Violência obstétrica e aborto: ser mãe em uma sociedade machista
Marília, 5 de outubro de 2014.
“Aqui não é o seu lugar. Não venha aqui. Para você, as portas estão fechadas.”. Foi essa a resposta que o Hospital
Materno Infantil de Marília deu às mulheres de Marília e região que necessitam do atendimento desse hospital para
assistência ao parto e nas situações de aborto.
Neste sábado dia 27 de setembro quando, em desrespeito a princípios da ética médica, profissionais do Hospital
denunciaram uma jovem que procurou o serviço pelo crime de aborto (1). A jovem estudante de 19 anos, grávida de
38 semanas, foi internada no hospital materno-infantil no sábado à noite com fortes dores na barriga, febre e
taquicardia. Durante o exame, os médicos constataram que o feto já estava morto e encontraram comprimidos do
corpo da mãe, sinalizando a prática de aborto. Frente a isso, um dos membros da equipe médica do hospital tomou
a iniciativa de denunciar a jovem para a polícia, ferindo o princípio do sigilo médico, contidos no código de ética
médica (2). A jovem recebeu voz de prisão ainda no hospital. O delegado arbitrou fiança de R$ 10 mil, que não foi
paga. Ao sair do hospital a jovem foi encaminhada a cadeia de Pirajuí pelo crime de aborto. Caso seja condenada, ela
pode pegar até 20 anos de prisão no regime fechado. A paciente do relato é apenas uma em um milhão de mulheres
que, apesar da lei, da religião e da sua opinião, buscam o aborto clandestino no Brasil todos os anos. Com sorte,
fugiu da pior estatística: a prática insegura mata uma mulher a cada dois dias no país. (6)
Alguns dias antes, no domingo dia 14 de setembro, na mesma maternidade uma parturiente foi admitida às 21h e
ficou por um período de 12h sem passar por reavaliação e acompanhamento médico. No dia seguinte, às 9h30
constatou-se que o feto já estava morto na barriga da mãe e foi realizada cesariana. (3)
Violência obstétrica como prática no Hospital Materno de Marília
Em ambos os casos, o que se observa é destituição de direitos e da autonomia através da prática da violência
obstétrica na gestação e no abortamento. A violência obstétrica é uma realidade e caracteriza-se pela apropriação
do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado,
causando perda da capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente
na qualidade de vida das mulheres. A violência obstétrica durante a gestação pode se caracterizar por negar ou
negligenciar atendimento de qualidade à mulher, ofender e humilhar à mulher e sua família, e tratá-la de forma
discriminatória por sua etnia, escolaridade, situação conjugal, orientação sexual, número de filhos etc. Em casos de
aborto, a violência obstétrica consiste em negar ou demorar no atendimento à mulher em situação de aborto,
questionar à mulher quando a causa do aborto (se intencional ou não), realizar de procedimentos invasivos, sem
explicação, consentimento e sem anestesia, coagirz com finalidade de confissão e denúncia à polícia da mulher em
situação de aborto. (4) As práticas profissionais são determinantes nos casos de violência obstétrica, portanto uma
formação transversal ética e humanizada que revisite as relações de poder e gênero precisa ser implementada para
garantir uma prática adequada.
Contudo, os próprios profissionais também sofrem violências diárias nos serviços de saúde que também são
responsáveis pelos maus tratos dados às pacientes. Faltam profissionais, as jornadas de trabalho são extensas,
faltam leitos, medicamentos e materiais para atender os pacientes com qualidade. Muitas vezes residentes (que
ainda são médicos em formação especialista) ficam sozinhos nos plantões sem médicos assistentes. Os baixos
salários em todas as categorias também geram insatisfação e greves no Hospital. (5) O estado displicente, a falta de
políticas públicas adequadas, hospitais e maternidades sucateados e sem ferramentas essenciais ao parto, são
questões a combater diuturnamente, para oferecer aos profissionais condições adequada de exercer a medicina e
garantir à mulher qualidade e tratamento digno.
Aborto: Caso de polícia ou de saúde pública?
