IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste 04 a 07 de agosto de 2013 Fortaleza-CE GT 30: Testemunho, Verdade e Articulações Societárias O testemunho de Félix e o Opus Dei no Brasil Asher Grochowalski Brum Pereira Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Bolsista FAPESP [email protected] O testemunho de Félix e o Opus Dei no Brasil Resumo: O objetivo desta proposta é discutir o testemunho de Félix, um dos quatro fundadores do Opus Dei no Brasil. A partir da compreensão do testemunho como narrativa, pretendo abordar o relato de Félix como a interpretação individual de uma experiência que transcende o sujeito: o Opus Dei. Em seu testemunho, Félix discorre sobre a experiência sobrenatural de ser chamado por Deus à vocação de santificar o mundo através do Opus Dei e que, por conseguinte, o trouxe ao Brasil como forma de responder a essa missão. O testemunho de Félix, de fato, confunde-se com a própria história do Opus Dei no Brasil. Dessa forma, esse testemunho dirige-se a uma audiência específica (no momento da entrevista, representada por mim, enquanto pesquisador): os universitários e intelectuais, que é a quem se dirige o discurso do Opus Dei, no Brasil. Em função da não existência, em nossa literatura, de uma bibliografia consistente sobre o Opus Dei no Brasil, a narrativa de Félix permite um ensaio sobre uma história, não uma história pré-definida, mas que é montada narrativamente – agrega subjetividade, interpretações individuais e uma experiência que transcende o sujeito que narra. Portanto, por estar inserido no fluxo de uma experiência compartilhada – o Opus Dei –, o testemunho de Félix aponta para o desvelamento de uma verdade específica. Desse modo, o trabalho está organizado em três partes. A primeira refere-se aos elementos gerais e processos mais amplos envolvidos com a história do Opus Dei no Brasil. A segunda trata do testemunho de Félix. A terceira diz respeito à experiência afetiva de ouvir esse testemunho. Meu intuito, neste trabalho, é dar continuidade à análise da narrativa de Félix, cuja primeira reflexão expus na I ABHR – Nordeste (I Encontro da Associação Brasileira de História das Religiões da Região Nordeste). Félix foi um dos quatro membros do primeiro grupo do Opus Dei que chegou ao Brasil, em 1957, na cidade de Marília (SP). A trajetória de Félix confunde-se com a história do Opus Dei no Brasil, uma vez que sua vida foi dedicada inteiramente à consolidação daquela instituição. Aqui, pretendo interpretar a narrativa de Félix como o testemunho de uma verdade que não se circunscreve unicamente ao âmbito do discurso religioso, mas que se expande e agrega, de forma sofisticada, diversos outros elementos discursivos. Meu argumento é que o testemunho de Félix configura-se como a interpretação individual de uma experiência social compartilhada: o Opus Dei. A forma como Félix articula verbalmente sua experiência, portanto, ganha a conotação de um testemunho 2 de verdade. Essa verdade é clara: Deus, conjuntamente com o homem e por meio dele, atua e transforma o mundo. Entendo por narrativa a prática de contar uma história. Desse modo, quando se formula uma narrativa, existem contextos históricos, interesses e motivações que devem ser levados em consideração – interesses por parte de quem conta e de quem ouve. Tanto quem conta, quanto quem ouve, preserva, omite, isola e enfatiza determinados elementos, de acordo com seus interesses particulares e com a ocasião (HERRSTEIN, 1980). Pensando a partir de Suely Kofes (1994), considero, aqui, a narrativa a partir de três aspectos: como fontes de informação (falam de uma experiência que ultrapassa o sujeito que relata); como evocação (transmitem a dimensão interpretativa e subjetiva do sujeito); como reflexão (contém uma análise sobre a experiência vivida). Entender a narrativa a partir desses elementos permite, não só interpretar a relação entre subjetividade e a realidade objetiva, externa ao sujeito, mas, também, entender o mundo que o sujeito constrói a partir dessa interação. De fato, o mundo do sujeito é a interação da subjetividade com a realidade