Revista Augustus | Rio de Janeiro | Vol. 14 | N. 28 | Agosto de 2009 | Semestral ARTIGOS Os trabalhadores e a luta por direitos sociais no Brasil Luisa Barbosa Pereira1 RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir sobre a ação dos trabalhadores na construção dos direitos sociais no Brasil e os seus desafios para garantir a proteção social do Estado, assegurada constitucionalmente. Nesse cenário se destaca a Justiça do Trabalho, instituição particular da estrutura judicial brasileira, que vem sendo constantemente ativada pelos trabalhadores, de forma individual e coletiva. Palavras-chave: Trabalhadores, Justiça, Direitos. ABSTRACT: The purpose of this paper is to think about the action of workers in the construction of social rights in Brazil and the dilemmas to ensure the social protection of the State, constitutionally guaranteed. In this scenario it is highlighted the “Workers Justice”, an institution of the Brazilian judicial structure which has been constantly activated by the workers, individually and collectively. Keywords: Workers, Justice, Rights. 1 Cientista Social. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista do Programa de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) PNPD do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). 19 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Vol. 14 | N. 28 | Agosto de 2009 | Semestral Os trabalhadores e a luta por direitos sociais no Brasil Introdução Este artigo tem por objetivo geral refletir sobre o papel dos trabalhadores na construção dos direitos sociais brasileiros e a sua atuação para fazer valer a proteção social do Estado, através da Justiça do Trabalho. Suas ações serviram, em muitos momentos de nossa trajetória sindical, como vanguarda na luta por direitos sociais. Muito já foi examinado sobre esse movimento. No entanto, pouco ainda se pesquisou sobre a relação entre os trabalhadores e a Justiça. A estruturação da sociologia do trabalho vem se desenvolvendo principalmente a partir da primeira metade do século XX. Nesse campo merecem destaque as pesquisas de Azis Simão sobre o proletariado paulista e seu famoso estudo sobre o voto operário em São Paulo nas eleições de 1947; o profundo ensaio teórico de Evaristo de Moraes Filho sobre a estrutura sindical brasileira – tema de debate até os dias atuais – em O Problema do sindicato único no Brasil (1952) e a importante caracterização do movimento sindical brasileiro em Sindicato e desenvolvimento no Brasil de José Albertino Rodrigues (1968). A partir da destacada luta dos operários do ABC paulista, esse campo de estudo fica ainda mais acentuado. A ação combativa do chamado “novo sindicalismo” e a construção da CUT foram alvo de ampla investigação científica. “O novo sindicalismo no Brasil”, de Ricardo Antunes, “Sindicalismo e Política – A trajetória da CUT”, de Iram Jácome Rodrigues, ou ainda “O novo sindicalismo: 20 anos depois”, organizado pelo mesmo autor, buscavam compreender esse momento importante do cenário nacional. Os holofotes, no entanto, não se voltaram apenas para São Paulo. Importantes trabalhos 20 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta preocupados com o trabalhador do Rio de Janeiro também demonstraram a importância política e social dessa categoria nesse Estado. Elina Pessanha e Alice Abreu, em “O trabalhador carioca”, buscaram reunir artigos sobre os diferentes perfis desse trabalhador. Marco Aurélio Santana e José Ricardo Ramalho em “Trabalho e tradição sindical no Rio de Janeiro: a trajetória dos metalúrgicos” procuraram reconstruir e qualificar a história desses metalúrgicos, através também da coletânea de artigos sobre seu sindicato. Esse processo de forte mobilização social, retratado nessa bibliografia citada, impulsiona a redemocratização nacional coroada pela Constituição de 1988. A democratização nos coloca um cenário efetivo de conquistas de direitos, em que a ação do judiciário ganha força. Sindicalistas participam ativamente de todo esse processo e adquirem direitos concretos. Todo esse contexto também vai ser discutido pelas Ciências Sociais. As