser determinante no processo de
educação.
As crianças que Lobato apresenta no sítio são co-autoras: interferem,
questionam, mudam o enredo e, acima de tudo, mostram-se crianças que,
brincando, expressam de modo simbólico suas fantasias, seus desejos e suas
experiências vividas. São crianças que se reapropriam do discurso e são
consideradas e respeitadas pelos adultos com quem convivem. A obra lobatiana
dá voz à criança e asas para alcançar os espaços para onde a imaginação e a
criatividade pode conduzi-la.
Em Reinações de Narizinho, ocorre a quebra da fronteira entre a fantasia e
a realidade, as personagens viajam no tempo e no espaço. As personagens de
Lobato transitam pelas lendas do folclore brasileiro, pela mitologia grega pelo
mundo das fábulas misturando ficção e realidade e entrecruzando o passado e o
presente. Esse mundo mágico, presente nas histórias ali vividas, encontra eco na
imaginação infantil. O estímulo ao processo imaginativo, as diferentes
manifestações de linguagem, a subjetividade, a unidade e a complexidade vai ao
encontro da tentativa de alojar o particular no mundo coletivo. Nesse sentido, a
obra lobatiana torna-se contraditória, pois, se de um lado as crianças são
82
mostradas de forma romântica por outro, elas são apresentadas de maneira
respeitosa e ao mesmo tempo crítica e, acima de tudo, não são reduzidas a
“objetos” da pesquisa, da ciência ou do mercado.
Em Lobato o exercício da leitura é um aspecto importante da
representação da infância. O incentivo à leitura participativa como experiência
coletiva e autoral e como forma de encontro com o lúdico e também de
descoberta do conhecimento – que atravessa toda a obra de Lobato – é tarefa
que cabe a todos os que se permitem olhar para a criança com respeito por sua
subjetividade, suas características próprias e sua individualidade.
A trajetória de Lobato se mostra tão fascinante quanto as histórias que
escreveu. Descobrir o homem em seu tempo, com todas as conseqüências que
as influências de uma época provocam, foi um encontro com o Brasil vivendo os
primeiros anos da República, as contradições e anseios que esse fato
desencadeava. Lobato, porém, não foi um observador dos acontecimentos; foi um
provocador, um idealista, um desencadeador de ações.
Traduzindo o sentido de dialogismo em Bakhtin, pude sentir a palavra
impregnada de sentido e de história, à qual o falante acrescenta, no uso, a sua
intenção particular. Aprendi que todo discurso é voltado para a resposta que
espera, que o plurilingüismo se faz no discurso romanesco como forma de
integrar a fala de outrem no discurso que produz a narrativa. Esse entendimento
foi ao encontro da percepção que eu já estabelecera de que as falas das
personagens de Monteiro Lobato eram formas de levar a criança para as páginas
de seus livros. Entendi também que o espaço social neles se revelava como
registro das contradições de seu tempo.
Ao escolher um livro é importante analisar a ideologia, os aspectos
moralizantes, os valores transmitidos, mas, acima de tudo, a(s) representação
(ões) de infância(s) que ele (livro) apresenta. Na produção cultural para criança,
há sempre o risco da reprodução de uma cultura dominante, assim como o
endosso de uma relação de poder do adulto sobre a criança, o que se constitui
como elemento determinante para a formação da identidade infantil. Voltei-me
para seus escritos para crianças por ver nesse mergulho uma oportunidade de
mais de perto observar a representação de infância que ali se revela.
83
A obra infantil de Monteiro Lobato, cuja importância para a criação literária
brasileira já não cabe mais discutir, desperta questionamentos e descobertas. O
questionamento maior que aqui posso registrar diz respeito ao papel da criança
nas narrativas de Lobato: “Quem é a criança presente nos contos de Lobato?”
“Que lugar lhe é dado na construção de sua história? É ela protagonista ou
simples observadora?”.
Neste momento, desenvolvidas tantas leituras, pesquisas, comparações,
atrevo-me a concluir que, embora sua visão de infância seja romântica e
universalista, Lobato criou uma literatura que valoriza a criança. A aproximação
entre a criança e o texto de ficção que criou para seu público infantil, revelada em
seu anseio "Ainda acabo fazendo livros onde as crianças possam morar", serve
de caminho que possibilita essa pretensão. Atente-se aqui para o emprego do
verbo morar, revelador de um espaço de leitura capaz de transportar seu leitor
para um mundo de magia (onde possa morar), recurso representado pelo pó de
pirlimpimpim em grande parte das aventuras vividas por suas personagens do
Sítio do Pica-Pau Amarelo. A valorização desse espaço mágico permite à criança
leitora de Lobato, por meio do mergulho na fantasia, encontrar um lugar em que
se faça protagonista de sua trajetória.