externa, objetiva. Ao mesmo tempo, essa forma de entender a narrativa permite entender o sujeito como narrador da sua própria história e, desse modo, como narrador de processos históricos no qual está inserido. Ao falar de um testemunho, ou de uma narrativa testemunhal, não se trata, unicamente, de se contar uma história, mas de articular em palavras, por meio de uma interpretação individual, uma experiência vivida. Desse modo, o testemunho de Félix afigurase como a narrativa de uma experiência individual com Deus. Entendo, como experiência, alguma coisa da qual saímos transformados (FOUCAULT, 2006). Ao mesmo tempo, ainda pensando com Foucault, é algo que se expande para além do sujeito. Embora a experiência tenha uma dimensão individual, solitária, ela somente é plena na medida em que escapa à pura subjetividade, ou seja, outros podem cruzá-la e atravessá-la (REVEL, 2005). Creio, nesse sentido, que podemos falar em uma experiência social, em cujo fluxo o sujeito se insere e, desse modo, podemos pensar em processos de subjetivação. A experiência individual, portanto, é a forma particular com que o sujeito se insere na experiência social compartilhada. Tim Ingold (2011) nos ajuda a pensar a relação entre experiência e narrativa: só se 3 pode contar algo que já se experimentou, que se conheceu. O conhecimento que pode ser narrado, para Ingold, surge na jornada de cada pessoa; a jornada é constituída pelas experiências do sujeito. Essa jornada não é estática, mas é movimento, e o conhecimento é o próprio movimento. O conhecimento que adquirimos em nossas jornadas é aquilo que pode ser narrado. Com o intuito de articular três níveis de experiência suscitados pelo testemunho de Félix, dividi este trabalho em três partes. A primeira parte trata das articulações societárias e processos mais amplos envolvidos com o testemunho de Félix. Na segunda, trato mais especificamente da sua narrativa. Por fim, na terceira parte exponho narrativamente a experiência de ouvir esse testemunho. O Opus Dei no Brasil: Nos últimos dois anos fiz pesquisa de campo em um Centro do Opus Dei, na cidade de São Paulo. Certo diz, conheci Félix, um dos quatro primeiros numerários a chegar ao Brasil, em 1957, vindo da Espanha. Sua história individual confunde-se com a própria história do Opus Dei no Brasil. Além disso, a partir de sua narrativa, podemos observar a emergência de novas relações e sociabilidades – surgem novos contextos sociais. O testemunho de Félix informa-nos sobre articulações societárias mais amplas, as quais gostaria de tratar, para, em seguida, tratar dessa personagem mais atentamente. O Opus Dei chegou ao Brasil em 1957, na cidade de Marília, no interior do estado de São Paulo. Josemaria Escrivá, o fundador do Opus Dei, que viria a ser canonizado em 2002 pelo Papa João Paulo II, enviara da Espanha quatro membros para começar o trabalho no novo país, sendo dois padres e dois leigos. O que permitiu à instituição chegar ao Brasil foi a iniciativa de Dom Hugo Bressane de Araújo, bispo de Marília naquela época. Como a diocese de Marília ainda era muito nova, Dom Hugo precisava de padres para as paróquias da diocese. Ao saber que Josemaria Escrivá tinha o interesse de expandir o Opus Dei para outros países, Dom Hugo escreveu-lhe uma carta, mesmo sem saber muito bem o que era o Opus Dei. Ao receber a carta, Escrivá tratou de encontrar jovens membros do Opus Dei, ainda estudantes do Colégio Romano (centro de formação de membros do Opus Dei em Roma), 4 que tivessem interesse em vir para o Brasil. Graças à devoção que lhe era dedicada por conta de ser o fundador do Opus Dei, tudo o que Josemaria Escrivá pedia era sempre mais legítimo de ser pedido, de modo que não foi difícil achar os quatro membros. Desse modo, os quatro primeiros membros chegaram à cidade de Marília em 1957 e fundaram o Centro de Marília, que se chamava Escola de Arte e Lar Ataupaba. Segundo um jornal da época, a Escola contava com professores formados na Europa e nos Estados Unidos que ministravam aulas de arte e preparação. Ainda, segundo outro jornal, a arte chamava muito a atenção na cidade na