reflexões sobre a relação entre o protagonismo do Poder Judiciário e a consolidação de regimes democráticos constitucionais vêm progressivamente se estruturando como campo de estudo. Discutem-se os novos papéis assumidos pelos tribunais nas sociedades contemporâneas, seu desempenho na garantia das igualdades e a função do Estado como novíssimo movimento social (SANTOS, 1996). Algumas análises também se preocupam com o papel dos “guardiões dos direitos e das leis” (GARAPON, 1996) atribuídos aos juízes, procuradores e advogados. No âmbito da Justiça do Trabalho, destaca-se a pesquisa feita por Regina Morel, Elina Pessanha e Ângela de Castro Gomes, intitulada “Perfil da Magistratura do Trabalho” 2. 2 Entre os quais se destaca o artigo “A Magistratura do Trabalho no Brasil: entre a Tradição e a Mudança” (MOREL e PESSANHA, 2006) ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Vol. 14 | N. 28 | Agosto de 2009 | Semestral Luisa Barbosa Pereira Têm-se ampliado as pesquisas empíricas articulando contribuições da História, das Ciências Sociais e do Direito, tendo também evidência o Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES), do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ). Werneck Vianna vai ainda refletir sobre uma possível judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Werneck Vianna, 2002). Tal objeto vem em confluência a um maior papel da Justiça no Brasil e a luta dos trabalhadores por mais direitos, através de esferas da Justiça. Apesar de todas essas iniciativas recentes, não se pode dizer que no Brasil haja uma tradição de estudos acadêmicos sobre o Judiciário. Menos ainda sobre a relação do Judiciário Trabalhista com os sindicatos. No entanto, o quadro está de fato mudando. Instâncias como o Ministério Público e a Justiça do Trabalho têm se configurado como importante campo de estudos3, em um cenário de “flexibilização a frio” 4 dos direitos sociais. Os trabalhadores em seu fazer-se5 A linha de investigação que desenvolvo aqui toma como preocupação a construção de um trabalho empírico, pensando a participação dos trabalhadores na proteção e ampliação dos direitos sociais, através da Justiça. Para isso, considero a atuação desses agentes nos e o livro “Sem Medo da Utopia: Evaristo de Moraes Filho Arquiteto da Sociologia e do Direito do Trabalho no Brasil.: um intelectual humanista” Organizadoras: Regina Lúcia Morel, Ângela de Castro Gomes e Elina Pessanha (2007). 3 A exemplo disso estão as pesquisas recentes de Carelli e Valentim (2006) sobre o Ministério Público do Trabalho como instância extrajudicial de conflito, e as de Araújo, Casagrande e Pereira (2006) sobre as ações civis públicas no Tribunal Superior do Trabalho e a relação com o sindicato. 4 Termo utilizado por Adalberto Cardoso para definir o papel dos capitalistas brasileiros que negligenciavam e negligenciam aspectos básicos da legislação do trabalho no Brasil. Ver CARDOSO, Adalberto (2002). 5 Referência à obra de T. H. Thompson, sobre a classe trabalhadora inglesa. processos sociais que são tanto construtores dos mesmos quanto construídos por eles. Levo em conta a necessidade de se compreender a história desses trabalhadores – na estruturação de seus direitos – em seu fazer-se, procurando seguir os ensinamentos do famoso historiador inglês E.P. Thompson6. Percebo aqui os trabalhadores como sujeitos que experimentam suas situações e relações produtivas e tratam dessa experiência em sua consciência e cultura, das mais complexas formas (Thompson, 1981). Também o “trabalho” é considerado como um elemento para além das relações técnicas de produção. Como nos mostra Castel (2005), ele implica um conjunto de relações sociais, identitárias, individuais e, principalmente, coletivas. Minha opção é considerar os elementos históricos gerais na construção dos direitos sociais brasileiros – debruçando-me em autores que tomam o trabalhador como ator fundamental desse processo – para perceber a relação dos trabalhadores com a Justiça. Os agentes em luta na sociedade contemporânea também manifestam o seu conflito na esfera judicial. A Justiça do Trabalho me parece um locus privilegiado para percebermos esse embate onde o “trabalho”, suporte privilegiado da inscrição do sujeito na estrutura social, é fonte central de análise (CASTEL, 2005). Thompson, em Senhores e Caçadores (1977), vai destacar a importância da lei como um “bem humano incondicional”. Essa também não é fruto do acaso. Como ele mesmo destaca, negar sua importância é negar todo o histórico de lutas pelas mesmas: “Significa lançar fora uma herança de luta pela lei, e dentro das formas da lei, cuja continuidade 6 Refiro-me aqui à sua análise sobre a classe operária inglesa. 