ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA FERNANDO BAQUEIRO BATISTA POLÍCIA DE CICLO COMPLETO: Um estudo sobre sua implantação no Brasil Rio de Janeiro 2012 FERNANDO BAQUEIRO BATISTA POLÍCIA DE CICLO COMPLETO: Um estudo sobre sua implantação no Brasil Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia. Orientador: CMG (FN-RM1) Fernando Mose da Silva Abreu. Rio de Janeiro 2012 Este trabalho, nos termos de legislação que resguarda os direitos autorais, é considerado propriedade da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitido a transcrição parcial de textos do trabalho, ou mencionálos, para comentários e citações, desde que sem propósitos comerciais e que seja feita a referência bibliográfica completa. Os conceitos expressos neste trabalho são de responsabilidade do autor e não expressam qualquer orientação institucional da ESG. _____________________________________ Fernando Baqueiro Batista, Cel PMBA Biblioteca General Cordeiro de Farias Batista , Fernando Baqueiro. Polícia de ciclo completo: um estudo sobre sua implantação no Brasil Coronel PMBA Fernando Baqueiro Batista. Rio de Janeiro: ESG, 2012. 46 f.: il. Orientador: CMG (FN-RM1) Fernando Mose da Silva Abreu Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE), 2012. 1- Segurança Pública. 2- Estrutura policial estadual e municipal. 3. Sistema de Segurança Pública. I. polícia de ciclo completo para o Brasil. Agradeço, primeiramente, a DEUS. Também à minha família: Raquel, minha esposa, e Fernanda, minha filha, pelas horas de convivência subtraídas para atingir a meta estabelecida de comum acordo, participando do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE), na Escola Superior de Guerra (ESG), fora da minha terra natal. AGRADECIMENTOS Ao Comando da Escola Superior de Guerra (ESG), ao Diretor do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE), aos Palestrantes e a todo Corpo Permanente, por ter me acolhido e passado os ensinamentos e experiências inesquecíveis, principalmente quanto ao Método de Planejamento, as viagens de estudos e visitas, me tornando habilitado para as importantes atividades que exercerei durante as minhas próximas funções. Ao Senhor Coronel PM Alfredo Braga de Castro, Comandante Geral da Polícia Militar da Bahia, pela minha indicação para realizar o Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE) na Escola Superior de Guerra (ESG), superando todos os obstáculos interpostos pelos modelos burocráticos existentes, aumentando meu cabedal de conhecimentos. Ao Comandante Fernando Mose da Silva Abreu, Orientador, pela paciência e orientações passadas, muito importantes para nortear as atividades do TCC. Aos colegas da Turma Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR), concluintes e aqueles que, pelas contingências da vida, não puderam concluir o curso, amigos que permanecerão eternamente em minha mente e em meu coração, por proporcionarem um ambiente saudável e harmonioso durante todo o desenrolar do curso. RESUMO Esta monografia pretende abordar um aspecto da Segurança Pública que, normalmente, não é discutido mesmo nos debates acadêmicos no nível nacional. Porém, fora das fronteiras brasileiras é fato comum entre os principais países do mundo ocidental: trata-se da operacionalização da segurança pública através do Ciclo Completo de Polícia. O fato de termos, nas unidades da federação brasileira, um sistema policial fracionado, tem contribuído bastante para a ineficiência da atividade de segurança pública. Como, por definição constitucional, o maior peso da responsabilidade pela execução da segurança pública se dá no nível estadual, o fato de as duas polícias desse nível federativo fazerem, cada uma, apenas uma parte do processo policial, gera ineficiência e, até mesmo, conflitos entre esses órgãos. E quem sai perdendo com isto é, essencialmente, a sociedade brasileira. Esse modelo de duas metades de polícia é uma herança do período colonial brasileiro e o nosso legislador, depois de tanto tempo acomodado, precisa mudá-lo, buscando adotar o modelo de Ciclo Completo de Polícia, que é utilizado, com eficiência e qualidade, na maioria dos países do mundo ocidental, onde cada órgão policial leva a ação desde o início da ocorrência até a sua apresentação ao poder judiciário, para o devido julgamento. Para tanto, foi feito o levantamento de como é executada a atividade policial em alguns países do mundo. Em seguida, foi levantada a origem histórica do modelo policial brasileiro, chegando até os dias de hoje mediante um verdadeiro “raio X” do sistema brasileiro de segurança pública. Finalmente, apresentamos algumas propostas que já estão em tramitação no Congresso Nacional, objetivando, de alguma forma, atender a essa necessidade de implantação do Ciclo Completo de Polícia no nosso país, concluindo com uma proposta final deste autor para buscarmos, no Brasil, a modernização do modelo de segurança pública. Palavras Chave: Sistema de Segurança Pública, Ciclo Completo de Polícia, Legislação. ABSTRACT This monograph aims to address an aspect of Public Security that isn’t usually discussed even inside national level academic debates. However, outside Brazilian borders is a common fact among the main countries in the Western World to operationalize the public safety through the Police Complete Cycle. The fact that we have, in the units of the Brazilian Federation, a subdivided police system, contributes a lot to the inefficiency of public security activity. As for Constitutional definition, the State has a major responsibility for the execution of the public security, and the fact that the two polices in this federative level have, each one, only a portion of the police process, generates inefficiency and even conflicts between these organs. Who essentially loses with the subdivided police system is the Brazilian society. This two half of polices is an heritage from the Brazilian Colonial Period and our legislator, after so many time accommodated, needs to change it, by trying to adopt the Police Complete Cycle, which is used, efficiently and with quality, in most of the Occidental World countries, where each police organ acts from the beginning of the occurrence until it’s submission to the judiciary and proper trial. In order to do so, this monograph made a study about the execution of the police activity in some countries. Followed by the study of the Brazilian police model historic origin until today with a real “x-ray” of the Brazilian public security system. Finally, we present some proposals that are already in course in the National Congress, aiming somehow to meet this need of implement the Police Complete Cycle in our country, concluding with a final proposal by this author to seek, in Brazil, the modernization of the public security model. Keywords: Public Security System, Complete Cycle Police, Legislation. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Quadro 1 Relação dos países com Gendarmerias ................................ 21 Figura 1 Mapa das Gendarmerias do mundo ....................................... 22 Gráfico 1 Recursos financeiros autorizados e liquidados (2008-2012) 31 Figura 2 Efetividade do processo de contenção do crime na Bahia 33 Quadro 2 Quantitativo levantado de inquéritos instaurados no Brasil até 31 de dezembro de 2007 Gráfico 2 ........................................... 35 Resultado do esforço nacional para a execução da Meta 2 da ENASP .............................................................................. 36 Gráfico 3 Unidades da Federação que cumpriram a Meta 2 da ENASP 37 Quadro 3 Medo de assassinato (por região e Brasil) ............................. 39 Quadro 4 Confiança nas instituições policiais (Brasil) ........................... 39 LISTAS DE ABREVIATURAS E SIGLAS. CONASP Conselho Nacional de Segurança Pública ENASP Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública EUA Estados Unidos da América FIEP Associação das Forças de Segurança de Natureza Militar da Europa e do Mediterrâneo GGI Gabinete de Gestão Integrada IGPM Inspetoria Geral das Polícias Militares INDG Instituto Nacional de Desenvolvimento Gerencial INFOSEG Sistema Nacional de Informações de Justiça e Segurança Pública IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ONU Organização das Nações Unidas PEC Proposta de Emenda Constitucional PNSP Plano Nacional de Segurança Pública PRONASCI Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania SENASP Secretaria Nacional de Segurança Pública SINESPJC Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal SIPS Sistema de Indicadores de Percepção Social SUSP Sistema Único de Segurança Pública UPP Unidade de Polícia Pacificadora SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................ 10 2 2.1 2.2 2.2.1 2.2.2 2.2.3 2.2.4 2.2.5 2.3 2.4 ANTECEDENTES.................................................................................... 12 ORDEM PÚBLICA E SEGURANÇA PÚBLICA ........................................ 12 POLÍCIA DE CICLO COMPLETO NO MUNDO ....................................... 14 França ..................................................................................................... 14 Inglaterra ................................................................................................ 15 Espanha .................................................................................................. 17 Estados Unidos ...................................................................................... 18 Outros países ......................................................................................... 20 SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL ...................................................... 22 O SISTEMA ATUAL DE SEGURANÇA PÚBLICA BRASILEIRO. ........... 28 3 3.1 3.2 3.3 3.4 3.4.1 3.4.2 3.4.3 3.4.4 3.4.5 3.4.6 AVALIAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA BRASILEIRA ATUAL......... 32 ESTRATÉGIA NACIONAL DE JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA ...... 33 SENSAÇÃO DE INSEGURANÇA NO BRASIL ........................................ 38 CICLO COMPLETO DE POLÍCIA NA 1ª CONASP ................................. 40 O PROCESSO POLICIAL BRASILEIRO ................................................. 40 Polícia Federal ....................................................................................... 43 Polícia Militar.......................................................................................... 44 Polícia Civil............................................................................................. 45 Poder Judiciário ..................................................................................... 46 Subsistema Penitenciário ..................................................................... 46 Outros Órgãos ....................................................................................... 47 4 PROPOSTAS LEGISLATIVAS ............................................................... 51 5 O EQUÍVOCO DA UNIFICAÇÃO ............................................................ 54 6 CONCLUSÃO .......................................................................................... 55 REFERÊNCIAS ....................................................................................... 58 ANEXO A – POLÍCIAS NO MODELO GENDARMERIE ......................... 60 10 1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo mostrar como funciona o modelo de segurança pública mantido no Brasil, comparando-o com outros modelos internacionalmente conhecidos, além de levantar propostas já existentes para a sua reestruturação, entre as quais se destacam propostas que buscam a criação de um modelo de polícia de ciclo completo para os órgãos de segurança pública brasileiros. Tamanha é a importância do tema segurança que nossa Lei Fundamental cuidou de tratá-lo em vários momentos de seu texto1. Assim, podemos dizer que a segurança é o direito fundamental sobre o qual se assentam todos os demais. A palavra origina-se do latim "securus", "se" "cura": cuidados que a pessoa tem consigo mesma. O termo se refere às medidas destinadas à garantia de integridade das pessoas, comunidades, bens ou instituições. Diz-se, pois: segurança do tráfego, segurança pública, segurança nacional. Há, ainda, organismos internacionais, como a ONU, aos quais se acham afetos sistemas de segurança coletiva, visando manter a paz mundial. O modelo de segurança pública brasileiro é "sui generis" e complexo, nele coexistindo órgãos estaduais encarregados da preservação da ordem pública e da polícia ostensiva (Polícias Militares) e outros encarregados das funções de polícia judiciária e da apuração das infrações penais (Polícias Civis), além de órgão federal encarregado do ciclo completo de polícia, exercendo as funções de polícia ostensiva juntamente com as de polícia judiciária (Polícia Federal). No aspecto formal, a Segurança Pública abrigaria um conjunto de órgãos constituídos legalmente, formando um sistema, que deveria funcionar de 1 Preâmbulo: Nós, [...], reunidos para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar [...], a segurança, [...]; no Título II, Dos direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I, Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, no caput do artigo 5º, Todos são iguais perante a lei, [...], garantindo-se [...] a inviolabilidade do direito [...] à segurança [...], nos termos seguintes; Capítulo II, dos Direitos Sociais, artigo 6º: São direitos sociais [...], a segurança, [...], na forma desta Constituição. 