Assim como a jovem que procurou o HM, no mundo ocorrem outros 20 milhões de abortos inseguros a cada ano,
segundo a OMS (6). A organização compreende por “aborto inseguro” a interrupção da gravidez praticada por um
indivíduo sem formação, habilidade ou conhecimentos necessários ou em ambiente sem condições de higiene
adequadas. O aborto inseguro possui forte associação com a morte de mulheres – são quase 70 mil todos os anos.
Acontece que estas 70 mil não estão democraticamente distribuídas pelo mundo; 95% dos abortos inseguros
acontecem em países pobres, na maioria dos quais existem leis que restringem a prática do aborto. Nos países onde
o aborto não é crime, como Holanda, Espanha e Alemanha, observa-se uma taxa muito baixa de mortalidade
materna e uma queda no número de interrupções voluntárias da gravidez, uma vez que as mulheres contam com o
suporte de uma política de planejamento reprodutivo efetiva.
No Brasil, de acordo com o Sistema Único de Saúde (SUS), a incidência de óbitos por complicações do aborto oscila
em torno de 12,5%, ocupando o terceiro lugar entre as causas de mortalidade materna com variações entre os
estados brasileiros. Segundo dados da OMS, o nosso país lidera as estatísticas de abortamento provocado em todo o
mundo com um total de quatro milhões por ano. Em um contingente de 36 milhões de mulheres, uma em cada nove
mulheres brasileiras recorre ao aborto como meio para terminar uma gestação que não foi planejada ou indesejada.
No entanto, vale a pena ressaltar que não se sabe, exatamente, quantas mulheres vivenciam o aborto ou quantas
morrem anualmente por causas relacionadas às suas complicações, pois, por ser ilegal em muitos países do mundo,
inclusive no Brasil, ocorre predominantemente na clandestinidade e em condições precárias. (7)
A criminalização do aborto coloca as mulheres, na maioria das vezes, nas mãos de pessoas despreparadas para
realização de um aborto inseguro e em condições clandestinas, pondo em risco sua própria vida. Além do mais, a
clandestinidade transforma o aborto em um negócio lucrativo, garantindo a impunidade para aqueles que o
realizam. Quem tem maior poder aquisitivo utiliza as clínicas especializadas e têm acesso a uma assistência
qualificada, enquanto quem não tem condições financeiras busca pessoas não habilitadas e métodos abortivos
rudimentares, que podem levar a graves complicações e à morte. Numa sociedade de classes, criminalizar o aborto é
criminalizar a pobreza.
A lei proibitiva não demonstra nenhuma eficiência no sentido de diminuir o número de abortos, mas uma eficiência
incrível para punir, negar acesso a cuidados de saúde e matar mulheres. Contudo, um debate sério em termos de
saúde pública e autonomia feminina é vetado no Estado brasileiro, que está a serviço dos interesses mais
conservadores da sociedade. Criminalizar o aborto não soluciona, pelo contrário, acarreta sofrimento, adoecimento,
discriminações por parte de familiares e amigos e, claro, na insegurança da clandestinidade, com serviços precários
de abortamento, provoca sequelas no corpo da mulher ou mesmo sua morte, atingindo geralmente as mais pobres.
O serviço de saúde e o fomento da cultura do medo
Como os profissionais de saúde não são pessoas descoladas da realidade social e cultural brasileira, o machismo e a
criminalização da mulher são reproduzidos no cuidado em saúde. Há inúmeros relatos de casos (6) em que as
mulheres que procuram o serviço de saúde após um aborto são tratadas com descaso e colocadas em julgamento
moral pelos profissionais de forma discriminatória. Embora o Artigo 23 do Capítulo IV sobre Direitos Humanos do
Código de Ética Médica vede ao médico “tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua
dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Como se o tratamento indigno a que essas mulheres são relegadas nesses hospitais não fosse suficientemente
aviltante, muitos médicos, assim como no recente caso em Marília, rompem com mais um direito dessas pacientes,
o direito ao sigilo e confiabilidade em seus médicos, expondo-as através da denúncia à polícia e de toda exposição
midiática envolvida. Apesar de o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) e o Conselho Federal de
Medicina (CFM) terem se posicionado várias vezes contra a conduta dos médicos que denunciam pacientes que
provocam o aborto (2) e do próprio Ministério da Saúde determinar em norma técnica que “Toda mulher em
processo de abortamento, inseguro ou espontâneo, terá direito a acolhimento e tratamento com dignidade no
Sistema Único de Saúde (SUS)”, (8) o que se vê nos hospitais públicos e de convênios é exatamente o oposto ao que
é preconizado.