década de 50. Por conseguinte, percebo que o Opus Dei de perfil brasileiro, desde seu surgimento, dedicou-se a fazer atividades de cunho cultural, intelectual e científico de modo a traduzir suas concepções religiosas para uma linguagem leiga e que, desse modo, fosse compreendida e aceita publicamente. Nesse primeiro ano, os padres da instituição, além de se dedicarem às atividades de formação espiritual no Centro, ainda celebravam missas nas paróquias de Marília. No ano de 1958, dois membros deixaram Marília e foram para a cidade de São Paulo. Posteriormente, os outros dois também foram. Por tratar-se de uma cidade mais imponente, industrial e comercialmente mais desenvolvida, com universidade, etc., fazia parte do projeto, desde o começo, consolidar o Opus Dei nessa cidade. Desse modo, um pequeno Centro, localizado na rua Gabriel do Santos, deu origem a vários outros na capital paulista. Entre os anos de 1958 e 1974, com a chegada de novos membros, principalmente no ano de 1962, começaram a surgiu os primeiros Centros Culturais do Opus Dei, que se propunham a realizar atividades intelectuais, acadêmicas e culturais, mas, ao mesmo tempo, oferecer formação cristã-católica aos seus frequentadores e, também, moradia para universitários. Com o Opus Dei fortemente consolidado em São Paulo, em 1974, Josemaria Escrivá resolveu visitar o Brasil. Nessa visita, que durou cerca de uma semana, concluiu que o Opus Dei de perfil brasileiro tinha potencial. Desse modo, em 1975, enviou mais membros da Espanha e, também, mais recursos financeiros. Deu seu aval para a expansão do Opus Dei para outros estados brasileiros. Após aquele ano, surgiram Centros do Opus Dei no Rio de 5 Janeiro (RJ), em Porto Alegre (RS), em Belo Horizonte (BH), em Brasília (DF), em Ribeirão Preto (SP), em Campinas (SP), em Florianópolis (SC) e, mais recentemente, em Fortaleza (CE). Surgiu, também, na capital paulista, o Centro de Estudos Universitários do Sumaré, dedicado à formação de novos membros. Todo novo membro do Opus Dei tem que passar um período de dois anos nesse Centro. Ao lado do Centro do Sumaré localiza-se a Residência da Comissão Regional, que é a comissão responsável pelo governo e centralização do Opus Dei no Brasil. Em suma, esses são os elementos centrais da história do Opus Dei no Brasil sobre os quais nos informa a narrativa de Félix. De forma a não essencializar essa história atribuindo-lhe uma linearidade, pretendo olhá-la como a construção narrativa de desse membro do Opus Dei que reflete sobre a experiência vivida. O testemunho de Félix: Comecei a entrevista com a pergunta “como o senhor conheceu o Opus Dei?”, ao que Félix respondeu: Era o ano de 1951 e eu estava começando direito. Foi então quando eu conheci o Opus Dei. Fui passar as férias na terra da minha família, em Molina de Aragón [na Espanha]. A gente ia todos os verões lá. Era verão e fomos para lá. E tinha um camarada lá que era muito esportista, nadava muito bem e tal. (...) Era um cidadão muito cotado, porque era um bom esportista, de boa presença, e que vim a saber que se chamava Céspedes. E eu fiquei curioso: “mas quem afinal é este camarada?” Acho que estava nos últimos anos da formatura dele e seria do Opus Dei. Foi a primeira vez que eu ouvi falar do Opus Dei, nessas férias. (...) Então, eu quis saber o que era o tal Opus Dei, por causa do tal Céspedes.(...) Eu tinha 17 anos. Não consegui saber muito, mas fiquei com a pulga atrás da orelha. (...) Então, perguntei ao meu pai, que era advogado militar lá em Barcelona, o que era o Opus Dei e tal. Queria conhecer o tal Opus Dei. Então, ele sabia alguma coisa... sabia que o Opus Dei estava fazendo uma residência universitária lá em Barcelona. Deu-me alguns nomes de pessoas do Opus Dei (...), meu pai sabia alguma coisa. Então, eu lhe disse que se tivesse algum contato, que eu queria contatar e saber o que era isso do Opus Dei. Naturalmente, ele me preparou um contato e fui para a residência. (...) Então conheci, tive um primeiro contato, fui lá, falei com ele [com o diretor] (...) e perguntei se poderia voltar. (...). Me disseram que voltasse quando