21 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Vol. 14 | N. 28 | Agosto de 2009 | Semestral Os trabalhadores e a luta por direitos sociais no Brasil jamais poderia se interromper sem lançar homens e mulheres num perigo imediato” (Idem: 358). O autor não deixa de considerar que vimos, ao longo da história, a lei mediar e legitimar relações de classe existentes, em que os trabalhadores eram as partes desprivilegiadas. No entanto, essa mediação é diferente do exercício dessa força – imposta pela classe dominante – sem qualquer arbitragem. Sem ela os trabalhadores ficariam totalmente à mercê das vantagens dos patrões. A lei, em suas formas e retórica, pode inibir o poder do dominante e oferecer proteção aos destituídos de poder. Se é verdade que a lei foi criada para mediar as relações de classe existentes, em proveito dos dominantes, é também verdade que ela se tornou instrumento de restrição às próprias práticas da classe dominante. Os mesmos instrumentos que serviam para consolidar o seu poder e acentuar sua legitimidade, paradoxalmente, serviram também para colocar freios no seu poder (Thompson, 1997). A partir do conflito entre capital e trabalho a própria lei se altera possibilitando outros patamares para os conflitos de classe. Dessa forma, é fundamental pensar a estruturação das lutas promovidas pelos trabalhadores, em seu cotidiano, para o acúmulo de direitos – garantidos e fiscalizados pela lei. Essa herança social constitui ainda as bases para a avaliação de situações do presente, mostrando ainda, a importância das tradições coletivas (Moore, 1987; Thompson 1971; Thompson 1979 apud Morel & Pessanha, 1999). Sindicato, Estado e Justiça Thompson (1987), analisando o operariado inglês, considera que uma classe existe quando um grupo de indivíduos compartilha 22 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta experiências comuns e aprendem com elas mesmas, em termos políticos e culturais. Essa classe é uma formação social e cultural que se constrói tanto a partir de experiências no processo de produção quanto a partir de suas tradições políticas e intelectuais. É no decorrer de todo esse processo, pautado em interesses de classe, que se consolida de fato uma identidade coletiva dos trabalhadores. A análise de Thompson demarca o lugar do trabalhador no mundo da produção onde essa consideração, longe de negligenciar a construção identitária de outros grupos sociais, coloca o problema da organização como outra expressão do processo de criação de uma identidade coletiva. As práticas associativas são a maneira de estruturar um comportamento operário que abarca o trabalhador em todas as esferas de sua vida. Constitui um sentimento de “pertencer” que marca o ator coletivo. Os trabalhadores brasileiros começaram a se organizar desde o século XIX. Nesse período, a luta por uma legislação social já é reivindicada e marca a última década do século XIX e as duas primeiras do século XX no Brasil. Em 1891, são aprovadas as Leis Protetoras do Trabalho do Menor – primeira produção legislativa no sentido da regulamentação do mundo do trabalho no país –; em 1903, a Lei de Sindicalização Rural; e, em 1907, a Lei de Sindicalização (Moraes, 1952). Todas essas medidas possibilitam a criação de associações de trabalhadores e de empregadores, configurando, aos poucos, um novo patamar dos conflitos de classe. Em 1906, é realizado I Congresso Operário Brasileiro, no Rio de Janeiro – caracterizado por forte influência anarquista – e a organização dos trabalhadores vai