Ela não seria capaz de atacar o cristianismo. Isso era algo que ela julgava fácil e intelectualmente desonesto. Era o que todo mundo fazia, por qualquer motivo, poupando todos os outros sistemas de crença prévios e subsequentes. Não fazia sentido. A jovem Dora queria muito que as coisas fizessem sentido. Seu amor pela coerência e sua determinação de ignorar a existência da irracionalidade eram realmente comoventes. É bem verdade que, assim como eu, ela usava, ocasionalmente, o termo “mitologia judaico-cristã” referindo-se às histórias da Bíblia, mas isso para nós era a afirmação de um fato, não um ataque. Ao me explicar o conceito central da trágedia grega ela disse: “É a hamartia, errar o alvo, que causa a reviravolta trágica. Quando Édipo mata o pai e subsequentemente se casa com a própria mãe, ele não tem a mínima ideia do que está fazendo e do que está trazendo sobre si. Ele está realizando seu destino trágico, sabe? Atirando cegamente uma flecha e errando o alvo. É importante distinguir isso da subsequente má leitura da palavra na tradição cristã.” “O que essa palavra significa para os cristãos?” “O pecado.” “E isso é uma má leitura?” “Obviamente, porque hamartia em si não contém a ideia de responsabilidade pessoal, você não quer errar o alvo, você só atira e… bem, erra. Você pode nem perceber isso até anos mais tarde.” “Quer dizer que o pecado não existia para os gregos?” “É claro que a transgressão, a culpa e a responsabilidade existem em todo grupo social humano, né? Você é o sociólogo, então se não existirem, por favor me ilumine a esse respeito. Existe, mas não é formulado da mesma maneira como é no sistema de pensamento judaico-cristão. O que eu estou criticando é a apropriação de uma palavra específica. Será que não podiam inventar suas próprias palavras? É sempre recomendável fazer isso, quando se tem ideias radicalmente novas. De qualquer modo, no sistema grego existem as transgressões contra “a lei natural” – uma espécie de dimensão transcendente da natureza, governada pelas divindades pré-olímpicas. Essas transgressões podem ser punidas pelas for forças vingativas, como as Erínias, que tocam Orestes com o aguilhão da loucura por ele ter matado a própria mãe. Na sociedade ateniense (vou ter que falar de ateniense, ao invés de grega aqui, para evitar ter que fazer uma miríade de distinções) claramente existe a moral, há um sentido muito forte do certo e do errado.” “E da responsabilidade.” “Sim, mas não há o medo do inferno ou a promessa do paraíso. Qual é o sentido de temer o inferno, se todos vamos virar sombras um dia, de qualquer jeito? A mim me parece uma moral melhor, por não ser baseada no temor. Fazemos o certo porque fazer o certo é melhor do que fazer o errado e o bem é sua própria recompensa.” Fantástico. A não ser pelo fato que, se você tivesse sido a mocinha linda que você é na Atenas antiga, seu marido a deixaria trancada em casa, onde você passaria seus dias ao pé do tear, enquanto ele estaria na rua, no mercado, conversando com os amigos, ou num ambiente mais íntimo e isolado, compartilhando o gozo filosófico e físico com algum amado adolescente. Isso, a meu ver, apesar de certo e virtuoso aos olhos daquela sociedade, teria sido realmente trágico. “Mas você deve lembrar que essas pessoas executaram Sócrates por corromper a juventude.” “O que foi um erro trágico. Mas se eles erraram, Sócrates acertou o em cheio o alvo (no sentido moral) ao se recusar a fugir, como lhe foi proposto por Crito e ao aceitar o julgamento imposto a ele por sua polis.” “Então a morte de Sócrates levou ao avanço moral da humanidade como um todo …” “Não estou dizendo isso, estou falando sobre o diálogo Crito, não sobre a morte de Sócrates em si.” “Já que erros trágicos não podem ser evitados, não há esperança para nós humanos, certo? Será que em algum momento vamos conseguir acertar?” “Há esperança de melhora, por tentativa e erro, por meio da razão e da disposição de investigar e de aprender. Existe progresso, avanço moral e responsabilidade. Mas a redenção total não entra aqui. Ela pertence ao sistema judaico cristão, em que é trazida por uma fonte externa. Naquele sistema, essa é a história: Deus criou o mundo perfeito, a não ser pelo fato de ter dado à humanidade a opção de abandonar a perfeição. Nós – que não prestamos para nada – caímos nessa já de saída, metemos os pés pelas mãos e fizemos uma bagunça tal, que só Deus mesmo é capaz de dar jeito nela. Isso ele começou a fazer de um jeito um tanto sangrento e obscuro e algum dia concluirá com estrondo. Nessa ocasião todos seremos separados entre aqueles que acreditaram na palavra dele sobre isso e os que não. Não dá para ficar mais anti-humanístico que isso, né?” Assim falou Dora, a humanista secular de vinte anos de idade, que, uma semana depois, sentada a meu lado numa sala de concertos, derramou lágrimas silenciosas ao ouvir a ária I know that my redeemer liveth 1 do 1 Eu sei que meu redentor vive. Eu sei que meu redentor vive e que se levantará sobre a terra no Messias, de Haendel, mais tarde atribuindo isso ao fato de que “ideias e representações judaico-cristãs são uma parte tão grande quem somos” e “a música é tão bela.” Para ela, era a primeira vez e a beleza atingiu seu coração como uma flecha atirada com maestria. Mesmo com meus sentidos um tanto amortecidos pela familiaridade, eu ainda conseguia apreciar a música, embora fosse uma prazer menos intenso do que o de ver Dora deliciar-se com ela. Embrulhado na memória desses sentimentos, como num cobertor, fecho “o arquivo Dora” e vou dormir. ………………………………………………………………………………………. Estávamos tendo uma daquelas nossas conversas sobre os gregos antigos e o sistema de crenças judaico-cristão, porque nossos pensamentos tantas vezes se voltavam para as fontes da cultura e da identidade ocidentais. Naquele dia falamos sobre tragédia grega, moral, redenção, progresso, humanismo e sabe-se lá que mais – e no final, ele disse: “Que um galileu qualquer aparecesse, juntasse um bando de seguidores e dissesse ser o Messias, eu entendo. Por quê os romanos iriam se sentir na obrigação de matar o cara, mesmo que ele fosse aparentemente inofensivo, também não é difícil de ver. A única coisa que eu não entendo é como foi que ele conseguiu convencer tanta gente!” Espero que ele ainda esteja fazendo essa pergunta e que, se ele tiver esquecido, que ela de algum modo volte a sua mente e que ele queira perguntar. Não de um jeito retórico e meio gozador como antes, mas com completa honestidade intelectual. Por favor dê a ele a resposta, Senhor, hoje mesmo, se ele perguntar. último dia. E ainda que este corpo seja destruído, em minha carne verei a Deus. (Jó 19 : 25-26) Mas agora Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo as primícias dentre aqueles que adormeceram. (I Coríntios 15 : 20)