André Luiz Joanilho
HISTÓRIA, POLÍTICA E SOCIEDADE
2009
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por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.
J62
Joanilho, André Luiz. / História, Política e Sociedade. / André
Luiz Joanilho. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009.
212 p.
ISBN: 978-85-387-0227-6
1. História – Brasil. 2. Brasil – política e governo. 3. História
moderna e contemporânea. 4. Brasil - História política. 5. Sociedade e Estado – Brasil. I. Título.
CDD 981.05
Capa: IESDE Brasil S.A.
Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.
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André Luiz Joanilho
Pós-doutorado pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França)
e pela Universidade Lumière (Lyon, França). Doutor pela Universidade Estadual
Paulista (Unesp), mestre pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), graduado em História pela Unicamp.
Sumário
História e sociedade................................................................. 11
A História e a compreensão dos fenômenos sociais..................................................... 11
História e cotidiano................................................................................................................... 13
Uma viagem no tempo............................................................................................................ 15
Papel da História na sociedade............................................................................................. 17
Práticas dos historiadores....................................................................................................... 18
Estado, sociedade e luta de classes.................................... 25
Mentalidades e sociedade na Baixa Idade Média........................................................... 25
O surgimento do capitalismo................................................................................................ 28
O papel da burguesia na formação dos Estados nacionais......................................... 30
Poder político e poder econômico...................................................................................... 32
Industrialização e movimentos sociais............................................................................... 34
A expansão dos Estados nacionais..................................... 41
Mercantilismo.............................................................................................................................. 41
As grandes navegações............................................................................................................ 43
As viagens do descobrimento............................................................................................... 46
O eu e o outro.............................................................................................................................. 48
A exploração colonial............................................................................................................... 51
Governar na Era Moderna...................................................... 57
Poder e sociedade na Baixa Idade Média.......................................................................... 57
Conselhos aos príncipes.......................................................................................................... 60
A governamentalidade e o nascimento da biopolítica................................................ 63
A micropolítica............................................................................................................................ 65
Poder e disciplina....................................................................................................................... 67
Governo e formas políticas.................................................... 73
Indivíduo e sociedade.............................................................................................................. 73
Democracia e liberalismo........................................................................................................ 76
Nacionalismo e socialismo...................................................................................................... 78
Imperialismo e Estado.............................................................................................................. 81
Totalitarismo................................................................................................................................ 82
O Iluminismo e a era das revoluções.................................. 91
As revoluções científicas dos séculos XVII e XVIII........................................................... 91
A crise da consciência europeia............................................................................................ 94
O Iluminismo................................................................................................................................ 95
A Revolução Francesa............................................................................................................... 97
A Revolução Industrial.............................................................................................................. 99
Movimentos sociais nos séculos XVIII e XIX...................105
Temporalidades sociais..........................................................................................................105
Industrialização e a formação do operariado................................................................108
Disciplina fabril e movimentos sociais.............................................................................111
Organização do operariado..................................................................................................112
Teorias sociais............................................................................................................................113
Formas políticas do século XX............................................121
Nacionalismo.............................................................................................................................121
Socialismo...................................................................................................................................123
Comunismo................................................................................................................................125
Totalitarismo..............................................................................................................................127
Ditadura.......................................................................................................................................129
Sociedade e trabalho no mundo contemporâneo.....137
A vida ativa e a vida contemplativa...................................................................................137
A ascensão da moral do trabalho.......................................................................................139
A sociedade do pleno emprego.........................................................................................141
O fim do proletariado.............................................................................................................142
A ergonomia e a sociedade hedonista.............................................................................144
Globalização, neoliberalismo e o indivíduo...................151
O mundo pós-guerra..............................................................................................................151
Primeiro Mundo, Segundo Mundo e Terceiro Mundo................................................153
Desenvolvimento e subdesenvolvimento......................................................................156
Sociedade global......................................................................................................................158
Tecnologia e dominação.......................................................................................................159
Arte e sociedade I....................................................................167
A cultura no Renascimento..................................................................................................167
Expressões artísticas da nascente burguesia.................................................................170
A arte e o Estado.......................................................................................................................173
A linguagem artística como a linguagem do poder....................................................175
A nobreza e a arte no século XVIII......................................................................................178
Arte e sociedade II...................................................................185
A arte como forma de expressão do indivíduo.............................................................185
A arte no século XIX e o questionamento político.......................................................188
As vanguardas e as revoluções............................................................................................191
A arte contemporânea e a subjetivação..........................................................................192
A distinção social......................................................................................................................195
Gabarito......................................................................................203
Referências.................................................................................209
Apresentação
Não é fácil traduzir em poucas palavras o que é a História e o seu papel nas
sociedades contemporâneas. Há muita coisa a dizer, porém podemos pensá-la
basicamente como um estudo etnográfico de nós mesmos, uma forma de “estranhamento” do que somos. O fato de estarmos imersos no nosso universo cultural
nos leva a crer que tudo o que nos cerca é normal, uma sensação de que “é assim
que tem de ser”. É justamente o questionamento dessa normalidade que a História pode proporcionar.
