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Imprecações cotidianas: sobre a
neurastenia do trágico
Roberto Sávio Rosa
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba, Professor
Assistente do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail: sá[email protected]
Resumo. O ensaio sugere experimentar um cruzamento de interrogações em torno do trágico na era da
comunicação de massa.
Resumée. L’essai suggère examiner
un croisement d’interrogations
autour du tragique dans l’âge de la
communication de masse.
Palavras-chave: trágico - discurso existência - morte
Mots clé: tragique – discours –
existence - mort
ROSA, Roberto Sávio
Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento.
João Guimarães Rosa
1. QUE COISAOUSAMOS PROFERIR COM “PENSAR”, “DIZER”
E“CONCEBER”OTRÁGICO?
Pode parecer estranho propor uma discussão sobre o trágico,
ao conceber, como premissa, que a discussão abarcará a impossibilidade. Entretanto, se nos permitirmos uma acuidade distanciada
das formas consumadas do palimpsesto, descobriremos que pode
estar contida, nesta impossibilidade, a metodologia empregada para
afrontar a questão. Pode parecer, inclusive, heresia, mas estamos
sintonizados com a idéia de que, em todo escrito, encontra-se um
desejo latente de leitura. Quem escreve quer ser lido! Nos escritos
referentes ao trágico, o que predomina é o falar por analogia. Nas
falas, aquele que fala, porta estranhamento e fascínio. O fascinante
da fala atrai e, em sua atração, trai a confiança na fala. A suspeita,
suscitada e proliferada pelo modo de falar fascinante, indica a dificuldade exigida em abordagens de assunto tão vertiginoso. O trágico não permite a fala específica, a palavra exata (discurso), mas
falas, palavras, discursos que, atraentes e fascinantes, geram suspeita e desconfiança.
Modos de falar determinam a região do falante, revelam o seu
dialeto. Um dialeto é considerado instrumento seguro nas falas da
região, mas se encontra, a ela, circunscrito. Modos de falar teoréticos
são dialetos elaborados que encontram e determinam horizontes.
Recorrer a dialetos significa avançar sobre as especificidades de cada
região e, com essas, ampliar horizontes. Entendemos dialeto as expressões correntes e determinantes das regiões que visitaremos sob
a ótica histórica, filológica, mitológica e filosófica. Acreditamos que,
em conjunto, regiões e dialetos erigem possibilidades interpretativas
sobre a questão do trágico. Entretanto, crenças são apenas crenças…!
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Do promontório do dialeto histórico, as abordagens e
referimentos ampliam o trabalho de datar, seja o nascimento seja a
morte da tragédia e dos trágicos, combinando exegese política a
dados biográficos; com a lente inclinada do dialeto filológico, se
multiplicam as noções de sentença, interpostas no sentido e no significado dos nomes das personagens componentes das peças trágicas, chamando em auxílio às declinações verbais e morfológicas.
Um trágico concebido como necessidade; albergados pelo manto do
dialeto mitológico encontramos um universo tão rico e variado de
divindades que, praticamente seria impossível fugir ao aspecto trágico da vida (neste momento, concebido como ação de represália
desencadeada por qualquer deus, pelo fato de não receber o reconhecimento devido). A falta de cuidado com as divindades será
considerada a promotora dos infortúnios. O que importa evidenciar, neste momento, é que, independente do ponto de vista escolhido (regiões, dialetos), os discursos e falas sobre o trágico tendem à
uniformidade. Uniformidade no sentido de acreditar viável a
exteriorização elaborada de algo tão incômodo.
Mas é de modo diverso que encontramos análises
interpretativas do trágico (filosofia do trágico). Consagraremos a
estas inclinações e perspectivas um acanhado comentário, com hesitação e precaução, visto que estamos cientes dos limites que nos
oprimem. Principiamos esclarecendo o sentido das expressões que
utilizaremos em nosso discurso. Adestrados, acreditamos que o
recurso permite aproximar o leitor dos propósitos do expositor, mas,
sinceramente, continuamos mergulhados no manancial cético a respeito da sua eficácia. Toda vez que realizamos uma atividade teórica, estabelecemos relações formais com os procedimentos (projetamos, supomos, objetivamos e determinamos a finalidade, o seu por
quê (?)). Empreender significa instaurar e iniciar um caminho, um
percurso, composto de indicações significativas que auxiliem na
compreensão do argumento desenvolvido. Indícios ou signos, por
si só, não concedem a prerrogativa da revelação de algo inacessí-
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vel, muito menos de alguma verdade que não veio à tona!
Em nossa obstinação discursiva e, sobretudo, em nossa incapacidade de alcançá-las (a revelação e a verdade discursiva) produzimos novos amontoados de signos-indícios (discursos) que acabam sofrendo o vaticínio dos discursos precedentes e “continuamos imersos no acontecer da ignorância” (SCHULLER, 2001, p. 13).