É importante também assinalar que Lobato criou personagens que, de
alguma forma, parecem familiares ao leitor. Narizinho, apresentada como uma
menina de tez morena e olhos escuros, distancia-se, na aparência, das heroínas
sempre presentes nas histórias de fadas e nas histórias divulgadas no Brasil no
início do século XX. Emília, criada a partir da junção de panos velhos, macela,
retroses, pelas mãos de Tia Nastácia, é a figuração e a valorização da mescla, a
mesma mescla encontrada na aproximação de crianças com bichos mágicos,
sabugos falantes, políticos, pensadores, a cultura popular e a cultura clássica.
Caberia aqui todo um estudo sobre a representação da cultura popular em
Lobato. Quando essa cultura se apresenta por meio das narrativas trazidas por
Em Histórias de Tia Nastácia, a narradora (no caso, uma pessoa simples, inculta,
resgatando uma cultura oral) sofre intensa crítica por parte de seus ouvintes,
assim também as histórias que apresenta – diferentemente das narrativas
trazidas por dona Benta, sejam elas ligadas a contos tradicionais, nacionais ou
estrangeiros. O autor parece sugerir que mesmo a cultura popular necessita se
84
elevar a uma linguagem mais elaborada para ser ouvida. Seria preconceito de sua
parte? Não é objetivo deste trabalho nem me seria permitido sem que fugisse de
minha intenção central enveredar por essa trilha, já que meu foco aqui é a criança
e a forma como ela é tratada nos textos lobatianos.
Considere-se, também, que a literatura por Monteiro Lobato dirigida a
crianças se iniciou pedagógica, com intenções formadoras, como se dava, em
geral, na época, com os escritos que tivessem como alvo a infância. Também
nesse aspecto, como em muitos outros, Lobato age em consonância com seu
tempo e com a história de um Brasil que se queria moderno ao se construir como
república. Só com o amadurecimento de sua obra é que o autor se volta para o
faz-de-conta e a magia da literatura. Essa marca original prejudica, muitas vezes,
a avaliação que pode fazer o crítico de seu texto como um todo.
A representação do negro na obra de Monteiro Lobato é outro aspecto que
chama atenção. Ambígua, sua forma de retratar suas personagens negras parece
revelar o mais profundo preconceito. Essa ambigüidade abre espaço para que se
discuta a imagem de negritude nos diversos livros que escreveu. Seria o
vocabulário utilizado ao referir-se a Tia Nastácia e a outras personagens negras
reflexo
de
um
preconceito
pessoal?
Inconsciência
(num
homem
tão
absolutamente lúcido com relação às coisas da sociedade em que viveu)?
Intencionalidade (ao mostrar o contraste, revelaria uma situação)? O trabalho de
pesquisa e comparação de textos que essas perguntas podem desencadear se
mostra um desafio e um caminho a ser percorrido. Os limites deste trabalho não
me levaram por esse caminho, já que o enfoque que norteou minhas leituras foi a
criança no processo cultural e histórico. Ficam aqui as perguntas, para que outro
pesquisador nos proporcione as respostas.
Tenho consciência de que a concepção de infância que hoje norteia a ação
na educação em muito difere de outras concepções que têm servido de base para
ações voltadas para a criança no decorrer dos séculos e décadas que nos
antecederam, contudo considero fundamental o entendimento da criança como
um sujeito com identidade própria, com especificidades e diferenças. A meu ver,
esse é um caminho de desconstrução de pré-conceitos adultos, de ressignificação
de sentidos, de rupturas de relações de poder estabelecidas entre o adulto e a
criança. Esse processo pode ser concebido como reflexão sobre a infância,
85
atribuindo-lhe seu devido valor e respeito. Somente após perceber a criança em
sua pluralidade, respeitando-a como um sujeito criador que dialeticamente
transforma e é transformado, será possível alcançar mudanças efetivas na
maneira pela qual as crianças são vistas e tratadas.