Nos estudos que iniciamos, o recorte temporal é dos último 600 anos – que,
na disciplina histórica, englobam o que se convencionou chamar como História
moderna e contemporânea. Nela, vamos encontrar as práticas sociais que configuraram as sociedades atuais. Vários temas serão abordados visando justamente
ao nosso estranhamento com o que seria aparentemente familiar e as configurações sociais de cada momento histórico.
Os estudos terão 12 capítulos e cada um está dividido em cinco subitens
para facilitar a compreensão do assunto abordado. Ao final, geralmente, constarão, para ilustrar a matéria, um ou dois textos complementares, que podem ser de
historiadores ou documentos da época tratada.
Terá um conjunto de atividades composto de três questões abertas ou fechadas, com respostas discursivas ou de múltipla escolha.
Ao final de cada estudo haverá referências básicas (livros, filmes ou sítios
eletrônicos) para que se possa pesquisar e aprofundar o assunto.
Desejamos bons estudos e que possam se divertir com esta disciplina que
tem como mote a curiosidade e a descoberta.
História e sociedade
A História e a compreensão
dos fenômenos sociais
A História é uma disciplina interessante porque, ao mesmo tempo, instrui e diverte. A instrução vem pelos conhecimentos que podemos adquirir
sobre a nossa e outras sociedades. A diversão se dá justamente porque ela
instrui: conhecer outros povos ou o passado da nossa sociedade é divertido.
Saber como viviam os homens na Idade Média, em que acreditavam os romanos, como se aqueciam no inverno os parisienses do século XVIII e quais
eram as atividades cotidianas dos imigrantes italianos no início do século
XX no Rio Grande do Sul são alguns exemplos do conhecimento histórico.
Evidentemente, não podemos saber exatamente como eram as coisas,
não é possível ao historiador conhecer tudo, explicar tudo – mas ele pode
explicar justamente o que queremos saber. Benedetto Croce (1866-1952),
um filósofo e historiador famoso, disse que só existe história contemporânea, isto é, todas as questões que fazemos ao passado são questões do
presente, são preocupações nossas. Como o presente muda, as questões
também mudam. Por isso o conhecimento histórico é quase inesgotável,
pois sempre modificamos o que queremos conhecer do passado. Por exemplo, há 50 anos faríamos perguntas a respeito da economia, do trabalho e
das classes sociais aos gregos de dois mil anos atrás. Hoje, perguntamos
sobre o casamento, o amor, a sexualidade deles, e isso não foi um simples
aprofundamento do conhecimento histórico: mudamos a pergunta porque
descobrimos coisas que não existiam. Em verdade, essas coisas sempre estiveram lá, mas não interessavam à sociedade em uma determinada época,
mas em outra, assuntos que eram irrelevantes passaram a ter importância.
É dessa forma que o conhecimento histórico avança – não por simples
aprimoramento, mas por mudanças sociais. Desse modo, podemos dizer
que a História é uma disciplina histórica e que ela tem uma relação direta
com a sociedade no seu tempo presente: se a sociedade muda, a ciência
muda também.
História, Política e Sociedade
Logo, a História é um modo de conhecer a sociedade em que vivemos, isto
é, conhecendo sociedades passadas podemos perceber melhor o que somos.
Quando estudamos, por exemplo, o amor cortês1, acabamos refletindo também
sobre a nossa maneira de cortejar alguém hoje.
Porém, há uma questão fundamental para a compreensão das sociedades
passadas: não levar o que somos para elas, ou seja, não transportar os nossos
anseios e desejos para as outras épocas. Esse tipo de procedimento é muito
comum e se torna um grave erro. Se vamos estudar a família no século XVI, não
devemos esperar que ali se encontre o embrião da família nuclear da segunda
metade do século XX – são formas diferentes de organização familiar. O mesmo
se passa para com todas as questões que possamos fazer. Um grego do século IV
a.C. não via o trabalho, a sexualidade e, enfim, a vida do mesmo modo que nós.