A produção insaciável de discursos pode significar, inclusive, que,
de algum modo, transpiramos e exalamos a insuficiência das nossas exposições, originada no confronto estabelecido com os segredos que afrontamos. O império discursivo catártico seria fundante
e responsável pela propagação da crença que, no dito, se encontra
incluído e superado o descrito: “falar, calar, idêntico sofrer” (ESQUILO, 1997, p. 149).
Quando cunhamos e proferimos expressões como pensar o trágico, corroboramos, também, sem intenção, a tendência positiva de
o trágico ser, desde sempre, um acontecimento evidente, dado. Tratamos o argumento com inspiração e dedicação idêntica aos técnicos de laboratórios que manipulam experimentos, costumeiramente,
demonstrando evidência e intimidade. Tal proximidade com a manipulação assemelha-se às fábulas. Exteriorizar digressões sobre o
assunto não caracteriza nem dispõe elementos que ajudem na compreensão e apropriação do trágico como próximo, como passível
de convívio, somente insinua que tais digressões exigem necessidade de referimento. Em outras palavras: podemos considerar-nos
atentos e sensíveis para auscultar os murmúrios do imperscrutável?
Somos capazes de realizar análises sem paradigmas? Para tanto,
necessitaríamos educar o ouvido! Tal expressão, enigmática e alusiva, promove tanto a cisão como a imprecisão da tarefa que se está
por realizar!
Não obstante, uma atenção acurada, os indícios, inerentes às
vicissitudes mundanas, indicam uma banalização extrema do argumento tratado, delegando ao espanto o lugar comum. Nada mais
congrega o peso da impossibilidade manifesta em situações limi-
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tes, nem mesmo, o anúncio da morte de Deus, de Nietzsche. Como
não haver Deus? Sem Deus há temor, medo. Com Deus existindo,
tudo tem esperança: o mundo se resolve. Sem Deus é tudo contra o
acaso. Sem Deus não temos permissão de coisa alguma! Não se
pode justificar tudo discursivamente!
Em uma época batizada como pós-moderna, caracterizada pela
curiosidade latente do supérfluo, que pretere o conteúdo em função da velocidade, o trágico perde força. Perdendo força, ganha em
nostalgia. São ecos do passado que ressurgem como mensagens
cifradas na comunicação de massa. O trágico começa a receber, de
modo irônico, mutação valorativa a partir de acontecimentos que
potencializam as características do sofrimento, tais como:
a) Perdas irreparáveis (um pouco cínica e vaga esta característica, em função do crescimento de ações movidas contra o
Leviatã, a fim de exigir restituição financeira por tais perdas
(ir)reparáveis!);
b) Envolvimento com morte (em geral de humanos, visto que,
dificilmente encontramos comoção de massa pela morte diária de milhares de aves, suínos e bovinos que nos permitem alimentação e sustento; ou ainda, para fazer coro com o
eco-lobby, pela morte de milhares de árvores abatidas…);
c) Ações imprevistas de ordem natural (aqui, o termo assume o
significado de acontecimento que escapa ao pré-visível, como
se houvesse capacidade para tanto (!/?)), manifestações em
situações excepcionais e, em geral, catastróficas (maremoto,
tempestades, tufões, avalanches, deslizamentos etc…).
Em momentos de tensão como este nos vem em auxílio o binóculo do promontório histórico, que está mais para fardo do que
pluma. Não podemos sustentar seguramente que aprendemos e
desenvolvemos a arte de auscultar os rumorosos lamentos do
imperscrutável! Assim, uma questão problemática restará sem
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resposta, visto que a experiência e a sensibilidade aos murmúrios do
imperscrutável, bem como a exteriorização desta experiência (a consolidação da tragédia como gênero literário, portanto, referimento a
toda tradição recorrente) ter sido manifesta. A honra e o mérito dessa auscultação privilegiada são gregos, constituindo-se, quer queiramos ou não, como paradigma a toda análise do trágico.
Pensar o trágico nestas condições, a partir de um referimento,
significa pensar um evento irreproduzível? Se considerarmos o
acontecimento (nascimento do gênero literário) como a consolidação eficiente e completa da mensagem que insinua o nosso lugar
no mundo, sim! Porém, se visualizarmos o trágico como condição
humana, não! Fala-se tanto de acontecimento quanto de condição,
mas convém dizer que acontecimento é este. Trata-se de compreender que não podemos, simplesmente, exercitar a leitura das peças trágicas e transportar ipsis litteris, aos nossos eventos, o mesmo
senso atribuído quando do surgimento das mesmas. Reside aqui
uma impossibilidade
Dizer que os argumentos desenvolvidos nas peças trágicas, tais
como o matricídio, o parricídio, o incesto, são temas recorrentes
das crônicas cotidianas e dos telejornais, não pré-supõe, nem mesmo concede, esclarecimento ao dito. Dizer que nas peças trágicas
são apresentadas as premissas dos códigos de conduta da sociedade moderna, como disse Nietzsche em seu Agone Omerico, poderá
fazer sentido se consentirmos valor a determinado argumento, a
saber, que o intercalar dos eventos não ocorre de modo aleatório, e
que a soma progressiva e linear dos mesmos constitui aquilo que
caracterizamos e conhecemos como história. Para a enunciação de
juízos abissais necessita-se de argumentos plausíveis. Neste ponto
preferimos a suspensão!