11 forma harmônica e totalmente integrado, exercendo as atividades em um ciclo completo. No entanto, no Brasil, o Sistema de Segurança Pública, formalmente constituído, é composto dos seguintes órgãos: - Polícias Ostensivas (Preventivas); - Polícias Investigativas; - Ministério Público; - Poder Judiciário; e - Órgãos Recuperatórios (Penitenciárias, Casas de Detenção e Casas de Acolhimento). Embora cada um tenha o seu papel específico, as ações deveriam ser sequenciadas e as soluções oferecidas com celeridade, de forma a transmitir à população a sensação de que o crime e as más ações não compensam. No entanto, observa-se que cada órgão cumpre o seu papel de forma praticamente individualizada, o que leva o sistema a funcionar de forma precária. Seria utopia imaginar-se uma segurança perfeita para uma sociedade, pois os conflitos sempre existirão: é um fenômeno natural da convivência humana. Neste caso, pode-se afirmar que, na face da terra, nenhum povo conseguiu essa perfeição. Porém, o que não se pode admitir é a situação em que o Brasil está submetido atualmente. Então, o que seria o ideal para que uma sociedade tenha a sua segurança pública preservada e tenha a sensação de que está em um ambiente livre de ameaças? A solução é simples, e passa pela associação da educação com o bom funcionamento do Sistema de Segurança Pública. Para isso, a participação do povo é fundamental2. Este Trabalho de Conclusão de Curso pretende fazer uma abordagem do referido sistema formal. Tendo em vista a carência de obras publicadas que tratem do tema, muitas vezes tivemos que nos respaldar em textos e obras divulgadas através da rede mundial de computadores (internet), mídia escolhida por muitos autores nos dias atuais devido à facilidade de produção e de divulgação de trabalhos das mais diversas áreas de conhecimento, sendo a mensagem elaborada levada a muito mais pessoas. Assim, pretendemos discutir se o atual modelo de segurança pública 2 Constituição Federal, art. 144: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio...” 12 adotado no Brasil atende às necessidades atuais da sociedade brasileira. Se as duas metades de polícia estão dando conta da complexidade dessa atividade. O atual modelo, herança do período colonial, fraciona o processo em dois órgãos distintos, fracionando, também, os procedimentos policiais. A nossa proposta, fundada nos modelos adotados na maioria dos países do mundo ocidental, é a adoção no Brasil, também no nível estadual, do modelo de Polícia de Ciclo Completo já adotado no nível federal, através da Polícia Federal. “É a modalidade adotada em quase todos os países, constituindo, entretanto, exceções apenas o Brasil, Cabo Verde e Guiné-Bissau”. (Em http://pt.wikipedia.org/wiki/polícia de ciclo completo, acessado em 14 de julho de 2012) É a necessidade da busca da eficiência preconizada em dispositivo constitucional3, na prestação do serviço de segurança pública, a qual deverá ser cada vez mais exigida por parte da sociedade brasileira. 2 ANTECEDENTES 2.1 ORDEM PÚBLICA E SEGURANÇA PÚBLICA O Dicionário da Língua Portuguesa nos traz a informação de que a palavra “ordem” significa disposição metódica; boa disposição; arrumação (FERREIRA, 2010). Daí derivaram vários termos, como: (1) ordem civil, conjunto de leis e princípios que regem os interesses privados; (2) ordem política, conjunto de instituições que harmonizam as funções e relações internas e externas de um Estado; (3) ordem social, a sociedade estruturada econômica e politicamente, como objeto de tutela policial e penal; (4) ordem pública, conjunto de instituições e preceitos coagentes destinados a manter o bom funcionamento dos serviços públicos, a segurança e a moralidade das relações entre particulares, e cuja aplicação não pode, em princípio, ser objeto de acordo ou convenção. Já segurança significa ato ou efeito de segurar; estado, qualidade ou condição de seguro; condição daquele ou daquilo em que se pode confiar; 3 Constituição Federal – Art. 37 “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. 13 garantia; seguro; assegurar. Estudiosos e doutrinadores, como Álvaro Lazzarini e Victoria-Amália de Barros Carvalho G. de Sulocki, revelam a enorme dificuldade em definir ordem pública, dizendo que os doutrinadores apresentam várias definições. Porém estará sempre em torno da ideia de moral, segurança de bens e pessoas ou, ainda, ausência de desordem. A Escola Superior de Guerra define ordem pública como: A situação de tranquilidade e normalidade cuja preservação cabe ao Estado, às instituições e aos membros da sociedade, consoante as normas jurídicas legalmente estabelecidas. (BRASIL, 2009, V. I) Assim, podemos definir que ordem pública é a segurança do bom funcionamento dos órgãos públicos e privados, a certeza da aplicação das leis, a tranquilidade pública, a manutenção da liberdade de expressão, do direito de ir e vir, da garantia dos direitos individuais e coletivos, o livre exercício de culto religioso, a aplicação do direito. Portanto, é a garantia da boa ordem, da segurança e da salubridade públicas. Assim como ordem pública, vários autores definem segurança pública, porém, todos voltados para o sentido de conjunto de processos, política, ações e estratégias, destinados à garantia da ordem pública. A Escola Superior de Guerra assim define a segurança pública: Garantia da manutenção da ordem, mediante aplicação do Poder de Polícia, prerrogativa do Estado. (BRASIL, 2009, V. I). Assim, segurança pública e ordem pública são conceitualmente diferentes. A primeira se refere à aplicação do Poder de Polícia que tem o Estado, para a preservação da segunda, que se traduz como a tranquilidade pública, a garantia de que a população tenha condições de viver em um clima de paz. Portanto, como estabelecido na Constituição Federal, o Brasil vive em ordem: ordem econômica, ordem jurídica, ordem política, ordem social, ordem legal etc. E a segurança pública existe exatamente para preservar esse conjunto de “ordens”. 14 2.2 POLÍCIA DE CICLO COMPLETO NO MUNDO Podemos, efetivamente, abordar a segurança pública no resto do mundo, prolongando a pesquisa até séculos atrás. No entanto, não renderia frutos tal aprofundamento, posto que somente em meados do século XIX vamos encontrar um modelo de instituição policial com estrutura e capacidade de efetuar as atividades de segurança pública como nós conhecemos. 2.2.1 França A França tinha um modelo de polícia que poderia ser rotulado de “Polícia de Estado”, que atendia às necessidades dos governantes, porém não tinha nenhuma “empatia” com a própria população. A polícia francesa passa pelo arquétipo da Polícia de Estado centralizada, embora a realidade seja, evidentemente, mais complexa do que a imagem estereotipada. O sistema policial francês atual é um sistema ao mesmo tempo centralizado e plural, segundo a nomenclatura de David Bayley, isto é, composto de muitas forças distintas, que são, elas próprias, centralizadas (VICTORIA, 2007). De fato, compõe-se essencialmente de duas instituições de caráter nacional cujos estatutos diferem, mas cujas competências são amplamente concorrentes: são a Polícia Nacional e a Guarda Nacional. Polícias de Estado (e de um estado fortemente centralizado), essas duas instituições, que agrupam juntas por volta de 220.000 agentes, estão inteiramente às ordens do poder executivo e, se em seu meio a polícia judiciária está, em princípio, igualmente sob o controle da autoridade judiciária, o conjunto das polícias está subordinado a todo controle parlamentar efetivo. A Polícia Nacional é uma polícia de estatuto civil, sob a autoridade do Ministro do Interior. Está organizada em grandes direções verticais especializadas, conforme as missões policiais: segurança pública e polícia judiciária, de informações, contra-espionagem e polícia dos estrangeiros. Ela está presente, sobretudo, nas zonas urbanas e pré-urbanas, cobrindo a maioria da população, mas somente 5% do território. Seus efetivos elevam-se a quase 130.000 agentes (dos quais 6% de mulheres em média); 70% deles operam uniformizados, os outros à paisana. Dentro de sua área de competência, a 15 Polícia Nacional executa o Ciclo Completo de Polícia, desde a atividade de polícia ostensiva, realizando rondas policiais e “blitzs”, passando pela atividade investigativa, incluindo aí a produção científica de provas (perícia), até a entrega do processo ao poder judiciário. Muito diferente da Polícia Nacional em seu estatuto e sua organização, a Guarda Nacional (Gendarmerie) é de formação militar, ligada ao Ministério da Defesa, mas cujas atribuições essenciais em tempo de paz têm um caráter policial. É, com efeito, a mais antiga Polícia de Estado francesa, herdeira da Maréchaussée do Antigo Regime (fundada no século XVI), que teve por missão essencial zelar pelas vias de comunicação para preservar os contatos entre as cidades. Ela serviu de modelo a numerosas polícias estrangeiras na Europa, através de sua exportação para os territórios conquistados por Napoleão, e para outros lugares do mundo, graças à sua exportação para as colônias. Foi principalmente implantada nas zonas rurais e periurbanas, (muitas vezes concorrendo com a Polícia Nacional, neste último caso), e comporta por volta de 90.000 agentes, O que distingue os gendarmes (nome que é dado aos seus componentes – guardas nacionais) é seu caráter polivalente, pois eles podem ser levados, no decorrer de um mesmo dia, a fazer tanto um trabalho de policiamento ostensivo quanto de polícia judiciária, cumprindo, do mesmo modo que a Polícia Nacional, o Ciclo Completo de Polícia, em sua área de competência legal. O modelo francês de polícia serviu de padrão para diversos países europeus, a exemplo da Itália, Espanha, Portugal, Alemanha e Romênia, sendo que alguns desses se mantêm até os dias atuais. 2.2.2 Inglaterra Funciona em Bramshill a Academia Nacional, que forma a hierarquia da polícia da Inglaterra e País de Gales. Para se entender o trabalho que é feito lá seria preciso primeiro lembrar que a Inglaterra possui 43 forças policiais. Todas elas autônomas e subordinadas a pequenos comitês locais ("Police Authority") formados por pessoas indicadas pelo governo e representantes das comunidades. A exceção fica por conta da "Met", a Polícia Metropolitana de 16 Londres, que é subordinada ao governo central (mais precisamente ao "Home Office" – Ministério do Interior). Em que pese esta aparente dispersão de estruturas policiais, há um conjunto de fatores que asseguram uma grande identidade entre elas: primeiro, a Polícia de Londres foi fundada em 1829 e seu sucesso permitiu a emergência de um modelo a ser seguido pelo resto do país; segundo, o governo central é responsável por cerca da metade dos orçamentos das polícias regionais – a outra metade é paga pelos cidadãos no imposto municipal - e condiciona a liberação de mais recursos ao desempenho das Polícias; terceiro, a doutrina de policiamento no Reino Unido é definida em Bramshill, e, por fim, cada uma dessas organizações executa o Ciclo Completo de Polícia, dentro de sua área de competência. Embora a história da Inglaterra registre, desde os primórdios da Idade Média, o exercício de funções policiais por grupos de cidadãos, o país foi o último na Europa Ocidental a estabelecer uma polícia profissional. No início do século XIX, o modelo mais influente de policiamento era oferecido pela França com sua tradição de "Polícia de Estado". Os ingleses enxergavam nesse exemplo algo detestável e os jornais da época - o "The Times", por exemplo afirmavam em seus editoriais que "nós, ingleses, preferimos perder nosso dinheiro para um ladrão do que perder nossa liberdade para o Estado". O idealizador da Polícia de Londres, Robert Peel, só venceu as resistências do Parlamento quando formatou a proposta de uma força policial uniformizada (com sobrecasaca, como os demais funcionários públicos, e de cartola para simbolizar autoridade) com estrutura militarizada e, surpreendentemente, fez com que ela trabalhasse desarmada. Sua orientação para os policiais estimulou a cordialidade no trato com os cidadãos e sublinhou o autocontrole como uma das mais importantes qualidades que todos deveriam manter. Essas qualidades marcaram profundamente a cultura policial britânica e abriram o caminho para que, já na segunda metade do século XX, ela passasse a ser fortemente influenciada pela ideia dos Direitos Humanos. O que os ingleses inventaram, então, foi o "policiamento baseado no consenso" e o mundo passou a ter um novo modelo de policiamento, marcado pela eficiência no combate ao crime e pelo respeito aos direitos dos cidadãos, mantendo o modelo de Ciclo Completo de Polícia. 17 2.2.3 Espanha A origem do sistema policial espanhol remonta a um corpo policial (os “Somatent”) criado pela burguesia espanhola na cidade de Barcelona nos idos de 1291 com a finalidade de proteção à região da Catalunha. Mas, a primeira organização policial profissional foi “Los Mossos de Esquadras”, também criada com a finalidade de policiar a cidade de Barcelona em 1721, ampliando seu campo de atuação (1745) para mais de nove (9) cidades da região da Catalunha. No entanto, “Les corps des carabenieri” foi a primeira força policial nacional (central) criada em 1829 tendo pouca duração, pois no ano de 1844 foi substituída pela Guarda Civil Espanhola, com formação militar semelhante à Gendarmeria Francesa. Com a ascensão do Gen. Franco, foi retirada das “Comunidades Autônomas” a possibilidade de possuírem suas próprias forças policiais e, segundo Cunha (2000): Ficou a segurança pública do território espanhol com 3 polícias centralizadas: a Polícia Nacional e o Corpo Superior de Polícia – policiando cidades com população superior a 20.000 habitantes, e a Guarda Civil, executando o policiamento em zonas rurais, rodovias e cidades com população inferior a 20.000 habitantes, e as policias citadinas, chamadas em algumas cidades de policia local ou guarda urbana, encarregadas apenas de velarem pelas normas (ordenanças) municipais, onde se inclui a fiscalização do trânsito. (CUNHA, 2000) Com o fim da era Franco em 1977, o sistema policial espanhol sofreu várias modificações e hoje as forças policiais se dividem em três níveis: 1. Nacional – Polícias da Nação: Corpo Nacional de Polícia (Cuerpo Nacional de Policia). Instituto armado de natureza civil, que resultou da fusão do Corpo Superior de Polícia e da Polícia Nacional e subordina-se ao Ministério do Interior; Guarda Civil, instituto armado de natureza militar, sujeito à dupla subordinação, ao Ministério da Defesa e ao Ministério do Interior. 