As gangues na adolescência: uma leitura psicanalítica.
Cleusa Souza de Sampaio1
[email protected]
Priscila Frehse Pereira Robert2
RESUMO
O presente trabalho problematiza a inserção dos adolescentes nas “gangues” a
partir da literatura psicanalítica sobre a adolescência e fenômenos de grupo. A
pesquisa relaciona o conceito de adolescência como moratória à dificuldade de
ocupação de um lugar social na adolescência e articula os processos de
identificação ao engajamento dos adolescentes em grupos sociais, como lugar
de reconhecimento, pertencimento e confronto.
Palavras-chave: Adolescência; Gangues; Identificação; Psicanálise
ABSTRACT
This paper discusses the inclusion of adolescents in "gangs" based on the
psychoanalytic literature on adolescence and group phenomena. The research
relates the concept of adolescence as a moratorium on the difficulty of
occupying a social place in adolescence and articulates identification processes
to the engagement of adolescents in social groups, as a place of recognition,
belonging and confrontation.
Key words: Adolescence; Gangs; Identification; Psychoanalysis
1
Aluna de Psicologia- Universidade Federal do Paraná. Pós graduada em Pedagogia Escolar –
IBPEX . Licenciatura em Ciências- UFPR. Licenciatura Plena Programa de Formação
Pedagógica Biologia- UTFPR
2
Psicanalista - Doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP)
1. INTRODUÇÃO
A presença cada vez maior de adolescentes nos consultórios de psicologia
e serviços de saúde pública, bem como a elaboração de políticas públicas
voltadas a essa parcela da população, impõe à pesquisa psicanalítica a
necessidade de articulação teórica e clínica sobre as peculiaridades subjetivas
dos sujeitos que passam por essa delicada fase da vida. Tal empreitada, no
entanto, demanda do pesquisador em psicanálise uma abordagem que
contemple aspectos sociais relacionados ao fenômeno em sua íntima relação
com a constituição subjetiva sem, no entanto, reduzir um aspecto a outro.
Mezan (2002) afirma que para a determinação das subjetividades existem
três planos: singular, universal e particular. O singular trabalha com que é
único, pessoal, intransferível. O universal fala do que é imutável e constitutivo
no sujeito e se refere às pulsões, defesas, fantasias e diferentes partes do
aparelho psíquico. O particular diz respeito ao que pertence ao sujeito e, ao
mesmo tempo, é compartilhado com os demais em determinado contexto
histórico. Embora a psicanálise esteja voltada para o singular, há necessidade
do conhecimento relacionado ao universal e ao particular.
A abordagem psicanalítica da adolescência se insere no campo do
“particular”. Tratar da adolescência implica no reconhecimento de sua
construção histórica e na articulação dialética entre o universal (a montagem do
aparelho psíquico) e o singular (o discurso único de cada sujeito) buscando a
criação de um campo de articulação teórica que lhe dê inteligibilidade.
O presente trabalho pretende abordar a adolescência a partir de seu
movimento característico de ocupação de um espaço social além do existente
na família, como base para a compreensão da inserção dos adolescentes nas
chamadas “gangues”. Para tanto, será realizada uma revisão da bibliografia
psicanalítica contemporânea sobre adolescência e gangues. O conceito
freudiano de identificação, base para compreensão da inserção dos sujeitos no
grupo e a idéia de adolescência como moratória são os eixos centrais do
percurso que pretende problematizar a busca dos adolescentes pelas gangues.
2. ADOLESCÊNCIA: PERÍODO DE MORATÓRIA
A adolescência tem origem no verbo “adolescere”, que vem do latim e
significa “fazer–se homem/mulher” ou “crescer na maturidade” (MUUSS, 1982
APUD KIMMEL & WEINER, 1995, p. 2).
A adolescência, termo da atualidade, que tem a puberdade como
correlato orgânico em seu início, caracteriza-se pelas transformações físicas e
biológicas do corpo. É durante a puberdade que ocorre o desenvolvimento dos
órgãos sexuais, com alterações hormonais e variações rápidas em relação ao
humor e ao comportamento. Os adolescentes comumente apresentam
necessidade de fazer parte de um grupo, dando grande importância às
amizades pela sensação de conjunto de indivíduos com interesses em comum.