Ele não tinha nenhuma das práticas que temos hoje. Não somos a continuidade
dele. Muito pelo contrário, somos totalmente diferentes.
Na nossa sociedade, a diferença de duas gerações já é grande, e assim podemos imaginar como é grande a distância quando se trata de séculos. Já temos
dificuldade em compreender como nossos avós pensam, quanto mais como se
pensa ou pensava em outras sociedades. Isso ocorre porque modificamos constantemente o nosso presente. A diferença com relação aos avós não é porque
“evoluímos” e, portanto, eles são “atrasados”, e sim porque a realidade que eles
viviam mudou. Isso ocorrerá conosco também.
É difícil de se perceber esse movimento da sociedade porque existe uma
forma de explicar presente no senso comum: é a sensação de que a sociedade
progride. Ela explica a diferença que encontramos entre as práticas de gerações.
Porém, não é bem isso que ocorre (aliás, um dos papéis da História é justamente fugir do lugar-comum). A sociedade se modifica pelas práticas, mas isso não
quer dizer que o que se fazia antes era ruim e agora melhorou. O que se fazia
antes era uma maneira e agora temos outra. Se vamos avaliar se algo era ruim
no passado, devemos “perguntar” às pessoas que viviam naquele momento.
Mesmo porque devemos compreender que as sociedades contemporâneas são
muito dinâmicas e mudanças ocorrem no dia-a-dia, sem querer dizer que hoje
somos melhores do que as pessoas que viveram antes de nós.
1
O amor cortês foi desenvolvido durante a Idade Média, sendo uma forma romantizada de cortejar uma dama, geralmente superior hierarquicamente, por parte de um nobre. Pode-se dizer que foi uma forma de idealização do amor e foi muito difundida em termos literários.
12
História e sociedade
História e cotidiano
Podemos pensar no nosso dia-a-dia para compreender as mudanças históricas. Como agimos? O que nos preocupa? Como vemos as coisas que nos cercam?
Passamos mais de 90% do nosso dia pensando e agindo conforme nossas preocupações, e elas são as mais comezinhas possíveis, as mais corriqueiras. Porém, não
percebemos como elas são importantes e diferentes das outras sociedades. Um
exemplo banal: há não muitos anos, ninguém sequer pensaria em e-mail, porém
hoje ele se tornou importantíssimo para muitas pessoas. Podemos viajar um
pouco além, mas não muito: vamos voltar cerca de cem anos, no início do século
XX. Não era um problema a falta de energia elétrica (quase ninguém dispunha
disso) ou ainda água encanada. Já podemos imaginar como se fazia para iluminar
ou ter água em casa: velas e galões faziam parte do dia-a-dia das pessoas.
Isso mudou completamente. As nossas preocupações são outras. Hoje, o modo
como encaramos as informações é outro. Temos a possibilidade de saber o que
acontece em países longínquos sem sair de casa, mas não nos preocupamos muito
com energia ou água, a não ser quando faltam. Isso não quer dizer que as pessoas
no início do século XX viviam mal – elas apenas tinham outras preocupações. Se
fôssemos viver como eles, acharíamos horrível, mas as pessoas de cem anos atrás
não eram o que somos, e por isso a sua ideia de conforto era bem diferente.
É justamente nessas práticas cotidianas que a história acontece. As pequenas
modificações que surgem no nosso dia-a-dia vão diferenciando o presente do
passado, mas elas são quase imperceptíveis. O fato de vivermos no meio das configurações cotidianas nos dá a impressão de que tudo é assim mesmo. Vejamos
ainda o caso do e-mail. A possibilidade de conversar com pessoas distantes instantaneamente modificou muitas práticas, como a própria linguagem. Ainda não
temos condições de medir qual a profundidade desse acontecimento, mas a partir
da internet há uma nova configuração na linguagem, principalmente dos jovens.
