Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 http://www.revistahistoria.ufba.br/2013_1/a06.pdf Propaganda do belo: veículo musical na história da ideologia Zoltan Paulinyi Mestre em Música Universidade de Brasília Resumo: Tradicionalmente, o estudo acadêmico da música insere-se dentro de contextualização histórica. Este artigo traz evidências de que também o estudo da história pode se beneficiar de uma abordagem musicológica. A fundação do Conservatório de Paris, em 1795, apresenta ligação estreita com a história da ideologia. Alfredo Bosi recomenda a historização tópica de obras e palavras dos protagonistas do evento. A contextualização do evento indica a necessidade de utilização da tradicional terminologia metafísica do ramo aristotélico-tomista, abarcando conceitos de beleza, arte, ideia, escola. Já o surgimento da ideologia é fato recente, para o qual se sugere consolidação de taxonomia contemporânea, incluindo conceitos de escola e de ideal. Apesar de serem notáveis as facetas políticas e militares, a ideologia sistemática precedeu a ideologia política, dada a grande força cultural da moderna escola violinística fomentada pelo Conservatório de Paris. A difusão da ideologia pela música também influenciou o desenvolvimento da história brasileira a partir de 1816. Palavras-chave: Conservatoire National Supérieur de Musique et de Danse (França) Brasil — Vida intelectual — Século XIX Música — Conservatórios Agradeço o incentivo da Dr.ª Cléria Botêlho da Costa e da Dr.ª Lucília de Almeida Neves Delgado, e a orientação do Pe. Rafael Stanziona de Moraes na argumentação filosófica. Agradeço beneplácito divino no apoio da esposa Iracema e da família; a acolhida da Unidade de Investigação em Música e Musicologia da Universidade de Évora, Portugal, onde desenvolvo missão de estudo e pesquisa patrocinada pela Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, Distrito Federal; a orientação do Dr. Christopher Bochmann; e o apoio do Dr. Benoît Gibson. M usicologia é o estudo acadêmico da música. Estruturada no final do século XIX, a disciplina possui como objeto de estudo a arte da música sob diversos aspectos, como fenômeno físico, psicológico, estético e cultural.1 Joseph Kerman vem incentivando sistematicamente o diálogo da musicologia com outros domínios do conhecimento, tendo sido a área histórica predominante.2 A metodologia musicológica comumente adotada se baseia numa contextualização histórica de obras musicais, procedimento simples e coerente com o fato de ser a música uma escultura sonora no tempo. No entanto, será que a história, como disciplina acadêmica, também pode se enriquecer reciprocamente com a musicologia? O objetivo deste artigo é mostrar que a fundação do Conservatório de Paris, em 1795, se relaciona com o desenvolvimento conceitual da ideologia, cujos reflexos se sentem diretamente até mesmo na história do Brasil. Música, ideologia e história forjam um tema que relaciona conceitos interdisciplinarmente. Para enquadrar esta tarefa de modo eficaz, Alfredo Bosi indica uma metodologia precisa: a historização tópica de obras e palavras dos fundamentação protagonistas.3 teórica de Justifica-se Bosi por ser o uso, uma neste publicação estudo, recente da e aprofundada sobre ideologia, dentro de um contexto internacional. Esta primeira seção almeja desenvolver a proposta de Bosi na terminologia sobre ideologia, estabelecendo dois conceitos compostos: ideologia política e ideologia sistemática. A interpretação de fatos históricos musicais revelará que os professores fundadores do Conservatório de Paris tornaram eficazes o agrupamento e a disseminação de ideologias. Em face disso, será mister contextualizar este assunto entre os seguintes conceitos filosóficos: beleza, ideia e ideal. Essa contextualização ultrapassa o domínio estético, ramo obscurecido no final do século XX. Será, portanto, abordado por autores da área metafísica de ramo aristotélico-tomista. Esse sistema filosófico, além de atual e alinhar-se com clareza à tradição estabelecida por Aristóteles, é coerente com o clássico sistema de pensamentos dos protagonistas da fundação do Conservatório de Paris na passagem dos séculos XVIII e XIX. 1 Vincent Duckles et al., “Musicology”, in: Oxford Music Online, Oxford, Oxford University Press, 2007, http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/46710pg1, acesso em 5 jun. 2010. 2 Joseph Kerman, Musicologia, São Paulo, Martins Fontes, 1987. 3 Alfredo Bosi, Ideologia e contraideologia: temas e variações, São Paulo, Companhia das Letras, 2010. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 86 Além disso, a abordagem metafísica possui tendência a ser mais universalizante do que a estética. A utilização interdisciplinar de conceitos metafísicos é útil na correta articulação de ideias entre história e musicologia, cujo mecanismo de atuação poderá ser explicado pelos graus de convicção e de sinceridade dos protagonistas dos fatos históricos aqui citados. A segunda seção consolida a terminologia proposta, a qual será aplicada à descrição da fundação e da expansão cultural do Conservatório de Paris, concluindo com alguns desdobramentos também na história do Brasil. Terminologia Os grandes avanços técnicos do século XX foram acompanhados de fundamentais questionamentos humanistas relacionados ao verdadeiro significado das coisas, em virtude da crescente insatisfação com realidades desumanas, com as grandes guerras, construídas pela sobreposição de incoerências coletivas, somadas a conflitos individuais. A confusão atingiu tão elevado grau a ponto de Lorand declarar, na Sociedade Americana de Estética, a beleza como sendo um conceito difícil! 4 Curioso este recente ofuscamento intelectual, pois a história da filosofia já considerava essa conceituação bem resolvida desde a Idade Média, quando São Tomás de Aquino (1225-1274) relacionava a beleza à conjunção de três fatores: integridade, proporção e clareza, em face de a inteligência amar o ser, a ordem e a inteligibilidade, respectivamente. 5 Esse triste obscurecimento é típico do século XX, no qual se percebe que “o mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, é a que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar do tempo”. 6 Definese, de modo preciso, que “a beleza é a expressão visível do bem, do mesmo modo que o bem é a condição metafísica da beleza”. 7 Em metafísica, visibilidade ultrapassa a experiência sensorial: refere-se, antes, à clareza com 4 Ruth Lorand, “In defense of beauty”, Ideas (2007), http://www.aesthetics-online.org/articles/ index.php?articles_id=34, acesso em 16 jun. 2010. 5 Jacques Maritain, Art et scolastique, 4.ed., Paris, Art Catholique, 1920. 6 Igreja Católica. Papa (1963-1978: Paulo VI), “Aos artistas”, in: Mensagem do Concílio Vaticano II à humanidade, Vaticano, 8 dez. 1963, http://victorix.no.sapo.pt/de_outros/ humanidade.htm, acesso em 14 abr 2010. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 87 que o ser se apresenta para o intelecto. Luz e clareza são termos utilizados para se referir à visualização eidética, a qual se relaciona com a essência das coisas.8 Noutra forma de se expressar a mesma afirmação, beleza é a expressão inteligível do bem. Assim como o mal é ausência do bem, feiura é ausência da beleza. Dado isso, é natural a sociedade voltar-se para os artistas, honrosamente nomeados como guardiões da beleza.9 Toda pessoa é incumbida de ser artífice da própria vida, moldá-la como uma singular obra de arte. Mais do que exercer a didática tarefa de exibir a beleza, cabe ao artista construí-la. Para isso, o artista faz o juízo universal relativamente a objetos semelhantes.10 A arte criativa do ser humano difere essencialmente do poder divino: só o Criador, onipotente, pode tirar algo do nada; o artista humano assemelha-se, antes, ao artífice, que “utiliza algo já existente, a que dá forma e significado”.11 Portanto, o artista plasma a “matéria” estupenda da sua humanidade e depois exerce um domínio criativo sobre o universo que o circunda. Sua atividade modeladora manifesta o aspecto condescendente do Criador: o artista humano se revela como “imagem de Deus” ao receber uma centelha da transcendente sabedoria do Artista divino. A ação da arte consiste em imprimir uma ideia sobre uma matéria. Por isso, Jacques Maritain considera a arte de ordem intelectual, pertencente ao domínio da ação produtiva; tal “fazer” ordena-se a um fim, relacionado ao bem próprio ou à perfeição da própria obra produzida.12 Já indagava Pierre Baillot, um dos violinistas fundadores do Conservatório de Paris: como deve se guiar o artista para direcionar sabiamente seu talento e não cair em erros perigosos? 13 A busca de sentido impulsiona na construção da mensagem: “o artista vive sempre à procura do 7 Igreja Católica. Papa (1978-2005: João Paulo II), Carta do Papa João Paulo II aos artistas, Vaticano, Vaticano, Libreria Editrice Vatincana, [S.d.], http://www.vatican.va/holy_father/ john_paul_ii/letters/documents/hf_jp-ii_let_23041999_artists_po.html , acesso em 14 abr. 2010. 8 Jacques Maritain, Sete lições sobre o ser e os primeiros princípios da razão especulativa, 2.ed., São Paulo, Loyola, 2001, p. 52. 9 Igreja Católica. Papa (1963-1978: Paulo VI), Mensagem do Concílio Vaticano II. 10 Aristóteles, Metafísica, São Paulo, Edipro, 2006, p. 44. 11 Igreja Católica. Papa (1978-2005: João Paulo II), Carta do Papa João Paulo II aos artistas. 12 Maritain, Art et scolastique, p. 15-17. 13 Pierre Marie François de Sales Baillot, The art of the violin, 4.ed., Evanston, Northwestern University Press, 1991, p. 11. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 88 sentido mais íntimo das coisas; toda a sua preocupação é conseguir exprimir o mundo do inefável”.14 Na tentativa de se expressar, portanto, o artista visa a um ideal. Ideal vem do grego ἰδέα, significando visão ou contemplação; é “derivado do termo que Platão usou para designar ideias ou formas eternas, cada uma perfeita no seu tipo”.15 O ideal claro e límpido permite ao artista identificar escolhas. Há várias comparações possíveis. Um escultor escolhe uma pedra adequada em função de seu tamanho, forma e material se harmonizarem ao ideal que deseja exprimir. Um luthier galiva a madeira para obter um violino de forma e função sonora semelhante ao idealizado. Já se questionava Leopold Mozart (1719-1787), notório professor de violino e pai de Wolfgang Amadeus Mozart, pelas grandes diferenças de qualidade nos violinos: Como podem ser, então, os violinos tão diferentes uns dos outros? […] É na totalidade devido à diferença entre o trabalho de um homem e o de outro. Todos eles decidem a altura, espessura e outros parâmetros pelo olho, nunca se atendo a quaisquer regras fixas; de modo que enquanto um é bem sucedido, o outro falha. Isso é um mal que realmente priva a música de grande parte da sua beleza. 16 Em face dos muitos graus de complexidade das tarefas humanas, cada atividade pode agregar diversos ideais concomitantemente, os quais podem ser hierarquizados. Da mesma forma com que um astro faz seus planetas orbitarem ao redor de si, o ideal maior agrupa ideais subordinados. Um pintor que deseja homenagear a amizade retratando seus amigos pode buscar cenários que enfoquem a alegria da existência de tais pessoas. Depois do cenário, terá que escolher as cores pela mistura adequada das tintas, cores com determinadas tonalidades que tenham algum significado associado à alegria, à existência, à amizade. Pode-se imaginar que tal escolha seja meramente técnica e com restrições impostas pela composição do cenário. É, porém, subordinada a um ideal maior: a homenagem à amizade, seguida da alegria da existência. A própria escolha do sujeito é contingente: em outra circunstância, o pintor poderia optar por uma natureza morta. No segundo 14 Igreja Católica. Papa (1978-2005: João Paulo II), Carta do Papa João Paulo II aos artistas. 15 S. C. Sinha, Dictionary of Philosophy, 2. ed., Anmol, 1996, p. 92-93. 16 Leopold Mozart, A treatise on the fundamental principles of violin playing, 2. ed., Oxford University Press, 1985, p. 14-15. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 89 caso, o ideal da existência da natureza morta guiaria os demais ideais técnicos subordinados. Como se transmitem ideais? Para o músico comunicar-se eficazmente com o ouvinte, o artista deve conquistar a atenção e a confiança do receptor de sua mensagem. A expressão é sincera quando o artista acredita (confia) no seu ideal. O poder de persuasão relaciona-se com o grau de sinceridade avaliado subjetivamente pelo observador, mediante fatos concretos que testemunhem sua convicção; por exemplo, o tempo e o esforço gastos na conquista de um ideal, entre outros parâmetros. Tal convicção se enquadra em dois tipos: crença e fé. Pode-se argumentar que opinião, um julgamento subjetivo não necessariamente baseado em fatos ou conhecimentos, seja um tipo de convicção; porém, a generalidade deste conceito exige um procedimento analítico que foge ao escopo deste artigo. Já a definição dos tipos de convicção ajuda o historiador a compreender parte dos mecanismos de absorção e propagação ideológica, fortemente relacionados à música, como mostrado na próxima seção. Crença refere-se a uma atitude epistemológica em classificar uma proposição como verdadeira ao se encontrar algum grau de evidência. 17 Crença, claramente relacionada com o conhecimento, é mais forte do que a opinião não fundamentada. Fé é uma atitude de crença que vai além da evidência experimental;18 “é a aceitação de ideais que são teoricamente indemonstráveis, mas necessariamente vinculados à realidade inquestionável do livre arbítrio”.19 A importância da crença na nossa vida pessoal cresce à medida que nos deparamos com nossas limitações individuais. A restrição do espaçotempo na atuação pessoal nos força a acreditar em numerosos fatos científicos, cuja comprovação é meramente anunciada em livros, ou mesmo verbalmente por colegas e amigos nos quais depositamos confiança. Simplesmente, limita-nos o tempo para comprovar todos os itens da realidade que nos cerca. 