2. Regional – Polícias das Comunidades Autônomas. Também chamadas de Generalidad. São 3 Comunidades Autônomas que possuem corpos de polícia, que são: dos Países Bascos, a Polícia Ertzaina; de Navarra, a Polícia Foral e da Catalunha a Polícia Los Mossos d’Esquadras. As demais Comunidades Autônomas possuem unidades da CNP ou GC. 3. Local – São as Polícias Locais também chamadas de Guardas Urbanas. Estão a nível municipal (Ayuntamientos). Atuam no controle de trânsito e na aplicação das leis locais.” (CUNHA, 2000) 18 Bom frisar que o Reino Espanhol, incluindo as Ilhas Canárias e Baleares, conta com uma população de 39.800.000 habitantes aproximada mente (censo de 2000) distribuídos em 505.954 Km, dividindo-se em 50 províncias, integradas em 17 Comunidades Autônomas. Assim é que as Polícias da Nação (CNP e GC) executam as atividades de polícia ostensiva e de polícia judiciária (o Ciclo Completo de Polícia) o que não ocorre com as Polícias Locais (as Guardas Urbanas), as quais realizam somente o controle do trânsito e as funções de polícia administrativa dos municípios. Nesse sentido podemos perceber que o Corpo Nacional de Polícia e a Guarda Civil Espanhola desenvolvem o ciclo completo de polícia. Dentre as 3 Polícias Regionais, 2 delas (a da Catalunha e a do País Basco) já executam, em seus respectivos territórios, o Ciclo Completo de Polícia. A polícia de Navarra está em processo de transferência de funções, com previsão de conclusão nos próximos 2 anos. 2.2.4 Estados Unidos É bastante significativo o número de instituições e indivíduos atuando em prol da manutenção da lei e da ordem nos Estados Unidos da América (EUA). Em todos os níveis de organização política norte-americana (município, condado, estado e federação), existem organizações de natureza policial, afora os departamentos autônomos e que atuam em áreas específicas da segurança pública (conjuntos residenciais, ferrovias, sistemas metropolitanos, aeroportos, etc.). Enfim, existem nos EUA mais de 17.000 agências policiais, servidas por um contingente de recursos humanos superior a 900 mil indivíduos. A operação total desse "sistema" importa num gasto superior a 44 bilhões de dólares anuais. Nos últimos 20 anos, as despesas com a segurança pública norte-americana, em todos os níveis, quadruplicaram. Historicamente, o princípio político que dá sustentação à segurança pública norte-americana vem sendo o de "controles locais" (municípios e condados), através do uso formal e informal de mecanismos de prevenção e repressão de desvios de conduta. A origem do modelo norte-americano de "controles locais" remonta a "infância" do país, época em que a nação norte- 19 americana começou a demonstrar sua peculiar "idiossincrasia" em relação a instituições públicas federais de grande porte e poder centralizador (peculiaridade essa refletida no próprio texto constitucional). Existem nos EUA 1.600 agências policiais federais e autônomas, 12.300 departamentos de polícia municipal e de condado e 3.100 xerifados. Os xerifados são um tipo específico de polícia de condado ou município, via de regra prestando serviços de apoio direto ao judiciário local (seus prepostos executam tarefas semelhantes às dos "oficiais de justiça" brasileiros), compartilhando o restante de suas atribuições policiais com as polícias do município e/ou do condado respectivo. Na visão norte-americana, a qualidade dos recursos humanos da área policial deve ser tal que o profissional possa executar com efetividade todas as "tarefas gerais" do policiamento ostensivo. A especificidade do serviço, dentro desse entendimento, exige que o candidato a policial possua “boa capacidade de comunicação, conhecimento técnico na área de justiça criminal, compreensão em relação ao próximo e forte dose de maturidade” (Dantas, 1998). Nas pequenas polícias, a estrutura organizacional tem a seguinte configuração: (1) operações, (2) investigações e (3) comunicações. No caso das organizações ditas "grandes" existe um quarto "braço", a divisão de assuntos administrativos. Nos grandes departamentos a área de operações, que tem uma estrutura militarizada, está subdividida nas seguintes seções: (1) patrulhamento geral, (2) patrulhamento de trânsito, (3i) polícia comunitária e (4) patrulhamento aéreo. A divisão de investigações comporta as seções de (1) homicídios, (2) roubos e furtos, (3) narcóticos e (4) inteligência policial. Em dois dos estados onde estão "polícias grandes" (Nova Iorque e Texas), coincidentemente também estão localizadas as instituições de ensino superior de maior prestígio na área policial, o "John Jay College of Criminal Justice" da "City University of New York" (bacharelado, mestrado e doutorado em justiça criminal) e o "College of Criminal Justice" da "Sam Houston State University" (bacharelado, mestrado e doutorado). Nos EUA existe um total de 61 grandes universidades oferecendo cursos na área de justiça criminal. Segundo DANTAS (1998), “O permanente contencioso interinstitucional que ocorre no Brasil entre as polícias ostensivas de manutenção da ordem pública (polícias militares) e as polícias judiciárias (polícias civis estaduais) não 20 existe nos EUA. Todas as polícias norte-americanas fazem o chamado ‘ciclo completo’”. 2.2.5 Outros países Grande parte dos países do mundo ocidental possui, em sua estrutura de segurança pública, um modelo policial herdado do exemplo francês ou do inglês. Alguns, por tradição ou por manutenção da estrutura herdada, mantém o título de “gendarmerie”, como no original francês até hoje se emprega. Os diversos corpos nacionais do tipo “gendarmerie” ou “gendarmaria” incluem, normalmente, o termo na sua designação oficial. No entanto, ocasionalmente isso não acontece, como são os casos dos Carabineiros italianos e chilenos, da Guarda Nacional Republicana portuguesa ou das Polícias Militares estaduais brasileiras. Por outro lado, alguns corpos policiais mantém na sua designação oficial o título "gendarmaria" meramente por razões de tradição, uma vez que já não têm o caráter militar original que os levava a serem classificados como instituições do tipo “gendarmaria”. É o caso da Real Polícia Montada do Canadá, cuja designação oficial em francês é "Gendamerie Royale du Canada" (Gendarmaria Real do Canadá), que perdeu o seu caráter original de força militar na década de 1960. Tal como as polícias civis, as “gendarmarias” desempenham funções policiais no âmbito da população civil, incluindo as tarefas de manutenção da ordem pública, de combate ao terrorismo e de fiscalização do trânsito rodoviário. Nos países onde existem tanto gendarmarias como polícias civis, as responsabilidades policiais de ambas as corporações são frequentemente repartidas com base em critérios territoriais ou funcionais: Segundo um critério territorial, normalmente as gendarmarias são responsáveis pelo policiamento das regiões rurais e dos pequenos centros urbanos, enquanto que o policiamento das grandes cidades fica a cargo das polícias civis. Segundo um critério funcional, frequentemente são atribuídas às gendarmarias responsabilidades em relação a funções policiais específicas como é o caso da guarda cerimonial dos Chefes de Estado, da segurança de instalações críticas, do socorro em florestas e montanhas, da vigilância aduaneira e costeira e da proteção ambiental (Em http://pt.wikipedia.org/wiki/Gendarmaria). 21 Para além da capacidade policial, a natureza militar de uma gendarmaria implica normalmente que ela também disponha de uma capacidade para a realização de operações de combate, o que não acontece com uma polícia civil. No âmbito desta capacidade, para além do treino militar do seu pessoal, uma gendarmaria pode estar dotada de equipamento específico de combate, como é o caso de blindados e de armas de guerra. Atualmente, no mundo, existem gendarmarias em diversos países (todas executando o Ciclo Completo de Polícia), dentre os quais: País Designação em português Designação local Argentina Gendarmaria Nacional Argentina Gendarmería Nacional Argentina Chile Carabineiros do Chile Carabineros de Chile Colômbia Polícia Nacional da Colômbia Policía Nacional de Colombia Espanha Guarda Civil Guardia Civil França Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Israel Polícia de Fronteira Mishmar HaGvul] Itália Arma dos Carabineiros Arma dei Carabinieri México Polícia Federal Policía Federal Mônaco Companhia de Carabineiros do Príncipe Compagnie des Carabiniers du Prince Países Baixos Marechalato Real Koninklijke Marechaussee Polônia Gendarmaria Militar Żandarmeria Wojskowa Portugal Guarda Nacional Republicana Guarda Nacional Republicana Rússia Tropas Internas Vnutrenniye Voiska São Marino Corpo da Gendarmaria da República de São Marino Corpo della Gendarmeria della Repubblica di San Marino Gendarmarias Gendarmeries Guarda Nacional da Venezuela Guardia Nacional de Venezuela Suíça Venezuela Quadro 01: Relação dos países com Gendarmerie Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gendarmaria em 14 de julho de 2012. Abaixo segue o mapa demonstrativo dos países que adotam o modelo originariamente francês de Gendarmaria: 22 Figura 01 – Mapa das Gendarmarias no mundo Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gendarmaria em 14 de julho de 2012. A Associação das Forças de Segurança de Natureza Militar da Europa e do Mediterrâneo ou FIEP (de "França, Itália, Espanha e Portugal", países de origem dos quatro primeiros membros) é a associação internacional que reúne as Gendarmarias dos países da Europa e do Mediterrâneo. Fundada em 1994, a FIEP agrupa a Gendarmerie Nationale (Guarda Nacional) francesa, a Arma dei Carabinieri italiana, a Guardia Civil espanhola, a Guarda Nacional Republicana portuguesa, a Jandarma Genel Komutanlığı turca, a Koninklijke Marechaussee holandesa, a Gendarmerie Royale marroquina e a Jandarmeria Română romena, existindo, ainda, a Gendarmería Nacional Argentina e os Carabineros de Chile como membros associados. Tem como fim o de promover a cooperação e as especificidades dos seus membros, bem como a troca de experiências do exercício das atividades policiais com suas estruturas militares. Todos os membros da FIEP executam o Ciclo Completo de Polícia. 2.3 SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL Não se pode estudar a origem do Sistema de Segurança Pública no Brasil, sem que haja análise histórica do surgimento da violência social neste País, como fato provocador do comportamento atual da sua população e dos agentes responsáveis pelo provimento da segurança pública. O Brasil é um País que já nasceu sob o estigma da violência, a começar 23 pela colonização, a qual se deu por Portugal, com o puro interesse de explorar as riquezas da nova terra, tendo por finalidade aumentar ainda mais o seu poderio econômico. Por mais de 300 anos, o país sobreviveu nessa condição, sendo, exclusivamente, explorado em todas as suas riquezas, tanto minerais como extração de madeira, sem qualquer interesse em formar uma organização estatal ou uma nação. O Brasil se tornou oficialmente independente em 07 de setembro de 1822, portanto, há 190 anos, quando o seu povo passou a se conscientizar como nação livre. O Brasil tem menos tempo como País independente do que passou como colônia de Portugal. Durante o período colonial, os portugueses tentaram escravizar os nativos que aqui viviam. Como não conseguiram, trouxeram da África milhares de negros, a fim serem empregados na extração de minérios, madeiras e nos campos, na produção agropastoril. Assim, a violência passou a fazer parte do cotidiano do Brasil, iniciando-se pelo extermínio de milhares de nativos. Em seguida, escravizando os povos africanos, submetendo-os aos mais desumanos castigos, além da humilhação de trabalhar sem qualquer direito (malmente à alimentação). Eram desclassificados, marginalizados, numa total exclusão social. Por outro lado, para povoar a nova terra, os portugueses, também, trouxeram para cá pessoas da mais baixa qualificação, elementos marginalizados em Portugal, como prostitutas e degredados. Durante a colonização, foram criadas as capitanias hereditárias. Seus titulares, os Donatários, tinham poderes quase que absolutos, exercendo seu jugo com jurisdição cível e criminal. Assim, o poder político e administrativo da colônia foi fragmentado pelos donos das terras, ou seja, em mãos privadas, completamente disperso. A segurança era propiciada por grupos de pessoas contratadas pelos Donatários, portanto, por mercenários, armados pelos senhores das terras, que só conheciam como limites as ordens dos patrões, que tinham o poder de vida e morte em seus domínios. Em 1888, a 13 de maio, ocorreu a abolição da escravatura, completando em 2012, 124 anos de liberdade dos escravos. Imagina-se que, após a abolição, os negros se tornaram livres, fato que, na prática, não ocorreu, pois eles não 24 tinham para onde ir, não tinham terra para produzir, não tinham moradia, nem alimento para consumir. Consequentemente, muitos continuaram nos engenhos na mesma condição anterior. Outros abandonaram os seus senhores e foram viver em guetos, formando grandes bolsões de miséria. As oportunidades para os negros e índios sempre foram reduzidas (escolas, trabalho, alimento, terras, moradia, vestuário, etc.) tornando esses grupos “excluídos sociais”. Com o passar dos tempos, os grandes centros urbanos, devido à industrialização e às melhores condições de vida, atraíram milhares de pessoas das regiões menos favorecidas, esvaziando os campos e provocando o inchaço nas cidades, aumentando ainda mais os bolsões de miséria, pois os centros urbanos não tinham capacidade para absorver esse número de pessoas desprovidas de qualificação funcional, sendo a maioria apenas com capacidade para o trabalho braçal. Como consequência, surgem os problemas de saúde, educação, desemprego em massa, moradia, saneamento básico, corrupção, falta de alimentos para todos: a favelização. O desequilíbrio social traz consigo um componente perturbador, destruidor e desesperador: a violência social. Como revela Victoria-Amálio de Barros