Tal atitude fomenta uma cultura do medo, que busca inibir a prática de abortamento em nossa sociedade por meio
de uma coerção penal, que não apenas nega a necessidade de desenvolvimento do debate acerca da autonomia
feminina e de melhorias no aporte à saúde reprodutiva, mas culpabiliza, humilha e pune mulheres que já se
encontram em situação de vulnerabilidade. A prática pode até diminuir o número de mulheres que procuram o SUS
por complicações de aborto, mas não como consequência da diminuição do número de abortos. O hospital se torna
um lugar inseguro e não acolhedor a essas mulheres, mas outro cenário de violência, que se soma a tantos outros
que grávidas desassistidas vivenciam até chegar ao aborto clandestino. A discriminação e a criminalização promovida
pelos profissionais faz com que as mulheres sofram em invisibilidade e desamparo as consequências do aborto
inseguro, podendo cursar com infecção, infertilidade e morte.
Frente a essa realidade reproduzida no desserviço prestado às mulheres de Marília e região pelo HMI, entendemos
que falta a esses profissionais e a esse serviço uma formação feminista, que priorize a autonomia e o bem estar da
mulher. Os médicos e outros profissionais envolvidos precisam ser orientados acerca de princípios éticos que
norteiem a sua ação, a fim de não desempenharem novamente a atitude desumana de não acolherem as mulheres
que sofrem aborto, e preservarem integridade física e moral de suas pacientes. Gestores, profissionais e mesmo
estudantes da área da saúde, em especial da Faculdade de Medicina de Marília, cenário desses acontecimentos, tem
corresponsabilidade com esta mudança, a fim de fazer o HMI um local de acolhimento e cuidado a todas as
mulheres em seu sofrimento, doença e desamparo.
A luta histórica do movimento feminista
Nós, do coletivo feminista Ana Montenegro, nos solidarizamos às mulheres vitimizadas pela violência obstétrica e
nos colocamos como parceiras nos processos de denúncia pública e conscientização da população e dos profissionais
de saúde acerca dos direitos das mulheres visando seu empoderamento. Continuará a lutar contra a posição política
de tratar o aborto como assunto penal ou de polícia. Esse tema deve ser levado para o campo da política pública de
saúde integral da mulher, apontando, portanto, para sua legalização como uma forma de respeito à decisão
soberana das mulheres sobre suas vidas, seus corpos e sexualidade. Entendemos também que a violência obstétrica
e a criminalização do aborto tem suas raízes nas relações de poder estabelecidas na sociedade, como no machismo,
no patriarcado e na diferença de classe. Em uma sociedade burguesa com uma moral hipócrita, que subjulga os
trabalhadores em seu cotidiano, é impossível que a mulher conquiste sua autonomia de forma concreta e sem
preconceitos. Por isso fazemos um convite a todas as mulheres trabalhadoras, que vivem a violência cotidiana no
trabalho, nos hospitais e até mesmo em suas famílias a unirem-se conosco nessa luta por uma sociedade mais
humana e mais justa.
Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro – Núcleo Marília
(1) http://www.diariodemarilia.com.br/noticia/134463/policia-prende-estudante-acusada-de-aborto
(2) http://www.portalmedico.org.br/pareceres/crmsp/pareceres/2000/24292_2000.htm
(3) http://www.diariodemarilia.com.br/noticia/134142/familia-protesta-contra-morte-de-recem-nascido-nomaterno-infantil
(4) http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/41/violencia%20obstetrica.pdf
(5) http://g1.globo.com/sp/bauru-marilia/noticia/2014/07/funcionarios-de-cinco-hospitais-da-famema-entramem-greve.html
(6) http://noticias.terra.com.br/brasil/com-1-milhao-de-abortos-por-ano-mulheres-pobres-ficam-a-margem-dalei,0401571f0cd21410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html
(7) http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452010000100026
(8) http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento.pdf
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Sobre Violência Obstétrica no Hospital Materno de