quisesse, que poderia usar a sala de estudos à vontade e tal. Então, comecei a ir e fui conhecendo 6 diretamente o que era o Opus Dei. Não supunha nenhuma surpresa. Era gente normal, que circulava normalmente, que estudava... um ambiente sadio. Eu achava ótimo. Comecei a ter também uma certa direção espiritual com um padre que era do Opus Dei (...). Então foi assim. Cá nos meus botões pensava – já sabia o que era o Opus Dei – que calhava tudo bem para mim, porque o que eu queria era ser advogado (...) e então soube que essa seria a mensagem, a novidade do Opus Dei. Soube que eu poderia santificar advogando, trabalhando. (...). Vi que poderia ser um cidadão comum, porém, poderia santificar a Deus advogando. Minha intenção, ao motivar o início da entrevista com essa pergunta (“como o senhor conheceu o Opus Dei?”) era delimitar um fluxo de lembranças que desembocaria, posteriormente, no tema da pesquisa: o Opus Dei no Brasil. Era um fluxo de lembranças, portanto, motivado pelos meus interesses de pesquisa. Desse modo, a narrativa de Félix, iniciada dessa forma, permitiu-me, tomando o cuidado de preservar seus elementos específicos, traçar alguns aspectos informativos mais amplos e gerais que envolvem o Opus Dei, tais como a santificação do trabalho, a procura por estudantes e o caráter leigo da instituição. A santificação do trabalho, que se constitui como símbolo i, é um dos aspectos mais fundamentais do Opus Dei, entendido enquanto uma experiência social. A proposta é clara: cada homem pode, e deve, santificar o mundo a partir da sua atividade cotidiana, do seu trabalho, porque, afinal, Deus quis cada um onde está. Trata-se de santificar o mundo a partir de dentro. Essa enunciação, por suposto, cria discursos de justificação do Opus Dei nos diferentes espaços públicos pelos quais transita. Não interessa, aqui, essa enunciação em si mesma, mas a forma como esta se conecta subjetivamente ao sujeito individual e, por conseguinte, o envolve em um fluxo de experiência social e sobre o qual ele projeta sua interpretação individual. Nesse ponto, a narrativa de Félix apresenta uma estruturação própria que traz a santificação do trabalho como eixo fundamental. Embora não de forma explícita, a santificação do trabalho perpassa toda a sua narrativa, uma vez que esse é o cerne da mensagem do Opus Dei e, em se tratando de Félix, sua trajetória pessoal se confunde com a história do Opus Dei no Brasil. A santificação do trabalho ordena todo o seu relato: a história de uma vida dedicada a santificar o mundo, as outras pessoas e a si mesmo pelo trabalho e, mais do que isso, levar essa mensagem ao Brasil através do Opus Dei. Em 7 suma, as lembranças das condições que o levaram a entrar para o Opus Dei, conectadas em uma mesma narrativa, ganham um encadeamento lógico no relato de Félix, onde aparece a articulação da santificação do trabalho – o que o atraiu ao Opus Dei – com a chegada do Opus Dei no Brasil como portador dessa mensagem. O encadeamento lógico das ações do passado, na narrativa de Félix, apresenta como eixo comum a santificação do trabalho. Em comparação com as narrativas de outras pessoas que compartilham com Félix a experiência de ser membro numerário do Opus Dei, a narrativa deste é única, embora apresente semelhanças e interconexões com essas outras narrativas. Essas semelhanças expressam-se na evocação comum do símbolo da santificação do trabalho, mas cada um dos sujeitos narradores, claramente, interpreta sua experiência individual com esse símbolo de forma única, particular. Não se trata, a princípio, da santificação do trabalho como escolha lógica e racional, mas, antes de tudo, configura-se como predicação, pois suscita sentimentos específicos. A experiência da vocação para a santificação do trabalho, própria do Opus Dei, tem como elemento central a predicação, ou seja, a capacidade de suscitar sentimentos capazes de conectar a interpretação individual à experiência social. Ainda em se tratando da santificação do trabalho, a narrativa de Félix toca em um elemento fundamental interconectado àquele: diz ele que na época em que conheceu o