Nosso propósito, quando evidenciamos alguns traços
discursivos sobre o trágico, não reside, ao menos por enquanto, na
análise meticulosa dos mesmos, mas se dedica a constatar que, independente da força de qualquer discurso, todos, sem exceção, cor-
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roboram o esplendor do olhar da Górgona. O trágico (com) porta a
morte nos olhos! Sobre o trágico os discursos nunca são os discursos! O nosso falatório prossegue em tentativas frustradas de
enclausurar nas malhas da sintaxe o que sempre revelou hostilidade ao fato de ser confinado. Se nos fosse concedida a possibilidade
de flagrar o coração do indizível, seria permitido proferir a última
palavra, sentenciando, assim, todo o falar. O trágico é extremamente
diverso da imagem de desolação e compaixão replicada pelos mass
media. Aquilo que encanta nos olhos da Górgona é o não visto (o
não poder ver, fixar, sustentar com os olhos); o que encanta no trágico é o ausente. O trágico faz ver, mas não é visto. Falamos do
inefável? Mas como concebê-lo?
Por concepção indicamos seja a capacidade de formular, imaginar e projetar, seja aquela de compreender partindo de uma determinada geração interna. Neste sentido o trágico não seria visto
como um produto humano, mas como condição humana, como
apreensão de determinada situação, na qual sempre estamos. Sob o
ponto de vista do produto concebido, encontramos a tragédia que,
como forma literária (estética) foi e é capaz de transmitir com precisão a situação na qual sempre estamos. Sob o ponto de vista da
compreensão de uma determinada experiência, isto é, da condição
humana e do nosso lugar no mundo, o trágico não pode ser concebido. Somente podem ser concebidos os discursos representativos que fazemos para recuperar esta experiência. Discursos são
interpretações e “toda e qualquer interpretação do trágico é insuficiente” (JASPERS, 2000, p. 28).
2. PODE-SE FALAR DE UMA REALIDADE TRÁGICA?
Todo palavrear é impreciso, mas toda palavra atrai. Todo
palavrear pode ser preciso, mas toda palavra trai! Raramente, o discurso não deforma a precisão da fala. Atos de fala parturejam difi-
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culdades interpretativas. Discursos, independente da abrangência
que suscitam e exprimem, sofrem a impostação do limite. Discursos partilham os lampejos da luminosidade esclarecedora com as
minúcias sombrias da obtusidade. Mas que dizer, então, dos discursos que tendem a expressões conflitantes em filosofia? Geralmente, em dicionários filosóficos, o conceito de realismo surge vinculado à consideração do mundo externo como existente em si, independente da atividade cognoscitiva. A realidade pode ser considerada como tudo o que existe, o mundo, não exclusivamente
conceitual ou lingüístico.
A definição não deve ser tomada destituída de seu contexto e
assume relevância quando, na história da metafísica, se faz necessário estabelecer conceitualmente a natureza dos universais, herança
do medievo. É tema corrente que a definição de realidade encontra
sentido na discussão filosófica acerca do conhecimento. O conhecimento, aqui referido, é diverso daquele indagado com relação ao
trágico. Sabedoria trágica e conhecimento filosófico diferem, destoam! Sabedoria e conhecimento amaldiçoam, a seu modo, este
mundo. Discursos trágicos são dúbios, discursos filosóficos são distintos! Discursos trágicos proferem sentenças emotivas, enigmáticas, promovem excessos, ultrapassam limites; discursos filosóficos
proferem sentenças frias, racionais, exigem disciplina, esclarecem!
