Lutar, Abafar, Resolver
3 técnicas para gerir os conflitos sociais
no Ambiente…,
na Saúde…,
na Educação…,
na Empresa…,
no grupo de amigos…,
na família.
Paula Silveira
2008
O que é um conflito?
O conflito é uma manifestação saudável da inteligência grupal e, se correctamente
vivido, pode ser o motor da resolução criativa dos problemas sociais.
Assim, o conflito não é mais do que a inteligência a exercitar-se, a questionar
informações, a conferir soluções. Gerir eficazmente um conflito é, pois, utilizar a
energia e criatividade dos grupos, resultantes da aplicação da inteligência colectiva a
um dado problema.
Mas o conflito não e uma situação fácil. Na sua forma mais vulgar e tradicional, ele
deteriora os grupos, cria um clima relacional péssimo e não resolve os problemas.
Goza de uma terrível fama e é, muitas vezes, confundido com “desordem social”. E
tudo isto porque o conflito é mal compreendido e mal gerido. Vejamos como.
Numa definição simples, pode dizer-se que o conflito é o resultado do enfrentamento,
num problema, de indivíduos ou grupos.
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Quer isto dizer que um conflito nasce, não por causa de um problema, mas sim
porque as opiniões dos indivíduos, nesse problema, se endurecem, cristalizam, umas
contra as outras — tornam-se adversárias.
Analisemos, então, os três elementos presentes num conflito, indivíduos, problema, e
cristalização, nas suas principais características.
A principal característica do elemento indivíduos é a diferença de pontos de vista. Na
verdade, cada indivíduo, fruto da sua genética e da sua vivência, é detentor de um
modo único de olhar os problemas, o que o torna distinto de todos os outros.
Será isto um handicap para o sistema social? Não, pelo contrário, é a diferença
individual que constitui a riqueza do sistema social, e a garantia da evolução deste. É
o “pensar diferente” que pressiona a inovação, é o questionamento das verdades
feitas que garante a mudança da História.
Assim, não é pelo elemento indivíduos que o conflito pode ser considerado negativo.
As principais características do elemento problema são a sua complexidade e
permanência no tempo. Ou seja, os problemas são, por definição, situações
emaranhadas e complicadas,
Problema
e existem sempre. Fazem parte integrante da dinâmica do sistema social.
Na verdade, só por utopia (optimista ou pessimista) se pode considerar que o sistema
social evolui numa linha contínua, sem obstáculos. A utopia optimista vê a evolução
humana como caminhando para um destino maravilhoso, enquanto que a utopia
pessimista vê a evolução humana caminhando para o abismo.
Ambas são mitos, pois a História mostra que a evolução humana se faz num
movimento complexo, alternado e contraditório, entre problemas e soluções. Quer isto
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dizer que, em cada momento histórico, o sistema social desenha uma solução para
um dado problema, solução essa que resolverá este mas criará um novo. Problema
versus solução, solução versus problema, é este o movimento da História humana. E
é este movimento complexo e contraditório que assegura, igualmente, a mudança
social.
S
S
P
P
S
P
Legenda:
P - problemas
S - soluções
Assim, também não é pelo elemento problema que o conflito pode ser considerado
negativo.
Finalmente, a principal característica do elemento cristalização é a rigidez, o
estaticismo e o isolamento que provoca nos pontos de vista dos indivíduos. Quando
existe cristalização, o ponto de vista do individuo fecha-se a qualquer dado exterior,
recusa toda a informação diferente, recusa a sua reformulação, e fica, também,
incapaz de olhar o problema sob o ponto de vista dos outros.
Assim, os indivíduos com posições cristalizadas nunca discutem o problema em todas
as suas diferentes dimensões, nunca pensam sobre os vários pontos de vista em
causa, nem nunca procuram uma solução abrangente, que sirva a todos. Pelo
contrário, cada um pensa no problema apenas do seu ponto de vista, procurando
soluções parciais que sirvam a si próprio, e defende-as ïmpondo-se às soluções
parciais dos outros.
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Parece, então, que a cristalização é o ponto negativo do conflito.