Até pouco tempo atrás, os historiadores não prestavam muita atenção nessas
“banalidades” da vida, buscando acontecimentos que consideravam de maior
envergadura. Muitas vezes, prendiam-se a uma lei proclamada por um presidente, dando-lhe maior importância do que aos atos banais. Mas isso era um
engano, pois uma lei pode influenciar algumas práticas, mas dificilmente atinge
totalmente o dia-a-dia. Uma lei que proíbe biquínis na praia não modifica o comportamento sexual da sociedade, que ocorre na banalidade do cotidiano. Movimentos dos direitos das minorias não surgiram das leis ou da cabeça dos gover-
13
História, Política e Sociedade
nantes, mas das práticas sociais, isto é, das ações, atitudes, formas de pensar e
crenças que são criadas no cotidiano.
A banalidade das práticas
Mais recentemente, alguns historiadores passaram justamente a prestar
atenção à banalidade das práticas, visto que elas dizem muito mais sobre a sociedade do que atos do governo ou a balança de pagamentos. Um decreto governamental instituindo modificações na seriação do Ensino Fundamental não
muda a relação que o professor tem com os alunos. O decreto não institui como
deve se comportar o professor na sala de aula, como também não diz como o
aluno deve ser. Tanto o comportamento de um quanto o do outro são estabelecidos nas relações cotidianas. Os pais desejam que seus filhos se comportem
de determinada maneira e esperam determinadas ações dos professores, que
também têm expectativas com relação ao modo de ser dos seus alunos e ao
que desejam desses alunos, que por sua vez têm as mesmas expectativas em relação aos pais e aos professores. Por isso chamamos essas práticas de sociais. Elas
não são estáticas, pois são feitas de relações que as modificam constantemente.
Daí o dinamismo da sociedade e, portanto, da História.
Todavia, prestar atenção ao cotidiano não é inaugurar uma nova instância no
estudo histórico, mas compreender que as configurações sociais são feitas neste
espaço – o cotidiano. Assim, podemos compreender melhor outras sociedades.
Até há pouco tempo, prestava-se mais atenção às formas de governo do que ao
modo como viviam as pessoas. Sabemos que existem governos, mas não regulamos o nosso dia-a-dia pensando nisso. Lembramos que ele existe em poucos
momentos, quando achamos que o preço de um produto está alto e nada é feito,
ou quando achamos que o transporte público não está adequado, mas a maior
parte dos nossos pensamentos se volta para as questões que estão em torno de
nós: amigos, amores, alimentação, vestir, morar, trabalhar etc.
Tomemos como exemplo a sociedade medieval. Essa era uma sociedade extremamente religiosa. A relação com o sagrado era algo cotidiano e no entanto
as pessoas não prestavam muita atenção ao que acontecia no Vaticano, mesmo
porque estavam em muito mais contato com os padres e os monges pregadores.
As pessoas desenvolviam uma religiosidade própria, distante dos preceitos oficiais, e mesmo padres e monges participavam dessas práticas populares. Assim,
se ficarmos atentos apenas ao que acontecia no papado, perderemos o movimento da história e colocaremos a mudança das configurações sociais no lugar errado.
14
História e sociedade
Não que o papado não tivesse importância, mas decretos, bulas e atos papais só
podiam existir se tivessem correspondência na configuração social do momento.
Enfim, os governos não instituem a sociedade – pelo contrário, a sociedade
institui o governo. E, mais ainda, não existem, por exemplo, governantes e governados de modo invariável na história e sim modos diferentes de exercer o poder.
Se achamos que existe Estado, governo e governados em todas as sociedades é
só por comodidade de linguagem, pois os termos podem ser os mesmos, mas
as práticas não.
Uma viagem no tempo
Para descobrir um pouco sobre essas configurações sociais, vamos comparar a História a um tipo de viagem. Quando estamos em um país estrangeiro,
podemos ter dois tipos de atitude: a primeira é a do turista que corre visitar monumentos, compra alguns badulaques, almoça algum tipo de prato típico e tira
centenas de fotos. Quando retorna, conta aos amigos o que fez. A segunda é a
do viajante que busca conhecer o cotidiano dos habitantes, o que é comum e
incomum, compara, e quando volta conta o que viu e como viu.
Esse é o procedimento do historiador e, de certa maneira, é parecido com o
do antropólogo. Em primeiro lugar, o historiador (assim como o antropólogo)
é um curioso. Quer saber como funciona uma determinada sociedade em uma
determinada época. Como um viajante, ele quer contar o que viu e como é o
lugar que visitou. Quando “viaja” à Grécia Antiga, ele não quer simplesmente encontrar o que os gregos faziam igual a nós, mas como eles eram diferentes. Ele
quer descobrir como pensavam, como viviam e como viam a realidade que os
cercava. E o mesmo se dá em relação a outras épocas e outras sociedades.
