A Bioética da Proteção e o Direito à Requalificação Civil da População Transexual Feminina VIII Congresso Brasileiro de Bioética Búzios, Setembro/2009 Anibal Guimarães (ENSP/Fiocruz) Fermin Roland Schramm (ENSP/Fiocruz) Nesta comunicação, consideramos o direito à requalificação civil da população transexual feminina à luz dos argumentos morais desenvolvidos pela vertente latino-americana da chamada Bioética da Proteção, bem como da distinção conceitual entre as categorias de “vulnerabilidade”, “suscetibilidade” e “vulneração”. Esclarecimento inicial: para efeitos deste trabalho, “transexual” é toda pessoa que, também, constrói a sua subjetividade através da identificação corporal com o gênero oposto. Assim, aqui, são transexuais as travestis e as transexuais, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização. 2 Nossa análise é necessária quando constatamos a vigência de uma espécie de paradoxo da parte do Estado brasileiro frente à pessoa transexual, o que a torna, simultaneamente, VISÍVEL e INVISÍVEL no plano institucional. Em agosto/2008, o Processo Transexualizador foi instituído e regulamentado no sistema público de saúde (SUS) pelas Portarias 1707, do Ministério da Saúde, e 457, da Secretaria de Atenção à Saúde. Uma das grandes inovações do Processo Transexualizador foi não considerar a cirurgia de transgenitalização como a sua meta terapêutica. O reconhecimento deste direito representa a VISIBILIDADE institucional da pessoa transexual . 3 Desde 2004, diversos programas e políticas ditos inclusivos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) foram editados pelo governo federal. Todos eles adotam o conceito ampliado de saúde estabelecido pela OMS. Isso significa a necessidade de enfrentamento dos determinantes que impedem o gozo desses direitos, inclusive no aspecto psíquico e emocional. Não obstante, todas as demandas que implicam no reconhecimento de um novo status civil a essas pessoas LGBT não foram ainda implementadas. É o caso das uniões/casamentos entre pessoas do mesmo sexo, a adoção por casais homossexuais, a requalificação civil de pessoas transexuais, vinculada ou não à cirurgia de transgenitalização. Isto provoca a INVISIBILIDADE institucional dessa população, a qual, de maneira bastante severa, continua excluída social e juridicamente. O desenvolvimento desses programas e políticas representam, na verdade, a internalização dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro nos fora mundiais de que esse participa. A sua não implementação deixa em mora o Estado brasileiro, permitindo que se exija formalmente o seu cumprimento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão do sistema ONU. 4 Assim, por um lado, temos que o Processo Transexualizador se constitui em um procedimento que confere VISIBILIDADE às pessoas transexuais; por outro lado, o não reconhecimento do direito à requalificação civil lhe confere INVISIBILIDADE. Em resumo, a VISIBILIDADE da pessoa transexual no sistema público de saúde se confronta com a sua INVISIBILIDADE no âmbito jurídico-legal. Seria essa uma espécie de punição para quem resolveu contrariar as normas de gênero vigentes e avançar, subvertendo-as no plano físico? Contrariamente ao que determinam as diferentes políticas e programas públicos de saúde, não existe uma interação entre os diversos ministérios de governo para que se dê a sua implementação. Assim, não nos parece desarrazoado afirmar que o processo transexualizador, instituído e regulamentado no âmbito do SUS através da pasta da Saúde não encontra respaldo em outras instâncias governamentais para que, no caso da pessoa transexual, se assegure o reconhecimento automático de seu direito à requalificação civil (troca de nome e de sexo), independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização. 5 Embora o Processo Transexualizador (PTr) no SUS não tenha a cirurgia de transgenitalização como sua meta terapêutica, e a hormonioterapia também esteja disponível àquela clientela, o PTr tampouco tem significado o afastamento da população transexual dos meios clandestinos de construção de sua subjetividade através do corpo. Inúmeras notícias na mídia continuam a anunciar mortes e seriíssimos problemas de saúde resultantes da mesma clandestinidade com que, anteriormente, se dava esse processo de construção da subjetividade travesti e transexual. A figura da “bombadeira” continua a ser acolhedora da pessoa transexual; quiçá, ainda mais acolhedora do que o sistema público de saúde. Então, o que justificaria para a pessoa transexual assumir o risco da clandestinidade? 6 Pesquisas na Espanha e no Brasil (Bento, 2007) junto a essa população apontam que a requalificação civil é de central importância para a pessoa transexual. Essa centralidade quanto ao “nome” e o “sexo” congruentes com a sua subjetividade pode ser interpretada como a necessidade do reconhecimento de sua humanidade. Muitas aceitam a cirurgia de transgenitalização como uma espécie de ônus que lhes é imposto, na crença de aceitação de sua humanidade. Para Kottow: o “cidadão” antecede ao “ser humano”, ou seja, não é a condição de ser humano que leva à produção do ser cidadão, mas o seu inverso. Assim, se a cirurgia de trangenitalização não representa o meio automático para a sua requalificação civil, e persistindo uma lacuna legal, cabe perguntar: haveria algum outro interesse a orientar o PTR que não o reconhecimento de um direito a esta população??? 