Se assim for, os conflitos sociais são vistos como negativos porque os grupos implicados na discussão dos problemas partem para essa discussão com ideias feitas
sobre qual a solução “ideal” que deve ser adoptada. Esse “ideal” surge porque cada
grupo apenas pensou os problemas do seu ponto de vista particular e, como
consequência, apresenta-se na discussão armado com essas soluções, verdadeiras
mezinhas pré-fabricadas que, endurecidas, cristalizadas, servem a cada um de
escudo protector contra as soluções defendidas pelos restantes.
Assim, haverá grupos que defenderão a nacionalização das empresas e outros a sua
privatização, ou então, o aumento de salários versus congelamento dos mesmos,
emprego versus robótica, investimento privado versus subsídio estatal, proteccionismo versus liberalização do mercado... etc. Analisando estas "soluções", fica
claro que cada uma delas resultou apenas duma meia-visão dos problemas.
Tudo se passa como se cada um pensasse que a grande complexidade destas
situações pudesse ser reduzida à mera defesa das posições resultantes das suas
perspectivas parciais.
Soluções parciais contra soluções parciais eis a chave que abre a porta à má fama do
conflito.
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3 técnicas para gerir o fenómeno
Ora, face a um conflito, existem, basicamente, três técnicas para a sua gestão:
•
•
•
a Luta,
o Abafamento,
a Resolução.
Sobre as duas primeiras, poder-se-á dizer que a sua prática é quotidiana. Basta olhar
à nossa volta para encontrarmos conflitos geridos com a técnica da luta e/ou do
abafamento. Porém, estas duas técnicas nunca conseguem aproveitar positivamente
o conflito. Pelo contrário, agravam-no ou adiam-no.
A terceira já não é tão vulgar e apenas costuma aparecer, sobretudo, em épocas de
grande catástrofe (sismos, inundações...), quando surgem projectos fortemente
mobilizadores da acção dos grupos sociais e, ainda, em épocas de grande mudança
tecnológica. Esta técnica permite aproveitar os aspectos positivos do conflito, põe a
funcionar a “inteligência colectiva” e consegue resolver os problemas.
Vejamos então como se caracteriza cada uma delas.
A Luta
A Luta é basicamente um jogo de Perde-Perde. Todavia, como há sempre um
interveniente que perde mais que o outro, é comum chamarem-lhe jogo do PerdeGanha.
Nesta técnica o sistema adversário quer confrontar-se, ou seja, todos os implicados
desejam medir forças uns com os outros, anulando as suas mútuas diferenças. O
sistema adversário transforma-se, então, num sistema de vencedor/vencido. Para
isso, todos os intervenientes se atacarão entre si, provocando feridas mútuas, com
formas que podem ir desde a calúnia à guerra, passando pela greve ou pelo
despedimento.
O jogo acaba quando um dos intervenientes consegue enfraquecer de tal modo o
outro que o obriga a ir para a mesa de Negociação numa posição de inferioridade.
Na Negociação, cada implicado fará tantas mais cedências quanto mais fraca for a
sua posição, mas todos tentarão que a solução final seja, para si, a mais favorável
possível, não do ponto de vista do problema que lhe deu origem, mas sim, do das
futuras lutas que querem continuar a desencadear.
O “problema”, a tal situação complexa que teria de ser resolvida, esteve sempre muito
longe das preocupações de todos. A chamada “discussão do problema” reduziu-se ao
combate entre as diversas soluções parciais. Em consequência, o que sai da
negociação é a solução do que foi mais forte nessa luta, e que deste modo o prova.
Em complemento, este resultado vai permitir ao vencido manter a posição de luta até
ao próximo conflito.
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Como é evidente, esta solução negociada não pode, em caso algum, fazer
desaparecer o problema, ou seja, resolvê-lo, pois o que é importante para todos os
intervenientes é que a solução adoptada mantenha o sistema adversário de pé, e com
vigor suficiente para que, neste ou noutro problema, possam continuar a confrontarse.
Esta técnica tem, pois, o (in)conveniente de manter o sistema adversário sempre
actuante e os “problemas” por resolver.