Sem dúvida, esse é o horizonte a ser focalizado pelos profissionais que
atuam com e para a criança, a perspectiva de infância que surge como realidade
social, mas o esforço precisa ser intensificado, pois apesar de a discussão teórica
se mostrar avançada; na prática, a autoridade e o controle do adulto constituemse discurso corrente, aceito e efetivado, em grau maior ou menor, dependendo do
contexto sociocultural. Não obstante, ela [a criança] não absorve de forma passiva
a cultura, os valores, a ideologia do meio. A criança questiona, duvida e
transgride,
e
essa
interação
infratora
também
contribui
para
que
as
transformações na relação criança-adulto se efetivem. Emília – com suas
impertinências, seus questionamentos, sua espontaneidade – apresenta-se como
espelho e metáfora dessa forma de interação e dessa possibilidade de
transformação.
86
ANEXO
As obras de Monteiro Lobato
Apresento a seguir a bibliografia de Monteiro Lobato, organizada, ainda em
vida, pelo próprio autor, e dividida em duas seções: Literatura Geral e Literatura
Infantil. Os dados que aqui exponho foram publicados por Ruth Rocha (1981) a
partir de um panorama da época realizado por Ricardo Maranhão e da seleção de
textos, contextualizações, notas, cronologias, características e exercícios feitos
por Marisa Lajolo.
Em Literatura Geral, estão as obras:
O Saci Pererê (resultado de um inquérito), Seção de Obras do
Estado de São Paulo, São Paulo, 1918;
Urupês (contos), Revista do Brasil, São Paulo, 1918;
Problema Vital, Revista do Brasil, São Paulo, 1918;
Cidades Mortas, Revista do Brasil, São Paulo, 1919;
Idéias de Jeca Tatu, Revista do Brasil, 1919;
Negrinha, Revista do Brasil – Monteiro Lobato & Cia., São Paulo,
1920;
Os Negros (ou “Ele e o outro”) (novela), Sociedade Editora Olegário
Ribeiro, São Paulo, 1921;
A Onda Verde, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1921;
Mundo da Lua, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1923;
O Macaco que se fez Homem, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo,
1923;
Jeca Tatuzinho, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1924;
O choque das Raças ou o Presidente Negro, Cia. Editora Nacional,
São Paulo, 1926;
Mr. Slang e o Brasil, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927;
Ferro, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1931;
América, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1932;
Na Antevéspera, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1933;
87
O Escândalo do Petróleo (depoimentos apresentados à Comissão
de Inquéritos sobre o Petróleo), Cia. Editora Nacional, São Paulo,
1936;
A Barca de Gleyre (Quarenta Anos de Correspondência Literária),
Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1944;
Prefácios e Entrevistas, Editora Brasiliense Ltda., São Paulo, 1946;
Zé Brasil, Editora Vitória, Rio de Janeiro, 1947.
No gênero infantil produzido pelo autor, encontramos as seguintes obras:
Narizinho Arrebitado (segundo livro de leitura escolar), Monteiro
Lobato & Cia., São Paulo, 1921;
O Saci, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1921;
Fábulas de Narizinho, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1921;
Fábulas, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1922;
O Marquês de Rabicó, Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1922;
A Caçada da Onça, Cia. Gráfica Editora Monteiro Lobato, São
Paulo, 1924;
O Garimpeiro do Rio das Garças, Cia. Editora Nacional, São Paulo,
1924;
Aventuras do Príncipe, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927;
A Cara de Coruja, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927;
O Irmão de Pinóquio, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927;
O Gato Félix, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927;
O Noivado de Narizinho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927;
O Circo de Escavalinho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927;
Aventuras de Hans Staden, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1927;
Peter Pan, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1930;
A Pena do Papagaio, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1930;
O Pó de Pirlimpimpim, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1930;
Reinações de Narizinho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1931;
Novas Reinações de Narizinho, Cia. Editora Nacional, São Paulo,
1932;
Viagem ao Céu, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1932;
88
Histórias do Mundo para Crianças, Cia. Editora Nacional, São Paulo,
1933;
As Caçadas de Pedrinho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1933.
Emília no País da Gramática, Cia. Editora Nacional, São Paulo,
1934;
História das Invenções, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1935;
Aritmética da Emília, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1935;
Geografia da Dona Benta, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1935.
Memórias da Emília, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1936.
Dom Quixote das Crianças, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1936.