No entanto, um erro muito comum entre historiadores é ignorar essa distância, procurando nas outras sociedades o que é igual ao que ocorre entre nós.
Agir assim é fazer como o turista: admirar monumentos, arranjar alguns badulaques e contar o que fez. No fim, não se viu nada daquela sociedade.
Voltemos aos gregos antigos. Muitos historiadores “vão” até a Grécia e descrevem como eles trabalham, a organização do Estado, como são as classes sociais, a escravidão etc. – ou seja, buscam naquela sociedade o que ela tem mais
de parecido com a nossa. Procedendo assim, não se estudam os gregos, mas a
nossa própria sociedade transportada para a Grécia Antiga. A isso se dá o nome
de anacronismo, que quer dizer ignorar o tempo que passou.
15
História, Política e Sociedade
É importante compreender que a nossa sociedade não é a continuidade das
sociedades passadas. Houve modificações tão profundas que podemos até dizer
que não há continuidade, pelo menos do modo como se acreditou até hoje. O
modo como encaramos a ciência, por exemplo, não é nada parecido com a forma
como a entendiam os homens do século XVIII. Pode-se dizer que eles lançaram
as bases da ciência contemporânea, mas não era isso que eles pretendiam, e eles
não sonhavam que aquilo que faziam era o começo de algo. Apenas agiam de
acordo com o seu tempo, ou melhor, de acordo com o que construíram no seu
tempo, assim como nós fazemos agora.
Vejamos a descrição do historiador Robert Darnton a respeito da ciência no
século XVIII:
Era um século de “sistemas” e um século de empirismo e experimentalismo. Os “cientistas”, muitas
vezes padres, buscavam a“ciência”, conhecida frequentemente apenas como filosofia, até a Grande
Cadeia dos Seres, a um ponto tal que passavam da física para a metafísica e o Ser Supremo. O
abbé Pluche, um dos mais famosos espécimes dos primitivos religiosos da ciência, não precisava
entender a lei da gravidade para explicar as marés: ele ia direto à causa teológica – a vontade de
Deus de ajudar os navios dentro e fora dos portos. Os próprios interesses científicos de Newton
incluíam a alquimia, o Apocalipse e as obras de Jacob Boheme (1575-1624, ocultista alemão).
Seus leitores raramente tinham um domínio tão sólido sobre o que hoje seria considerado como
método científico que lhes permitisse eliminar o misticismo das teorias newtonianas sobre a luz
e a gravidade. Muitas vezes encaravam a gravidade como um poder oculto, talvez aparentado à
alma elétrica do universo ou ao fogo vitalista que ardia no coração, segundo Harvey e Descartes,
produzido pela fricção do sangue contra as artérias, segundo teórico mais modernos. Até que
Lavoisier assentasse os fundamentos da química moderna, os cientistas geralmente esperavam
explicar todos os processos vitais com um pequeno número de princípios e, uma vez crendo
terem encontrado a chave para o código da natureza, frequentemente deslizavam com lirismo
para o terreno da ficção. (DARNTON, 1988, p. 20)
Muitos historiadores tomariam essas concepções como erros que a ciência dos
séculos XIX e XX viria corrigir. Eles partem da ideia de que existe um “processo” histórico interligando as sociedades e projetando-as em direção a um futuro, isto é,
acreditam na ideia de que a humanidade progride. Confundem progresso técnico
com progresso social e filosófico. Cabe-nos perceber que as sociedades são diferentes umas das outras, mesmo as sociedades passadas que deram origem à nossa.
Estabelecer uma continuidade entre as sociedades nos leva ao equívoco de
considerá-las iguais, sendo que as diferenças seriam apenas temporais: as mais
antigas estariam “atrasadas” em relação às mais contemporâneas. A esse tipo de
raciocínio podemos chamar de essencialista: as sociedades teriam a mesma essência, somente mudando temporalmente, o que obrigaria a pensar a humanidade em termos hierárquicos – os mais atrasados e os mais adiantados.
A História não deveria ter essa função, apesar de, durante muito tempo, ter sido
utilizada justamente para produzir uma hierarquização do gênero humano, estabelecendo o seu futuro. Hoje não lhe cabe mais tal tarefa. Ela pode ter outro papel.