Isto que é considerado entorno e indicado como realidade encontra ressonância e significado no perceptivo. Percepções, mediadas por sensações, exibem caráter prospectivo. Perspectiva é exposição e ilustração a partir de um determinado olhar, de um determinado panorama e abrange possibilidades. O conjunto - já sob a
influência do prospectivo sobre o qual se debruça o olhar caprichoso - assume destaque e relevo na sujeição. O que se encontra sujeitado adquire interesse (teorético) a partir da percepção de um tipo,
especificamente, do tipo humano. Neste sentido, é possível afirmar que a realidade é individual e temporária? Que a realidade é o
que parece a cada um na medida em que a ele interessa? Que cada
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um é o juiz de suas próprias impressões? Mesmo carecendo de profundidade, a exposição principiada objetiva atribuir à realidade
características antropomórficas. A tese remonta a Protágoras e recebe tratamento diferenciado na interpretação heideggeriana. Para
Heidegger, na expressão sofisticada, se faz presente a obtusidade,
principalmente, pelo fato de Protágoras ser traduzido e interpretado sob a influência do pensamento moderno, o que promove a sua
inserção na história da metafísica. Como procedimento, no sentido
de desfazer o mal-estar da interpretação, propõe conveniente, uma
tradução em sintonia com o pensamento grego, não se furtando de
afirmar que, em toda tradução, já está contida uma interpretação,
perspectiva.
A interpretação heideggeriana sugere que a realidade mencionada no dito de Protágoras não corresponde ao modo concebido
pela tese Cartesiana moderna. Em Protágoras, a realidade deve ser
concebida como presença e sua verdade essencial como
(des)encobrimento, diferente, portanto, do modo de conceber a realidade a partir de um “eu” que, enquanto sujeito, representa objetos. O homem de Protágoras é, “respectivamente, a medida da presença e da revelação mediante a moderação e limitação ao aberto
mais próximo, sem negar o oculto mais distante, sem apropriar-se
(de algo que não lhe pertence) de uma decisão sobre o seu ser presente ou faltante” (HEIDEGGER, 2003, p. 160). Com isso, a possibilidade de considerar-se homem e, em decorrência, padrão de julgamento, somente é possível, segundo Heidegger, fundamentado na
presença daquilo que, presente, se (des)cobre; a realidade é presença; se diz verdadeiro aquilo que se mostra como (des)coberto e, se
considera medida, padrão de julgamento, ao que modera o processo de (des)encobrimento.
A interpretação instiga a (re)visitar os pensadores originários!
Originário vem a ser considerado o laborar destituído de fórmulas,
um principiar intrigante e irrequieto que arranca o véu nebuloso
do dado e projeta luminosidade no crescente desejo pelo investiga-
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do. Originário não deve ser considerado a manifestação do pensado e intuído, mas sim o passo dado na sua direção! Neste sentido
não é intenção, neste momento, travar discussão sobre a eficácia ou
ineficácia da interpretação, haja vista não considerar excessivas
questões advindas e suscitadas pelos defensores da perspectiva
interpretante. Também não é intenção inserir teses epistemológicas
fundamentadas num ceticismo perspectivista, ou relativista. Razões,
onde quer que estejam, permitem crer e pensar que, sem a perspectiva antropomórfica desapareceria, inclusive, a totalidade das questões afrontadas. Todo discurso sobre a realidade, a respeito do efetivo circundante, que se pauta sobre o que é percebido e mediado
pelas sensações, engendrando possibilidades, ausenta! Discursos
proferidos insinuam retórica. Se considerada a capacidade retórica
(tékne) imbricada em cada discurso, pode-se, inclusive, identificar
a realidade enquanto artefato persuasivo. O real estaria em jogo!
Uma vez manifestado o gosto pelo verdadeiro no falso, é possível falar de uma realidade trágica? Se a incumbência de instituir
sentido e significado ao mundo circundante revela-se atributo exclusivo do perspectivar humano, então é lícito falar de realidade
trágica. Mensurar, mediante perspectiva própria, não significa dedicar ao mensurado um valor imprescindível, nem mesmo reconhecer sua grandeza e importância. Mensurar, mediante perspectiva própria, significa, antes de tudo, decretar um valor exacerbado
tanto à perspectiva quanto ao que mensura! O excesso de valor
atribuído ao mensurador do mundo circundante, supostamente,
lhe delega funções que excedem suas forças prescrevendo um conflito insolúvel, portanto, trágico.
Realidade trágica é considerada a atribulação de papéis imprescindíveis à existência! É saber-se inserido e inserção no emaranhado circunstancial escorregadio que escapa, que se pode captar
e apreender somente em lampejos e traços, perspectivas: realidade
trágica é tudo certo, tudo incerto! Realidade trágica é saber que o
recurso fundamental recorrente, em cada modo de estar e atuar no
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perspectivo, reside no primado. A primazia permite ao homem a
ciência daquilo que ele próprio é; o privilégio humano, apocalíptico,
é conviver com a ciência da finitude; tudo principia terminado. Somente o homem, ciente da sua finitude, conhece a si mesmo! Desse
modo, como contemporizar e harmonizar finitude a projetos coenvoltos pela realidade artefática do possível? Deve-se atribuir valor a esta mesma realidade? Em um colóquio com Daniel Diné sobre o “irrevogável”, respondendo a esta e a outras questões,
Jankélévitch, examina o paradoxo. Quando devotamos intensidade na realização de um projeto, desprendemos energia. Isto nos
aproxima cada vez mais da morte. O homem deseja duplamente:
deseja tanto a intensidade da vida quanto a imortalidade, o que
chega a ser impensável e, até mesmo, absurdo.