(ABERASTURY, 1983)
Segundo Bretas (2008), em algumas sociedades, a passagem da
infância para idade adulta se dá através de ritos. São rituais que marcam a
mudança de um indivíduo de uma fase do seu ciclo de vida para outra. Nesse
processo, o sujeito tem a possibilidade de utilizar os atributos adquiridos para a
vida na sociedade: a competição, a capacidade de trabalho, o exercício de vida
amorosa, o que caracteriza mudança de sua posição na sociedade. A função
do ritual é a de ajudá-lo a superar a mudança, reduzindo perturbações que
podem ocorrer. Em nossa sociedade, não há a existência de um ritual
específico para essa passagem. O processo de “tornar-se adulto” é construído
a partir de condições determinadas pelos próprios adultos e que não são
explicitadas. Como o adolescente não sabe o que deve atingir para ser
reconhecido, acaba ficando ligado a metas que fazem parte dos desejos dos
adultos. Esses são interpretados de maneira variável, de acordo com
condições pessoais e sociais. (BRETAS, 2008)
Segundo Calligaris (2000), a a adolescência é considerada uma
formação cultural muito poderosa, vista pela sociedade atual como um tempo
de vida cheio de prazer, sem preocupações. Os adultos, através dessa
idealização, têm a adolescência como um tempo a ser cultuado. Nessa
passagem de uma cena familiar para outra social, há a ocorrência de
operações subjetivas importantes. O adolescente busca ser reconhecido como
um adulto, fazer parte da comunidade e nela ser atuante. Mas esse processo:
... em nossa cultura não é regrado por um ritual, mas depende de um olhar, um consenso que
nem sabe articular suas condições. Portanto, é necessário procurá-las interrogando e
interpretando o desejo dos adultos.
( CALLIGARIS, 2000, p.57)
Na atualidade, a sociedade reconhece que o indivíduo torna-se adulto
depois de treinado e instruído pela família e por outras instituições
reconhecidas socialmente como a escola, a religião, a mídia. Essas instituições
direcionam o adolescente no conhecimento e na vivência dos ideais da
comunidade a qual pertence. Mesmo absorvendo os valores e estando apto
nos aspectos corporais e cognitivos para vivenciar a sociedade e a competição
social que nela existe, o adolescente acaba não sendo reconhecido. É
considerado, portanto, não “preparado” para o exercício de um papel social,
tendo que continuar sob a tutela dos adultos. Essa continuidade ocorre sem
que haja uma definição de parâmetro pelos adultos em relação ao seu término
ou ao patamar que deverá ser atingido. É um processo de crise e mudança no
qual o adolescente busca identificações com pessoas, grupos, ideologias.
Pois além de instruir os jovens nos valores essenciais que deveriam perseguir para agradar à
comunidade, a modernidade também promove ativamente um ideal que ela situa acima de
qualquer outro valor: o ideal de independência. Instigar os jovens a se tornarem indivíduos
independentes é uma peça-chave da educação moderna. Em nossa cultura, o sujeito será
reconhecido como adulto e responsável na medida em que viver e se afirmar como
independente e autônomo – como os adultos dizem que são. (CALLIGARIS, 2000, p.17)
Com a autonomia sendo reprimida, o adolescente, mesmo com as
qualificações adquiridas, acaba sendo afastado e se afastando da possibilidade
de atuação no cotidiano social em que se encontra inserido. Essa indefinição
faz com que busque um espaço, onde possa ser reconhecido dentro de
parâmetros por ele já conhecidos e já determinados, um lugar social que lhe dê
visibilidade. O adolescente tanto pode buscar uma ação que o mostre como
lutador, conquistador e/ou respeitador dos valores sociais, como distanciar-se
das seduções do mundo, engajando-se em comportamentos tradicionais e
conservadores. Poderá também ser aquele que participa tanto de ações de
solidariedade como de atividades criminosas. Como aponta Freud (1921):
...quando indivíduos se reúnem num grupo, todas as suas inibições individuais caem e todos os
instintos cruéis, brutais e destrutivos, que neles jaziam adormecidos, como relíquias de uma
época primitiva, são despertados para encontrar gratificação livre. ...os grupos também são
capazes de elevadas realizações sob forma de abnegação, desprendimento e devoção a um
ideal. (FREUD, 1921,p.89)
O mesmo pode acontecer no contexto familiar com o adolescente sendo
levado a agir de forma a transgredir as normas existentes. Essa transgressão
pode ser caracterizada como uma busca de reconhecimento. O adulto, no
entanto, sem compreender essa passagem, constrói uma visão de rebeldia
para esse momento:
O grupo adolescente – seja um estilo compartilhado ou propriamente uma gangue – aparece
de qualquer jeito como uma patologia aos olhos dos adultos. Os gostos gregários dos jovens
são considerados anormais e perigosos. O grupo adolescente é vivido como o que sanciona a
desagregação da família e quebra a relação hierárquica entre as gerações, visto que o
adolescente encontra em seus coetâneos o reconhecimento que se esperava que pedisse aos
adultos. (CALLIGARIS, 2000, p.37)
No seu desejo de ser adulto, o adolescente busca viver em um grupo
que o reconheça em seus atributos tanto físicos como psíquicos e essa
identificação pode não corresponder ao desejo dos pais. A transformação
primordial do adolescente em adulto se faz pela construção de uma identidade,
com valores próprios que lhe permitem viver seu cotidiano de modo singular.