Opus Dei era um estudante e que no Centro que ele frequentava, convivia com outros estudantes, com pessoas que estudavam. Esse aspecto é central, pois permite que o Opus Dei, enquanto instituição, seja capaz de formular discursos de justificação pública através da justaposição de discursos científico-acadêmicos e religiosos. Não se trata, no entanto, de uma estratégia maliciosa de ocultação e enganação, pelo contrário, é uma nova configuração do religioso frente às novas regras de afirmação nos espaços públicos modernos. O Opus Dei criou uma forma sofisticada de transição e de interação nesses espaços. Por conseguinte, a vocação à santificação do trabalho impulsiona os sujeitos aos espaços públicos. Tendo em conta a dimensão da interpretação individual por parte dos sujeitos que são construídos e englobados no fluxo da experiência social do Opus Dei, pode-se dizer que cada sujeito santifica o seu trabalho de maneira 8 própria, pessoal. Cada qual é capaz de colorir a realidade externa, o mundo dos elementos objetivos, com a sua subjetividade. Na narrativa de Félix, a santificação do trabalho se deu por meio da profissão de advogado e da rede de relações que essa profissão específica lhe permitiu. Em dado momento de sua narrativa, que não foi transcrito no trecho acima, Félix relata o seu trabalho apostólico entre juízes e advogados, já no Brasil, em um campo de atividade profissional já bem desenvolvido. Essa investida audaciosa resultou em várias vocações para o Opus Dei e para a vida cristã. O ideal de santificação do trabalho (e pelo trabalho), portanto, permeia toda a estruturação da narrativa de Félix e pode ser lido em seu relato, mesmo que secundariamente. O início do relato Félix, como experiência e como narrativa, remente a uma experiência social compartilhada: o Opus Dei. Trata-se de uma experiência que engloba vários sujeitos em seu fluxo, sujeitos esses capazes de interpretações individuais sobre essa experiência social e, também, de experiências individualizadas. Félix, através do relato da sua trajetória de vida, oferece-nos margem para pensarmos esses elementos gerais e mais amplos que envolvem a experiência do Opus Dei e, ao mesmo tempo, colore e interpreta essa experiência social com sua própria subjetividade. O Opus Dei se afigura, aqui, como uma experiência que transcende o sujeito que relata, mas que, ao mesmo tempo, é transmitida pela dimensão interpretativa e subjetiva do sujeito, é interpretada por ele como experiência vivida. Um elemento chave que surge ao longo da narrativa de Félix, em se tratando da sua vinda para o Brasil, foi seu encontro com o fundador do Opus Dei, São Josemaria Escrivá. A seguir, o fragmento que explicita esse encontro: O que interessa do Brasil é o seguinte (...), eu estou tentando até relembrar a data em que o fundador da Obraii me perguntou se eu estava disposto a começar o Opus Dei no Brasil e eu lhe disse que sim. Então, foi numa tertúliaiii, em um dia de festa. Lá tínhamos uma bandinha... tinha o bumbo lá, e os pratos, o violão e um monte de coisas. Então, eu fiz um número. O meu número consistiu em tocar “na baixa do sapateiro”, do Ary Barroso. Eu sabia um monte de sambinhas brasileiros e tal. Fiz um número de cantoria. A turma gostou! (...) E foi aí que o Nosso Padreiv me perguntou se eu estaria disposto. A rigor, Nosso Padre, com o Colégio Romanov, queria, em primeiro lugar, ir formando e ir fazendo gente da Obra; em segundo lugar, ir preparando pessoas para fazerem a expansão da 9 Obra. Começar o Opus Dei em distintos países. (...). Então, alguns anos antes de começar [o Opus Dei no Brasil], ele preparou o começo com este cidadão que com você fala. E foi assim. Essa é uma das passagens que considero mais belas e delicadas da narrativa de Félix. Por parte das pessoas do Opus Dei, existe um carinho muito grande em relação ao fundador, que veio a ser canonizado em 2002. Ter conhecido São Josemaria, e mais, ter convivido com ele, que veio a se tornar santo, é considerado um grande privilégio. Esse carinho torna-se patente durante o relato de Félix, pois percebi trato e delicadeza ao chegarmos