No conflitante jogo do blasfemar valorativo (interpretante)
acrescentam-se caracteres à realidade que alterna as perspectivas
agradáveis da ambrosia com as perspectivas amargas do rícino. “O
mundo é um cárcere perpétuo. O diabo que o carregue!” Caracterizar a realidade circundante como um conjunto harmonicamente
constituído (agradável) tende a fazer sentido (a determinadas interpretações – sistemas -perspectivas) quando, neste conjunto, não
se encontram incluídos os atributos improferíveis e inomináveis
da sua contradição. Simetria e contrariedade são incompatíveis?
Discursos nada mais são do que tentativas de reconciliação. Formulada por Platão, a definição de unidade orgânica permanece
inalterada na tradição estética, subjugada à artimanha metafísica
do princípio único. Até então foi possível considerar harmônico
tudo aquilo que tende para a simetria, tanto na forma quanto no
som, nas cores, nas... (?)! Entretanto, é importante recordar que também a noção de simetria é perspectiva discursiva!
A harmonia desejada, decorrente do perspectivar simétrico, faz
sua estréia mundana não como condição já sempre presente, mas
como situação obtida a partir da luta, da imposição reguladora, da
idéia de ordem contraposta à idéia de caos. Considera-se harmoni-
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oso o mundo ordenado, regulado, luminoso, normatizado, a saber,
conhecido! Considera-se caótico o mundo disperso, disforme, cinza, desconhecido! Harmonizar compreende a inserção do quesito
do mensurável e conhecido trafegando no sentido da exclusão, pois
veta a co-habitação com acontecimentos indissociáveis. Salvo melhor juízo, a manifestação contida na presença de eventos irreconciliáveis decreta o falimento da empáfia ordenadora calando o destempero da soberba. Erros e acertos comungam da equivalência! Neste
sentido, por que preterir algo em função do seu igual? Discursos
trágicos proferidos sobre a realidade apresentam constituição
abrangente. Em seu proferimento, os incompatíveis se tornam complementares, visto que a dissonância é tida como a mais profunda
forma de consonância! Detalhes discursivos! Discursos trágicos também harmonizam o mundo!
Com a dificuldade manifesta, a queda parece inevitável! O que
destoa é a retumbante sonoridade trágica, segundo a qual, o
insucesso é gerador de aprendizagem! Trágico, neste sentido, é a
vitória na derrota! Ao projetar e valorar o que está por vir, travestemse os temores com máscaras do sucedido. Medo do que pode haver
sempre e ainda não há! O perspectivar humano, ao despertar para
forças excedentes, permite a inclusão de acontecimentos que aparecem destituídos de mensurabilidade e prognóstico instaurando
um distanciamento próximo, justificado na impossibilidade de estabelecer relações e influenciar suas vontades. Proximidade, pois
se encontra aquém da solução; distância, pois ultrapassa, em muito, os limites da crença. Determinada configuração visualiza a realidade trágica dissociada e isenta de toda reconciliação discursiva
(não se pode estabelecer um tratado ético com o Etna (que habita
cada instante) determinando o período e a potência das suas erupções, independentemente do acúmulo de informações produzidas
pelos vulcanólogos!); tanto ao homem que se basta, quanto ao homem ciente da falta, discursos serão sempre insuficientes. Tudo tem
seus mistérios! O viver é diverso do compreender. Inadequação e
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imprecisão são atributos estéticos da máscara que empunhamos. A
vida disfarça! A vida inventa!
Sob a perspectiva da interação, o homem sente que o seu
modo de estar e de se relacionar com a realidade é diverso do de
todos os demais e se pergunta: por que somos tal como somos? No
mundo circundante o homem faria parte de uma exceção? Se adotarmos esta linha de raciocínio estaremos, novamente, em sintonia
com interpretações que visualizam a realidade enquanto um conjunto de regras, com princípio, meio e fim, afastando o trágico do
seu horizonte (trágico entendido aqui como aquilo que pode suceder). Mas, se permitirmos chamar em nosso auxílio o raciocínio de
Montaigne, a abordagem da compossibilidade da regra (realidade
ordenada) e da exceção (trágico) se torna clara:
1) Uma lei, se lei existe, não deve conhecer nenhuma exceção: senão ela seria lei imaginária.
2) Ora, todas as leis recenseadas até agora apresentam exceções: todas sem nenhuma exceção.
3) Segue-se daí que nenhuma lei existe.
4) Logo, tudo o que existe, não estando submetido a nenhuma lei se não de ordem imaginária, tem um caráter excepcional: o reino do que existe é reino de exceção.