Carvalho G. de Sulocki, é importante entendermos esse processo específico da estruturação do Estado brasileiro, pois que essa formação colonial nos legou traços fundamentais presentes até hoje nas práticas sociais, econômicas e políticas do país. Na dispersão do poder político durante a colônia e na formação de centros efetivos de poder locais, se encontram os fatores reais do poder, que darão a característica básica da organização política do Brasil: a formação coronelística oligárquica. A violência inerente às relações escravistas e à dominação colonial, agregava-se a violência oficial da atuação das autoridades públicas. (VICTORIA, 2007, p.59). Em 1808, com a vinda de D. João VI para o Brasil, a colônia passa a viver uma situação totalmente diferenciada. Mudanças estruturais e administrativas são imediatamente adotadas, como fixar uma determinada ordem jurídica, instalar diferentes órgãos públicos, de forma que a Corte pudesse se instalar com uma mínima organização possível. Um dos serviços que surgiram com a vinda do Rei de Portugal para o Brasil foi a organização 25 policial da cidade do Rio de Janeiro, tendo como modelo o existente em Portugal. Assim, em 10 de maio de 1808, foi criada a Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil, sendo designado como seu IntendenteGeral de Polícia da Corte o Desembargador e Ouvidor da Corte, Paulo Fernandes Viana. Em 1809, especificamente, no dia 13 de maio, surge a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, organização regular, uniformizada, estruturada com base na hierarquia e disciplina, dando origem à Polícia Militar dos Estados, como vemos na atualidade. Essa organização tinha como encargo prover a segurança e a tranquilidade pública da cidade. A primeira Constituição do Brasil, outorgada em 1824, não tem qualquer capítulo ou artigo referente à segurança pública, porém, outorga ao Imperador a condição de prover tudo que for concernente à segurança interna e externa do Estado. Portanto, eram concentrados nas mãos do Imperador os poderes militar e policial. Nesse período, foi criado o Código Criminal do Império. Os crimes foram divididos em três categorias, ou tipificações: crimes públicos, que estavam na esfera da segurança nacional e da ordem pública; os crimes particulares, praticados contra a pessoa e o patrimônio privado; e os crimes policiais, relacionados à ofensa moral e aos bons costumes. A primeira Constituição Republicana surge com a Proclamação da República, a qual remete para os Estados a responsabilidade pela manutenção da ordem e da segurança públicas, defesa e garantia da liberdade e dos direitos dos cidadãos, quer nacionais, quer estrangeiros. Já previa a Constituição de 1891 a intervenção federal em caso de faltarem a qualquer Governo Estadual os meios para reprimir as desordens e a capacidade de assegurar a paz. Estabeleceu, também, que os Estados poderiam decretar a organização de uma guarda cívica destinada ao policiamento do território local. Com isso, os Governos dos Estados passaram a ter forças policiais. Em virtude dos problemas advindos do descrédito da República, os problemas se agravaram, dando surgimento a vários movimentos sociais. Em 1932, travou guerra contra o Exército, disputa que Getúlio Vargas só venceu por contar com o apoio da polícia mineira (GERMANO, 2006). Isso estimulou a Constituição de 1934 a declarar as forças públicas estaduais como “forças auxiliares e de reserva do 26 Exército”, disposição que permanece até hoje. Nesse período nasce a Constituição de 1934, na qual é criado o Conselho Superior de Segurança Nacional, órgão responsável pelos estudos e coordenação das questões relativas à segurança nacional do país. Essa Constituição passou para a União a competência privativa de legislar sobre a organização, instrução, justiça e garantias das forças policiais dos Estados; passou às Polícias Militares a condição de reserva do Exército, em caso de serem mobilizadas ou estiverem a serviço da União. As Polícias Militares tinham como competência: a vigilância e garantia da ordem pública; a garantia do cumprimento da lei, da segurança das instituições e do exercício dos poderes constituídos; o atendimento à convocação do Governo Federal em caso de guerra externa ou grave comoção intestina. Em 1937, é outorgada uma nova Constituição. Nesta Carta Magna manteve-se, praticamente, os mesmos preceitos da anterior: permaneceu a condição do Governo Federal intervir nos Estados para restabelecer a ordem gravemente alterada; manteve a situação de somente o Governo Federal legislar sobre a organização, instrução, justiça e garantias das forças policiais dos Estados. Pela primeira vez, especifica-se numa Constituição a divisão das organizações policiais, quando estabelecia que todos os Decretos que dispusessem sobre o bem estar, a ordem, a tranquilidade e a segurança pública, bem como a fixação do efetivo, armamento, despesa e organização da Força Policial (aí se entenda como Polícia Militar), Corpo de Bombeiro, Guarda Civil e Corporações de natureza semelhante deveriam ser aprovados pelo Presidente da República. A Constituição de 1946 traz avanços quanto à proteção da liberdade e das garantias individuais. Abandonou a nomenclatura “Forças Policiais”, só se referindo às Polícias Militares, tanto é que, no seu Art. 5º define: Compete à União: .......................................................................................... XV – legislar sobre: .......................................................................................... a) organização, instrução, justiça e garantias das polícias militares e condições gerais de sua utilização, pelo Governo Federal nos casos de mobilização ou guerra. 27 Em 1967, é promulgada uma nova Constituição. Assim como as anteriores, a preocupação maior não foi criar organizações voltadas para a solução dos problemas de segurança pública, tanto é que não havia citações das Polícias Civis. Manter o controle das Polícias Militares era o ponto central do Governo Federal. A Constituição de 1967, no seu Art 8º, tinha o seguinte dispositivo: Art 8º - Compete à União: .................................................................. XVII – Legislar sobre: .................................................................... v) organização, efetivos, instrução e garantia das polícias militares e condições gerais de sua convocação, inclusive, mobilização. Já no Art. 13, parágrafo 4º, estabelecia: As Polícias Militares, instituídas para a manutenção e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, e os corpos de bombeiros militares, são considerados forças auxiliares e reservas do Exército, não podendo os respectivos integrantes perceber retribuição superior à fixada para o correspondente posto ou graduação do Exército, absorvidas, por ocasião dos futuros aumentos, as diferenças a mais, caso existentes. Ampliando o controle das Polícias Militares pela União, foi criada a Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), integrante da estrutura do Exército, com o objetivo de assegurar que aquelas organizações estavam seguindo a doutrina estabelecida pela Força Federal. Na verdade, o comando das Polícias Militares não era dos Governadores dos Estados e, sim, do Governo Federal, através do Exército Brasileiro. Desta forma, as Polícias Militares seguiram rigorosamente o modelo militar do Exército, doutrina, emprego, ensino e instrução etc. A doutrina voltada para a segurança pública tinha menor relevância. A Constituição Federal atual, promulgada em 05 de outubro de 1988, resultou de uma mudança total da maneira do constituinte enxergar a segurança pública no Brasil. Como especificado no ítem 2.4 deste trabalho, a Carta Magna de 1988, no seu Artigo 144, combinado com os Artigos referentes ao Poder Judiciário, criou um verdadeiro sistema de segurança pública. A Constituição divide entre o Governo Federal, os Governos Estaduais e 28 do Distrito Federal a responsabilidade pela segurança pública, explicitando claramente as missões de cada órgão, como Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, bem como do Poder Judiciário, além de estender para as Prefeituras as responsabilidades pelo patrimônio próprio com a criação de Guardas Municipais. Como se verifica nesse pequeno levantamento histórico, a segurança pública no Brasil só veio a ser direcionada adequadamente para o seu sentido próprio a partir de 1988. Antes, tinha o seu sentido misto, ora voltado para a defesa do Estado, ora voltado para o combate à violência. 2.4 O SISTEMA ATUAL DE SEGURANÇA PÚBLICA BRASILEIRO. A atual Constituição Brasileira, no Título V, DA DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS, Capítulo III, Art.144, estabelece que a segurança pública seja exercida através dos seguintes órgãos: - Polícia Federal, a quem cabe apurar as infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesse da União e de suas entidades e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme; prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins; exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras; exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária; - Polícia Rodoviária Federal, a quem cabe o patrulhamento ostensivo das rodovias federais; - Polícia Ferroviária Federal, a quem cabe o patrulhamento ostensivo das ferrovias federais; - Polícias Civis, que têm as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais; - Polícias Militares, a quem cabe a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; 29 - e Corpos de Bombeiros Militares, a quem incumbe a execução de atividades de defesa civil. Incluiu, também, a Constituição Federal, na esfera da segurança pública, os Municípios, os quais poderão constituir Guardas Municipais destinadas à proteção dos seus bens, serviços e instalações. Verifica-se, assim, que, embora haja um grupo de órgãos voltado para um fim específico, a segurança pública, por si só, não forma um sistema completo de segurança pública, pois, o constituinte não lançou no Capítulo V da Carta Magna o subsistema judiciário e o subsistema penitenciário. Assim, o Art. 144 apresenta, na verdade, uma parte do sistema. Na Carta Magna está prevista, ainda, a participação das Forças Armadas, quando, no Art. 142, define que estas deverão garantir a Lei e a Ordem, em caso de convocação por um dos três Poderes da República. Para os deveres da segurança pública, a Constituição não excluiu nem o povo, quando firma o conceito de que a segurança pública é “direito e responsabilidade de todos”. A inserção das Prefeituras, também, foi prevista no Art. 144, parágrafo 8º, ao autorizar a criação de Guardas Municipais com o fim de promover a proteção dos bens, serviços e instalações municipais. A responsabilidade pelo controle do trânsito urbano foi transferida para os Municípios, o que remete definitivamente as prefeituras para a segurança pública, pois, sabe-se que o trânsito (movimento de veículos e pedestres nas vias públicas) é um dos grandes problemas atuais de segurança para a sociedade brasileira. O Código de Trânsito Brasileiro, inclusive, define os crimes de trânsito. Portanto, as prefeituras também são responsáveis por um segmento da segurança pública. Para complementar o Sistema de Segurança Pública, o Governo Federal criou o Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP), desde 1990, através do Decreto nº 98.938, que foi sofrendo alterações através de outros Decretos, chegando ao Decreto de nº 7.413, de 30 de dezembro de 2010. O CONASP integra a estrutura básica do Ministério da Justiça, tendo por finalidade formular e propor diretrizes para as políticas públicas voltadas à promoção da segurança pública, prevenção e repressão à violência e à criminalidade, e atuar na sua articulação e controle democrático. Em 1998, o Governo Federal criou a Secretaria Nacional de Segurança 30 Pública (SENASP), com a finalidade de assessorar o Ministro da Justiça na definição e implementação da Política Nacional de Segurança Pública, e em todo território nacional, acompanhar as atividades dos órgãos responsáveis pela segurança pública, por meio das seguintes ações: desenvolver e apoiar projetos de modernização das instituições policiais no País; manter e ampliar o Sistema Nacional de Informações de Justiça e Segurança Pública (INFOSEG); efetivar o intercâmbio de experiências técnicas e operacionais entre os serviços policiais; estimular a capacitação dos profissionais da área de segurança pública; e realizar estudos, pesquisas e consolidar estatísticas nacionais de crimes. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) é responsável por promover a qualificação, padronização e integração das ações executadas pelas instituições policiais de todo o país, em um contexto caracterizado pela autonomia destas organizações. A SENASP vem obtendo bons resultados desde a sua criação. Em 2003, o Governo Federal, ao verificar a problemática da segurança pública no Brasil, criou o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), quando a SENASP se consolidou como órgão central de planejamento e execução das ações de segurança pública em todo o País. Os gestores das organizações de segurança pública, em todas as unidades da federação, passaram a se reunir regularmente para planejar e executar as ações por meio dos Gabinetes de Gestão Integrada (GGI). A gestão das ações de segurança pública no país passou a contar com o apoio de uma série histórica de informações estatísticas coletadas pelo Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal (SINESPJC). SUSP é um sistema criado para articular as ações federais, estaduais e municipais na área de segurança pública e da justiça criminal. Essa articulação não fere a autonomia dos Estados ou das Polícias Militares e Civis, não se tratando de unificação, mas de integração prática. Também na estrutura da SENASP, como órgão central, foi 31 criado, no ano 2000, o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, com a finalidade de coordenar e integrar as atividades de inteligência em segurança pública no país. O Governo Federal, em suas ações voltadas para a segurança pública, através do Ministério da Justiça, desenvolveu o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI. Este programa foi instituído pela Lei 11.530, de 24 de outubro de 2007, que foi alterada pela Lei 11.707, de 19 de junho de 2008. Conforme a Lei, o PRONASCI destina-se a articular as ações de segurança pública para a prevenção, controle e repressão da criminalidade, estabelecendo políticas sociais e ações de proteção às vítimas. No entanto, mesmo esse programa de governo vem perdendo força com o passar do tempo, como podemos ver no gráfico abaixo, que demonstra as despesas previstas e realizadas pelo PRONASCI ao longo do tempo. Gráfico 01 – Recursos financeiros autorizados e liquidados (2008 – 2012) Obs. 2012 até março Fonte: SIGA/Brasil O ano de 2010 teve o maior valor de despesas liquidadas pelo PRONASCI, mas a partir daí teve uma enorme redução em 2011, e, a contar pelos valores já liquidados até março de 2012, este ano teremos a menor despesa da história do programa. 