Serões de Dona Benta (Ciências Físicas Naturais, ensinadas por
Dona Benta a seus netinhos), Cia. Editora Nacional, São Paulo,
1937;
Histórias de Tia Nastácia, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1937;
O Poço do Visconde, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1937;
O Pica-Pau Amarelo, Biblioteca Pedagógica, Cia. Editora Nacional,
São Paulo, 1939;
O Minotauro (Maravilhosas Aventuras dos Netos de dona Benta na
Grécia Antiga), Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1939;
O Espanto das Gentes, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1941;
A Reforma da Natureza, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1941;
A Chave do Tamanho, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1942;
O Touro de Creta, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
A Hidra de Lerna, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
Hércules e Cérbero, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
O Leão de Neméia, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
O Javali de Erimato, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
A Corça dos Pés de Bronze, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
As Cavalariças de Diomedes, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
Os Bois de Gerião, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
O Cinto de Hipólita, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
As Aves do Lago Estinfale, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
O Pomo das Hespérides, Editora Brasiliense, São Paulo, 1944;
89
Uma Fada Moderna, Códex, Buenos Aires, 1947;
A Lampreia, Códex, Buenos Aires, 1947;
No Tempo de Nero, Códex, Buenos Aires, 1947;
A Casa da Emília, Códex, Buenos Aires, 1947;
O Centaurinho, Códex, Buenos Aires, 1947.
É importante destacar que essa bibliografia está longe de ser completa.
Segundo Cavalheiro, existem mais de duas centenas de edições das obras de
Lobato, e cerca de quinhentas e tantas referências em livros, revistas e jornais.
Isso sem levar em conta a imensa gama de cartas por ele recebidas.
90
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: ______. Aspectos da literatura
brasileira. Obras completas de Mário de Andrade. São Paulo: Livraria Martins,
1967.
ANDRADE, Oswald de. Carta a Monteiro Lobato. In:_____. Ponta de lança. 3 ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
ANDREOTTI, Azilde L. O Governo Vargas e o equilíbrio entre a pedagogia
tradicional e a pedagogia nova. In: LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI,
Demerval; NASCIMENTO, Maria Isabel Moura (orgs.). Navegando pela História
da Educação Brasileira. Campinas: Graf. FE; HISTEDBR, 2006.
AURÉLIO. Dicionário Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.1.ed. 1988.
ARIÈS, Philippe. História social da infância e da família. Trad. Dora Flaksman. 2.
ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Melhoramentos,
1988.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São
Paulo: HUCITEC, 1988.
BENJAMIN, Walter. Infância em Berlim por volta de 1900. In: ______. Obras
escolhidas II. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 73-142.
______. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. Marcus
Vinicius Mazzari. 34. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2002.
BIGNOTTO, Cilza Carla. Duas leituras da infância. Unicamp, Campinas-SP. s/d.
Disponível em: <www.unicamp.br/iel/memória/projetos/ensaios>. Acesso em: 14
de agosto de 2007.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 35. ed. São Paulo: Cultrix,
1997.
______. Monteiro Lobato em construção. Unicamp, Campinas-SP. s/d. Disponível
em: <www.unicamp.br/iel/monteirolobato/outros/cilza01Lobato>. Acesso em: 20
de agosto de 2008.
91
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990.
CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato: vida e obra. Volume 2. São Paulo:
Companhia Distribuidora de Livros, 1955.
______. Prefácio. In: LOBATO, Monteiro. Obras Completas de Monteiro Lobato.
14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1972a.
CERIZARA, Ana Beatriz. Rousseau: a educação na infância. São Paulo: Scipione,
1990.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: história, teoria, análise. São Paulo:
Quíron, 1987.
DESGRANGES, Flávio. O teatro do sem jeito manda lembranças: um pequeno
estudo sobre o espectador do teatro épico. In: KRAMER, Sonia; LEITE, Maria
Isabel (orgs.). Infância e produção cultural. 5. ed. Campinas: Papirus, 2006. p. 4374.
DIONIZIO, Manoel Neto. Rousseau: um olhar sobre a Infância e a Educação.
2001, [sp]. Disponível em
<http://www.unicamp.br/~jmarques/cursos/rousseau2001/
mdn.htm>. Acesso em: 14 abr. 2007.
ERIKSON. Erik. O ciclo de vida completo. Trad. Maria Adriana Veríssimo
Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.
45. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
______. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra,
1981.
FRITZEN, Celdon. Imagens da criança na geração de 1870: o problema dos
instintos. Caderno de Educação Universidade Federal de Pelotas, Faculdade de
Educação, ano 15, n. 26, p. 123-138, jan./jun. 2006. Pelotas: FaE/UFPel, 1992 –
Semestral.