avançando progressivamente. A partir de 1914, o país sente os reflexos ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Vol. 14 | N. 28 | Agosto de 2009 | Semestral Luisa Barbosa Pereira oriundos da crise da 1ª Guerra Mundial. Esse processo desencadeia inúmeras mobilizações por melhores condições de trabalho e é organizado um forte movimento grevista, liderado pela Federação Operária. A mobilização contou com intensa repressão. Entretanto, inúmeras reivindicações foram atendidas. Como destaca Pessanha (2001), o início do século XX é de fato marcado por inúmeras greves: 111 entre 1900 e 1910 e 258 entre 1919 e 1920. O ano de 1903 marca a greve geral no Rio de Janeiro. Alinhados à movimentação parlamentar de alguns reformadores sociais progressistas, os trabalhadores pressionavam pela ampliação de seus direitos, organizando esse expressivo movimento grevista que terá seus pontos culminantes em 1917 e 1919. As manifestações, inicialmente centradas apenas em questões salariais, passam a inserir bandeiras de direitos do trabalho, tais como férias, horas-extras e regulamentação da jornada de trabalho. Em 1917, Maurício Lacerda elabora um projeto de Código do Trabalho que propunha, entre outras questões, a limitação de horas de trabalho diário e a proibição do trabalho noturno para mulheres. Por ser muito avançado para a época e por contrariar interesses solidamente estruturados, não foi aprovado no parlamento com base na argumentação liberal de restrição ao “princípio de liberdade do trabalho”, contido na Constituição Federal de 1891. No entanto, todo esse processo de ações de massa e movimentações parlamentares renderam a efetivação de direitos concretos para os trabalhadores. Em 1919, é aprovada a Lei por Acidentes de Trabalho e, em 1923, a Lei de Aposentadorias e Pensões, restrita inicialmente aos ferroviários. Dentro de toda essa ebulição social em que os trabalhadores ganhavam cada vez mais destaque, lideranças políticas começam a verificar esse potencial. Os trabalhadores também estavam atentos à questão social que, a partir de 1919, passa a se configurar como uma pauta do Estado. No governo de Arthur Bernardes (192226), fica mais claro o objetivo do governo de se aproximar dos sindicatos, mas é na Era Vargas que esse aspecto se expressa com uma maior objetividade. Após o período de restrição da liberdade de imprensa e da atividade sindical – fruto da Lei Aníbal Toledo de 1927 –, a organização desses trabalhadores é abalada. Logo vem o Estado Novo (1937-45) e as conquistas obtidas se transformam em retrocessos protagonizados pelo governo. No período 1934-1945 o Estado brasileiro consolida seu controle sobre o operariado do país. A Constituição de 1934 pregava a autonomia e a pluralidade sindical, mas a atuação livre do movimento sindical é apenas aparente. Uma forte investida de Vargas, em uma espécie de “oficialismo sindical”, vai se estabelecer nos materiais dos sindicatos, em uma espécie de louvação ao presidente. O Departamento de Assistência Social, criado pelo governo, atendia um número crescente de associados e a popularidade do presidente acompanhava o mesmo ritmo. De acordo com o quadro arrazoado anteriormente, é possível afirmar que os direitos sociais brasileiros surgem na Primeira República de forma bastante fragmentada. Somente a partir da década de 30, com a evolução da legislação trabalhista, é dada uma nova dimensão à questão do trabalho e se configura um espaço mais concreto de consolidação dos direitos sociais (MOREL & PESSANHA, 2007). É nesse contexto que, através de um longo histórico de discussão e amadurecimento, 23 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Vol. 14 | N. 28 | Agosto de 2009 | Semestral Os trabalhadores e a luta por direitos sociais no Brasil são efetivadas como instâncias democráticas da estrutura brasileira a Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho. Como destaca Carvalho (2006), o ano de 1930 foi um divisor de águas no país. A criação do Ministério do Trabalho e da Indústria, a vasta legislação trabalhista e previdenciária e a Consolidação das Leis do Trabalho (1943) ampliaram