32 3 AVALIAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA BRASILEIRA ATUAL. Até agora, vimos como está estruturado o sistema atual de segurança pública brasileiro, tendo sido feita uma análise através do tempo, citando como estava disposto nas Constituições Brasileiras, até a atualidade. Assim, vimos que o Brasil possui um Sistema de Segurança Pública que é fundamentado em diversas Leis Federais e Constituições Estaduais. Mas esse Sistema vem funcionando adequadamente como previsto na legislação? E a população brasileira se sente segura ou confia no Sistema que possui? Para saber se o Sistema de Segurança Pública está funcionando, seria necessário responder às seguintes perguntas: a) Os órgãos do Sistema funcionam de forma coesa, há sequência de procedimentos? b) A Polícia Federal consegue policiar as fronteiras brasileiras, a ponto de evitar o narcotráfico e o contrabando de armas? c) As Polícias Militares de cada Estado conseguem prover a tranquilidade necessária, de forma que a população se sinta realmente segura? d) A Polícia Federal e as Polícias Civis conseguem desvendar a maioria dos crimes cometidos, de forma a levar o Poder Judiciário promover um julgamento justo daquele que cometeu o ilícito penal? Se nós, brasileiros, não estamos conseguindo responder “SIM” às perguntas acima formuladas, alguma coisa está errada com o Sistema de Segurança Pública. O Sistema de Segurança Pública Brasileiro tem funcionado adequadamente? Ou não funciona? O modelo atual prevê que: as Polícias Militares façam a prevenção das ocorrências criminais em cada unidade da Federação, repassando as ocorrências criminais à polícia investigativa, atividade que tem deixado muito a desejar; as Polícias Civis investiguem os crimes que ocorrem em cada Estado Federado, dando continuidade a ação do policiamento ostensivo, o que não ocorre exatamente assim. 33 Em recente trabalho elaborado pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento Gerencial (INDG), realizado por contratação do governo do Estado da Bahia, foi realizada uma pesquisa a respeito da efetividade do processo de contenção do crime naquele Estado, chegando-se ao resultado que abaixo se vê: EfEfetividade do processo de contenção do crime na Bahiaetividade do processo de contenção do crime na Bahiado processo de contenção do crime na Fonte: SSP, INDG, nov/2008 INDG, Bahia:(SSP, Figura 02 - Efetividade do processo de contenção do crime na Bahia Fonte: SSP-BA/INDG, Diagnóstico da Segurança Pública, nov/2008 2008): 223.451 Denunciados à Polícia 100% 14,6% 6,5% 3,2% 1,3% 32.637 Investigados 14.548 Denunciados pelo Ministério Público 7.197 Condenados Transitado em Julgado 2.871 Presos em Cumprimento de Pena A interrupção do processo, que ocorre quando uma instituição repassa a ocorrência para outra, tem trazido grandes prejuízos ao processo de contenção do crime no Brasil. A grande defasagem entre as denúncias à polícia e as consequentes investigações, demonstrado na Figura 02, poderia ser tremendamente reduzida com a adoção do Ciclo Completo de Polícia. 3.1 ESTRATÉGIA NACIONAL DE JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA A ENASP (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública), que foi criada em fevereiro de 2010, por ato do Ministro de Estado da Justiça, do Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público e do Presidente do Conselho Nacional de Justiça, tem como objetivo planejar e implementar a coordenação de ações e metas nas áreas de justiça e segurança pública, em âmbito nacional, que exijam a conjugação articulada de esforços dos órgãos envolvidos. A ENASP reúne representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e 34 Judiciário, do Ministério Público, da Advocacia Pública e Privada, da Defensoria Pública, tanto em âmbito federal quanto estadual, além de outros órgãos que precisam ser envolvidos para a concretização das metas. Dentre as ações estabelecidas para 2010 e 2011, foram destacadas as seguintes: agilizar e obter mais efetividade na apuração, denúncia e julgamento de crimes de homicídios; erradicar as carceragens nas delegacias de polícia; criar o cadastro nacional de mandados de prisão, inclusive, provisórias e apreensões de adolescentes em conflito com a Lei. O Conselho Nacional do Ministério Público apresentou propostas para a ENASP, cujo objetivo é agilizar as investigações e os julgamentos dos crimes de homicídios. Para tanto, foram fixadas quatro metas: eliminar a subnotificação nos crimes de homicídios; concluir todos os inquéritos e procedimentos que investigam homicídios dolosos instaurados até 31 de dezembro de 2007; alcançar a pronúncia em todas as ações penais por crimes de homicídios ajuizadas até 31 de dezembro de 2008; e, julgar as ações penais relativas a homicídios dolosos distribuídas até 31 de dezembro de 2007. Dentre estas, a que mais impacta na sensação de segurança da população é a META 2 (concluir todos os inquéritos e procedimentos que investigam homicídios dolosos instaurados até 31 de dezembro de 2007). O homicídio é o crime mais grave, praticado contra o bem maior protegido pelo ordenamento jurídico – a vida. Segundo o Mapa da Violência 2012, pesquisa anualmente produzida pelo Instituto Sangari para o Ministério da Justiça, o Brasil tem 26,2 homicídios para cada 100 mil habitantes, índice que, no contexto internacional, equivale à situação de violência endêmica. A taxa máxima admitida internacionalmente é de 10 homicídios por 100 mil habitantes. E assim se pronuncia o RELATÓRIO NACIONAL DA EXECUÇÃO DA META 2: O índice de elucidação dos crimes de homicídio é baixíssimo no Brasil. Estima-se, em pesquisas realizadas, inclusive a realizada 35 pela Associação Brasileira de Criminalística, 2011, que varie entre 5% e 8%. Este percentual é de 65% nos Estados Unidos, no Reino Unido é de 90% e na França é de 80%. A quase totalidade dos crimes esclarecidos decorre de prisão em flagrante e da repercussão do caso nos meios de comunicação. As delegacias de polícia, por inúmeras causas, dedicam-se apenas aos homicídios novos. A imensa maioria dos inquéritos acaba paralisada nas delegacias de polícia, em situação de arquivamento de fato, o que contraria a legislação processual penal, que estabelece a necessidade de proposta do Ministério Público e acolhimento pelo juiz para os casos de arquivamento. A ausência de eficiência na persecução penal e a consequente impunidade são fatores que contribuem para o aumento do número de homicídios. (RELATÓRIO NACIONAL DA EXECUÇÃO DA META 2, 2012) Do levantamento realizado em todos os Estados e Distrito Federal, que chegou ao total de 134.944 inquéritos classificados nos parâmetros da Meta 2, ou seja, instaurados até 31 de dezembro de 2007 e que ainda não estavam finalizados, a maior concentração ocorreu na Região Sudeste, com 76.780 inquéritos, ou 56,9% do total. Na outra ponta, a Região Norte apresentou um estoque inicial de 5.400 inquéritos, ou 4% do total. Quadro 02 - Quantitativo levantado de inquéritos instaurados no Brasil até 31 de dezembro de 2007 Fonte: Relatório ENASP 2012 E o relatório das ações e resultados foi devidamente divulgado pelo Comitê Gestor da ENASP no último mês de junho. O resultado das ações pode ser constatado no gráfico abaixo. 36 Gráfico 02 - Resultado do esforço nacional para execução da Meta 2 da ENASP Fonte: Relatório ENASP 2012 Segundo o critério adotado para se ter como cumprida a Meta 2, que é o da conclusão de 90% do estoque inicial de inquéritos abertos até o ano de 2007, tiveram pleno sucesso os seguintes Estados: • Acre; • Roraima; • Piauí; • Maranhão; • Rondônia; e • Mato Grosso do Sul. 37 Gráfico 03 – Unidades da Federação que cumpriram a Meta 2 da ENASP Fonte: Relatório ENASP 2012 Em sua avaliação do relatório, o Comitê Gestor afirma: Diversos agentes da segurança pública atendem ao local de crime. Aquele que primeiro chega, normalmente um policial militar, após verificar que não mais há possibilidade de prestar socorro à vítima, constatando sua morte, não deve fazer qualquer incursão sobre o local na busca de elementos que possam auxiliar na elucidação. Sua missão é isolar, da forma mais ampla possível, o perímetro em que se deu o evento, garantindo que a cena do crime seja preservada para avaliação dos peritos e investigadores. O que ocorre na prática, porém, é que o isolamento, quando ocorre, é mínimo, sendo comum que outros agentes, não responsáveis pela investigação, movimentem a cena crime e o corpo da vítima, na tentativa de localizar a identificação e eventuais elementos de prova, comprometendo, em especial, a perícia de local de crime, para cuja efetividade é fundamental que tudo seja mantido na exata posição em que estava no momento da chegada dos agentes do Estado ao local. A remoção, antes da chegada dos peritos, do corpo de vítima que já não mais vive é outra medida que causa grande impacto negativo na investigação. Uma maior definição de papéis e a capacitação permanente dos agentes policiais que atendem a cenas de crime são fundamentais para uma maior efetividade (RELATÓRIO NACIONAL DA EXECUÇÃO DA META 2- ENASP, 2012). O fato de serem os órgãos de perícia, em algumas unidades da federação, independentes dos órgãos policiais ainda traz dificuldades para o andamento dos inquéritos, ainda segundo o Relatório da ENASP-2012: Identificou-se como rotina, em algumas unidades, a realização da prova técnica (necroscopia, exame de local, exame toxicológico, exame de balística, entre outros) sem a imediata elaboração do laudo pericial. Diante da carência de peritos frente às demandas que se acumulam, legistas, peritos criminalísticos e de laboratório registram de forma 38 singela alguns apontamentos sobre sua análise em formulários para, em momento posterior, confeccionar o laudo técnico. Ocorre que, em boa parte dos casos, a tarefa subsequente fica pendente, resultando em grande prejuízo à agilidade e ao potencial elucidativo da investigação, que por muito tempo resulta sobrestada no aguardo da juntada do laudo. Em parte das vezes esse laudo sequer pode vir a ser confeccionado, porque aquele que realizou o exame não mais se encontra desenvolvendo suas funções no mesmo local e outro dificilmente, a partir de simples apontamentos de caráter pessoal, terá condições de apresentar conclusões consistentes sobre uma prova que não realizou ou acompanhou (RELATÓRIO NACIONAL DA EXECUÇÃO DA META 2- ENASP, 2012). Ainda segundo esse Relatório, outros fatores ligados à falta de entrosamento entre os órgãos isolados interferem na resolução do crime: Ocorrem situações em que sequer o registro de ocorrência é fornecido ao médico-legista, informações sobre a cena do crime que poderiam auxiliar na identificação de sinais que conduzissem ao melhor esclarecimento do homicídio (RELATÓRIO NACIONAL DA EXECUÇÃO DA META 2- ENASP, 2012). 3.2 SENSAÇÃO DE INSEGURANÇA NO BRASIL Diante de tudo já exposto, qual seria o resultado de uma consulta à população brasileira quanto à sua sensação de segurança? Para sanar essa questão, o Instituto de Pesquisa Econômica (IPEA), fundação pública federal vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República saiu a campo. As atividades de pesquisa do IPEA fornecem suporte técnico e institucional às ações governamentais para a formulação e reformulação de políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiros. Assim, foi criado o Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), sendo realizados levantamentos periódicos sobre a percepção da sociedade a respeito de determinados temas. No último mês de julho foi publicado o resultado do levantamento realizado no primeiro semestre de 2012, baseado na aplicação de 3.799 questionários em todo o Brasil. Dos diversos questionamentos realizados, destacamos os seguintes, para um melhor entendimento da finalidade deste trabalho: 39 Quadro 3 – Medo de assassinato (por regiões e Brasil) Fonte: Pesquisa SIPS – Ipea, 2012 Quando se trata do medo de assassinato, a região Sul é onde a população se considera mais tranquila. Enquanto 39,1% dos respondentes afirmam ter muito medo de serem assassinados, essa porcentagem sobe para 72,9% no Nordeste. O contraste entre as duas regiões permanece nas diversas questões apresentadas. Quadro 4 – Confiança nas instituições policiais (Brasil) Fonte: Pesquisa SIPS – Ipea, 2012 As Polícias Federais contam com um maior grau de confiança por parte da população: 50,9% dos entrevistados confiam ou confiam muito na Polícia Federal e 49,5% confiam ou confiam muito na Polícia Rodoviária Federal. As porcentagens equivalentes para as organizações estaduais são 38,6% para Polícia Civil e 37,5% para Polícia Militar, com um real “empate técnico” nos indicadores entre essas duas polícias. As duas “meias-polícias” estaduais passam pelos mesmos problemas no Brasil, sendo alvo das mesmas percepções por parte da população. 