Ele deverá formar uma concepção de si mesmo, fundamentada em seus
valores, crenças e metas para com as quais se sinta compromissado.
(MEZAN,2002)
As capacidades inatas, as identificações com outras pessoas e os
fatores culturais estarão em conjunto influindo na formação da identidade. O
psíquico determina o social, mas o social interfere no psíquico com elementos
da cultura, da época e do espaço social no qual o adolescente está inserido.
3. PROCESSOS IDENTIFICATÓRIOS NA ADOLESCÊNCIA
Nos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905), Freud afirma
que a vida sexual infantil é responsável pela pré-determinação das
transformações que ocorrem na puberdade, especialmente no que diz respeito
à busca pelo objeto sexual:
Com a chegada da puberdade introduzem-se as mudanças que levam a vida sexual infantil a
sua configuração normal definitiva. Até esse momento, a pulsão sexual era predominantemente
auto-erótica, agora, encontra o objeto sexual. (FREUD,1905, p.196)
Freud utiliza o termo puberdade, como é visto no subtítulo da Terceira
Lição: As Transformações Da Puberdade (1905), pois o termo adolescência
ainda não era reconhecido e adotado na literatura científica. Para Freud, essas
transformações estão relacionadas a um tempo de excessos quantitativos,
momento em que há ocorrência do crescimento da genitália externa e dos
caracteres sexuais secundários e a busca pelo objeto sexual.
O adolescente faz uma reatualização de fantasias incestuosas a partir
do incremento libidinal e da excitação sexual. Essas passam a ocorrer em sua
vida com a transferência de libido para outros objetos, situando o luto do pai
idealizado. Na puberdade, a sexualidade infantil sofre mudanças com a
unificação das pulsões parciais sob o primado da genitalidade o que leva a
necessidade de desligar-se dos objetos edipianos da infância para “escolher”
um novo objeto, não incestuoso. (MEZAN, 2002) Esse processo se relaciona a
busca do adolescente por outro grupo não familiar.
Assim, a adolescência é um período em que ocorre, além das mudanças
corporais compreendidas pela puberdade, um trabalho psíquico intenso: “É na
adolescência que esse sujeito é levado a uma posição discursiva, com lugar ao
seu desejo e ao seu gozo.” (DEBIEUX, 2010, p.4)
É neste contexto que o conceito de identificação ganha importância para
compreender o trabalho psíquico da adolescência e sua busca pelo encontro
de outro grupo que não o familiar. O texto freudiano “Psicologia de Grupo e
Análise do Ego” (1921) fornece as bases para o entendimento deste processo.
Segundo Debieux (2002), Freud trabalha a identificação “... de forma
integrada à formação do ideal do eu e ao funcionamento do sujeito nos grupos
e instituições”.
Freud indica três maneiras diferentes de ocorrência da
identificação:
primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo,
de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por
assim dizer, por meio de introjeção do objeto no ego, e , terceiro, pode surgir com qualquer
nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é
objeto de instinto sexual. Quanto mais importante essa qualidade comum é, mais bemsucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo representar assim o início de um
laço. (FREUD, 1921, p.117)
É pelas identificações e pelo desejo que o laço social é sustentado e
permite a inserção do adolescente no grupo social.
Por meio das identificações, o indivíduo se organiza com os modelos
que a sociedade oferece. Esses modelos identificatórios, são padrões
socialmente aceitos e valorizados dentro dos costumes, crenças, valores, leis.
É através de identificações, desejos e ideais que o indivíduo pode e irá se
inserir no grupo social. (Burity, 1997) O indivíduo está e é formado num lugar
simbólico, cultural, social que não é o seu próprio. A partir de uma necessidade
comum, os grupos sociais são formados havendo a escolha do outro como
objeto de agressividade ou de amor.