Um dos sintomas mais vulgares do ambiente de Luta nas organizações é a
comunicação em desafio - num exemplo, o alto grau de reactividade negativa gerado
por qualquer comunicado interno, quer seja da Administração, quando recebe alguma
nota da comissão de trabalhadores, quer desta comissão, quando recebe uma
decisão da Administração, quer ainda dos trabalhadores, quando recebem uma
informação de qualquer dos dois.
O Abafamento
Uma segunda técnica de gestão do
fundamentalmente um jogo de Nem-Nem.
conflito
é
o
Abafamento.
Este
é
Aqui, um (ou vários) dos intervenientes do sistema adversário não deseja(m), por
qualquer razão, que o “problema” seja levantado, nem sequer que as diversas
soluções parciais, em jogo, sejam tornadas claras. Assim, toda a estratégia será
virada para o silenciar das vozes, procedendo a uma amálgama indiferenciada
(somatório) das suas diferenças. Este resultado pode ser obtido com técnicas mais ou
menos elaboradas de manipulação da comunicação grupal, como por exemplo:
•
tácticas de adiamento da discussão, do tipo: “criar uma
comissão interdepartamental que estudará a hipótese de
se fazer um ante-projecto que estudará a viabilidade de se
apresentar um projecto...”;
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•
•
•
•
criação ou aproveitamento de eventos mais “urgentes” que
desviem a atenção dos grupos;
evocação da alta complexidade ou tecnicidade do
problema, o que levará à sua eterna discussão;
desvalorização e/ou descrédito dos interlocutores, o que
levará à consulta interminável de sucessivos “peritos”, por
sua vez, também descredibilizados;
etc.
O jogo acaba quando os grupos, manipulados, perdem a vontade de discutir
claramente as suas posições, sendo, então, levados ao Compromisso. Este
caracteriza-se pela “aprovação” duma solução que nem resolve o problema nem
contempla quaisquer das soluções privadas dos grupos implicados. Limita-se apenas
a adiar a discussão destas, para um tempo mais ou menos indeterminado.
Tal como na técnica anterior, também no Abafamento a resolução do “problema” não
faz parte das preocupações dos grupos implicados. O objectivo é bastante anterior a
isso, visto que nem a menção do problema é desejada. Assim, a discussão ou não se
faz, ou, a fazer-se, irá incidir sobre temas absolutamente laterais. Em vez do combate
entre soluções privadas, encontramos aqui uma situação de mordaça.
Esta técnica tem o (in)conveniente de criar uma situação de tensão permanente entre
os grupos, ou panela de pressão, a qual, quando rebenta, pode vir a proporcionar
oportunidades de Luta bastante interessantes.
Como exemplo, em organizações com conflito abafado, um dos sintomas mais
vulgares é o profundo silêncio das reuniões formais de trabalho se comparado com a
intensidade das conversas informais de corredor. As organizações de trabalho que
vivem em conflito abafado têm, normalmente, um alto índice de rumor∗, e um índice
elevado de neurose grupal.
∗
vide o desenvolvimento deste tema no artigo “O rumor na empresa – a dinâmica do contrapoder” –
Paula Silveira.
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A Resolução
Resta agora mencionar a técnica da Resolução. Esta é, basicamente, um jogo de
Ganha-Ganha. Aqui o objectivo não é nem o medir forças nem o silenciar das vozes.
Traía-se de resolver o problema.
Para isso, a discussão dos diversos intervenientes centra-se não sobre as suas
soluções pessoais, mas sim sobre a pesquisa duma solução que, resolvendo o
problema, o faça desaparecer. Para que isso aconteça, isto é, para se encontrar uma
solução que resolva o problema, é fundamental que ela contemple todas as posições,
todos os pontos de vista em jogo. Trata-se, assim, de fazer a integração das
diferenças.
Mas encontrar uma solução deste tipo obriga a que cada interveniente não abdique do
seu diagnóstico pessoal sobre o problema e que resulta da vivência particular que
dele tem. Na verdade, o ponto de vista diferente é toda a riqueza desta técnica. Ela
implica, também, o abandono das soluções privadas, as quais não eram mais do que
meias - soluções, pois foram definidas apenas com base em pontos de vista parciais.