progressivamente o alcance dos direitos sociais. Os direitos políticos, ao contrário, tomaram o caminho inverso. O esvaziamento da vida sindical ficou visível com a diminuição das assembleias, reuniões e do número de associados. Mesmo após a fase de redemocratização política, em 1945, a repressão à organização dos trabalhadores continua no governo Dutra e no início do segundo governo de Vargas. Os direitos sociais, por outro lado, ganham outra dimensão. A vasta legislação publicada que considerava, como demonstra Gomes (1998), conquistas anteriores à década de 30, culmina na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943. A CLT, apesar de constituída com pouca participação política da sociedade e com traços autoritários, se efetivou como instrumento fundamental de proteção social dos trabalhadores, frente à estrutura capitalista. Por esse motivo, José Murilo de Carvalho, ao pensar a construção da cidadania no Brasil, vai defender que a trajetória latino-americana se deu “às avessas”. A particularidade histórica de nossa região levou-nos a um quadro em que a consolidação de nosso direito civil – considerado na tipologia da obra consagrada de T. H. Marshall7 como o primeiro direito a 7 Refiro-me aqui a consagrada obra: Cidadania, classe social e status (1967), que apesar de ter recebido inúmeras críticas quanto a sua perspectiva linear (inclusive por José Murilo de Carvalho no já citado livro) nos serve como referencial teórico fundamental. 24 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta ser conquistado – não acompanhasse o “padrão clássico” dessa construção. Os direitos sociais, que estão na ponta final da análise marshalliana, são conquistados em um complexo cenário em que os direitos civis – tais como a liberdade – e os políticos – como o direito de votar e ser votado – estavam sendo duramente violados. O movimento sindical brasileiro, mesmo reprimido pelo regime de exceção, marcou sua crítica ao caráter autoritário da legislação e questionava os aspectos controladores da legislação trabalhista. Todavia, a possibilidade concreta de consolidação e criação de bandeiras históricas do movimento operário se colocou como um horizonte positivo para a vida do trabalhador. A Justiça do Trabalho nasce nesse contexto, após intenso debate entre opiniões divergentes sobre a proteção social a ser prestada pelo Estado. Inaugurada durante o Estado Novo, em 1941, e a partir de 1946, como ramo efetivo do Poder Judiciário, ela passa a cumprir o papel de administrar os conflitos trabalhistas tendo como base a legislação. Considerando princípios distintos dos da Justiça comum – estadualizada –, essa justiça federalizada se apoiará em ritos processuais mais rápidos e simplificados (como a oralidade das provas), acolherá demandas individuais e coletivas (encaminhadas pelos sindicatos de trabalhadores e patronais) e desenvolverá suas prerrogativas de exercer o chamado poder normativo –, estendendo o alcance de suas sentenças a todos os membros de um setor ou de uma categoria. O debate em torno de sua consolidação marca o caráter dessa Justiça, que surge a partir de fortes disputas políticas e ideológicas em torno da idéia de destaque ao papel do Estado na regulação trabalhista. Os chamados liberais não queriam uma justiça federal e a existência ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Vol. 14 | N. 28 | Agosto de 2009 | Semestral Luisa Barbosa Pereira de sujeitos e direitos coletivos. Não aceitavam também que os sindicatos funcionassem como pessoas jurídicas públicas – alegando que a vontade individual dos trabalhadores deveria prevalecer. Somente na ditadura varguista, implantouse a Justiça do Trabalho que guarda ainda uma tradição antiliberal. Sobrevive até os tempos atuais, após várias mudanças político-institucionais e ao avanço do neoliberalismo no Brasil (Morel & Pessanha, 2007). Mesmo no regime autoritário de 64, quando os direitos são praticamente suspensos, essa Justiça cumpriu um importante papel. No âmbito político, os sindicatos sofreram duramente com o golpe militar. Toda ação dos sindicatos ficou limitada. Apesar