17 Sinha, Dictionary of Philosophy, p. 26. 18 Sinha, Dictionary of Philosophy, p. 72. 19 Otto F. Kraushaar, “Faith”, in: Dagobert D. Runes et al., The dictionary of Philosophy, New York, Philosophycal Library, 1942, p. 107-108, http://www.ditext.com/runes/f.html, acesso em 17 abr. 2010. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 90 Na vida duma pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais se fundamenta a vida moderna? Quem poderia, por conta própria, controlar o fluxo de informações, recebidas diariamente de todas as partes do mundo e que, por princípio, são aceites como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer novamente todos os caminhos de experiência e pensamento, pelos quais se foram acumulando os tesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade? Portanto, o homem, ser que busca a verdade, é também aquele que vive de crenças.20 Leonard Meyer, teórico da música e historiador da cultura, atribui uma importância ainda maior à crença em seu estudo sobre emoções e significados em música.21 Ele compara a emoção a uma espécie de magnetismo psicológico: pode ser descrito fenomenologicamente mesmo sem determinar sua essência com exatidão. A consciência da natureza do estímulo musical participa do processo de diferenciação emocional e afetiva. Dado isso, Hebb classifica a agradabilidade da experiência emocional em função de sua resolução.22 Ao analisar essa hipótese de Hebb, Meyer conclui que “o encanto de uma emoção parece residir não no fato de sua própria resolução, mas na crença em resolução — a crença, se verdadeira ou falsa, de que haverá resolução”.23 Exemplificando com uma aplicação rotineira no meio acadêmico, sinceridade e convicção são valiosos itens na metodologia da delimitação de critérios de avaliação das fontes primárias. A importância de pesquisas e tratados baseados em tradição, alguns aqui citados, é avaliada pelo testemunho pessoal dos autores e pelo esforço na elaboração dos respectivos documentos. Por isso, alguns tratados são mais significativos do que outros, dentro do escopo estabelecido. O tratado de Baillot, em que pese expor conteúdo técnico da arte do violino, ocupa significativo trecho de seus escritos com questões ideológicas, fato que sugere considerar a música como 20 Igreja Católica. Papa (1978-2005: João Paulo II), Carta do Papa João Paulo II aos artistas, grifo meu. 21 Leonard B. Meyer, Emotion and meaning in music, Chicago, University of Chicago Press, 1956, p. 19. 22 É necessário salientar que agradabilidade e beleza são conceitos que não se relacionam diretamente. 23 Meyer, Emotion and meaning in music, p. 19. Meyer introduz sólidos conceitos interdisciplinares apesar de assumir premissas que se afastam da natureza linguística da música. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 91 um importante veículo ideológico. Além disso, grande parte da transmissão artística, principalmente na escola violinística ocidental, só se realizou e continua se perpetuando pela tradição oral, mesmo com excelentes suplementos escritos, muitos dos quais têm sido continuamente revisados nos últimos três séculos.24 Tal testemunho pessoal, oriundo da tradição de artistas de conservatórios e academias, constrói a autoridade docente sobre a resposta convicta do aluno fundamentado na sinceridade de seu professor. Este mecanismo permanece vigente até hoje. Convicção e sinceridade são, por conseguinte, elementos significativos tanto na ação artística quanto na condução de atos humanos. Como visto anteriormente, atos humanos significativos são motivados por ideais. Portanto, a propagação de ideais catalisa-se pela sinceridade do transmissor somada à respectiva aceitação pela crença do receptor. Como se encontra um ideal? Um ideal nem sempre se apresenta panfletado explicitamente. Por isso, buscam-se formas indiretas de estudá-lo. Obras artísticas, por exemplo, são impregnadas dos ideais que as forjaram. No caso do conjunto de obras apresentadas em concerto, a escolha do repertório agrega significados que refletem o ideal estético do produtor. Ademais, os tipos de fraseado, a qualidade e a intensidade do som seguem ideais subordinados, agregados pelo intérprete. Deve-se evitar confusão de “ideal” com termos relacionados a idealismo e ideologia. Dá-se o nome de idealismo a um grupo de teorias filosóficas em que o mundo exterior é de alguma forma criada pela mente; este termo não será explorado neste texto. Ideologia, por outro lado, é uma palavra que reveste dois significados diferentes, os quais necessitam de dísticos para melhor condução deste estudo: ideologia política e ideologia sistemática. Considero ideologia política como sendo o conjunto de ideias e normas direcionando atos políticos e sociais, da forma como Sinha propõe. 25 Surgiu no contexto da Revolução Francesa, inventado por Destutt de Tracy e usado de modo depreciativo por Napoleão Bonaparte. 26 É nesse contexto 24 Casos raros de autodidatismo costumam ter pouco impacto artístico internacional. Por vezes, camuflam ingratidão do discípulo para com seu mestre. 25 Sinha, Dictionary of Philosophy, p. 93. 26 George Boas, “Ideology”, in: Runes et al., The http://www.ditext.com/runes/i.html, acesso em 17 abr. 2010. dictionary of Philosophy, Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 92 político que o culto às ideologias vem sendo criticado atualmente, como expressa Bertone: com o tempo, a verdade foi substituída pela ideologia, ou pelo ceticismo e niilismo. Mas tudo isto, à diferença da verdade, não nutre; ao contrário, intoxica; não ilumina o intelecto, mas ilude-o; não alimenta a vida interior, mas mortifica-a ou até a sufoca; não reforça os valores, mas torna-os mais incertos ou até os esvazia.27 Alfredo Bosi, em seu extenso e minucioso tratado sobre ideologia, percebeu a incômoda divergência conceitual deste termo mesmo dentro do campo político, lembrando a recente “distinção estabelecida por Mannheim entre um sentido político forte e valorativo e um sentido cultural difuso do termo”.28 O sentido cultural difuso relaciona-se com práticas generalizantes sociais, mentalidade, estilo de época, visão de socioeconômicas consequentes de decisões políticas. mundo 29 e práticas Bosi até propôs a padronização do significado forte, agregando-lhe adjetivos para denotações políticas ou partidárias inequívocas. Essa descrição conceitual é, todavia, insuficiente para tratar de fenômenos culturais e artísticos complexos, abrangentes e aparentemente apolíticos, como os encontrados em estudos musicológicos.30 Kerman, por exemplo, utiliza um conceito de ideologia que pode ser melhor especificado como ideologia sistemática: o sistema “claramente coerente de ideias reunidas não para propósitos estritamente intelectuais, mas a serviço de uma forte crença comum”. 