O trágico não pode ser considerado a intromissão abusiva da
exceção no reino da regra. Em uma suposta realidade regulada,
estabelecida sobre limites, deveria ser considerado trágico o número limitado de portas. O trágico, neste sentido, recebe a força da
designação de qualquer coisa que se encontra aquém e além da
possibilidade, mas que, ao mesmo tempo, faz parte e reforça esta
possibilidade! Realidade trágica pode ser dita e considerada a consciência da própria e de qualquer condição. Realidade trágica é saber-se imerso num conflito insolúvel destituído de significado! É
partilhar da consciência constante de uma morte possível! É conviver consciente “do inteiro vir-a-ser, com a destruição universal de
tudo isto que nasce” (JASPERS, 2003, p. 13) e ponderar sobre toda
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proposta de cuidado correspondente a esta sabedoria. Realidade
trágica é condividir as facetas de um mundo perspectivado! É saber que já se encontra sentenciado o dia do (des)existir! É admitir
ciência de que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pé
nem cabeça, mas que uma tal vida é possível! É manifestar, aos
gritos, que, apesar da consciência do decreto, a espera silenciosa é
recusada e, com os riscos inventados do discurso, afrontamos, forjamos veredas. Discurso é ferramenta, utensílio! É instrumento que
auxilia na lida com o estorvo. É aquilo que instaura e permite a
relação entre o homem e sua condição.
Discursos são falas para purgar aflitos, para aliviar a idéia da
gente de perturbações desconformes. Geralmente, discursos primam por difundir e ampliar poderes. Discursos tanto podem possuir poder explicativo e organizativo quanto terapêutico. Discursos religiosos (“especialistas” em questões de gênese, de princípio)
trabalham no sentido de comentar e interpretar a dificuldade e a
obscuridade da condição humana. Na exposição de razões e motivos, indicam, como causa para tamanho desconforto, a consciência
traumática do rompimento primordial transfigurado na afronta
cometida ao Deus supremo, especificamente, na quebra de confiança estabelecida entre homem e Deus. Com o discurso religioso,
fundante de gênese, advém a duplicidade limítrofe que torna fatigante todo existir: traição e culpa! Devido à mácula ignominiosa da
traição, recaiu sobre o humano a culpa abjeta tornando-o sujeito ao
tormento, à angústia, à fadiga, ao castigo. Discursos religiosos estabelecem a culpa como horizonte. Horizonte é palavra
hermenêutica com característica própria e não deve ser tomada
como metáfora de princípio, mas sim como alargamento de compreensão. Como hermenêutica, ela recai no espaço reflexivo de confronto e de aproximação com a experiência histórica. O culpado
aceita de modo incondicional as penalidades e todo sofrimento em
vida, projetando a superação na finitude.
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No entanto, não é com ilhas do fim do mundo nem com maravilhas de áleas de palmares inexistentes que se cura a
errância nostálgica das almas que se sentem exiladas dos jardins paradisíacos do nonato (MELO; SOUZA, 2001, p. 128).
Discursos religiosos terminam por transferir o desenlace da
ação mundana para um plano superior (Al di là - Dio ex macchina).
Discursos religiosos promovem a justificação!
Não é de modo diverso que atuam os que professam o discurso que, em vista de senso e finalidade (telos), coordenam, em conjunto, os diversos elementos incompatíveis. Albergados na meiaágua da esperança - (leia-se tèkne) -, na crença do homem que se
basta, promovem a venda da realidade subjugada, passível de bem
estar, em que a dissonância seja remediável a partir do rigoroso
trabalho dedicado ao conhecimento e aos frutos desse decorrente:
os instrumentos.
Para as anomalias sistêmicas in natura fabricam-se mecanismos e ferramentas que adentram a cena, geralmente, após o
surgimento do evento supra-referido: é próprio da decepção suceder a esperança! Para as contradições residentes na máquina corpórea
profetizam a reparação e a substituição das peças (recall). Prossegue latente e inarredável o culto ao ressuscitador de mortos! Devese agradecer e atentar para esse fanatismo, pois consegue, em função da quantidade de fármacos que disponibiliza e da propaganda
que pulveriza, imprimir longevidade às belas carcaças! No ludibriar cotidiano, sofremos, cada vez mais, a esperança de não morrer!
Tudo é permitido em função do prazo de validade das mesmas. O
preceito quantitativo pretere o qualitativo. Discurso sólido é discurso medicinal. Aos medi-cínicos, atuantes neste inchado tempo
do desespero, poder e primazia, devoção e culto.