40 3.3 CICLO COMPLETO DE POLÍCIA NA 1ª CONASP De forma alguma podemos dizer que o tema Ciclo Completo de Polícia é completamente desconhecido pela população brasileira. Teve lugar em Brasília, no período de 27 a 30 de agosto 2008, com a participação de aproximadamente três mil pessoas, entre trabalhadores do setor, gestores públicos e sociedade civil, representando as 27 Unidades da Federação, a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, a qual definiu um conjunto de “10 princípios” e “40 diretrizes”, que serviriam de base para a construção de uma política de segurança pública para o Brasil. Das 40 diretrizes definidas, destacamos a seguinte: 4. 2.6 A - Estruturar os órgãos policiais federais e estaduais para que atuem em ciclo completo de polícia, delimitando competências para cada instituição de acordo com a gravidade do delito sem prejuízo de suas atribuições específicas. (868 VOTOS) (ROLIM, 2009) Devido ao modelo adotado pela sociedade brasileira para a realização daquela 1ª Conferência, ela foi bastante representativa dos desejos e aspirações do nosso povo a respeito de como deseja que seja estruturado o sistema policial nacional. E o princípio acima destacado, com um total de 868 votos dos participantes, mesmo depois de mais de 4 anos de sua definição, ainda não surtiu nenhum tipo de efeito na segurança pública nacional. 3.4 O PROCESSO POLICIAL BRASILEIRO Em praticamente todos os países modernos, a persecução penal é precedida de uma fase preliminar ou preparatória, destinada a apurar se houve crime e a identificar o seu autor. A atribuição de conduzir essa fase preliminar pode ser exclusivamente da Polícia (sistema inglês, na tradição da Common Law) ou do Ministério Público, que dispõe para isso da Polícia Judiciária (sistema continental, na tradição da Civil Law). No sistema continental, essa fase preliminar pode também ser complementada pelo instituto do Juizado de Instrução, que dispõe da Polícia Judiciária para aprofundar as investigações. No 41 Brasil, e apenas no Brasil, encontramos uma solução não somente mista, mas ambivalente na persecução criminal: cabe à Polícia a investigação preliminar como também o aprofundamento das investigações e um relatório juridicamente orientado do resultado dessas investigações. Esse relatório, chamado “inquérito policial”, não deve ser confundido com a mera investigação policial, pois inclui depoimentos transcritos em cartório, além das necessárias peças periciais. É, assim, a “forma jurídica” que a investigação policial deve adquirir para chegar às demais instâncias judiciárias. É, portanto, uma forma de “instrução criminal”. A responsabilidade pelo inquérito policial cabe a uma autoridade policial, que recebe essa delegação do chefe de polícia. Para possuírem a prerrogativa de “delegados” do chefe de polícia, e, portanto, de autoridade policial que têm o dever de “relatar” o inquérito policial e “indiciar” suspeitos da autoria de um crime, precisam fazer um concurso público, que exige o diploma de bacharel em Direito e o reconhecimento profissional da Ordem dos Advogados do Brasil. Não são, portanto, apenas policiais, como no resto do mundo, mas delegados de uma função, de uma atribuição que pertencia, na origem, ao Judiciário. Quando se constituiu essa tradição, no Brasil imperial, o chefe de polícia tinha que ser, por exigência legal, um juiz. A ambivalência, aqui, resulta da fusão de duas prerrogativas na autoridade responsável pelo inquérito policial: a de investigar (função administrativa) e a de “formar a culpa” (função judiciária), isto é, a de dar início, por meio do “indiciamento” e da “tomada de depoimentos” por escrito, em cartório, a uma etapa que na prática, por assim dizer, adquire um status instrucional, já que será inteiramente incorporada ao processo. Tudo isso se dá sob um enquadramento funcional administrativo, isto é, aparentemente sem nenhum valor judicial, pois que dependente de ser encampado total ou parcialmente, no momento da denúncia, pelo Ministério Público. Por definir-se como uma etapa “administrativa”, mas executada por uma “Polícia Judiciária”, a ambivalência dispensa a defesa e o contraditório nessa etapa. Como essa etapa “administrativa” é inteiramente inquisitorial, isto é, como dela não participa o contraditório nem a produção de provas e tomadas de depoimentos que interessem à defesa (antes ou mesmo depois do indiciamento), pode-se dizer que o inquérito policial, nessa forma, é único no mundo, pois reúne o estatuto da neutralidade da investigação policial com a 42 potencial atribuição de formação da culpa, que é inerente ao poder de “indiciar” e de produzir provas por meio de depoimentos tomados em cartório, com vistas a servir para “demonstrar” a autoria do crime. É como se, no delegado de polícia brasileiro, as atribuições da polícia, no sistema inglês, estivessem, ao mesmo tempo, operando autônoma e subordinadamente às atribuições do juiz de instrução do sistema continental; porém, no Brasil o delegado não tem o poder de decidir pela denúncia, atribuição que cabe ao Ministério Público. A questão aqui decorre da consagração, pela Corte Europeia, do princípio do “separatismo”, que retira de quem investiga o direito de acusar, deixando-o a outra instância. No Brasil, essa separação, consagrada no instituto de que cabe exclusivamente ao Ministério Público o direito de denunciar, mas não de investigar, ficou a meio-caminho, pois manteve no delegado de polícia, através do inquérito policial, não só a função de investigar como a maior parte das funções de “formação da culpa”. O Ministério Público fica na posição de apenas encampar o inquérito ou reenviá-lo ao delegado por considerar que as provas são insuficientes, dando-lhe novos prazos. Nesse caso, o inquérito vai e vem, sem saber onde repousar ou ganhar o mérito de se transformar em denúncia. E até aqui não há, ainda, formalmente, qualquer participação necessária do acusado e de sua defesa. A ambivalência ganha, aqui, sua expressão mais evidente. É o chamado “pingue-pongue”, o vai e vem do inquérito policial entre a delegacia e o MP – um modo de o inquérito não ficar em lugar nenhum, até que – passados meses e, em não poucos casos, anos – ele venha a ser arquivado. Foi exatamente isto que ficou comprovado no Relatório Nacional da Execução da Meta 2- ENASP, 2012. Em seu livro “O Inquérito Policial no Brasil, uma Pesquisa Empírica”, Michel Misse apresenta a seguinte conclusão: De um modo geral, sem entrar na variedade e nas especificidades do inquérito policial encontradas em cada cidade, podemos listar alguns resultados gerais, comuns à pesquisa. Em primeiro lugar, constatou-se em todas as capitais estudadas, um volume muito elevado de ocorrências criminais, especialmente se relacionado ao efetivo de investigadores e autoridades policiais incumbidos de dar-lhe tratamento. Essa constatação é agravada pela desconexão prática do trabalho investigativo com a rotina de policiamento preventivo das Polícias Militares, também observada em todas as áreas pesquisadas. 43 No caso de homicídio doloso, especialmente, o problema é agravado pelo fato de que a preservação do local do crime nem sempre é feita pela Polícia Militar, a primeira a chegar, e nem essa é treinada para iniciar ou lhe é permitida realizar as investigações iniciais, decisivas nesse e em outros tipos de crime. Em compensação, verificou-se que grande parte dos crimes que apresentam melhor taxa de elucidação resultam de flagrantes, isto é, do trabalho das Polícias Militares e não de investigações da Polícia Civil. Polícias de ciclo completo poderiam resolver esse problema, mesmo mantendo as duas corporações separadas. (O Inquérito Policial no Brasil, uma Pesquisa Empírica, Michel Misse - organizador) Diante das assertivas acima, chega-se à conclusão que o Sistema de Segurança Pública Brasileiro não funciona em sua plenitude. O povo brasileiro demonstra grande insatisfação com a questão segurança pública no País. No entanto, por não entender o seu funcionamento, ou por ser mal informado, credita todas as mazelas da segurança às Polícias Civis e Militares, como se estas fossem as responsáveis únicas pelo que vem ocorrendo no Brasil. Uma das causas desse errado entendimento é o fato dessas organizações estarem na ponta do Sistema. Como se fosse uma doença, onde as causas não são combatidas, começa-se a aplicar remédios apenas para sanar as dores, porém, depois de determinado momento de alívio, as dores retornam e tudo volta ao sofrimento anterior e, às vezes, pior, pois as origens estão intactas. Não é diferente com a segurança pública, onde as causas são por demais conhecidas, porém de difícil combate. 3.4.1 Polícia Federal Deveria fazer o ciclo completo de policiamento, porém, tem dificuldade para executar as ações preventivas, principalmente, relativas a: tráfico de drogas, de armas, de mulheres, de crianças, contrabando, descaminho e outros crimes de sua competência. O Brasil não produz cocaína, no entanto, esta droga está espalhada por todo o território nacional, além do Brasil fazer parte de umas das rotas internacionais do tráfico de drogas. Devido às suas ações quase que totalmente voltadas para o setor investigativo, uma boa parte da população desconhece o lado preventivo da Polícia Federal. Enquanto as Polícias Militares são legalmente responsáveis apenas pela prevenção e as Polícias Civis pelas investigações, a Polícia Federal é responsável pela prevenção e pelas investigações dos crimes de sua 44 competência. Mas seu efetivo é muito pequeno, um pouco mais de 11.000 homens em todo Brasil, o que a torna incapaz de suprir as necessidades inerentes às duas funções. Por isso, a dificuldade em combater o tráfico, tanto de armas como de drogas nas fronteiras brasileiras, que são muito extensas. Mesmo se fosse possível acrescentar o efetivo necessário, o que seria um sonho utópico, ainda assim não garantiria a suficiência da prevenção e da investigação, em virtude da quantidade de crimes que se comete no país. 3.4.2 Polícia Militar A atuação preventiva é de grande importância, pois, a presença do policial militar de forma ostensiva constitui fator de desestímulo à prática de ilícitos penais e garante a preservação da ordem pública, influenciando de forma concreta no comportamento dos indivíduos. Caracteriza-se, nesta situação, como policia preventiva. Quando ocorre o fato delituoso, cabe à Polícia Militar fazer a repressão imediata, adotando as providencias que forem cabíveis. Tem por obrigação encaminhar as partes, juntamente com provas que possam existir, ao delegado da circunscricional competente para dar prosseguimento ao caso. Quando o policial militar exerce a repressão imediata, o mesmo está restaurando a ordem que foi violada e, para tanto, exerce uma típica ação de polícia repressiva. Normalmente, por ser parte apenas de metade do ciclo de policia, o policial militar não se interessa devidamente pelas atividades que são executadas posteriormente à entrega do evento policial em uma unidade de Polícia Civil, o que, certamente, prejudica sensivelmente a execução das atividades de polícia judiciária. As Polícias Militares, em todo o Brasil, passam por graves problemas, principalmente, quando se refere a efetivos e equipamentos. A quantidade de crimes cresceu de tal forma, que não existe efetivo capaz de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, pois, a presença do homem policial é fundamental para se evitar o ato criminoso. Os equipamentos utilizados pelas organizações policiais para a execução de suas atividades se tornaram um problema, não pela sua eficiência, mas por causa de sua escassez em uma boa parte das Polícias Militares. Sem equipamentos ou com equipamentos em quantidade insuficiente, 45 ou obsoletos, se torna difícil a atividade preventiva. Como os crimes e os atos de violência social se tornaram muito elevados, tanto em sua quantidade como no seu alto grau de agressividade, as Polícias Militares não estão conseguindo manter o controle dessa violência, não por incompetência, mas, por falta de efetivo suficiente para manter uma vigilância eficiente em todos os pontos possíveis de ocorrência de fatos delituosos. Um exemplo é o Rio de Janeiro, que tem mais de 500 comunidades carentes. Se forem colocadas Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) em apenas 200 comunidades, em torno de 200 Policiais em cada uma, seria necessário um efetivo adicional de, aproximadamente, 40.000 Policiais Militares. 3.4.3 Polícia Civil A essência da atribuição da Policia Civil é a atividade de Policia Judiciária. Tem por finalidade investigar os delitos que não puderam ser evitados pela ação preventiva. As atribuições da Policia Civil correspondem ao desenvolvimento das investigações, consubstanciando e formalizando os atos no auto de prisão em flagrante ou no inquérito policial. Com a ação da Policia Civil em sequência às ações da Policia Militar, completa-se o ciclo da polícia e concomitantemente se desenvolve o ciclo da persecução criminal, pois a fase investigatória antecede à fase processual. A Polícia Civil não demonstra reunir todas as condições de absorver e apurar o grande volume de registro de delitos que lhes são encaminhados, pois apresenta carências de várias ordens, tais como a falta de pessoal qualificado e escassez de recursos materiais, além dos problemas gerados pelo fracionamento da ação policial provocado por ser apenas uma polícia pela metade. Não consegue desvendar mais que 15% dos crimes ocorridos no País. Alguns Estados alcançam índices maiores, outros menores, porém, há uma sensação de pouca produção. Por outro lado, em todos os Estados brasileiros, as Delegacias se transformaram em depósito de presos. Para se formar uma ideia da gravidade do problema, em 2010, o Ministério da Justiça publicou em seus dados estatísticos que nas delegacias brasileiras existiam 50.546 presos, sendo 43.927 homens e 6.619 mulheres, no entanto, só 46 existem vagas para 16.753, sendo 15.652 para homens e 1.103 para mulheres. Isto significa que nas celas das Polícias Civis existe um excedente de presos na ordem de 33.791 pessoas, significando que essas pessoas estão amontoadas, em desobediência total aos seus direitos fundamentais. Os Policiais Civis deixam de cumprir o seu papel principal, que é de investigar os crimes, para cumprir o papel de carcereiros, num total flagrante de desvio de função. A competência legal da custódia dos presos pertence às Secretarias de Justiça ou de Assuntos Penitenciários) dos Estados e não às Polícias Civis. 