16
História e sociedade
Papel da História na sociedade
Como já discutimos, a História tem um importante papel na nossa sociedade. No
entanto, durante muito tempo houve quem quisesse instrumentalizá-la, quer dizer,
torná-la um tipo de conhecimento que deveria levar a mudanças na sociedade.
Então, ela própria era uma forma de ideologia2, carregando um discurso de mudanças, quando na realidade ela deve estudar e analisar acontecimentos no tempo.
Apesar de alguns historiadores situarem o seu aparecimento na Grécia Antiga,
a disciplina da História é contemporânea. Na sua forma moderna, ela surge no
final do século XVIII, junto com o nacionalismo e as classes sociais, como instrumento para a análise da sociedade. Durante todo o século XIX e parte do século
XX, ela foi utilizada para explicar o aparecimento das nações e das classes, o que
na realidade era uma forma de legitimar o poder do Estado ou legitimar o poder
das classes. Essa utilização marcou profundamente a disciplina, pois ela demorou a se desvencilhar dessa característica utilitária, que é uma forma de legitimação de quem ocupa o poder ou de quem quer ocupá-lo.
Ainda hoje é comum encontrar esse caráter nos livros de História, principalmente aqueles voltados para o Ensino Fundamental e Médio. Sem saber como situar
a disciplina fora do campo da utilidade, historiadores desejam transformá-la em
instrumento de mudança social. Isso ocorre porque um modelo de senso comum
das Ciências Exatas e Biológicas está presente, o da utilidade científica do conhecimento. Busca-se proximidade com a Física, a Química, a Biologia etc., dando à
História o mesmo caráter. Porém, isso não é possível, pois a nossa disciplina tem
sua especificidade, por mais que se utilize dos mesmos mecanismos de raciocínio
das outras, tais como hipóteses, demonstrações, explicações e material empírico.
Mais importante que aproximar a nossa disciplina de outras ciências e tentar dar
à História uma utilidade, é perceber de que modo ela pode contribuir para conhecer o passado. Vejamos como a temperatura era percebida no Antigo Regime3:
A sensibilidade ao frio, ao quente, navega entre o inato e o adquirido; é um fato profundamente
cultural, como a tolerância ou a intolerância à luz. É também um fenômeno biológico: homens,
mulheres e crianças não têm as mesmas reações a um e a outro. Quando a promiscuidade e
o amontoamento se tornavam um remédio universal, as relações entre os sexos, as atitudes
em relação à infância, a utilização protetora das roupas, o fechamento da cama, e acúmulo de
cobertas ou dos acolchoados se combinavam para definir um microbiotipo protetor, o qual
não se pode mais imaginar com o hábito dos quartos separados. Era a combinação de todos
esses elementos, a ressonância de uns em relação aos outros, que fazia o hábito ou a rejeição,
e para isto o corpo e a inteligência eram igualmente mobilizados. (ROCHE, 2000, p, 151)
2
3
Aqui o termo ideologia significa um “conjunto de ideias políticas que visa a modificar a sociedade”.
A expressão Antigo Regime refere-se à sociedade conforme era organizada antes da Revolução Francesa (1789-1799).
17
História, Política e Sociedade
Aqui vemos um exemplo de como a História instrui e diverte. Podemos conhecer um pouco sobre as pessoas do século XVIII sem taxá-las de atrasadas. Ao
mesmo tempo, a nossa curiosidade sobre o passado também é satisfeita. Ao descrever as atitudes diante de algo que para nós é banal, o historiador nos mostra
justamente a diferença. Aquecer-se não é um ato mecânico, pois, pelo contrário,
é cultural. Diferentes sociedades dão diferentes respostas em relação ao frio. Na
Europa do século XVIII, segundo o historiador, a resposta ao frio implicava inclusive um regime corporal diferente, isto é, o corpo se adaptava às condições impostas socialmente e não de acordo com a natureza. A partir disso, pode-se dizer
que até as doenças têm uma história. Os corpos reagem de diferentes maneiras
às doenças, conforme as relações sociais estabelecidas.
Por isso a nossa disciplina não é igual às outras ciências: ela tem um papel diferente a cumprir e o modelo das ciências exatas e biológicas não serve. O papel
da História é instruir, trazer conhecimento sobre o passado, mesmo que não seja
na sua totalidade. Ela serve para alargar o nosso horizonte, aumentar o nosso
conhecimento do mundo e saber mais sobre a própria humanidade.