7 Considerações bioéticas quanto à falta de reconhecimento do estatuto jurídico da pessoa transexual “A bioética seria protetora do espaço privado e do indivíduo, protestando quando o [espaço] público produzir dano ao indivíduo” (Kottow, 2005). “A bioética é uma ética persistentemente imersa em assimetrias de poder entre agentes e afetados. A bioética deve ser entendida como uma advocacia em favor dos mais fracos” (Kottow, 2007). A bioética da proteção é definida por Schramm (2008) como um subconjunto da bioética, constituída por ferramentas teóricas e práticas que visam entender, descrever e resolver conflitos de interesses entre quem tem os meios que o capacitam para realizar sua vida e quem não os tem. Para Schramm (2008), a bioética da proteção se caracteriza por ser uma “aplicação do corpo teórico-prático da bioética tradicional” transformada e adaptada aos conflitos em saúde pública na América Latina, considerada como região do mundo que tem problemas próprios, mas que compartilha os demais problemas que se referem à humanidade. 8 Em sociedades onde prevalece a lógica neoliberal do cidadão enquanto consumidor, o risco de divórcio entre o ser cidadão e o ser humano é maior. Para Kottow (2007), identificar os excluídos em uma sociedade significa reconhecer a sua absoluta indefensibilidade e privação de atributos típicos da cidadania, elementos impeditivos para o gozo do status de membros da sociedade. Sugere o autor que a decisão de inclusão ou exclusão em um determinado sistema político é tomada em seu próprio interior, “de acordo com a vontade política que o inspira A distinção entre as duas categorias de “ser humano” e “cidadão” resulta essencial se o que se deseja é avaliar a capacidade de restituição da cidadania à pessoa transexual por meio das políticas públicas que se pretendem includentes para que - de acordo com a concepção de Kottow - se possa buscar promover a sua humanização, ou, dito de outra forma, torná-la ser humano. 9 Visando a estabelecer a melhor compreensão do “sentido e contexto” da bioética da proteção, Schramm (2008, p.13) informa que a expressão reúne dois conceitos: o primeiro é a “bioética” propriamente dita, e tem o “significado genérico de ética da vida”; o segundo, “proteção” remete à idéia de amparar os necessitados, mais especificamente os “vulnerados” – que não devem ser confundidos com os “vulneráveis”, salienta o autor. Num esforço em melhor definir a bioética – de acordo, nisso, com Kottow - Schramm busca restringir o significado da bioética enquanto “a ética aplicada ao bios, à vida humana naquilo que ela teria de específico: a vida moral”, ou seja, “a competência em distinguir entre o bem e o mal”, o que se constituiria, segundo Rita Levi Montalcini (apud Schramm, 2008, p.13), “o mais alto grau da evolução darwiniana”. 10 Delineada a bioética de proteção, seu campo de atuação, e estabelecida a diferenciação entre os termos “bioética” e “proteção”, cabe agora fazer uma distinção entre “vulnerabilidade” e “vulneração”, tal como propõe Schramm (2006). Para o autor, a primeira é “uma característica universal de qualquer humano... uma potencialidade” (p.191), e a segunda seria “uma situação de fato... devido a contingências como o pertencimento a uma determinada classe social, a uma determinada etnia, a um dos gêneros ou, dependendo de suas condições de vida, inclusive seu estado de saúde” (p.192). “Suscetibilidade” seria a condição fronteiriça entre a vulnerabilidade e a vulneração. Deste modo, pode-se e deve-se considerar a população transexual como vulnerada e, por conseguinte, demandante preferencial da proteção, que deve ser oferecida, mas não imposta, pelo Estado. 11 Reiteramos a nossa convicção quanto à importância de não se vincular o reconhecimento à pessoa transexual do direito a sua requalificação civil – novo nome e sexo – à realização da cirurgia de transgenitalização – para mulheres e homens transexuais -, ou à realização da histerectomia e mastectomia, para homens transexuais, uma vez que se estaria retirando a sua autonomia em decidir livremente por seus projetos de vida. Como exemplo de uma nova concepção legal para a questão da requalificação civil da pessoa transexual, a Espanha nos oferece a Ley Reguladora de la Rectificación Registral de la Mención Relativa al Sexo de las Personas[1], conhecida como Lei de Identidade de Gênero, promulgada em 2007. Em especial, seu artigo 4, inciso 2, determina que os tratamentos médicos a que deverá se submeter o/a paciente para acomodar suas características físicas às correspondentes ao sexo reclamado (…) não serão um requisito necessário para a concessão da retificação do registro quando concorram razões de saúde ou idade que impossibilitem seu seguimento e se aporte certificação médica de tal circunstância. [1] Ley reguladora de la rectificación registral de la mención relativa al sexo de las personas en España, promulgada en 08/03/2007. Disponível em http://www.almendron.com/politica/congreso/2007/a_089-11.pdf. acesso em 01/09/2008. 12 A insegurança jurídica é resultado da falta de previsibilidade legal para o amparo das pessoas transexuais que se submeteram, ou não, à CT, uma vez que, sem se dar a sua requalificação civil, elas provocam dúvidas em terceiros quanto a sua verdadeira identidade. Como salientado anteriormente, as decisões judiciais para os pedidos de reconhecimento de uma nova identidade e sexo são imprevisíveis. Muitas vezes, por exemplo, os magistrados condicionam o deferimento do pedido, no caso de mulheres transexuais, à realização da CT – ou neocolpovulvoplastia – e, no caso de homens transexuais, à histerectomia, já que, para muitos juízes, a realização da mastectomia pelos homens transexuais não seria considerada suficiente enquanto elo de ruptura com o sexo anterior. Como se pode depreender, inexistindo previsão legal para a requalificação civil, a sensibilidade do magistrado é fundamental para o reconhecimento, ou negação, desse direito à pessoa transexual. 13