Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación Integralidade na saúde da família SENTIDOS DA INTEGRALIDADE DO CUIDADO NA SAÚDE DA FAMÍLIA MEANINGS OF COMPREHENSIVENESS IN FAMILY HEALTH CARE SENTIDOS DE LA INTEGRALIDAD DEL CUIDADO EN LA SALUD DE LA FAMILIA Vilara Maria Mesquita Mendes PiresI Vanda Palmarella RodriguesII Maria Angela Alves do NascimentoIII RESUMO: Pesquisa de abordagem dialética, visando compreender os sentidos da integralidade do cuidado em saúde. Foram aplicados os métodos de observação sistemática e hermenêutico-dialético e a técnica de análise documental. Para a coleta de dados, em 2006, foi utilizada entrevista semiestruturada. Os sujeitos do estudo foram 20 trabalhadores das equipes de saúde da família (ESF) e sete usuários das unidades de saúde da família pesquisadas do município de Jequié/BA. Os resultados mostraram que os sentidos da integralidade, a partir dos cuidados das ESF, estão embasados nos dispositivos das tecnologias leves; entretanto, observou-se, em certos momentos, contradição entre teoria e prática, privilegiando o superado modelo de saúde biomédico. Todavia, para a concretização da integralidade do cuidado, as políticas públicas e de saúde devem articular-se à política de formação de profissionais de saúde, visando à resolubilidade dos problemas. Palavras-Chave: Programa saúde da família; atenção básica à saúde; serviços de saúde; integralidade em saúde. ABSTRACT: This dialectical study sought to understand the meanings of comprehensiveness in health care. The methods applied were systematic observation and hermeneutics-dialectics and document analysis. Data were collected in 2006 by semi-structured interview. The study subjects were 20 Family Health Team workers and seven users of family health units in the municipality of Jequié, Bahia State. The results showed that the meanings of comprehensiveness deriving from ESF care are grounded in soft technology devices, although, at times a contradiction was observed between theory and practice, favoring the outdated biomedical model of health care. However, in order to achieve comprehensive care, health policies must engage with health care capacity building, with a view to problem solving. Keywords: Family health program; primary health care; health service; health care. RESUMEN: Investigación de abordaje dialéctico, buscando comprender los significados de la integralidad del cuidado en salud. Fueron aplicados los métodos de observación sistemática y hemenéutico-dialéctica y la técnica de análisis documental. Para la recolección de datos, en 2006, se utilizó entrevista semiestructurada. Los sujetos del estudio fueron 20 trabajadores de los equipos de salud de la familia (ESF) y siete usuarios de las unidades de salud de la familia encuestados en el municipio de Jequié/BA, Brasil. Los resultados mostraron que los significados de la integralidad del cuidado de los ESF se basan en los dispositivos de las tecnologías blandas; entre tanto, se observó a veces una contradicción entre teoría y práctica, privilegiando el superado modelo de salud biomédico. Sin embargo, para el logro de la integralidad del cuidado, las políticas públicas y de salud deben articularse a la política de formación de profesionales de salud, mirando a la resolución de los problemas. Palabras Clave: Programa salud de la família; atención primaria de salud; servicios de salud; atendimiento em salud. INTRODUÇÃO A integralidade do cuidado à saúde neste estudo é entendida como um princípio do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem no campo das práticas um espaço privilegiado para a materialização da saúde como um direito e como um serviço. Assim, a integralidade como eixo norteador de uma política social deverá ser construída por permanentes interações democráticas dos sujeitos, pautadas por valores emancipatórios fundados na garantia da autonomia, no exercício da solidariedade e no reconhecimento da liberdade de escolha do cuidado e da saúde que se deseja obter1. Nesse contexto, a integralidade da prática de saúde, legitimada pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 198, inciso II, garante o atendimento integral com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais2. Entretanto, tal compreensão deverá contemplar as definições de princípios que possibilitem transformações nas práticas de saúde, para desenvolverem não apenas uma nova dinâmica nos serviços de saúde, mas também estabelecerem uma relação de vínculo, aco- I Professora Assistente do Departamento de Saúde do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Campus de Jequié. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Saúde e Grupos Populacionais. Jequié, Bahia, Brasil. E-mail: [email protected]. II Professora Assistente do Departamento de Saúde do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Campus de Jequié. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa Políticas, Planejamento e Gestão em Saúde. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Saúde e Grupos Populacionais. Jequié, Bahia, Brasil. E-mail: [email protected]. III Professora Titular do Departamento de Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, Bahia, Brasil. E-mail:[email protected]. p.622 • Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010 out/dez; 18(4):622-7. Recebido em: 09.07.2010 – Aprovado em: 11.10.2010 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación lhimento e respeito à população, tornando uma prática solidária. Viver em sociedade, em relação com o outro, é uma característica do humano. Faz parte da natureza humana o convívio social, a troca de informações, de emoções, no sentido de constituir a sua própria singularidade3. Esta abordagem nos faz pensar como vem se configurando a integralidade nas equipes de saúde da família (ESF), com seus reflexos na condição de saúde da população. Diante do exposto, o estudo tem como objetivo compreender os sentidos da integralidade do cuidado em saúde no Programa Saúde da Família (PSF). REFERENCIAL TEÓRICO Apesar dos esforços em discutir o tema integralidade, continua um princípio normativo, um chamamento ético e um slogan político, as discussões em transformá-lo em um conceito têm sido frustradas. Problemas concretos, decorrentes da fragmentação do cuidado, conhecido dos que enfrentam os serviços, as filas, corredores e consultórios do SUS, demandam uma abordagem urgente do tema4. A integralidade aparece como um caminho a ser percorrido infinitamente, uma forma inovadora, complexa e polissêmica, pois se traduz como uma ideia com vários sentidos e representações que, de certo modo, se associam às necessidades sentidas e verbalizadas pelos usuários/famílias e vincula-se ao compromisso dos trabalhadores de saúde na condução de suas práticas, visando à resolubilidade das questões apresentadas pela clientela, mediante o cuidado integral. Por conseguinte, entende-se a integralidade como princípio orientador das práticas de saúde, o que implica uma recusa ao reducionismo conceitual, valorizando a subjetividade humana, a abertura para o diálogo e a aplicação das mais variadas formas de agir em saúde, com ações articuladas para dar conta das demandas do indivíduo/família/grupos populacionais5. Por sua vez, as práticas de saúde podem ser desenvolvidas por meio de tecnologias classificadas como leve, leve/dura e dura. A tecnologia leve, também conhecida como tecnologia das relações envolve a produção de vínculo, autonomização, acolhimento e gestão como forma de gerenciar o processo de trabalho. Já a tecnologia leve/dura é aquela que envolve saberes estruturados, num contexto de especialidades clínicas. E, a tecnologia dura é caracterizada pelo uso de equipamentos tecnológicos, normas e estruturas organizacionais6. O debate desenvolvido sobre a integralidade parte do pressuposto de que as tecnologias leves se realizam em processo e comandam os modos de incorporação das outras tecnologias, o que leva a reRecebido em: 09.07.2010 – Aprovado em: 11.10.2010 Pires VMMM, Rodrigues VP, Nascimento MAA pensar o processo de produção da subjetividade no interior das práticas de saúde ao explorar as falhas na busca de novas possibilidades de intervenções, devido seu caráter relacional, que as situam como uma nova forma de agir entre trabalhadores de saúde e usuários, individuais e coletivos, com o propósito da produção do cuidado. Outrossim, faz-se necessário a desconstrução do modelo de atenção à saúde hegemônico-biomédico, caracterizado na queixa-conduta, ações biologizantes e curativas, descontextualizando os sujeitos assistidos do seu ambiente social. O desafio é estabelecer a (re)construção de um modelo de atenção à saúde com práticas inovadoras, desenvolvidas a partir da criatividade dos sujeitos e das contingências locais. Todavia, defende-se que essas práticas não devem ser balizadas no saber/poder que toma o indivíduo, a família e demais grupos da comunidade como um objeto despido de seus valores, de suas relações sociais, de sua singularidade e de seus desejos e saberes, mas colocando-os como