Um tempo do desespero que dura um instantezinho enorme,
que não credita mais tanta força ao argumento da culpa, irremediável e infinita, prévia à morte e que mete em obra o projeto de conferir ao existir fático um valor, mesmo que ele não tenha. Uma ilu-
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são elaborada que, independente da maior descoberta dos últimos tempos da última semana (tèkne), sobrevive ciente do ceifar cotidiano,
geralmente, no papel de trigo e não no de foice! Não obstante o uso
da palavra ilusão, faz-se necessário abrir um parêntese para manifestar posição contrária à institucionalização da guerra fratricida
entre ilusão e verdade. É mais do que evidente a capacidade terapêutica do ilusório. Verdade é ilusão fundamentada! Aquele que
fala a verdade mente pouco!
Resta ainda a análise do discurso terapêutico. Este poderá ser
confundido, num primeiro momento, com os discursos que já receberam tratamento anterior, visto que todos apresentam, em graus
diferenciados, alguma terapia específica:
a) Terapêutica sutil da promessa além mundo (mesmo reproduzindo o gesto radical de Édipo, é impossível não ver a proliferação, cada vez maior, de credos e cruzes que tomam as cidades com
promessas que vão desde a retirada de encostos ao gozo eterno da
felicidade); Para não ver coisas assim, jogo meus olhos fora! (ROSA,
1978, p. 434).
b) Terapêutica pragmática na invenção e fabricação de instrumentos que permitem a pré-visão dos eventos (como não atentar
para o interesse demonstrado no anúncio dos vates contemporâneos - os homens do tempo!).
c) Terapêutica estética empregada na substituição e reposição
de peças obsoletas (como esquecer o ventriloquismo midiático do
pré-núncio das super-colas, que possibilitam aderência privilegiada
às dentaduras?) Estética do trágico! Com ou sem cola o fato é portador de evidência: em idade avançada perdemos os dentes, e tal perda sinaliza a chegada inconfundível da velhice e, com ela, o inverno.
Fala-se de terapêutico, porque ainda prevalece a estúpida e
complacente dicotomia de traição e culpa. Porque, também aqui,
se fala através do olhar da necessidade, da condição que requer
cuidado e avizinhamento (proximidade). Não é permitido falar de
outro modo. Ainda não é possível falar através do olhar que exige
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superação e erradicação dessa propriedade. O humano é aquilo que
é. O tipo humano está ciente, querendo ou não, gostando ou não,
daquilo que è. Dizer humano significa dizer próprio do homem e
homem é coisa que treme! O saber inflexível exige a tarefa inflexível:
agüentar o existir. Avassaladora, tal consciência, ao mesmo tempo
em que estimula, amedronta. “Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo” (ROSA, 1988, p. 72). Se de algum
modo é imputada à tarefa de agüentar o existir, então não se deve
mais considerá-lo como força ou fragilidade, mas simplesmente como
exigência condicional, como realidade! Realidade que não está no
princípio nem no fim, mas que se dispõe no meio da travessia.
3. PODE-SE FALAR DE UMA CONSCIÊNCIA TRÁGICA?
O envolvimento com questões dessa envergadura exige um
cuidado redobrado. Para situar a questão, convém estabelecer condições discursivas e interpretativas que propiciem o destaque e a
proximidade exigida entre a consciência e a realidade trágica, visto
que são muitos os pontos de convergência e entrelaçamento entre
as mesmas: trama que rende e gera confusão. Para navegar no universo da consciência trágica faz-se necessário um meio (uma tèkne),
considerado aqui como modo apto à obtenção de determinado fim,
e que se encontra contido na idéia genérica de arte. A escolha do
discurso requer ilustração. Ilustração pode significar a introdução
de imagens em um texto com finalidade explicativa. Especificamente, consoante a consciência trágica, trata-se de inserir imagens
conceituais que permitirão, por analogia, principiar e desenvolver
um percurso discursivo.
Considera-se discurso o fato de discorrer, expor, raciocinar, argumentar sobre algo. Todo discurso, ao dizer e no dizer, indica.
Tudo aquilo que é dito ou tudo aquilo que é indicado, no discurso,
não é, na completude, verdadeiro. Discurso nenhum promove ex-
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posição sem prejuízo da idéia, ao mesmo tempo em que engana o
discurso que oferece pronto o objeto da investigação (SCHULLER,
2001, p. 32). Em altas idéias, toda navegação é deficiente! Entre o
pensamento e o ato (discursivo) dá-se um abissal hi-ato! O mesmo
se pode dizer da realidade e da consciência trágica: entre elas reside um abismo. Acreditar que a consciência trágica seja a mola propulsora do salto que permite ultrapassar o abismo, ou seja, que
permite a liberação da realidade trágica, não significa acreditar que
está encerrado (superado) o processo de relação e apreensão desta
mesma realidade. A consciência trágica, uma vez atingida, não se
torna patrimônio pleno, sempre presente, de uma cultura. Assim,
se a realidade trágica é fatum, a consciência trágica não é!