disso, como destaca Morel e Pessanha (2007), há muitas indicações de que a Justiça do Trabalho – cuja estrutura permaneceu a mesma na Constituição de 1967 e não foi alterada pela Emenda Constitucional de 1969 – se consolidou como um dos poucos espaços de defesa dos direitos sociais. Após as duras investidas contra a organização sindical da ditadura de 64, no período da chamada “transição democrática”, de 1974 a 1985, vimos esse movimento alcançar importantes vitórias. Movimentações nacionais em todo o país, com destaque às do ABC paulista, marcam nosso processo de redemocratização. Todo esse movimento mostrou a eficácia dos trabalhadores em atuar conjuntamente com diferentes setores dos movimentos sociais e da sociedade civil. Essa mobilização permite uma correlação de força bastante favorável para a elaboração de uma reforma constitucional com traços sociais. De fato os trabalhadores representaram um papel fundamental para o processo de redemocratização nacional e garantiram a aprovação de vitórias substantivas na Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã. Percebida como o nosso embrião do Estado de Bem-Estar Social, a Constituição de 1988 é, sem dúvida, um marco na perspectiva de proteção social do Estado à população em geral. Sindicalistas, reformadores sociais e intelectuais forjados no movimento democrático assumem agora o papel de constituintes e garantem direitos significativos para a sociedade brasileira, em toda a sua extensão. Com a Constituição de 1988, amplia-se ainda a possibilidade de controle social da produção legislativa, trazendo para o centro da arena política o Poder Judiciário. Segundo a Constituição, qualquer cidadão pode propor uma ação popular. Tal ação é o meio processual que possibilita o questionamento judicial de atos que o cidadão considere lesivos ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Nesse processo o Ministério Público do Trabalho (MPT) também vai ter seu papel reforçado. Até então atuava apenas como órgão fiscal, que intervinha junto ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) ou aos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs). Contudo, os anos 90 impõem outro quadro para os trabalhadores brasileiros. A crise no emprego se acentua e o investimento estatal vai diminuindo progressivamente. Transformações no mundo do trabalho Todo o movimento sindical na década de 90 sofreu com a abertura comercial, o processo de reestruturação econômica e flexibilidade no interior das fábricas. A organização dos trabalhadores sofre com a redução do número de operários de categorias representativas e, consequentemente, com a baixa sindicalização. 25 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Vol. 14 | N. 28 | Agosto de 2009 | Semestral Os trabalhadores e a luta por direitos sociais no Brasil O cenário de incertezas e desemprego continuou e os trabalhadores ficam sem alternativas. Agarram-se nos direitos já conquistados e na recorrência à Justiça do Trabalho8. São, sobretudo, estimulados pelo novo cenário político democrático. Como bem nos lembra Castel (2005), tratando sobre o caráter inacabado da sociedade salarial, os avanços do direito do trabalho não significam que se pratica a democracia na empresa, ou que a empresa se tornou cidadã. O patrão continua tendo mais poder. Os direitos de greve, de organização, de voz e ação no interior das empresas, de inspiração germânica e comunitarista, têm sua forma já delineada na primeira metade do século XX. Aperfeiçoa-se, em cada país, de acordo com a força do movimento sindical, presença de seus interesses e representantes nas esferas do Estado (Parlamento ou Executivo) e maior presença estatal na ordem social. A natureza do direito do trabalho é ser constantemente testado pelos agentes em luta na relação capital e trabalho. É um meio de reduzir a disparidade do poder e favorecer o elemento trabalho – considerando que instâncias do Estado (como Justiça do Trabalho e o Ministério Público) são também elementos em disputa permanente. A década de 90 é emblemática para pensarmos alguns aspectos dessa disputa. Uma explosão nos dissídios de natureza individual abarrota as Varas Trabalhistas9. Em um cenário de “flexibilização à frio” dos direitos do trabalho grande parte da literatura econômica justifica o desrespeito à legislação afirmando 8 Como mostra Cardoso (2002) em pesquisa de forte cunho empírico nas Varas Trabalhistas da cidade do Rio de Janeiro. 