sujeitos do ato de cuidar. Para tanto, é importante que os trabalhadores de saúde compreendam os sentidos da prática do cuidar para que possam, concretamente, atuar de forma que se aproximem dos anseios, dos interesses e das necessidades sentidas e verbalizadas pelo sujeito individual e coletivo da comunidade em que atuam. Todavia, o cuidado, ao ser traduzido, dependerá da dimensão da vida humana, dimensão que frequentemente se dá no plano da intersubjetividade5,7,8. E, neste sentido, há várias formas de cuidar, que poderão viabilizar a qualidade da assistência, permeada por um cuidado integral, de modo que possa ter acesso a toda tecnologia de saúde para melhorar e prolongar a vida9. METODOLOGIA Foram aplicados os métodos dialético e de observação sistemática e a técnica de análise documental, esta última direcionada para o exame do plano municipal de saúde de Jequié 2002-200510 e do relatório de gestão do município de Jequié-200511. Este estudo, de abordagem dialética, foi realizado no município de Jequié/BA, nas USF, com dois grupos de sujeitos. O grupo 1, extraído das 18 equipes profissionais, foi representado por 20 trabalhadores de saúde, selecionados a partir dos critérios: equipes completas, unidades das zonas urbana e rural, com mais de seis meses de funcionamento. O grupo 2 reuniu sete usuários das unidades pesquisadas. Os dados foram coletados em 2006, por meio de entrevista semiestruturada. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa, da Universidade Estadual de Feira de Santana, tendo sido aprovado em 09 de março de 2006, sob Protocolo no 109/2005. Vale registrar que Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010 out/dez; 18(4):622-7. • p.623 Integralidade na saúde da família os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Aplicou-se a hermenêutica-dialética como método de análise de dados, sistematizados em três etapas – organização dos dados, classificação e análise final12. A primeira etapa consistiu na ordenação dos dados, ou seja, no primeiro contato com o material empírico coletado, envolvendo a transcrição das entrevistas gravadas. Em seguida, foi realizada uma leitura geral do material transcrito, organizando os diferentes dados contemplados nas entrevistas, observação e nos documentos. Na segunda etapa, foi realizada a classificação dos dados, com leitura flutuante dos dados empíricos, articulando objetivos e pressupostos teóricos na identificação dos núcleos de sentido. A seguir, foi elaborada uma síntese horizontal, delimitando-se os aspectos divergentes, convergentes, diferentes e complementares dos dados empíricos. A síntese vertical foi realizada a partir da visualização das ideias centrais sobre a temática estudada, da qual emergiram as categorias empíricas. Na terceira etapa, procedeu-se à análise final dos dados, que consistiu na síntese evidenciada em duas categorias empíricas. A categoria 1 foi denominada os sentidos da integralidade: na prática, a teoria é outra, e a categoria 2, integralidade: o indivíduo como um todo. Os depoimentos dos sujeitos são identificados no texto por letra seguida de número, conforme a ordem crescente das entrevistas realizadas, ou seja, entrevistado (E) no 1 leia-se, E1, e assim sucessivamente, como também os grupos (G) são identificados por um número G1 e G2. RESULTADOS E DISCUSSÃO Os sentidos da integralidade: na prática, a teoria é outra A partir do nosso entendimento de que a integralidade do cuidado poderá ocorrer no momento de encontro entre trabalhador de saúde e usuário/ família, pois a cada encontro criam-se dispositivos para intervir neste contexto, é essencial que os trabalhadores da ESF interajam com os sujeitos-usuários a partir de práticas intersubjetivas, aquelas que envolvem a tecnologia leve. Além disso, tais práticas devem adequar-se à realidade socioeconômica e cultural dos usuários/famílias onde as ESF atuam e o cuidado à saúde não deve olhar apenas para o órgão adoecido, ou seja, um sistema biológico com alguma disfunção, desconsiderando uma prática de relações. O cuidado de saúde deve voltar-se, para práticas nas quais se estabeleçam uma relação intercessora entre trabalhador de saúde e usuários/famílias6,8. Por esse mister, o trabalhador de saúde, a partir p.624 • Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010 out/dez; 18(4):622-7. Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación dessa relação e por meio dos fatores de risco, poderá reconhecer sofrimentos que ainda estão por vir, de modo a discutir com os clientes seus modos de vida, para que possam compreender suas necessidades referentes à saúde, cujas ações e serviços são oferecidos pelas USF. O sentido da integralidade também deve permear a forma como as atividades de saúde se organizam, tendo em vista a execução de práticas fragmentadas. Daí, o enfrentamento dos problemas sociais e de saúde implica a reflexão do contexto histórico, político e social e na superação do modelo ainda hegemônico de se fazer saúde13. Nessa perspectiva, cada vez que a ESF, a partir da compreensão das necessidades de saúde da população, organiza seu trabalho e define ações prioritárias, corre o risco de romper com o sentido da integralidade por restringir suas ações ao instituído, não respondendo às necessidades que lhes escaparam no momento da estruturação do serviço5. Concretamente, para o alcance do cuidado integral, é preciso que os serviços incorporem ideias de uma atenção ampliada, considerando o usuário com protagonista deste processo, e o trabalhador de saúde sempre aberto para assimilar as necessidades que venham a surgir, reforçado neste depoimento. Integralidade é ter um olhar assim mais abrangente da situação de saúde daquela pessoa, ele enquanto inserido na comunidade, no meio social, não apenas ver a doença da pessoa, mais está atento para as necessidades que surgem [...] as que escapam da nossa organização (E1G1). O depoimento anterior mostra a importância da atenção profissional para as necessidades previstas e as imprevisíveis, que não fazem parte da organização dos serviços e do planejamento das ações de saúde. O olhar abrangente, que envolve os serviços de saúde assim como a comunidade, deve vislumbrar uma responsabilidade e compromisso com o usuário/ família em todo contexto no qual esteja inserido. Por outro lado, constatou-se contradições durante a pesquisa, quando o trabalhador de saúde prestava os cuidados aos usuários, detendo-se apenas nas suas queixas para traçar as condutas médicas, ou seja, conforme o superado modelo biomédico. Ressalta-se que o compromisso desse profissional deve estar voltado para a escuta das necessidades de saúde dos usuários da USF, pois eles vêm sempre em busca de atendimento em saúde e o profissional deve ter sensibilidade, preocupar-se em compreender e dar resolubilidade às necessidades identificadas14. O sentido da integralidade voltado para a saúde do usuário/família é explicitado no relatório de gestão do município de Jequié11 como um dos princípios do SUS, a partir de práticas desenvolvidas de acordo com as necessidades de saúde da comunidade. O referido documento traz uma abordagem que se coaduna Recebido em: 09.07.2010 – Aprovado em: 11.10.2010 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación com a importância de um cuidado abrangente, isto é, integral. Porém, é essencial que as ESF estejam atentas para resolverem as demandas de cuidado e serviços de acordo com as carências do cidadão. Entretanto, as demandas por saúde, de certa forma, podem se apresentar resolutivas, pois a intenção da integralidade, nesse momento, além de estar voltada para a queixa, deverá corresponder de forma positiva e imediata às expectativas do usuário/família, conforme a explicitação dos seguintes depoimentos: [...] acho que integralidade envolve tudo, educação em saúde, assistência na unidade, encaminhar o paciente se você não consegue resolver o problema na unidade [...] mesmo hoje não sendo o dia de tal atendimento, mas se o paciente chega apresentando essa necessidade, a gente procura atender ou na unidade ou encaminhando quando necessário (E17G1). [...] antes o atendimento nos postos de saúde era meio solto, a gente não sabia a quem procurar, hoje é diferente, as equipes aqui já conhecem todo mundo, qual a necessidade que tem [...] outro dia mesmo trouxe minha mãe para fazer um curativo na perna, quando viu estava tudo inflamado, a enfermeira atendeu e chamou o médico que atendeu minha mãe limpou tudo, passou remédio para colocar na ferida, para febre e dor, assim com mais de uma semana estava tudo limpo, sarado [...] é o que eu digo se fosse antes ficava com essa perna inflamada até apodrecer, só fazia curativo uma vez e nem perguntava o que estava sentindo (E26G2). Tais depoimentos depoimentosmostram mostram preocupação preocupação e respone ressabilidade em dar ponsabilidade emresolubilidade dar resolubilidade às necessidades às necessidades sentisentidas das pelos pelos usuários/família. usuários/família. A intenção A intenção é sempreé atender sempre atender ao usuário aoem usuário seus problemas