31 Aparentemente, trata-se de uma definição mais ampla do que a ideologia política. Contudo, difere em sua natureza: a primeira (política) dita regras, a segunda (sistemática) está a serviço das pessoas. A clara distinção das ideologias sistemática e política mostrar-se-á importante na história dos ideais do 27 Igreja Católica. Cúria Romana, Discurso do Cardeal Tarcisio Bertone por ocasião do congresso internacional sobre “Cristianismo e secularização: desafios para a Igreja e para a Europa, Vaticano, 29 de maio de 2007, Vaticano, La Curia Romana, 2007, http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/card-bertone/2007/documents/rc_segst_20070529_universita-europea_po.html, acesso em 17 abr. 2010. 28 Bosi, Ideologia e contraideologia, p. 419, grifo no original. 29 Bosi, Ideologia e contraideologia, p. 73-74, 398-421. 30 Por ser frequentemente um produto coletivo, música possui imanente potencial político, apesar de nem sempre ser partidarizado. Do grego antigo, πολιτικός refere-se aos cidadãos, ao governo da comunidade (Henry George Liddell e Robert Scott, A Greek-English Lexicon Medford, Tufts University, 2007, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus %3Atext%3A1999.04.0057%3Aentry%3Dpolitiko%2Fs, acesso em 8 ago. 2012. 31 Kerman, Musicologia, p. 314. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 93 repertório violinístico, na qual a ideologia política militar francesa catalisou o alastramento da ideologia sistemática da arte do violino, precedida pela afinidade artística dos ideais de seus protagonistas. Nem sempre estes conceitos se relacionam diretamente. Kerman utiliza o conceito de ideologia sistemática quando diz que “o verdadeiro meio intelectual da análise não é ciência, mas ideologia”. 32 Por outro lado, fé não implica necessariamente religião, nem ideologia. Como exemplo, pode-se citar que “a fé cristã não é ideologia, mas encontro pessoal com Cristo crucificado e ressuscitado”.33 Curiosamente, a existência da ideologia sistemática é refutada por Bosi ao endossar a opinião de Lukács, para quem nem mesmo uma difusão social mais ampla seria capaz de transformar um complexo de pensamentos diretamente em ideologia, exceto na existência de uma função social bem determinada.34 Contudo, no caso específico da conformação das escolas violinísticas, este artigo mostra que a configuração dos ideais artísticos numa ideologia sistemática (num “complexo de pensamentos”) precedeu a ideologia política revolucionista francesa. Por isso, as ideologias sistemática e política podem relacionar-se hierarquicamente, fato despercebido por Bosi. É até possível pensar em situações históricas nas quais uma ideologia política possa subordinar-se às afinidades subjetivas de protagonistas engajados em alguma ideologia sistemática. Como se transmite ideologia? A comunicação de ideias, de ideais e também de ideologias é resultado de diversas práticas de ensino. Portanto, escolas são notáveis difusoras de ideias. Paulo Bosisio encontra e compara diferentes conceitos de “escola” especificamente aplicados no discurso da arte violinística.35 Em geral, escola é um grupo de pessoas que têm em comum as mesmas ideias, métodos, estilo. Neste texto, o termo “escola” será usado primordialmente para designar grupo de músicos (ou, genericamente, artistas e pensadores) que seguem uma tradição técnica e estética bem 32 Kerman, Musicologia, p. 314. 33 Igreja Católica. Papa (2005-2013: Bento XVI), Homilia do papa bento xvi durante a missa na paróquia romana de “deus pai misericordioso”, domingo, 26 de março de 2006 , Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 2006 http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/homilies/ 2006/documents/hf_ben-xvi_hom_20060326_parrocchia-roma_po.html, acesso em 13 abr. 2010. 34 Lukács apud Bosi, Ideologia e contraideologia, p. 119. Notar a relação entre “complexo de pensamentos” e “ideologia sistemática”, pela definição de Kerman. 35 Paulo Bosisio, Paulina D’Ambrósio e a modernidade violinística no Brasil, Dissertação (Mestrado em Música), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996, p. 5. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 94 definida. Define-se estética pelo conjunto de princípios e ideais que guiam a criação de obras artísticas. A contextualização histórica desses conceitos pode ser apreciada na comparação de documentos relacionados à fundação do Conservatório de Paris. O conjunto desses documentos constitui-se principalmente por tratados musicais e partituras. Há vários métodos musicológicos de estudo de partituras, como análise formal, melódica e harmônica. A análise formal trata da identificação, comparação, articulação e relação entre as diversas partes de uma composição. Citando-se a exaltação de elementos clássicos, uma característica cultural do final do século XVIII em Paris, esse fenômeno pode ser apreciado, por exemplo, pelo estabelecimento de uma retórica baseada na forma “tese-antítese-síntese”. Musicalmente, essa retórica resultou na forma sonata, onde a justaposição de dois temas contrastantes, quando comparada a uma tese, desenvolve-se numa antítese e conclui-se numa espécie de síntese.36 A análise melódica geralmente se associa com o estudo da harmonia. Ambas possuem a finalidade de averiguar se os elementos internos da obra musical são congruentes com sua forma. Muitos métodos musicológicos baseiam-se na comparação entre semelhanças e diferenças de documentos musicais em relação a modelos canônicos mais conhecidos. Este artigo assume que uma aproximação artística reflete alinhamento ideológico por causa da associação com uma escola específica. Sendo este breve texto direcionado a leitores de outras áreas, não serão dados exemplos de partituras, mas apenas conclusões de trabalhos técnicos musicológicos para fundamentar a argumentação apresentada aqui. O leitor encontrará o devido aprofundamento analítico das partituras na bibliografia citada. Ideologia e a fundação do Conservatório de Paris O evento relacionado à fundação do Conservatório de Paris forjou a cultura musical de toda a Europa durante o século XIX. Esse fato histórico sugere que a música foi protagonista na difusão de ideais e na consolidação do próprio conceito de ideologia. 36 É mister diferenciar “sonata”, um conjunto de contrastantes movimentos instrumentais, da forma sonata propriamente dita, sucintamente explicada neste texto. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 95 O final do século XVIII teve a produção musical polarizada em Viena e Paris, que mantiveram contínuo contato artístico. Enquanto a escola austríaca era centrada em compositores mais ligados ao piano, como Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, entre outros, a escola francesa agrupou-se ao redor de violinistas descendentes da antiga escola de Gaviniés, Lully e Rebel, fundida com a tradição de Corelli e Tartini. 37 O mérito da conexão dessas escolas francesa e italiana é de Giovanni Battista Viotti (1755-1824), discípulo de Pugnani, ao lado do qual iniciou brilhante carreira internacional como concertista. Conquistou a admiração instantânea dos franceses após um ano e meio de concertos em Paris em 1782, quando inexplicavelmente decidiu se aposentar do palco. A partir do início de 1784, Marie Antoinette ofereceu-lhe generosa pensão em Versailles para conduzir diversas orquestras e ensinar a arte do violino. Assim, quando a Revolução o forçou a se mudar para Londres em 1792, já tinha formado um grupo de violinistas talentosos e idealistas que fundariam o Conservatório de Paris. Por isso, Viotti é considerado o pai da moderna escola francesa de violino. Ele acrescentou seu gênio pessoal aos ensinamentos de Pugnani, desenvolvendo um novo estilo que aproveitava todas as qualidades do novo arco Tourte e dos melhoramentos externos do violino: cordas mais grossas, braço mais comprido e anguloso, barra harmônica mais grossa, alma de maior calibre, desenho diferente do cavalete. A fundação do Conservatório de Paris em 1795 reuniu importantes pedagogos, alguns dos quais alunos diretos de Viotti, como Rode e Kreutzer, entre dezenas de outros menos expressivos. Liderados por Baillot, os três publicaram um método de violino em 1802 que incorporou os recursos técnicos em uso atualmente. Aquele método foi rapidamente difundido pela Europa, formando violinistas bem sucedidos em vários países. Neste texto, a atenção foca-se na aglutinação dos ideais violinísticos e de suas consequências técnicas durante a batalha ideológica do final do século XVIII e início do XIX protagonizada pelos franceses. Pierre Marie François de Sales Baillot (1771-1842) foi violinista e compositor parisiense. Em 1783, em razão da morte de seu pai, foi enviado à Roma por M. de Boucheporn para estudar violino com Pollani, aluno de Pietro Nardini (1722-1793). Em 1791, iniciou a carreira em Paris com ajuda de 37 Bruce R. Schueneman, The French violin school: Viotti, Rode, Kreutzer, Baillot and their contemporaries, Kingsville, The Lyre of Orpheus Press, 2002, p. 1-27. Ver também Chappell White, “Viotti, Giovanni Battista”, in: Oxford Music Online, http://www.oxfordmusiconline.com/ subscriber/article/grove/music/29483, acesso em: 4 mai. 2010. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 96 Viotti, após estreitar amizade com Rode. Estudou composição com Catel, Reicha e Cherubini. Ao apresentar um concerto de Viotti, conquistou um cargo de docência temporária no recém-fundado Conservatório de Paris em 1795, assumindo-o oficialmente em 1799. Depois disso, foi bem sucedido em turnês pela Europa e Rússia. Liderou a Orquestra da Ópera de Paris entre 1821 e 1831. Também liderou a orquestra da Chapelle Royale a partir de 1825. Ele é responsável pela revitalização da música antiga, principalmente de obras de J. S. Bach, Barbella, Corelli, Germiniani, Handel e Tartini. 38 Baillot foi o grande incentivador da introdução da música de câmara no currículo do Conservatório de Paris. No entanto, ele não conseguiu isso pessoalmente, mas somente por meio de seu filho René, que inaugurou a cátedra de música de câmara em 1848. 39 Antes disso, o gosto musical parisiense preferia a ópera, as apresentações virtuosísticas e orquestrais. Mesmo nas formações de quarteto, que atualmente se caracterizaria como música de câmara, o primeiro violino geralmente tocava em pé para destacarse do restante do grupo. O método de violino elaborado por Baillot, Rode e Kreutzer em 1802, para uso no Conservatório de Paris, serviu de modelo para outros conservatórios. Um ótimo exemplo é a tradução para o italiano dedicada a Alessandro Rolla (1757-1841), compositor, violinista, violista, regente e fundador do Conservatório de Milão em 1808, que provavelmente utilizou o bem sucedido método da instituição francesa em suas aulas de violino e viola.40 Rolla é conhecido por ter encaminhado Niccolò Paganini (1782-1840) ao professor Gaspare Ghiretti em 1795 em Parma. O método de violino do Conservatório exalta a antiguidade do instrumento, o caráter divino do seu som e seus recursos técnicos e artísticos. Logo em sua introdução, o método incentiva a perseverança do aluno a desenvolver sua sensibilidade e entendimento; recomenda a formação do bom gosto pela busca diária da perfeição ideal pelo artista dotado de um espírito reto e imaginação ardente; adota a regra de que o 38 Paul David et al., “Baillot, Pierre”, in: Oxford Music Online, http://www.oxfordmusiconline.com/ subscriber/article/grove/music/01797, acesso em 21 mar. 2010. 39 Louise Goldberg, “Editor’s introduction”, in: Baillot, The art of the violin, p. xix. 40 Baillot, Pierre Rode, Rodolphe Kreutzer, Metodo di violino compilato dal Signor Baillot, Torino, Fratelli Reycend & Co., [ca 1810], http://imslp.org/index.php?title=Violin_School_ (Baillot,_Pierre)&oldid=381187, acesso em 1 mai. 2010. Ver ainda Antonio Rostagno, “Rolla, Alessandro”, in: Oxford Music Online, http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/ grove/music/23709, acesso em 21 mar. 2010. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 97 verdadeiramente belo é tudo que toca o coração; adverte, no artigo VII, que não adianta meramente segurar corretamente o violino e o arco, mas que o corpo deve ter uma atitude nobre e harmoniosa que favoreça o desenvolvimento de todos os meios musicais.41 Contudo, nota-se um amadurecimento em Baillot após mais de quatro décadas de docência, quando finalmente considerou que “beleza torna-se sinônimo de bom para o artista”, o que se aproxima muito da definição aristotélica-tomista aqui adotada de que a beleza é expressão inteligível do bem. 42 O método do Conservatório de Paris propõe vários tipos de ideais, principalmente pelos exercícios musicais que favorecem o desenvolvimento de um som forte, limpo e uniforme do talão até a ponta do arco. O tratado de Baillot está escrito numa linguagem apaixonada, mas muito precisa tecnicamente, encharcado de ideais. Por exemplo, Baillot esclarece que a função do gênio é criar novos efeitos; do gosto, regular seus usos; do tempo, sancioná-los.43 À pergunta inicial sobre em que deve se guiar o artista para direcionar sabiamente seu talento, Baillot percebe a necessidade de fixar o objetivo moral ao identificar a grande influência da música sobre a alma.44 Neste sentido, ele parece vislumbrar um elevado ideal de música como linguagem e harmonia universais, não propriamente de entendimento globalmente literal, mas de comunhão de paixões capaz de unir pessoas de todas as nações, crenças e profissões: Guardião do fogo sagrado, o artista [moderno, do séc. XIX,] estabelece como sua glória e felicidade a comunicação desta chama a seus seguidores; ele os mantém debaixo do charme desta linguagem universal, que é compreendida em todo lugar pelo sentimento, sendo ininteligível somente para as pessoas pobremente afinadas consigo mesmas.45 41 É interessante comparar o referencial da filosofia ilustrativa com a tradição milenar aristotélica de ramo tomista. O belo, sendo expressão do bem, é uma qualidade eidética absoluta na metafísica tomista. Por outro lado, a definição relativista adotada inicialmente no Conservatório de Paris necessitou de imposição pela força ideológica para evitar desmoronamento com o advento positivista do século XIX semeado pelos próprios sofistas da Ilustração. Para as pessoas fora do círculo acadêmico, o relativismo tornou-se tão generalizado, que o belo foi substituído pelo gosto pessoal. O gosto coletivo, impondo-se ao indivíduo, desaguou em fenômeno conhecido como massificação. 