3.4.4 Poder Judiciário No Brasil, cada Juiz tem sob sua responsabilidade milhares de processos criminais para solucionar. A cada dia que passa, o volume vai aumentando, tornando impossível promover o julgamento em um tempo adequado. Existem crimes que não vão a julgamento, pois, devido ao atraso durante o período processual, chegam a prescrever, tornando impune o elemento que o cometeu. Isso dá às vítimas e aos familiares uma grande sensação de impunidade e de incompetência do Poder Judiciário, ou seja, a incapacidade do Estado em prover a justiça. No Brasil, diversos crimes passam impunes pelo Poder Judiciário. Na verdade, quando se analisa o homicídio, pior de todos os crimes, a quantidade de punições é uma demonstração disto, porém, não se pode avaliar a capacidade da Justiça apenas por esse crime. Ao se fazer uma avaliação mais minuciosa, há que se considerar todas as tipificações criminais e é ai que se observa a grande falha dos julgamentos. Levando-se em consideração o somatório de todos os crimes, a Justiça não chega a 10% de julgamento no tempo adequado (Ver figura 01). É frustrante saber que o nosso Poder Judiciário encontra-se com capacidade reduzida para atender à demanda de processos que por lá chegam. 3.4.5 Subsistema Penitenciário Embora fosse constatado que existem falhas em todo o Sistema de 47 Segurança Pública, o Penitenciário é o que se apresenta da forma mais cruel. No Subsistema Penitenciário Brasileiro, praticamente, todos os princípios de direitos humanos são quebrados. A começar pela quantidade de presos em relação ao número de vagas, existem 496.251 presos no Brasil (Penitenciárias + Delegacias de Polícia), tendo apenas 298.275 vagas, redundando em um déficit de 197.976 (WAISELFISZ, 2012). Fazendo uma rápida análise, verifica-se que os presos estão amontoados nas diversas prisões pelo Brasil, pois existem muito mais pessoas encarceradas do que a capacidade instalada. Diversos são os noticiários por toda a mídia, onde relata que o Sistema Penitenciário é alvo constante de investidas criminosas, como, por exemplo, armas e drogas dentro das celas e bandidos que comandam outros meliantes de dentro das celas para o cometimento de diversos crimes. É um sistema incapaz de manter um preso dissociado do ambiente criminal. A Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que regula Execução Penal e Legislação Correlata, estabelece que a construção e administração dos presídios sejam da responsabilidade do Governo Federal, dos Governos Estaduais e do Distrito Federal. Assim estabelece a Lei: A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado; os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar e individualização da execução penal; e a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade, devendo a assistência ser estendida ao egresso, e será material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984). Estabelece, ainda, a Lei que o condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade. Diante das assertivas acima, chega-se à conclusão que o Sistema de Segurança Pública Brasileiro não funciona em sua plenitude. 3.4.6 Outros Órgãos Embora algumas pessoas entendam que Segurança Pública seja função única dos Estados Federados, a Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, 48 Art. 144, subdivide a responsabilidade entre o governo federal, os governos estaduais e municipais, cada qual com seu nível de responsabilidade. Ela estabelece as responsabilidades dos órgãos federais, como a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Ferroviária Federal, e também, dos órgãos estaduais, como as Polícias Militares e as Polícias Civis. Acrescenta, ainda, determinadas funções para as prefeituras municipais. O Governo Federal, entendendo que a segurança pública necessita de uma gestão mais centralizada, sem interferir na missão de cada Estado, resolveu implantar uma política nacional de segurança pública e convidou os Estados a aderirem, o que ocorreu. Assim, o Governo Federal criou o Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP), órgão colegiado que tem por finalidade: - atuar na formulação de diretrizes e no controle da execução da Política Nacional de Segurança Pública; - estimular a modernização institucional para o desenvolvimento e a promoção intersetorial das políticas de segurança pública; - desenvolver estudos e ações visando ao aumento da eficiência na execução da Política Nacional de Segurança Pública; - propor diretrizes para as ações de Política Nacional de Segurança Pública e acompanhar a destinação e aplicação dos recursos a ela vinculados; - articular e apoiar, sistematicamente, os Conselhos de Segurança Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com vistas à formulação de diretrizes básicas comuns, e à potencialização do exercício das suas atribuições legais e regulamentares; - estudar, analisar e sugerir alterações na legislação pertinente; - promover a integração entre órgãos de segurança pública federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais; propor a convocação e auxiliar na coordenação das Conferências Nacionais de Segurança Pública, e outros processos de participação social, e acompanhar o cumprimento das suas deliberações. O CONASP tem apresentado uma atuação muito tímida. Para se ter 49 uma ideia, somente após cinco anos de criado, é que foi elaborado o seu Regimento Interno. O novo estilo de conduzir a segurança pública pretende evitar que as ações sejam pautadas apenas por tragédias, sem planejamento nem tempo para pensar medidas estratégicas. O objetivo do SUSP é prevenir, criar meios para que seja possível analisar a realidade de cada episódio, planejar estratégias, identificar quais os métodos e os mecanismos que serão usados. O Governo de cada Estado não é obrigado a participar, porém, quando aceita, o que ocorre com praticamente todos, o Governador assina um protocolo de intenções com o Ministério da Justiça; dai, então, é criado no Estado um Comitê de Gestão Integrada, do qual fazem parte o Secretário Estadual de Segurança Pública, como Coordenador, e mais os representantes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Militar, da Polícia Civil e das Prefeituras Municipais. Entre o período de 2000 a 2003, os índices de criminalidade dispararam, principalmente, no eixo Rio x São Paulo, notadamente por causa do narcotráfico, que causava, na época, uma série de homicídios. Diante dessa situação, o Governo Federal lançou o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP), que foi idealizado com base em alguns princípios gerais que nortearam o estabelecimento de oito objetivos principais: promover a expansão do respeito às leis e aos direitos humanos; contribuir para a democratização do Sistema de Justiça Criminal; aplicar com rigor e equilíbrio as leis no sistema penitenciário, respeitando o direito dos apenados e eliminando suas relações com o crime organizado; reduzir a criminalidade e a insegurança pública; controlar o crime organizado e eliminar o poder armado de criminosos que impõem sua tirania territorial às comunidades vulneráveis, e a expandem sobre crescentes extensões de áreas públicas; bloquear a dinâmica do recrutamento de crianças e adolescentes pelo tráfico; ampliar a eficiência policial e reduzir a corrupção e a violência; e 50 valorizar as polícias, reformando-as, promovendo a requalificação dos policiais, levando-os a recuperar a confiança popular e reduzindo o risco de vida a que estão submetidos. O Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) representa um marco histórico, pois, estabelece a política de segurança para todo o Brasil, sem interferir na autonomia dos Estados. O Governo Federal assume a responsabilidade de forma geral, além da que lhe cabe estabelecida pela Constituição Federal. Na verdade, havia a necessidade de um trabalho integrado, Das 27 unidades da federação e mais a União, apenas 6 (seis) investem em segurança pública mais que 10% do total das despesas (AL, AP, MG, PB, RO e SC). Alguns chegam a investir menos que 7% (CE, DF, ES, PI, PR e RR). A União, embora tenha aumentado bastante seus investimentos em segurança pública, fica com a nota negativa, pois, se mantém abaixo de 1% do total de suas despesas. “Se a União acrescentasse mais 1.4% em seus investimentos com segurança pública e cada Estado mais 5%, sem envolver os salários, apenas em projetos de melhoria do Sistema, com certeza, o brasileiro estaria muito mais tranquilo, embora não seja a solução definitiva e sim, uma parte da solução geral “ (WAISELFISZ, 2012). 51 4 PROPOSTAS LEGISLATIVAS Já existem no Congresso Nacional propostas de intervenção no sistema de segurança pública brasileiro com diversas ramificações. Vamos, aqui, abordar algumas delas, aquelas julgadas por este autor como mais pertinentes. A PEC 102/2011, de autoria do senador Blairo Maggi, tem o seu foco principal no estabelecimento da remuneração através de subsídio para os órgãos de segurança pública do Brasil (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares), mas prevê também a faculdade da União e dos Estados para adoção de polícia única, cujas atribuições congregam as funções de polícia judiciária, apuração de infrações, polícia ostensiva, administrativa e preservação da ordem pública. Enfim, uma polícia de ciclo completo. Como fórmula de transição entre os dois modelos, o projeto de PEC prevê a transposição dos oficiais oriundos da polícia militar e os delegados de polícia dos Estados e do Distrito Federal para o cargo de delegado de polícia. Nesse modelo, a polícia estadual única passaria a se submeter a um modelo civil, além de remeter a lei federal, de iniciativa do Presidente da República, a disposição sobre regras gerais, em especial sobre ingresso, estrutura organizacional básica, direito de greve e outras situações especiais, consideradas as peculiaridades de suas atividades, assegurada a independência no exercício da atividade pericial e na investigação criminal, que deverão ser uniformemente observadas pelas leis dos respectivos entes federativos. Obviamente que, diante do quanto foi visto neste trabalho até este ponto, não vemos como essencial para a modernização do modelo policial brasileiro a unificação de suas polícias estaduais sob regras de cunho civil, mas o essencial da proposta apresentada em 2011 pelo Senador Blairo Maggi tem como característica mais importante o fato de reconhecer a necessidade da implantação do ciclo completo de polícia para ser obtida uma maior eficiência na ação policial. Outra Proposta de Emenda Constitucional também pretende tratar no Congresso Nacional o mesmo tema. Trata-se da PEC 430/2009, de autoria do 52 Deputado Celso Russomano, ela busca o nascimento de uma nova polícia organizada em uma única força, com todos os segmentos e estrutura necessários ao acertado enfrentamento do crime. Não se trata de unificação das polícias, mas do nascimento de uma nova polícia, desmilitarizada e cujo comando seria único em cada ente federativo, subordinado diretamente ao seu governador, que nomeará o seu dirigente, dentre seus próprios membros, para mandato de dois anos, após a aprovação pela respectiva Câmara ou Assembleia Legislativa. O relator da PEC 430 é o deputado gaúcho Mendes Ribeiro Filho, que já deu voto favorável ao projeto e destaca que essa nova polícia "tem várias funções, mas ela é única. É a integração não no discurso, mas na prática". Existe, ainda, a PEC 181/2003, de autoria de Josias Quintal. A Emenda em questão procura estabelecer, no nível estadual, o funcionamento das polícias civis e militares contemplando a possibilidade de atuação de ambas em todas as funções policiais (polícia administrativa e polícia judiciária). Propõe, também, um tempo máximo de seis anos para a definição de suas atuações, que poderá ser por tipo de delito, por tipo de pena, por circunscrição, atuando em conjunto no mesmo espaço físico etc. Com esta alteração constitucional pretende-se consagrar as diversas tentativas de dotar o país de uma polícia que respeite a multiplicidade cultural, social e econômica existente no território nacional, permitindo que os reais administradores da segurança – a União, os Estados e o Distrito Federal – tenham flexibilidade para adotar o modelo que atenda às respectivas peculiaridades locais. Diversas iniciativas de alteração da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional tramitam em ambas as Casas Legislativas faz muitos anos. Mas o que se observa, quase sempre, é uma elevada dose de corporativismo e de ressentimentos. Há, sim, conflitos corporativistas e até irracionais, todos, na verdade, buscando consolidar poderes voltados para a própria instituição e não para o interesse público. Daí é que se observa o surgimento de preconceitos vários e de sofismas maliciosamente elaborados pelos lados conflitantes, cada qual tentando desmerecer a mais e mais seu “concorrente”. Isto é simplesmente absurdo! Os discursos são vários e atingem tal grau de bizantinice que chega a assustar. E se vão proliferando sugestões bizarras, desviando-se, assim, o foco do assunto, que se poderia aqui resumir num consagrado aforismo da Teoria 53 Geral da Administração: “A forma deve seguir a função”. Em outras palavras, a estrutura deve existir para atender aos objetivos da organização, e estes somente podem existir se voltados para os interesses maiores da sociedade. Cabe aqui assinalar que estas não são as primeiras propostas a tramitar no Congresso Nacional com a finalidade de alterar, de alguma forma, o modelo de segurança pública brasileiro. Normalmente, após algum tipo de crise nessa área, sempre aparece um político para hastear a bandeira da segurança pública com uma proposta “salvadora da pátria”. No entanto, o caráter conservador do nosso Congresso Nacional tem feito com que o destino dessas propostas seja o arquivamento. Este será, muito provavelmente, o destino das acima citadas propostas. A discussão sobre segurança pública está posta para a sociedade brasileira. Além do Congresso Nacional, temos discussões a esse respeito também no Poder Judiciário, a exemplo da definição sobre a possibilidade de o Ministério Público também fazer investigações, que está sendo avaliada pelo Supremo Tribunal Federal. 