em seus problemas de saúde,detendo saúde, emtendo vista em vista um compromisso um compromisso embasadoembasado em uma relação em uma permeada relação permeada por atitudes por atitudes acolhedoras acolhedoras a partir a partir de de vínculos vínculos preestabelecidos. É preciso que as políticas públipreestabelecidos. É preciso que as políticas públicas se cas se fundamentem fundamentem em princípios em princípios que contemplem que contemplem as reais as reais necessidades necessidades dos usuários, dos usuários, considerando considerando que não basta que não bastao garantir garantir acesso e oassegurar acesso e oassegurar atendimento o atendimento prioritário prioritário para os casos para mais os críticos, casos mais mascríticos, assegurar mas a singularidaassegurar a singularidade de e o direito de e ocada direito cidadão, de cada independente cidadão, independendo seu grau 15 te do seue/ou graucondição de risco e/ou social15. de risco socialcondição . No que diz respeito à preocupação profissional com as necessidades de saúde do usuário/família, o Plano Municipal de Saúde de Jequié/BA (2002-2005)10 também mostra esse problema em relação à comunidade, por entender que é a partir dessas carências que as equipes de saúde da família deverão estabelecer estratégias para intervir no cuidado à saúde. Convém ressaltar que os trabalhadores de saúde devem lançar mão de todas as tecnologias disponíveis, com ênfase nas tecnologias das relações para minimizar o sofrimento dos usuários/famílias sob sua responsabilidade. Todavia, é imperativo que o cuidado seja focado no sujeito, individual ou coletivo, abarcando a subjetividade e o modo de viver singular, a partir de pro- Recebido em: 09.07.2010 – Aprovado em: 11.10.2010 Pires VMMM, Rodrigues VP, Nascimento MAA cessos desencadeadores de cuidados integrais concretizando-se como princípio do SUS16. Tais cuidados poderão ser construídos ancorando-se nos vários saberes estruturados, os quais devem permitir que os sentidos da integralidade revelem a necessidade de (re) estruturar-se a partir da construção de relações que se apresentam no encontro do trabalhador de saúde e usuário. A inter-relação entre usuários e trabalhadores de saúde reforça esse encontro como um ato de responsabilidade dos trabalhadores, conforme depoimentos dos usuários: O contato deles [ESF] com a gente é muito bom, tem uma responsabilidade com a comunidade [...] eu consigo um bom atendimento [...] (E22G2). É uma responsabilidade muito grande para quem trabalha num serviço desses [...] você vê, eles aqui procuram sempre se aproximar, conversar; durante o atendimento ouve o que a gente fala, eu percebo que eles se preocupam [...] (E23G2). A inter-relação destes sujeitos dar-se-á a partir de um encontro mais próximo e efetivo, envolvido pela responsabilização do trabalhador de saúde. É nesse momento de intervenção que poderá surgir a necessidade de se manter tal relação, aproveitandose de um espaço intercessor, onde se opera produção de ações de saúde9. A valorização, o interesse demonstrado no ato do cuidado em ouvir as inquietações desse usuário de modo acolhedor já começa, naquele momento, a firmar o vínculo. Da mesma maneira, os usuários podem produzir sentidos por meio dos quais possibilitem se posicionar tanto nos encontros com o trabalhador de saúde quanto no seu dia a dia. Embora determinados depoimentos vislumbrassem certa preocupação do trabalhador de saúde na perspectiva do entendimento dos usuários sobre a forma acolhedora e responsável desse trabalhador, durante o período da pesquisa, foi presenciado, inúmeras vezes, um cuidado prestado inadequado às necessidades dos usuários, caracterizado pelo mecanicismo, sem dar tempo para eles expressarem seus anseios, voltado para a medicalização. Quanto às queixas, quase nunca eram registradas por escrito, embora, na hora do atendimento, o usuário tenha expressado suas necessidades em busca de respostas. Assim, a humanização do cuidado, que envolve respeito e compromisso, não ocorre realmente, pois não são ouvidas as necessidades demandadas pelos usuários e nem valorizados seus desejos e suas crenças, o que de certo modo poderá interromper a relação entre os envolvidos no processo. Integralidade: o indivíduo como um todo A integralidade apresenta-se num emaranhado de diversos sentidos envolvidos com as necessidades do ser humano, expressas com o amparo das Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010 out/dez; 18(4):622-7. • p.625 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación Integralidade na saúde da família tecnologias disponíveis, a partir de uma atenção à saúde preventiva e assistencial. As necessidades vivenciadas pelo usuário/família devem levar os serviços de saúde a gerenciarem a diversidade de problemas porque nem sempre são inerentes dos serviços de saúde, levando inclusive a uma interação maior entre os usuários para entender o seu problema e poder intervir, reforçado no depoimento a seguir: Eu vejo a integralidade como um carro chefe do serviço, eu acho que no PSF a gente tem que ver o paciente como um todo, desde o momento que ele entra aqui na unidade [...] procurar saber de seus problemas e poder intervir a qualquer momento, esse atendimento voltado para integralidade deu uma visão maior, uma interação maior com esse paciente (E5G1). Fica implícito que a integralidade deve ser construída pelos trabalhadores de saúde a partir de uma visão de totalidade do usuário/família, que por sua vez apresenta uma série de anseios, costumes, dúvidas, de maneira a promover uma aproximação do seu contexto de vida. Considerando a integralidade como princípio norteador no desenvolvimento do processo de trabalho das ESF pesquisadas, o usuário deverá ser visto em seu contexto social, e não restrito aos momentos vividos no serviço de saúde, proporcionando maior interação com ele, promovendo a escuta ampliada de suas carências, em busca da coparticipação e sua autonomia na resolubilidade dessas questões. Acredita-se que essa autonomia do cliente implicará a possibilidade da reconstrução dos sentidos de sua vida, e, por conseguinte, tal ressignificação poderá influenciar seu modo de viver, incluindo aí a luta pela satisfação de suas necessidades de saúde, da forma mais ampla possível14. Não obstante, o desenvolvimento do processo de trabalho das ESF na perspectiva de uma atenção respeitosa, acolhedora e responsável ao usuário, tem dificultado a concretude da integralidade no Programa Saúde da Família, apesar de sua conquista gradativa. [...] acho que a integralidade aqui na nossa realidade vem sendo conquistada em passos lentos, embora os pacientes já notem a diferença no atendimento, a nossa relação com ele, mas fica difícil aprofundar mais e poder dar as respostas que os pacientes precisam, porque os limites são maiores [...] a Secretaria de Saúde, Prefeitura Municipal, entre outros, estão diretamente ligados a gente, que trabalha subordinado a esses setores, que não conseguem acompanhar essa mudança, essa necessidade de mudança, talvez por desconhecimento, não sei qual o processo de formação [...] alguns ainda têm aquela visão vertical do paciente, ainda para o lado da doença [...] então a gente vive situações como essas, que fica até difícil atender esse paciente na sua totalidade, em suas necessidades (E15G1). Nesse último depoimento, o entrevistado explicita a diferença notada no atendimento, especialmente a relação do profissional com ele, o usuário, na perspectiva de amenizar seu sofrimento e tentar minimizar os problemas de saúde encontrados; entretanto, aponta p.626 • Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010 out/dez; 18(4):622-7. dificuldades. Entre elas, a Secretaria Municipal de Saúde e a Prefeitura Municipal não conseguem acompanhar as mudanças exigidas para uma prática integral, o que torna um obstáculo no processo de trabalho das equipes e na própria participação do usuário em situarse como coparticipante desta mudança. Ademais, é preciso não só uma transformação na formação dos trabalhadores do PSF, mas nas políticas de saúde integradas à política de formação de pessoal para o SUS, em que o ensino e trabalho estejam voltados para a formação integradora, potencializando, assim, as competências para a integralidade do cuidado, focado nas necessidades de saúde do usuário/família17. Portanto, é possível pensar que, talvez, os formuladores de políticas hierarquicamente posicionados no sistema vejam o cuidado à saúde ainda numa visão biologizante, ao passo que os trabalhadores de saúde das unidades pesquisadas veem o cuidado à saúde voltado para as práticas que estimulem uma transformação nos modos de vida das pessoas, com a melhoria da condição de existência do ser humano, numa perspectiva do cuidado integral, vislumbrando um novo pensar e fazer saúde. CONCLUSÃO Os trabalhadores de saúde e os usuários/famílias das USF pesquisadas, em relação aos sentidos da integralidade do cuidado no desenvolvimento do processo de trabalho das ESF, mostraram uma realidade contraditória. Assim, dos depoimentos