Práticas dos historiadores
Vimos até agora questões ligadas ao nosso dia-a-dia e como podemos
compreender as sociedades passadas. Agora vamos tratar das práticas dos
historiadores.
Em primeiro lugar, eles são pessoas de suas épocas, isto é, eles não estão
acima da sociedade em que vivem, só podem agir e pensar de acordo com o seu
próprio contexto histórico.
Em segundo lugar, eles não podem reviver tudo o que aconteceu. Isso é humanamente impossível. O máximo que podem fazer é dar uma ideia sobre acontecimentos passados.
Dessa forma, quando um historiador conta uma história, ele não está fora da
sociedade em que vive. Ele só pode colocar questões pertinentes ao universo
mental dessa sociedade e por isso não existem questões que transcendam o
tempo. Tudo o que conhecemos é relativo ao momento histórico que vivemos.
Hoje, estamos muito preocupados com o nosso conforto e com o nosso corpo
e assim fazemos, ao passado, perguntas relativas a isso. Vejamos o que seria belo
no Renascimento:
18
História e sociedade
A beleza do mundo, cujas regiões etéreas representariam a perfeição, serve de modelo à
beleza do corpo: o céu cósmico e o céu corporal se correspondem no século XVI. O busto, o
rosto, as mãos seriam os lugares da estética corporal, se descortinando “principalmente uma
parte, a saber, a parte superior que olha através da luz do sol”. Eles têm uma “proximidade com
a natureza dos anjos”. Eles se impõem pelos seus lugares: aquele cuja eminência permite a
cada um de “melhor contemplar”. (VIGARELLO, 2004, p. 21, tradução nossa)
As pinturas desse período procuram destacar o busto e o rosto. As mulheres
tinham muito mais atenção aos penteados e joias, e não se dava muita importância ao resto do corpo, tanto que nem era vergonhoso mostrá-lo nu. Trata-se
de outra concepção de corpo e de beleza.
O historiador deve estar atento para as práticas sociais. Elas não são as mesmas
diante de coisas que aparentemente são iguais. E isso se dá em relação ao corpo,
à beleza, ao conforto, e também à riqueza, ao poder, à sexualidade – enfim, tudo
aquilo que envolve o ser humano.
Devemos reconhecer que o tipo de conhecimento que a História mobiliza
não é o mesmo das outras ciências. Ele deve recorrer a elementos explicativos
que vamos encontrar na literatura. O estatuto de ciência não garante à História
uma verdade melhor ou saber o que realmente aconteceu.
Por outro lado, achar que a narrativa histórica depende exclusivamente do
domínio literário também não melhora muito a situação.
A História está a meio caminho entre ciência e literatura: de um lado, usa
de procedimentos científicos para se ter alguma compreensão do passado; de
outro, são necessários procedimentos literários para narrar o que aconteceu.
Isso fez muitos pensadores gastarem muita tinta. A polêmica sobre se a História é ciência ou arte durou quase todo o século XX. Mas a questão não é nem
deve ser essa, mas o tipo de conhecimento que a História produz.
O historiador deve recorrer a um tipo de material – as fontes históricas –
para compor a sua explicação. Dessa maneira, ele faz as duas coisas. Procede
de modo científico, selecionando, separando e interrogando o material e, em
seguida, procede como um literato, pois necessita colocar aquele material em
uma trama, isto é, construir uma narrativa.
O que provocou muita discussão foi saber se o historiador explica o que realmente aconteceu ou faz apenas ficção. Ora, não é possível contar o que realmente aconteceu, pois, em primeiro lugar, seria necessário verificar in loco, fazer verdadeiramente uma viagem no tempo. Em segundo lugar, seria preciso “pairar”
sobre o momento, pois estando em um lugar físico, o historiador teria uma visão
19
História, Política e Sociedade
parcial. Em terceiro lugar, ele precisaria contar tudo o que aconteceu, o que faria
a narrativa consumir o mesmo tempo que o acontecimento.
Portanto a narrativa histórica produz de fato um “efeito de real”, segundo
Roland Barthes (1968), isto é, a sensação que se tem ao ler uma narrativa é de
que aquilo realmente aconteceu. Não podemos reviver o que passou, mas podemos ter uma compreensão, ou ainda, segundo Paul Veyne (1982), a narrativa
história deve ser verossímil: não é o que aconteceu, mas também não é pura
ficção.