Em situações limites o hábito faz recorrer ao discurso histórico. Sabemos que o hábito não faz o monge! Discurso histórico são
velhices de teia armadas de tempo em tempo por aranhas grandes!
No carcomido hábito os sinais se alternam. No esfacelado véu fatal
que julgo ver tramam-se possibilidades, sentido e significados. A teia
presentificada, outrora imobilizadora de braços, paralisa o agir.
Nesse emaranhado de furos e remendos destacam-se epocalidades
que instituíram chaves interpretativas de sua condição e de sua
relação com a realidade. São os presságios da consciência trágica, sua manifestação e, principalmente, o seu grau de
compreensibilidade! Remonta ao épico o lampejo primeiro de
tais presságios. Na épica, o homem não se sente autor de sua própria decisão. Toda escolha determinante encontra respaldo na relação de subserviência incondicional às forças que regem o mundo,
uma vez que a designação daquilo que deve ou não suceder está
distante da possibilidade e vontade humanas.
A difusão da crença pelo mito-religioso ou religião-mitològica,
na luta ininterrupta entre demônios que co-habitam e regem a ação,
termina favorecendo a instabilidade. Organizativamente os eventos
são divididos em regiões; na coexistência entrelaçam-se a região divina e a humana. Ações são executadas paralelamente, sendo que
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toda ação tramada e decidida na esfera divina, repercute na esfera
humana. A realidade dos homens encontra-se sujeitada e determinada pelo jogo de forças demoníacas, e o homem, um instrumento entre os instrumentos. A realidade é destituída de senso humano, mas
plena de sentido divino. Na finalidade das ações divinas, alberga-se
o sentido da ação humana. Na ação não deliberada do homem está
contida a ação determinante e deliberada do deus.
Este paradigma figurado é pedra fundamental lançada na longa història da consciência trágica, e seu fabro engenhoso é considerado Homero. O ofìcio de Homero é fabricar imagens. Mas como
apreender o sentido instaurado na sua criação artesanal? A partir
de leitura específica poderíamos compreender o ato homèrico como
pòiesis: produção, fabricação e criação. Um produzir que dá forma, um fabricar que engendra, uma criação que organiza, ordena e
istaura uma nova realidade (NUNES, 2003, p. 20). Criação, em
Homero, não deveria ser comprendida no sentido hebraico, ex niihil,
de algo fabricado e produzido a partir do nada, mas sim deveria ser
considerada a partir da concepção grega, que é a de fabricar a partir da matéria bruta pré-existente. A realidade, como a entendiam
os gregos, com suas múltiplas formas particulares, seria um ato
poético. A responsabilidade de tal ato é atribuída, segundo o mito
platônico, à inteligência divina, especificamente, ao Demiurgo, hábil artífice, moderador que contempla as formas ideais e fabrica
réplicas com a matéria bruta. Neste sentido, o artifício demiúrgico
é produção artesanal, e a realidade, enquanto produto é artefato.
Na representação das ações èpicas, Homero instauraria um
mundo alijado de vontade e consciência humanas. Um mundo cenário, palco de atuação das múltiplas forças que o dominam. O
combate entre homens compõe a narrativa. Em todo heròi e a cada
evento um modo diverso de agir impulsionado pela diversidade
das forças atuantes. Para os heròis o instante é jogo. No jogo, está
em jogo a vontade do deus. Da vontade divina depende a sua condição. No mundo do jogo, que joga, toda ação requer elevação. Regra
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do jogo! Corteja a decadência (o esquecimento, o não recebimento
das honrarias fúnebres pelo valor demonstrado) todo aquele que
ultrajar a seriedade exigida pela regra.
Cada postura, particularidade, metaforicamente representa um
anel da longa corrente educativa sobre a consciência trágica. Ao
delegar à singularidade nos combates (aristéia) um lugar privilegiado, Homero permite um aprofundamento desta propriedade humana, deste modo de ser específico do humano que do jogo participa. Cultiva-se, aqui, o terreno arenoso da consciência trágica. A
tensão se instaura com a afirmação dos heròis e da sua postura
frente ao instante crucial: o dizer sim ao que lhe cabe, ao seu quinhão, à morte. A morte, preocupação latente, não exerceria poder
sobre os atos da vida.
A epopéia é constituìda de ações afirmativas, incondicionais,
determinadas pela ordem superior das forças não vistas, mas capaz de conferir o sentimento da vida partilhando sofrimento e ansiedade. No comportamento heróico, o arquétipo da condição trágica, constituição figurada, que edifica a situação relacional entre
homem e mundo. Todo evento se faz sentir, subjugado ao poder da
força que o domina. O homem, enquanto instrumento, é títere. Na
edificação artesanal homérica, o destino corifeu atua no palco como
protagonista trágico do inefável seqüestro da morte.
Recebido em: abril de 2006
Aprovado em: junho de 2006
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