analisados, emergiram duas categorias: os sentidos da integralidade: na prática, a teoria é outra e integralidade: o indivíduo como um todo. Contudo, percebe-se que os trabalhadores de saúde atribuem sentidos à integralidade, diante da diversidade de pensar e agir em saúde, construídos e desenvolvidos a partir das necessidades de saúde dos usuários; tais significados são reforçados pelos clientes quando se reportam ao atendimento das suas demandas, com ênfase nas tecnologias leves. Ressalta-se o sentido atribuído à integralidade pelas ESF numa visão ampliada do ser humano, ao considerar a cultura, o ambiente, os anseios, os costumes, os valores e as crenças, inerentes a cada grupo da comunidade cuidado, respeitando, assim, o seu contexto de vida, as necessidades sentidas dos sujeitos individuais/coletivo e suas relações com outros determinantes. A atenção à saúde não se resume às especificidades das doenças, mas permeia a realidade em que vive o usuário/família, como ele próprio vê suas carências, descobrindo sua autonomia para, junto com o trabalhador de saúde, a partir dos vários saberes, poder intervir no seu modo de viver. No entanto, a integralidade, como conceito constitucional, não dá conta dos vários sentidos e significados a ela atribuídos; então se resolve associá-lo às Recebido em: 09.07.2010 – Aprovado em: 11.10.2010 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación práticas de relações entre trabalhador de saúde e usuários com vistas ao cuidado acolhedor e humanizado. Para a concretização da integralidade do cuidado, é imprescindível a articulação das políticas públicas e de saúde à política de formação de profissionais dessa área, visando à resolubilidade dos problemas. REFERÊNCIAS 1.Pinheiro R. Atenção à saúde: universalização / focalização, a enfermagem e a atenção básica ambulatorial – um olhar a partir das práticas da integralidade em saúde. In: Anais do 11oo Congresso Panamericano de Profisionales de Enfermeria; 11 2003 nov 10-15; Rio de Janeiro; Brasil. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Enfermagem; 2003. p. 50-6. 2.Senado Federal(Br). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília(DF): Centro Gráfico; 1988. 3.Abrahão AL, Freitas CSF. Modos de cuidar em saúde pública: o trabalho grupal na rede básica de saúde. Rev enferm UERJ. 2009; 17:436-41. 4.Tesser CD, Luz MT. Racionalidades médicas e integralidade. Ciênc saúde coletiva. 2008; 13:195-206. 5.Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS; 2001. p.39-64. 6.Merhy EE. A micropolítica do trabalho vivo em saúde: uma questão institucional e território de tecnologias leves. In: Merhy EE. Saúde a cartografia do trabalho vivo. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2007. 7.Oliveira DC, Silva LL. O que pensam os usuários sobre a saúde: representação social do Sistema Único de Saúde. Recebido em: 09.07.2010 – Aprovado em: 11.10.2010 Pires VMMM, Rodrigues VP, Nascimento MAA Rev enferm UERJ. 2010; 18:14-8. 8.Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciênc saúde coletiva. 2001; 6(1):63-72. 9.Merhy EE, Chakkour M, Stéfano E, Santos CM, Rodrigues RA, Oliveira PCP, et al. Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em saúde: a informação e o dia-a-dia de um serviço, interrogando e gerindo trabalho em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2002. 10.Prefeitura de Jequié(Ba). Secretaria municipal de saúde. Plano municipal de saúde. Jequié(Ba): SMS; 2005. 11.Prefeitura de Jequié(Ba). Secretaria municipal de saúde. Relatório de gestão. Jequié(Ba): SMS; 2005. 12.Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. 13.Silva JG, Gurgel AA, Frota MA, Vieira LJES, Valdés MTM. Promoção da saúde: possibilidade de superação das desigualdades sociais. Rev enferm UERJ. 2008; 16:421-5. 14.Cecílio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidar da saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IMS; 2001. p. 113-126. 15.Erdmann AL, Backes DS, Klock P, Koerich MS, Rodrigues ACRL, Drago LC. Discutindo o significado de cidadania a partir dos direitos dos usuários da saúde. Rev enferm UERJ. 2008; 16:477-81. 16.Schimith MD, Lima MADS. O enfermeiro na equipe de saúde da família: estudo de caso. Rev enferm UERJ. 2009; 17:252-6. 17.Carvalho YM, Ceccim RB. Formação e educação em saúde: aprendizados com a saúde coletiva. In: Campos GWS, organizador. Tratado de saúde coletiva. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006. p. 149-80. Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010 out/dez; 18(4):622-7. • p.627