Assim podemos ter um conhecimento do passado. Nesse aspecto, o historiador se assemelha ao antropólogo, que deve, em primeiro lugar, reconhecer
a diferença entre ele e a sociedade ou grupo que pesquisa, para, em seguida,
descrever como é, como vive essa sociedade ou grupo. Desse modo, o antropólogo deve, antes de tudo, estabelecer a alteridade, ou seja, o reconhecimento do
outro. O passado é a alteridade do historiador e ele deve reconhecer a distância
que o separa do que passou para, em seguida, trazer para as pessoas do presente o relato das viagens incríveis que podem ser feitas no tempo.
Texto complementar
O texto que segue é um trecho de um artigo de Roger Chartier explicando
como a disciplina histórica foi modificada pelas proposições de Michel Foucault
(1926-1984).
A quimera da origem
(CHARTIER, 2006)
Foucault revolucionou duplamente a história. Em primeiro lugar, tornou-se impossível depois dele considerar os objetos, cuja história o historiador
pretende escrever como “objetos naturais”, como categorias universais das
quais se deveria apenas determinar as variações históricas – quer tenham
por nome loucura, medicina, Estado ou sexualidade. Por detrás da comodidade preguiçosa do vocabulário, o que se deve reconhecer são recortes singulares, distribuições específicas, “positividades” particulares, produzidas por
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História e sociedade
práticas diferenciadas que constroem figuras (do saber ou do poder) irredutíveis umas às outras. Como escreve Paul Veyne:
A filosofia de Foucault não é uma filosofia do “discurso”, mas uma filosofia da relação.
Pois “relação” é o nome que se designou como “estrutura”. Ao invés de um mundo feito
de sujeitos ou então de objetos ou de sua dialética, de um mundo onde a consciência
conhece seus objetos de antemão, visa-os ou é ela própria o que os objetos fazem dela,
temos um mundo onde a relação é a primeira: são as estruturas que dão suas fisionomias
objetivas à matéria.
Não há, portanto, objetos históricos preexistentes às relações que os
constituem, não há campo de discurso ou de realidade delimitado de maneira estável e imediata: “as coisas são apenas as objetivações de práticas determinadas, visto que a consciência não as concebe” (VEYNE). Então, é identificando as divisões e as exclusões que constituem os objetos que estabelece
para si que a história pode pensá-los, não como expressões circunstanciadas
de uma categoria universal, mas bem ao contrário, como “constelações individuais ou mesmo singulares” (VEYNE).
Transformar a definição do objeto da história é, necessariamente, modificar as formas da escritura. Em seu comentário de Surveiller et punir (Vigiar e
punir), Michel de Certeau enfatizou o deslocamento retórico – e os perigos
– que implica uma história das práticas sem discurso:
Quando, ao invés de ser um discurso sobre os outros discursos que o precederam, a teoria
arrisca-se em domínios não-verbais ou pré-verbais onde se encontram apenas práticas
sem discursos de acompanhamento, surgem certos problemas. Há uma brusca mudança,
e a fundação, geralmente tão segura, oferecida pela linguagem faz então falta. A operação
teórica encontra-se repentinamente na extremidade de seu terreno normal, tal como um
carro que chega à beira da falésia. Depois dela, apenas o mar. Foucault trabalha à beira da
falésia, tentando inventar um discurso para tratar de práticas não-discursivas.
[...]
“À beira da falésia”. A imagem é bela para designar a inquietude própria a
toda história que tenta essa operação limite: dar conta na ordem do discurso
da “razão”, ou da desrazão das práticas – tanto dessas práticas dominantes
que organizam normas e instituições quanto daquelas, disseminadas e menores, que tecem o cotidiano ou sustentam os ilegalismos.
Porém, para todos aqueles que dele se aproximam, há, à beira da falésia,
um apoio amparador: o trabalho de um pensamento que sempre se situou
“no ponto de cruzamento de uma arqueologia das problematizações e de
uma genealogias das práticas” (FOUCAULT).
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História, Política e Sociedade
Atividades
1. Explique a afirmação de Benedetto Croce de que só existe história do presente.
2. O cotidiano é importante no estudo histórico porque:
a) mostra o que não deve ser estudado em História.
b) podemos conhecer mais profundamente as sociedades.
c) explica como as pessoas não prestam atenção às leis.
d) estudar coisas banais é engraçado.
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História e sociedade
3. Por que a História estaria a meio caminho entre a ciência e a arte?
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HISTÓRIA, POLÍTICA E SOCIEDADE