9 Adalberto Cardoso analisa especificamente o caso do Rio de Janeiro. No entanto, os aspectos percebidos nessa região lhe parecem comuns aos principais estados do país. 26 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta que a Constituição de 1988 teria criado “direitos em excesso” aos trabalhadores, impedindo a adaptação dos empregadores. Sendo assim, esses não teriam alternativas dentro da legislação e a única opção seria o descumprimento da lei. Como nos mostra Cardoso (2002) nas décadas de 70 e 80 a média de acréscimo no número de processos era pouco superior a 35 mil por ano. Na década de 90, essa salta para 110 mil processos anuais. Em 1998, as 1.109 Varas de Trabalho no país acolheram cerca de 2 milhões de processos trabalhistas, identificando um aumento bastante significativo. O intenso crescimento se deu tanto na ebulição do chamado “Novo Sindicalismo” (1978-1981) quanto no período de queda da atividade sindical (ao longo da década de 90). Para Cardoso (Idem), o aumento das demandas no primeiro período é um processo de “permeabilização da Justiça às demandas reprimidas, fruto do crescimento do poder sindical e de sua pressão por mais direitos” (Idem: 531). Já na década de 90, é reflexo da ação individual de trabalhadores titulares de novos direitos tentando fazê-los valer, num momento de baixa atividade sindical e de ampliação e de novos direitos trabalhistas – da Carta de 1988. O cenário colocado na relação direta entre capital e trabalho é extremamente desfavorável para os empregados. Empresários testam os limites da nova ordem constitucional em um contexto em que trabalhadores têm dificuldades em impedi-los. Os órgãos de fiscalização do Estado, não garantindo os direitos conquistados, abrem espaço para que os empregadores flexibilizem no interior das empresas as relações de trabalho, negligenciando a lei. A consequência é imposição de uma agenda com ausência de direitos. Alguns sintomas do desrespeito à norma por parte dos empresários brasileiros é tanto ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Vol. 14 | N. 28 | Agosto de 2009 | Semestral Luisa Barbosa Pereira o aumento da informalidade – no pós 1988 – quanto no aumento de demandas por direitos trabalhistas nas greves dos anos 90, em proporção superior à década anterior. Nesse período – ao que tudo indica – entre os trabalhadores dispostos à ação coletiva aumenta a proporção dos que percebem o trabalho como mais intenso e insalubre. Aumenta também a dos que consideram que os direitos trabalhistas estão sendo burlados (Cardoso, 2002). Tal fato é também estimulado pelo novo cenário político democrático e ampliação de direitos que, se não eram garantidos na prática, estavam assegurados em lei. A Justiça aparece aqui como uma importante alternativa para a diminuição das perdas aos trabalhadores. A partir da pesquisa realizada por Mario Grysnspan (1999), é possível dizer que a Justiça do Trabalho é vista com maior positividade pela população. Grysnspan percebeu que essa Justiça particular de nossa estrutura é compreendida com mais confiança pela população do que a Justiça comum – predominância de confiança nos níveis médio e alto para a Justiça do Trabalho e oscilação entre médio e baixo para a Justiça Comum. Contudo, a Justiça do Trabalho também sofreu com as transformações da década de 90. Tentativas que objetivavam tanto o seu fim quanto a flexibilização dos direitos do trabalho ganharam força no âmbito institucional, como destaca Morel e Pessanha (2007). Variadas “inovações” legislativas foram arriscadas, mas a Justiça do Trabalho se manteve. A reação de sindicato dos trabalhadores e de associações profissionais do setor jurídico foi fundamental para isso. Dessa forma a Justiça, apesar de ter sido estruturada pela concepção de proteção