54 5 O EQUÍVOCO DA UNIFICAÇÃO Alguns dos críticos do modelo levantam a bandeira da unificação das polícias. Uma sugestão plena de boas intenções, mas completamente equivocada. Múltiplas estruturas de policiamento conformam uma das características mais importantes dos modelos contemporâneos de segurança pública na grande maioria dos países democráticos. Inglaterra e País de Gales possuem 43 forças policiais autônomas; a Noruega possui 54 polícias distritais; a Escócia, oito polícias regionais; os Estados Unidos possuem pelo menos 17 mil polícias autônomas; a Bélgica, cerca de 2.000; o Canadá tem 450 polícias municipais, além de várias forças provinciais e da Royal Canadian Mounted Police. Poucas nações possuem polícia única (Sri Lanka, Cingapura, Polônia, Irlanda e Israel). Polícias menores são mais facilmente administradas e avaliadas. São também mais ágeis e tendem à especialização. Instituições policiais enormes, pelo contrário, são de difícil manejo e supervisão. Também por isso, eventual unificação das polícias no Brasil tenderia a somar os defeitos das instituições que temos, subtraindo suas virtudes. Por fim, a unificação agregaria risco considerável à democracia, incluindo a possibilidade de “emparedamento” do Estado por demandas corporativas. O caminho da reforma, pelo contrário, deve estimular o surgimento de novas instituições policiais, além de integral autonomia aos Bombeiros e às Perícias, tendência que – apesar dos limites constitucionais – já se impõe no Brasil, que formou uma Guarda Nacional (Força Nacional) e cujos municípios têm constituído Agências de Fiscalização de Trânsito e Guardas Municipais (que, embora sem este nome, polícias são). O fundamental é que todas elas tenham o ciclo completo de policiamento (o que no Brasil só a Polícia Federal possui). Esta é a base para que possamos ter polícias eficazes e para que as noções de segurança sejam fundadas em evidências científicas e não na cultura institucional do atraso e do preconceito. Este é também o caminho para que tenhamos polícias comunitárias acostumadas ao controle social e aos processos de prestação de contas e responsabilização pública (accountability). 55 6 CONCLUSÃO O que há de mais notável no modelo de polícia construído no Brasil deriva da opção pela repartição do ciclo de policiamento. A instituição policial moderna em todo o mundo desempenha suas funções a partir do que se denomina “Ciclo Completo de Policia”; em outras palavras: as polícias modernas são instituições profissionais cujo mandato envolve as tarefas de 1) manutenção da paz pública, 2) garantia dos direitos elementares da cidadania, 3) prevenção do crime e 4) apuração das responsabilidades penais. Mas, no Brasil, ficou definido que uma das polícias – a Militar – seria encarregada da “prevenção”, pela presença ostensiva do patrulhamento fardado e outra – a Civil – seria encarregada da investigação criminal. Assim, a especialização entre patrulheiros e investigadores, que nos outros países é uma divisão interna das corporações policiais, foi aqui dividida entre duas instituições com culturas e estruturas completamente distintas, pelos motivos de cunho histórico já vistos anteriormente neste trabalho. O resultado é que nunca tivemos duas polícias nos Estados, mas duas “metades de polícia”, cada uma responsável por metade do ciclo de policiamento. A bipartição do ciclo impede que os policiais encarregados da investigação tenham acesso às informações coletadas pelos patrulheiros. Sem profissionais no policiamento ostensivo, as Polícias Civis não podem contar com um competente sistema de coleta de informações. Não por outra razão, recorrem com tanta frequência aos “informantes” – quase sempre pessoas que mantêm ligações com o mundo do crime, condição que empresta à investigação limitações estruturais e, com frequência, dilemas éticos de difícil solução. As Polícias Militares, por seu turno, impedidas de apurar responsabilidades criminais, não conseguem atuar efetivamente na prevenção, vez que a ostensividade – ao contrário do que imagina o senso comum – não previne a ocorrência do crime, mas o desloca (potenciais infratores não costumam praticar delitos na presença de policiais; mas não mudam de ideia, mudam de local). Patrulhamento e investigação são, na verdade, faces de um mesmo trabalho que deve integrar as fases do planejamento da ação policial, desde o diagnóstico das tendências criminais até a formulação de planos de ação, 56 monitoramento e avaliação de resultados. No Brasil, isso se tornou inviável. Mas, como laranjas cortadas ao meio não permanecem em pé, as polícias intuem que precisam do ciclo completo (da outra metade). Por isso, historicamente, ambas procuram incorporar as “prerrogativas de função” que lhes faltam, o que tem estimulado a conhecida e disfuncional hostilidade entre elas, traduzida pela realização de ações investigativas por parte das Polícias Militares, e de ações de policiamento ostensivo por parte das Polícias Civis, gerando uma ausência de colaboração e, não raro, iniciativas de boicote, ou até mesmo, confrontos diretos entre elas. Para que a existência de mais de uma polícia com ciclo completo não seja redundante e não implique novas disputas, deve-se optar por um dos seguintes caminhos: ou se estabelece uma base distrital para cada polícia (modelo britânico e francês) ou definimos responsabilidades distintas para as polícias de acordo com tipos criminais (o que caracteriza, em grande parte, a experiência americana). Tendo presente a história centenária das polícias militares e civis no Brasil, seria de todo desaconselhável que elas fossem reorganizadas para atuar a partir de bases distritais exclusivas. O mais adequado seria a divisão de vocações por tipos penais. Assim, por exemplo, as Polícias Civis poderiam tratar de crimes contra a vida (homicídios, sequestros, crimes sexuais, tráfico de drogas), enquanto as Polícias Militares poderiam cuidar dos delitos patrimoniais (furtos e roubos). Em um sistema do tipo, as Guardas Municipais poderiam responder aos conflitos de “baixa densidade” como arruaça, vandalismo, disputas entre vizinhos, importunação ao sossego, violência doméstica etc. Uma divisão do tipo tornaria possível que tivéssemos um sistema de segurança pública no Brasil, encerrando a pré-história das polícias brasileiras. Reformas desta natureza exigem, por óbvio, um amplo esforço político, vez que nosso modelo de polícia foi, diferentemente do resto do mundo, inserido na Constituição Federal, especificamente em seu art. 144. Tendo em conta o destacado conservadorismo do Congresso Nacional para reformar o que quer que seja e o notório desinteresse do governo federal sobre este tema, deve-se reconhecer que as perspectivas não são alentadoras. Os governadores poderiam constituir esta agenda, pois é nos Estados que a crise se instala e – 57 observados princípios gerais – se deveria permitir margem de autonomia aos entes da federação para que pudessem reformar e/ou instituir suas próprias polícias. Quanto à discussão sobre a natureza do seu estatuto (se militar ou civil), só se justifica para atender a necessidades ideológicas que não consideram os aspectos técnico e funcional. O estatuto militar ou civil não deve ser o centro da discussão. Como vimos, um grande número de países dos mais diversos níveis econômicos adotam o modelo militar, sem prejuízo para a qualidade dos serviços prestados. Seja como for, nunca a crise do modelo de polícia no Brasil foi tão evidente, o que não nos garante qualquer solução. Afinal, convivemos com uma realidade política na qual tem sido preferível não pensar, não discutir e não fazer. 58 REFERÊNCIAS BRASIL, Constituição da Republica Federativa do, Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1988. _______, Departamento Penitenciário Nacional, Sistema Integrado Informações Penitenciárias (INFOPEN): Ministério da Justiça, 2010. de _______, Lei nº 7.210; de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. 2. Ed. Brasília, DF: Edição Câmara, 2010. _______, Ministério da Justiça. Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2010: Pineiros São Paulo-SP, 2010. _______, Ministério da Justiça. Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, Brasília, DF, 2010. CUNHA, Altair de Freitas. Sistema Policial Espanhol. Unidade Revista de Assuntos Técnicos de Polícia Militar. Ano XVIII. Nº 43. Porto Alegre: Gráfica Santa Rita, 2000. DANTAS, George Felipe de Lima. As Polícias Norte Americanas. 2005. Disponível em <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/authors/all_author/2890/news>. Acesso em 22 ago. 2012. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (Brasil). Manual Básico: elementos fundamentais. Rio de Janeiro, 2008. V. 1. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: dicionário de língua portuguesa. 8ª Ed. Curitiba: Curitiba, 2010. GERMANO, José Otávio. Na Linha de Frente: reflexões sobre a segurança pública. Porto Alegre: AGE, 2006; LAZZARINE, Álvaro. Temas de Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. MISSE, Michel (org.) O Inquérito Policial no Brasil - Uma Pesquisa Empírica. Rio de Janeiro: Booklink/FENAPEF/NECVU, 2010 ROLIM, Marcos. A Síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI, 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. VICTORIA, Amália de Barros G. de Sulocki. Segurança Pública e Democracia: aspectos constitucionais das políticas públicas de segurança. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; 59 WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. Brasília, DF: Instituto Sangari/Ministério da Justiça, 2012. 60 ANEXO A – POLÍCIAS NO MODELO GENDARMERIE País Designação em português Designação local Argélia Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Argentina Gendarmaria Nacional Argentina Gendarmería Nacional Argentina Bangladesh Guarda do Bangladesh Bangladesh Ansar / Ansar Bahini Barbados Força-Tarefa Nacional National Task Force Bielorrússia Unidade de Polícia para Fins Especiais Otryad Militsii Osobogo Naznacheniya] Benim Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Bolívia Polícia Nacional da Bolívia Policía Nacional de Bolivia Brasil Polícias Militares Polícias Militares Bulgária Gendarmaria Zhandarmeriya Burkina Faso Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Burundi Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Butão Polícia Real do Butão Royal Bhutan Police Camarões Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Camboja Gendarmaria Real do Cambodja Gendarmerie Royale du Cambodje República Centro-Africana Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Chade Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Chile Carabineiros do Chile Carabineros de Chile China Polícia Armada do Povo [Zhōngguó Rénmín Wǔzhuāng Jǐngchá Bùduì] Colômbia Polícia Nacional da Colômbia Policía Nacional de Colombia Comores Gendarmaria Federal Gendarmerie Fédéral Costa do Marfim Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Costa Rica Força Pública Fuerza Pública Gendarmaria Nacional Popular Gendarmerie Nationale Populaire República Democrática do Congo 61 Djibouti Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Egito Forças da Segurança Central Quwwāt al-Amn al-Markazī Espanha Guarda Civil Guardia Civil Equador Polícia Nacional do Equador Policía Nacional del Ecuador França Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Gabão Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Guiné Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Haiti Polícia Nacional do Haiti Police Nationale d'Haiti Hungria Serviço de Segurança e de Aplicação da Lei Rendészeti Biztonsági Szolgálat Índia Força de Polícia da Reserva Central Central Reserve Police Force Iraque Polícia Federal Federal Police Israel Polícia de Fronteira Mishmar HaGvul] Itália Arma dos Carabineiros Arma dei Carabinieri Líbano Gendarmaria Amen el Dakhli Madagáscar Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Mali Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Mauritânia Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale México Polícia Federal Policía Federal Moldávia Tropas de Carabineiros Trupele de Carabinieri Mónaco Companhia de Carabineiros do Príncipe Compagnie des Carabiniers du Prince Marrocos Gendarmaria Real Gendarmerie Royale Níger Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Países Baixos Marechalato Real Koninklijke Marechaussee Paquistão Rangers do Paquistão Pakistan Rangers Paquistão Corpo de Fronteira Frontier Corps Peru Polícia Nacional do Peru Policía Nacional del Perú Polónia Gendarmaria Militar Żandarmeria Wojskowa Portugal Guarda Nacional Republicana Guarda Nacional Republicana 62 Roménia Gendarmaria Romena Jandarmeria Română Rússia Tropas Internas Vnutrenniye Voiska Ruanda Gendarmaria Gendarmerie São Marino Corpo da Gendarmaria da República de São Marino Corpo della Gendarmeria della Repubblica di San Marino São Marino Guarda de Rocha Guardia di Rocca Senegal Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Sérvia Gendarmaria Žandarmerija Gendarmarias Gendarmeries Togo Gendarmaria Nacional Gendarmerie Nationale Tunísia Guarda Nacional Garde Nationale Turquia Comando-Geral de Gendarmaria Jandarma Genel Komutanlığı Ucrânia Tropas Internas Vnutrisni Viys'ka Ukrayiny Uganda Força de Polícia do Uganda Uganda Police Force Vaticano Corpo da Gendarmaria do Estado da Cidade do Vaticano Corpo della Gendarmeria dello Stato della Città del Vaticano Guarda Nacional da Venezuela Guardia Nacional de Venezuela Suíça Venezuela Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gendarmaria acessado em 14 de julho de 2012.