42 Baillot, The art of the violin, p. 11, grifos no original. 43 Baillot, The art of the violin, p. 9. 44 Baillot, The art of the violin, p. 11-12. 45 Baillot, The art of the violin, p. 13-14. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 98 Baillot finalmente exalta o ideal de abnegação, humildade, retidão e generosidade do artista, imputando-lhe a missão de propagar a paz e o amor universal. Na arte, a rivalidade perde seu caráter hostil e age em favor da união. Por isso, emulação deveria ser uma das grandes virtudes fomentadas pelos conservatórios, nos quais o prêmio conquistado pelo vencedor se tornaria alegria comum, fazendo a arte estender seu domínio aspirando a novos triunfos.46 Apesar de o sistema de conservatórios ter se originado na Idade Média, a criação do Conservatório de Paris tinha como propósito mais do que preparar alunos: unir, em um só corpo de princípios, as bases de todos os diversos ramos de instrução, aproximando-se à definição de escola usada neste estudo.47 Aqui vem um dos argumentos principais deste artigo: a escola francesa, fruto da ideologia sistemática, não se impôs espontaneamente no meio cultural europeu pelo mero reconhecimento artístico, mas pela força da ideologia política. Tinha, sim, um método eficiente e dezenas de alunos organizados cultivando os mesmos ideais. Ainda mais importante, a expansão imperial francesa a partir de 1804 semeou, pela Europa, a cultura militar parisiense. O musicólogo Maiko Kawabata percebe que o Conservatório de Paris foi um produto direto da Revolução Francesa, originalmente sendo uma instituição para o treinamento de instrumentistas para bandas militares. 48 Assim, muitos violinistas daquela época faziam referência, cada vez mais, às bandas militares, a ponto de Kawabata defender a tese de que “os virtuosísticos códigos de performance, um sistema de gestos físicos e musicais, combinaram-se para criar a impressão geral do violinista como um herói, um símbolo do poder militar”.49 Kawabata apresenta uma detalhada análise do repertório violinístico do início do séc. XIX para mostrar que os 46 Baillot, The art of the violin, p. 13-14. 47 Baillot, The art of the violin, p. 10. 48 Maiko Kawabata, “Virtuoso codes of violin performance: power, military heroism, and gender (1789-1830)”, 19th-Century Music, 28, 2 (2004), p. 97, http://www.jstor.org/stable/10.1525/ ncm.2004.28.2.089, acesso em 20 set. 2009. É curioso notar que os instrumentos de sopros foram incorporados ao exército português em 1802 para formar Banda da Brigada Real, a primeira banda moderna que teria chegado ao Brasil em 1808. Vide Cunha Mattos apud Fernando Pereira Binder, “Novas fontes para o estudo das bandas de música brasileiras”, in: Encontro de Musicologia Histórica, 5, 2002, Juiz de Fora. [Anais...], Juiz de Fora: Centro Cultural Pró-Música, 2004, p. 200. 49 Kawabata, “Virtuoso codes of violin performance”, p. 91. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 99 motivos temáticos militares, além de expressar a cultura da época, eram necessários para ter aceitação da obra: Códigos heroicos dificilmente estavam isolados nos concertos de violino; antes, eles surgiam na celebração de virtudes marciais caracterizando a cultura musical da época da Revolução Francesa. A celebração de bravura e liderança parecia transbordar nos concertos “militares” de Rode, Baillot e Kreutzer, os primeiros franceses a liderar a história do violino, à frente dos italianos e alemães. Seus concertos foram tocados por virtualmente todo virtuoso da época. Eles também influenciaram as escolhas composicionais: os numerosos códigos militares heroicos encontrados nas obras de Spohr, Paganini, Beethoven e outros eram derivados, acima de tudo, daqueles modelos parisienses. A este respeito, os concertos de Beethoven e Paganini — os únicos que lembramos atualmente — não são apenas um fenômeno isolado, mas estavam ligados estilisticamente ao novo padrão francês.50 As notícias da época fazem muitas comparações com cenas militares. Em Londres, um crítico comentou que Paganini, com a ponta de seu arco, movera a orquestra inteira, em um grande movimento militar. Também Pugnani foi descrito como um general entre seus soldados, dirigindo a orquestra usando seu arco como batuta de comando. 51 Baillot, ao descrever a riqueza tímbrica do violino, mencionou a possibilidade de o instrumento assumir o brilho militar do trompete, entre outras qualidades. 52 Era enorme a influência dos professores franceses até mesmo no exterior. Spohr apresentou o Quarteto de Rode em Mi maior (na realidade, para violino solo com acompanhamento de trio) mais do que qualquer outra obra em suas turnês na primeira década do século XIX. 53 O detalhado artigo de Boris Schwarz é rico em exemplos mostrando a influência decisiva de Viotti e de seus alunos nos concertos e sinfonias de Mozart e de Beethoven. 54 50 Kawabata, “Virtuoso codes of violin performance”, p. 97. 51 Kawabata, “Virtuoso codes of violin performance”, p. 101. 52 Baillot, The art of the violin, p. 8. 53 Zeitlin, em seu prefácio da tradução de Baillot, parece desconhecer pesquisas de seus colegas, informando erroneamente que Spohr e Paganini estavam confinados a apresentar obras próprias. Também é hiperbólica sua afirmação de que Baillot foi o primeiro a codificar a arte do violino com o propósito de interpretar músicas dos outros, pois o livro de Leopold Mozart, Versuch einer gründlichen Violinschule, de 1756, já agregava esta finalidade. Zvi Zeitlin, “Foreword”, in: Baillot, The art of the violin, p. ix. 54 Boris Schwarz, “Beethoven and the French violin school”, The Musical Quarterly, 44, 4 (1958), p. 431-447. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 100 Mesmo Paganini apresentou concertos franceses no início de suas turnês, quando ele tinha apenas dois concertos próprios. As primeiras apresentações de Paganini em Viena e Paris foram com os concertos de Rode e Kreutzer, numa visível estratégia para ganhar a simpatia do público local. Paganini estudou e apresentou obras da escola francesa, e assim foi obviamente influenciado pela escola de Viotti, mas levou as exigências técnicas para um novo patamar. Se os compositores da escola francesa estavam primeiramente mais interessados no solista, Paganini e os concertistas “heroicos” de meados do século XIX ameaçavam cobrir a orquestra apesar do efetivo maior geralmente usado no concerto romântico.55 Baillot reconhecia o destaque de Niccolò Paganini: Desde o início, vimos que sua maneira de tocar violino foi particular e que tinha pouca semelhança com qualquer outro virtuoso. Tal diferença lhe dava o entusiasmo da novidade, ainda que esse estilo seja quase que inteiramente fundamentado no uso de certas dificuldades que estiveram em voga antes, como harmônicos, pizzicato e scordatura, mas que caíram em desuso por muito tempo. Na verdade, Paganini adicionou mais alguns efeitos a estes [citados]: ele tem feito tanto com harmônicos duplos e com o uso exclusivo da corda Sol, que o violino, em suas mãos, se torna um instrumento diferente, assim como o próprio artista conquistou uma posição fora do comum.56 O prestígio dos professores franceses era tão grande, que Baillot não se esforçava em apresentar obras de seus rivais. Charles Dancla comenta que Paganini não poderia tocar o quarteto de Mozart ou o septeto de Beethoven como Baillot, e que Baillot também evitava tocar músicas de Paganini, não pela falta de técnica, mas porque seu temperamento o fazia evitar o que chamava de grandes excentricidades. 57 Baillot preferia ensinar os clássicos, tomando como exemplo as obras dos professores consagrados, além de contribuições suas e de seus colegas. 58 Seu método objetivava o desenvolvimento da inteligência e o treino do julgamento para não destruir todos os esforços do trabalho e da paciência. 55 Schueneman, The French violin school, p. 89. 56 Baillot, The art of the violin, p. 9. 57 Charles Dancla apud Goldberg, “Editor's introduction”, p. xviii. 58 Baillot, The art of the violin, p. 5. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 101 Essas evidências são reforçadas com análise das composições daquele período, em que pesem as citações musicais mais técnicas fugirem ao escopo deste artigo. Por outro lado, os testemunhos historiográficos apresentados neste estudo tecem consistente argumentação a favor da existência da ideologia sistemática, principalmente por motivação musical. Além disso, a expansão cultural da música francesa por força militar e política sugere uma hierarquização de ideologias, a qual repercutiu na história brasileira. Expansão cultural no Brasil A importância dos professores do Conservatório de Paris superou a grandeza e o brilho da Orquestra da Real Câmara de Lisboa, uma das melhores, mais numerosas e mais bem pagas da Europa entre os anos de 1764 e 1834, mas que sofreu certo declínio na contratação de músicos durante o período da permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro entre 1808 e 1822.59 Percebe-se, contudo, que a orquestra de Lisboa não formou uma escola dominante, ao contrário do fenômeno do Conservatório de Paris, que expandiu sua imposição cultural pela Europa por meio da força militar francesa a partir de 1804. A modernização da escola violinística brasileira precipitou-se com a vinda da corte portuguesa ao Brasil em 1808, a qual estava habituada a quatro ou cinco apresentações semanais de comédias, dramas e tragédias em português e óperas italianas acompanhadas de bailados. Ópera e música sacra faziam parte do cotidiano por causa do interesse público de Dom João VI por tais eventos. Já a música instrumental devia fazer parte de apresentações privadas à corte, o que explica o menor interesse popular por esse gênero. Nesse contexto, é notável a passagem do compositor austríaco Sigismund Neukomm (1778-1858) pelo Brasil. Ele era ligado ideologicamente aos franceses por ter mantido fortes relações com seus patronos e mecenas, particularmente com Charles Maurice de Talleyrand. Afinidades de ideais artísticos (ideologia sistemática) tomaram rumos políticos, a ponto de 59 Maurício Monteiro, “Aspectos da música no Brasil na primeira metade do século XIX”, in: José Geraldo Vinci de Moraes e Elias Thomé Saliba, História e música no Brasil, São Paulo, Alameda, 2010, p. 93. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 102 Neukomm se envolver ativamente em reuniões conspiratórias. Ele veio ao Brasil em 1816 junto com o Duque de Luxemburgo para felicitar Dom João pela ascensão ao trono, permanecendo até 1822, quando regressou a Paris. “A vinda do duque de Luxemburgo fez parte de uma missão diplomática que procurou reatar as relações entre o Brasil e a França”. 60 Gomes explica a suposta espionagem de Neukomm: “como a corte portuguesa adorava música e Neukomm era um dos mestres mais promissores de sua época, isso teria facilitado o seu acesso ao círculo próximo de D. João VI, com o objetivo de informar Talleyrand das alianças e conspirações em andamento no Rio de Janeiro”.61 De fato, Neukomm foi um dos professores de D. Pedro I, após Marcos António Portugal (1762-1830), eminente compositor da corte portuguesa, e também do brasileiro José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Portanto, Neukomm atuou como forte personalidade no meio musical e foi um grande divulgador da escola francesa no Brasil. Posteriormente, D. Pedro I cultivou admiração por Napoleão Bonaparte, seu concunhado por parte de D. Leopoldina. 62 Em virtude disso, era previsível notar forte influência da cultura francesa ao longo do século XIX principalmente no Rio de Janeiro. 63 Sob o império de Dom Pedro II, a charmosa burguesia francesa passou a ser modelo de modernização social no Brasil. Inglaterra e França, que forneciam grande número de bens importados, também ditavam modelos culturais a artistas e intelectuais brasileiros. A burguesia emergente gradualmente transformou a capital brasileira num centro cosmopolita com crescente número de teatros, salas de concertos e centros culturais.64 Reproduzindo o modelo francês, os brasileiros se deliciavam com ópera e com crescentes exibições virtuosísticas de concertos e música de câmara. Assim, proliferaram as sociedades privadas e clubes destinados ao entretenimento das elites locais, que promoviam encontros culturais e políticos. 60 Monteiro, “Aspectos da música no Brasil”, p. 101. 61 Laurentino Gomes, 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2010, p. 78. 62 Gomes, 1822, p.113. 63 Cristina Magaldi, Music in Imperial Rio de Janeiro. Oxford, Scarecrows, 2004, p. 3. 64 Magaldi, “Music for the elite: musical societies in Imperial Rio de Janeiro”, Latin American Music Review, 16, 1 (1995), p. 1-2. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 103 Cristina Magaldi cita 27 instituições privadas atuantes no Rio de Janeiro durante o século XIX.65 A Sociedade Phil’Euterpe, atuante entre os anos de 1850 e 1863, e o Clube Fluminense, entre 1854 e 1870, produziam eventos beneficentes que frequentemente atraíam a família imperial. A Sociedade Philarmonica (1835-1851) foi dirigida pelo cantor e violoncelista Francisco Manuel da Silva (1795-1865), autor do Hino Nacional brasileiro, discípulo de José Maurício Nunes Garcia e de Sigismund Neukomm. 66 Após o encerramento da Sociedade Philarmonica, demorou dezessete anos para a Philarmonica Fluminense (1868-1880) recriar semelhante conteúdo cultural, sob notável direção do compositor Leopoldo Miguez (1850-1902) a partir de 1875. Enquanto isso, a Sociedade Campezina (1851-1865) era frequentada por compositores eminentes, como Carlos Gomes (1836-1896), que dedicou sua segunda ópera Joanna de Flandres (1863) àquela sociedade. Tais sociedades promoviam regularmente concertos e saraus, eventos que agregavam, além de música, leitura de poesias, apresentações vocais e instrumentais, e pequenas peças teatrais. Geralmente, os saraus encerravamse com jantar, chá, biscoitos e bebidas, seguidos de bailes. Predominavam, nos programas musicais, compositores italianos e franceses, com crescente esforço na inclusão de obras alemãs e austríacas ao longo do século XIX. As obras brasileiras, portanto, alinhavam-se ao gosto do local e da época. O sucesso das sociedades dependia diretamente do apoio financeiro de seus membros, liderados por diretorias compostas principalmente por aristocratas e novos ricos. Futuras linhas de pesquisa podem aprofundar a relação entre eventos musicais/culturais e acontecimentos políticos. Do mesmo modo que a cultura francesa tornou-se referência dominante entre as décadas 1860 e 1880 no Brasil e principalmente no Rio de Janeiro, o início do século XX ofereceu uma diversificação cultural maior. Baseado na listagem coletada por Camila Frésca dos violinistas que se apresentaram em algumas salas importantes no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, no período de 1940 a 1960, estima-se que apenas 15% dos violinistas eram da França, tendo sido a maioria de norte-americanos. 67 Isso é um indício de declínio da influência cultural francesa no Brasil já na década 65 Magaldi, “Music for the elite”, p. 3-41. 66 Gerard Béhague, “Francisco Manuel da Silva”, in: Oxford Music Online, http://www.oxfordmusiconline.com/ subscriber/article/grove/music/25781 , acesso em 7 ago. 2012. 67 Camila Frésca. Uma extraordinária revelação de arte: Flausino Vale e o violino brasileiro, Dissertação (Mestrado em Música), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 153-155. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 104 de 1940. Desse modo, observa-se um curioso fenômeno de absoluta consolidação violinística da escola franco-belga no Brasil, junto com o concomitante declínio utilitário da língua francesa. É possível que esse fato, aliado a certo despreparo de músicos brasileiros no idioma inglês, tenha prejudicado a divulgação internacional da música brasileira no século XX, exemplificado pelo notório caso do violinista mineiro Flausino Vale (18941954).68 Uma linha de investigação da história cultural sobre esse tema compararia esses números a levantamentos de outros períodos, podendo utilizar-se da história portuguesa como elemento comparativo independente, possivelmente mais neutro. Conclusão A fundação do Conservatório de Paris em 1795 é consensualmente um delimitador da história musical europeia. Este artigo mostra evidências de que suas consequências se expandem para outras áreas culturais, além dos eventos sociais, políticos, militares e econômicos da Europa. Distinguemse, nesse domínio, duas categorias de ideologia: política e sistemática. A ideologia política é o conjunto de ideias e normas direcionando atos políticos e sociais; a sistemática, o coerente sistema de ideias reunidas a serviço de uma forte crença comum, não para propósitos estritamente intelectuais. Uma escola, ao associar seus membros aproximando-os artisticamente, promove um alinhamento ideológico. Para clarificar o mecanismo de transmissão de ideologias, recorre-se à metafísica, por publicações de filósofos do ramo aristotélico-tomista. Esse ramo, além de coerente com o período histórico estudado e com os protagonistas envolvidos (Baillot e os fundadores do Conservatório de Paris), reveste-se do brilho de manter os conceitos claros, atuais e alinhados à tradição que remonta a Aristóteles, facilitando o diálogo interdisciplinar. Analisando-se a sucessão de eventos relacionados à fundação do Conservatório de Paris, encontram-se evidências de que a ideologia sistemática precedeu a política, estabelecendo clara hierarquia de ideais e de ideologias. Na Europa, a propagação cultural francesa recebeu grande 68 Zoltan Paulinyi, Flausino Vale e Marcos Salles: influências da escola franco-belga em obras brasileiras para violino solo, Dissertação (Mestrado em Música), Universidade de Brasília, Brasília, 2010, p. 89-91, http://paulinyi.com/UnB2010mestrado.html, acesso em 23 out. 2011. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 105 impulso da força política e militar. Já no Brasil, a partir de 1816, a música mostrou-se um excelente veículo de propagação ideológica. O Brasil havia herdado um pouco do brilho musical de Portugal por ocasião do drible militar de 1808 perante o avanço do imperialismo napoleônico. Contudo, a ideologia francesa obteve fácil e rápido avanço em solo brasileiro por meio da expansão musical da moderna escola violinística e composicional do Conservatório de Paris. Tal influência teve fortes e duradouros efeitos culturais, políticos e até econômicos, mas sua origem se relaciona diretamente à música. A influência da cultura francesa enraizou-se tanto na música, principalmente na consolidação da moderna escola violinística, que superou a importância do idioma francês, cuja utilização entrou em declínio no início do século XX. Para evitar a dispersão deste estudo, definições demasiadamente técnicas da musicologia foram contornadas neste texto, que se fundamenta na comparação de vários tratados musicais específicos da literatura violinística indicados nas referências bibliográficas. A diferenciação da antiga e da moderna escola francesa, seu desenvolvimento na escola franco-belga e sua influência duradoura na literatura violinística do Brasil são tecnicamente analisados no estudo musicológico de Paulinyi. 69 Deseja-se que este artigo fomente o diálogo entre musicologia e história, mostrando que fatos históricos musicais possuem relevância na investigação de fenômenos de outras áreas acadêmicas. recebido em 23/10/2011 • aprovado em 25/09/2012 69 Paulinyi, Flausino Vale e Marcos Salles, p. 9-86. Revista de História, 5, 1-2 (2013), p. 85-106 106