ao trabalhador, depende de inúmeros outros elementos para de fato fazer valer a sua concepção fundante. Pela perspectiva de “desigualdade entre as partes”, vendo o trabalhador como parte mais fraca da relação capital-trabalho, é importante ainda destacar que essa Justiça é diferente de qualquer outra instância judiciária brasileira. Carrega – desde sua origem – um forte traço antiliberal, que estimulava a proteção do Estado aos trabalhadores (MOREL & PESANHA, id). Considerações Finais A Justiça do Trabalho, sendo uma instituição em constante disputa, precisa ser impulsionada pelos atores interessados na defesa de seus direitos. Nesse sentido, o sindicato cumpre, sem dúvida, um papel fundamental. Pode tanto atuar na pressão por medidas favoráveis aos trabalhadores na Justiça do Trabalho, quanto, a partir de 1988, instaurar Ações Civis Públicas e demandar a ação fiscalizadora do Ministério Público. Contudo, é importante destacar que o acesso à Justiça no Brasil ainda está longe de se concretizar como um direito popularizado, conhecido e exigido pela população. O capitalista, atento a essa questão e com a “justificativa” de fazer valer sua competitividade no mercado, procura constantemente a ilegalidade na relação trabalhista – prejudicando a “parte mais fraca” da relação capital-trabalho. No entanto, o movimento sindical organizado tem papel destacado, sendo agente de coação do capitalista em favor dos trabalhadores e podendo pressionar a Justiça para a efetivação dos seus direitos. A partir de 2004, com a reforma do Judiciário, algumas medidas transformaram um pouco essa relação. Dentre elas, destaca-se a instauração do dissídio coletivo de natureza econômica, que passa a só poder ser instaurado no caso de concordância entre as partes envolvidas. Tal medida prejudica a correlação de 27 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta ARTIGOS Revista Augustus | Rio de Janeiro | Vol. 14 | N. 28 | Agosto de 2009 | Semestral Os trabalhadores e a luta por direitos sociais no Brasil forças do sindicato. A simples possibilidade de instaurá-lo se efetivava como um importante instrumento de “barganha” sindical para que a categoria pressionasse o patronato pelo aumento salarial, assegurando a data-base. Este era promovido principalmente nos períodos de campanhas salariais. Com essa restrição, todas as categorias, mas principalmente as menos representativas, perdem poder para assegurar aumento real de salário para a categoria. Essa medida é estipulada pela Emenda Constitucional 45/2004, que, se, por um lado, restringe a instauração dos dissídios coletivos de natureza econômica, por outro, amplia a competência da Justiça do Trabalho, fazendo com que passe a julgar não só as relações de emprego formal como também as informais. A partir de toda a reflexão sobre a história da construção dos direitos do trabalho no país é possível perceber que os trabalhadores têm uma capacidade imensa de garantir a efetivação e ampliação de seus direitos. Atuando de maneira coletiva, através do sindicato, essas possibilidades se avolumam. Podem fazer valer a norma através de sua capacidade de ação coletiva, da ação do órgão fiscal do Estado ou da Justiça do Trabalho. E ainda, para que essas instituições do Estado atuem com mais efetividade em defesa do cumprimento da norma que protege o trabalhador, é fundamental o primeiro aspecto, ou seja, a sua ação coletiva e organizada. Referências ARAÚJO, Adriane Reis; CASAGRANDE, Cássio Luís; BRITTO PEREIRA, Ricardo José. Ações Civis Públicas no TST: Atuação do Ministério Público do Trabalho e dos Sindicatos em Perspectiva Comparada. In: Cadernos CEDES n. 06, IUPERJ, Rio de Janeiro, 2006.(Disponível em:http://www.cedes.iuperj.br/ Ver Cadernos CEDES). CARDOSO, Adalberto. Direito do trabalho e relações de classe no Brasil contemporâneo. In: WERNECK VIANNA, Luiz (Org.). A Democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2003. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. CARVALHO, J. Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2003. CASTEL, Robert. 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