Abandona-se, assim, o combate e a mordaça das técnicas anteriores, para se entrar
no debate das diferentes dimensões do problema e na construção criativa da sua
solução, através da manutenção do ponto de vista diferente e do abandono da
solução pessoal que ele originou.
Toda a estratégia se desenvolve, assim, em direcção ao desmantelamento do sistema
adversário e na sua transformação num “sistema empreendedor”. As tácticas
utilizadas decorrem das metodologias da locomoção grupal, das técnicas de
problematização e da dinâmica dos grupos de criatividade, encontrando-se hoje
largamente difundidas.
É a inteligência colectiva, devidamente dinamizada, a funcionar em pleno∗.
O jogo termina com a Recriação. Esta consiste, basicamente, na validação da solução
encontrada, cuja qualidade se mede pela facilidade de implementação e pelo grau de
ganho (ou vantagem) que conferiu a todos os grupos implicados.
Esta técnica de gestão do conflito tem como (in)conveniente o aproveitamento do
potencial empreendedor dos indivíduos e dos grupos e o tornar obsoletas as duas
técnicas anteriores.
Numa organização em que o conflito foi gerido por Resolução, um dos seus sintomas
é, por exemplo, o empenho de todos os grupos implicados (ex -adversários) na
implementação da solução encontrada e a sua grande capacidade para ultrapassar as
dificuldades operativas dessa implementação.
A comunicação dos grupos envolvidos na dinâmica da Resolução substitui todos os
comportamentos típicos da Luta (anulação de diferenças) por comportamentos típicos
dos grupos de criatividade. No quadro a seguir podem visualizar-se esses dois tipos
de comportamentos:
∗
vide o apontar das metodologias de gestão da inteligência colectiva no artigo “Educação ambiental.
Como fazer ? “ – Paula Silveira.
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Julgar
Interromper
Atacar
Acusar
Falar com excessos
Dominar com gritos
Sarcasmos
Ameaças
Escutar
Pedir esclarecimentos
Dar informações
Perguntar positivamente
Não julgar
Resumir
Em resumo, e como se pode ver na figura a seguir, os grupos mudaram a sua posição
relativa e o centro da sua atenção. Já não se enfrentam, através do “problema”.
Enfrentam, sim, o “problema”, a partir do mesmo lado da barricada.
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Soluções novas para problemas velhos
Em resumo, os problemas sociais são sempre situações extremamente complexas,
que podem (e devem) ser vistos de variadíssimos pontos de vista, e que só estão
resolvidos quando todos os intervenientes verificam que o problema realmente deixou
de existir.
Dir-se-ia, então, que se torna necessário implementar uma outra lógica e metodologia
da gestão do conflito social, entendido este como a energia colectiva inteligente,
dirigida para a solução criativa dos problemas.
Trata-se, assim, de procurar soluções novas para problemas velhos, através da
montagem de um sistema colectivo de pesquisa criativa de alternativas ainda
desconhecidas, utilizando a energia positiva dos grupos sociais.
Da discussão nasce a luz, diz-se... mas não se faz…
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Para adivinhar…
Qual o regime político característico de cada uma das técnicas apontadas?
Ver solução
na página seguinte
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Solução
A Luta é a técnica característica da Democracia tradicional. Esta constrói-se a partir
do combate entre grupos que representam pontos de vista diferentes sobre os
problemas, e que medem forças entre si para conquistarem o direito de impor as
suas soluções parciais. A regra da maioria mede o grau de aceitação de uma dessas
soluções. A comunicação entre os combatentes é sempre azeda, acusatória e
desafiante, procurando encenar a dinâmica da vitória/derrota.
O Abafamento é a técnica característica da Ditadura. Esta constrói-se a partir da
mordaça dos grupos, impondo o silêncio das suas diferenças. “Pão e circo”, é o lema
do ditador – comam, distraiam-se, e não percam tempo a pensar…
A Resolução é a técnica característica da Democracia madura. Esta constrói-se a
partir do debate das diferenças grupais e orienta-se para a solução criativa dos
problemas.
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Resolução de conflitos Sociais