Identificações, desejo e ideais articulam o sujeito ao grupo social, inserindo-o na cena social
através da formação de grupos de amigos, de nova família, inserção no trabalho, em grupos
religiosos... Estão aqui os temas básicos da adolescência.(DEBIEUX, 2002, p. 228)
A identificação é considerada a mais remota expressão de um laço
emocional com outra pessoa, desempenhando
“um papel na história primitiva do complexo de Édipo. Um menino mostrará interesse
especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele e tomar seu lugar em tudo.
Podemos simplesmente dizer que toma o pai como seu ideal” (FREUD, 1921, p.115)
A identificação é um processo interminável de atos identificatórios, pelos
quais ocorre a busca da própria imagem, e onde também é feita a distinção
entre os objetos de satisfação do desejo, de forma a dirigir a eles as
expectativas de gozo.
Assim, o adolescente está permeado de processos identificatórios,
produzindo e sofrendo a ação do meio em que está inserido, em busca de um
espaço social.
4. GANGUES E A BUSCA POR PERTENCIMENTO
A palavra gangue é derivada da palavra inglesa “gang” que caracteriza
um grupo de indivíduos que compartilham uma identidade comum. Atualmente
encontra-se associada à idéia de envolvimento com atividades consideradas
ilegais, motivo de orgulho, de identidade ou forma de intimidação, aparecendo
geralmente num contexto pejorativo. (FERREIRA, 1985, p.673)
A gangue pode ser percebida como um espaço alternativo, uma esfera
de relações nas quais seus indivíduos são considerados e protegidos. No
Brasil, pesquisas feitas por Miriam Abramovay e outros, reproduzidas no livro
Gangues, Galeras, Chegados e Rappers (2005) traz um perfil sobre as
gangues da periferia do Distrito Federal que são identificadas como grupos
estruturados que desenvolvem desde atividades lúdicas até atos de deliquência
e cujos membros mantêm entre si relações de solidariedade à base de uma
identidade compartilhada. Essa identidade grupal tanto pode se manifestar de
forma criativa (rappers), como na prática de atos de deliquência. Como
Abramovay constatou as gangues não representam aglomerados soltos, mas
são organizados, com lideranças que fazem valer normas internas.
O ingresso e permanência dos membros envolvem processos rígidos,
com códigos de valores, às vezes associados a rituais:
As gangues se caracterizam pelo forte elo que une seus integrantes, que se protegem,
ajudam-se e brigam uns pelos outros: “É tipo uma família.” Vale ressaltar o significado da
utilização de uma categoria típica do domínio privado - a família - na medida em que seria este
o espaço de segurança e confiabilidade em um ambiente social imprevisível e hostil.
(ABRAMOVAY, 2004, p.109)
A pesquisa, através de dados qualitativos e quantitativos, faz a
constatação de que a participação dos jovens nas gangues visa satisfazer
necessidades de respeito e segurança, além da busca de espaço de
sociabilidade e solidariedade. A busca de respostas para as necessidades
psicológicas, portanto pode levar os adolescentes a aderirem à gangue. Ela
oferece uma solução em curto prazo para seus problemas com o sentimento de
pertencimento, identidade, auto estima e proteção.
A busca dos adolescentes por essa agregação, como afirma Calligaris
(2000) é um processo considerado de afirmação. Juntar-se a um grupo,
qualquer que seja, é a forma encontrada pelos jovens para crescer e começar
a deixar a família. No processo de agregação do adolescente, as gangues são
formadas não apenas para reunir, associar, mas para confrontar, como afirma
Lehman (2009).
Recusado como par pela comunidade dos adultos, indignado pela moratória que lhe é imposta
e acuado pela indefinição dos requisitos para terminá-la (a famosa e enigmática maturidade), o
adolescente se afasta dos adultos e cria, inventa e integra microssociedades que vão desde o
grupo de amigos até a gangue. Nesses grupos, ele procura a ausência de moratória...
(CALLIGARIS, 2000)
O adolescente ao constituir um novo pacto cria uma insubordinação ao
adulto e assim, obtém reconhecimento sem aceitar o pacto social que a família
representa.
A gangue compreende um conjunto de características valorizadas pelo
grupo e necessárias para expressar um estilo que agrade a si próprio e ao
outro e que também façam confrontação. Para Debieux (2002), a psicanálise
deve compreender essa inserção do adolescente em grupos sociais, atuando
sobre a subjetividade individual e abrangendo condições sociais e culturais.