HELD, Jaqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica.
Trad. Carlos Rizzi, direção da coleção de Fanny Abramovich. São Paulo:
Summus, 1977.
HONORATO, Aurelia et al. A vídeo-gravação como registro, a devolutiva como
procedimento: pensando sobre estratégias metodológicas na pesquisa com
crianças. Anais da ANPED, 2006.
JEAN, Isabelle. A literatura infantil nasceu quando os adultos souberam escutar
os segredos das crianças. Entrevista a Frederic Gaussen.Trad. Elizabete Paz de
Almeida. Le monde de l’education. Paris, SARL, p. 9-12, Mars, 1978.
92
JOBIM E SOUZA, Solange. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin.
Campinas: Papirus, 1994.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A inter-ação pela linguagem. São Paulo:
Contexto, 2004.
KRAMER, Sonia (org.). Alfabetização: dilemas da prática. Rio de janeiro: Dois
Pontos, 1986.
______. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças.
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, n. 116, p. 41-59,
julho 2002.
______. Pesquisando a infância e educação: um encontro com Walter Benjamin.
In: KRAMER, Sônia; LEITE, Maria Isabel (orgs.). Infância: fios e desafios da
pesquisa. 8. ed. Campinas: Papirus, 2005. p. 13-38.
LAJOLO, Marisa. A figura do negro em Monteiro Lobato. Unicamp, Campinas-SP,
1998. Disponível em: <www.unicamp.br/iel/memórialobato/outros/lobatonegros>.
Acesso em: 20 de agosto de 2008.
LANDERS, Vasda Bonafini. De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o
Modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
LINS, Osman. Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo:
Summus, 1977.
LOBATO, Monteiro. Idéias de Jeca Tatu. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1951.
______. Obras Completas de Monteiro Lobato. A Barca de Gleyre. 14. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1972a.
_____. Obras Completas de Monteiro Lobato. Cartas Escolhidas. 7. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1972b, 280 p.
______. Reinações de Narizinho. São Paulo: Círculo do Livro, 1988.
MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3. ed. São Paulo: Summus
Editorial/INL/MEC, 1979.
OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky e o processo de formação de conceitos. In:
DE LA TAILLE, Yves; OLIVEIRA, Martha Kohl; DANTAS, H. Piaget, Vygotsky e
Wallon: teoria psicogenética em discussão. São Paulo: Summus, 1992.
PINO, Angel. Real, imaginário e simbólico. Palestra ministrada na Universidade
do Extremo Sul Catarinense – UNESC, IV SEILAC, 2 a 4 de junho de 2008.
REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da
educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
93
RESENDE, Vânia Maria. Literatura infantil e juvenil: relatos de experiência na
escola. Belo Horizonte: Comunicação, 1983.
______. O menino na literatura brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1988.
RIBEIRO, José Antônio Pereira. As diversas facetas de Monteiro Lobato. São
Paulo: Co-edição Secretaria de Cultura do Município de São Paulo e Roswitha
Kempf Editores, S.d.
ROCHA, Ruth. Monteiro Lobato: Biografia. São Paulo: Abril Educação, 1981.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio, 1979.
SARMENTO, Manuel Jacinto. As culturas da infância nas encruzilhadas da
Segunda Modernidade. In: Crianças e miúdos: perspectivas psicopedagógicas da
Infância e educação. Lisboa: Asa Editores, 2004. p. 9-34.
STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Trad. Heloísa Jahn.
São Paulo: Ática, 1992.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 7. ed. atual. São Paulo:
Difusão, 1982.
VEER, René Van Der; VALSINER, Jaan. Vygotsky: uma síntese. Trad. Cecília C.
Bartalotti. São Paulo: Loyola, 1996.
VIEIRA, Adriana Silene. Peter Pan, uma leitura inglesa no sítio do Picapau
Amarelo. Unicamp, Campinas-SP, s.d. Disponível em:
<www.unicamp.br/iel/memóriadeleitura.ensaios>. Acesso em: 20 de agosto de
2008.
VYGOTSKY, Lev. Semionovich. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
ZILBERMAN, Regina; MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Literatura Infantil
Autoritarismo e Emancipação. São Paulo: Ática, 1984.
______. A Literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1985.
______. Sim, a literatura educa. In: ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro da.
Literatura e Pedagogia: ponto e contraponto. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.
Download

representação de infância em Lobato - Acervo