Reatualiza-se, nessa passagem, a cena infantil agora não mais tematizada
pelo desejo da mãe ou pela lei do pai, mas pela organização social. A
organização social passa a representar uma nova versão do pai, muito
poderosa, e que ainda apresenta discurso, com seus ditos e não-ditos. Essa
operação é que propiciará o pertencimento e o reconhecimento do adolescente
como membro do grupo social.
Para Debieux (2002), “dois pontos se articulam: a constituição subjetiva
engendrada no complexo de Édipo e as conseqüências freudianas sobre as
transformações no sujeito, quando se enlaça nos grupos sociais.”
O indivíduo está ligado pela identificação e pela construção de seu ideal
de eu a mentes grupais como de classe, credo, raça.
A identificação força o ego a se moldar aos daquele que é tido como
modelo. Num grupo, o laço existente entre os membros é formado pela
identificação numa qualidade emocional comum que está na natureza do laço
com o líder.
Como afirma Debieux (2002), as gangues representam um envolvimento
com práticas que são diferentes das normas que regem a sociedade. Segundo
a autora, nos centros urbanos há um enfraquecimento do vínculo parental, com
não ocorrência dos referenciais simbólicos. Segundo Araújo (2001), com
sentimentos de desamparo e com atitudes de contestação as regras
institucionais, o jovem acaba por dirigir seu ódio contra o processo civilizatório
retomando a metáfora paterna a qual passa a ser representada pela lei.
Neste sentido, Freud (1929), em Mal Estar da Civilização salienta que a
maldade, sendo tomada em seu sentido transgressor, é a vingança do homem
contra a sociedade, pelas restrições que ela lhe impõe. As mais desagradáveis
características dos homens são geradas por esse ajustamento precário a uma
civilização complicada. É o resultado do conflito entre pulsão e cultura.
Ao pertencer a uma gangue, ao mesmo tempo em que vive a condição
de
excluído
social
faz
com
que
surjam
sentimentos
díspares:
exclusão/pertencimento, embate/cumprimento de pactos sociais. Já que as
instituições que regulam e instruem o comportamento dentro das normas
sociais não conseguem cumprir seu papel de socialização, são criadas novas
regras e interditos sociais.
Na busca de significações, os jovens ocupam
espaços em que possam existir fugindo de uma inexistência social. (Calligaris,
2000)
A procura de novas condições sociais que dêem reconhecimento faz
com que a adolescência passe de faixa etária a grupo social, como afirma
Calligaris (2000). A busca do adolescente por agregar-se a grupos sociais em
que o adulto não esteja incluído, em que possa ser reconhecido como igual e
com participantes com os quais possa compartilhar afinidades, faz com que se
integre a espaços sociais como das gangues. A obtenção do reconhecimento
que não ocorre dentro do pacto social, faz com que o adolescente se associe
para transgredir obtendo um pacto com a gangue. Como afirma Rassial (1999),
esse pacto pode funcionar como denúncia sobre a ausência de fundamento
das regras que regem a sociedade, do ponto de vista do adolescente. A
gangue se mostra como possibilidade do adolescente questionar os valores do
pacto social do qual se vê excluído.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vivência nas gangues garante pertencimento, reconhecimento no
coletivo do grupo e registro no cenário social. Representa a possibilidade de
afrontar e romper e, ao mesmo tempo, encontrar um lugar para se inserir
socialmente.
O reconhecimento dos paradoxos e contradições da constituição
subjetiva da adolescência na atualidade permite uma abordagem da inserção
dos adolescentes nas gangues que ultrapassa tanto o viés normativo – do
adolescente que precisa se ajustar – quanto o idealizado – o da adolescência
como “melhor fase da vida”.
Freud via a articulação entre teoria e clínica como necessária para o
desenvolvimento dos fundamentos da psicanálise e evitava a redução
epistemológica em relação a outras ciências. A clínica da psicanálise se
enriquece ao refletir sobre a formação dos vínculos fundamentados nos
processos identificatórios. A abertura para as especificidades da constituição
psíquica do adolescente é coerente com a proposta freudiana de uma
psicanálise sempre reinventada, com sua construção teórica voltada aos
desafios que a clínica impõe.
Assim, espera-se que esse trabalho tenha contribuído para o campo de
discussão sobre as possibilidades de articulação da psicanálise sobre a
adolescência e sua relação com o laço social, como ponto de partida para
reflexão sobre o trabalho psicanalítico com adolescentes na atualidade.
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