nessa parte da sua narrativa. Ao rememorar essa passagem, Félix deu um encadeamento lógico ao seu relato: só foi possível o Opus Dei no Brasil por conta daquela apresentação musical, naquele dia de festa. Desse modo, fica clara a intervenção direta de São Josemaria para que o Opus Dei chegasse ao Brasil por intermédio de Félix e dos três outros membros que o acompanharam na viajem. A devoção a São Josemaria faz parte da experiência social compartilhada que é o Opus Dei. Félix, por sua vez, conectou-se subjetivamente a essa experiência e, desse modo, foi capaz de construir uma experiência própria, pessoal e individualizada. São Josemaria Escrivá é uma figura simbólica. Além de santo, ainda antes disso, é o fundador do Opus Dei – que é uma forma de estar no mundo comunicada diretamente por Deus a Josemaria Escrivá. Esse fato, entendido dessa forma, o colocou no topo da hierarquia como líder pastoral, posição que ele vivenciou com sofisticação. Foucault (2008), delimita, no plano teóricoabstrato, três elementos constituintes do poder pastoral: conduzir os indivíduos para a salvação; fazer com que observem a lei de Deus, pois só dessa forma poderão alcançar a salvação; professar a verdade, pois só pela verdade é que alcançarão a salvação e observarão a lei de Deus. Esses elementos são evidentes, não só em se tratando de Josemaria Escrivá, mas no caso de qualquer líder religioso com alguma representatividade. A função do pastor, por certo, é guiar a ovelha para a salvação, não por meio de ordens, mas pelo exemplo. São Josemaria Escrivá, não raro, declarava-se um pecador, cheio de misérias e fraquezas, e, por isso, ensinava pelo exemplo. Mais do que isso, dizia que não deviam tê-lo como modelo, mas tomar como modelo o próprio 10 Cristo. Nesse caso, podemos ver exemplos de fraqueza e humildade configurando-se em tecnologias de poder. O líder pastoral tem legitimidade para governar, justamente, porque expõe suas fraquezas e misérias – expõe sua alma às ovelhas, ao invés de colocar-se em posição superior a elas. Em suma: pelo fato de São Josemaria ser um líder pastoral, envolto em simbolismo e devoção, sempre o que ele pede é mais legítimo de ser pedido, não por um sentimento de imposição por parte de quem obedece, mas por uma devoção carinhosa à sua pessoa e ao que ela representa. Relacionada à questão do poder pastoral, surge a obediência como tecnologia de poder (FOUCAULT, 2008). Várias ordens religiosas, e também o Opus Dei, enunciam o esquecimento próprio como forma de tornar-se melhor instrumento de Deus; para melhor servir aos desígnios divinos, os próprios vícios, gostos e prazeres terrenos devem ser esquecidos, abandonados, através da mortificação. Desse modo, paradoxalmente, o esquecer-se a si mesmo implica em um constante voltar-se para si mesmo, de modo a mapear os próprios vícios e imperfeições, os quais impedem o indivíduo de ser puramente um instrumento de Deus. Justamente por isso, o exame de consciência e a confissão são tão enfatizados pelo Opus Dei. Por conseguinte, quando Josemaria Escrivá vai a Félix e pergunta se ele gostaria de levar o Opus Dei para o Brasil, ele responde: “sim”. Estar envolto pela experiência do Opus Dei implica, necessariamente, em um esquecer-se a si mesmo em prol dos desígnios divinos, nesse caso, mediados por Josemaria Escrivá. Trata-se de ser instrumento perfeito de Deus. Lembro-me de ter perguntado a Félix, em dado momento: “não deu nenhum frio na barriga [quando decidiu vir para o Brasil]?”. Ao que ele respondeu: “Não... não me deu nenhum frio. Pareceu-me uma tarefa interessante, nada mais do que isso”. Confesso que me senti surpreendido com a resposta, pois denotava uma entrega total aos desígnios do Opus Dei e, portanto, à vontade de Deus. Era, para mim, uma postura difícil de compreender, justamente por eu não estar mergulhado na mesma experiência que Félix. Preocupava-me com o doutorado, em ter um diploma, em ter prestígio e ganhar dinheiro, de modo que me pareceu assustadora a possibilidade de largar uma vida estabelecida e partir para uma aventura como essa, a qual Félix tratou com tanta naturalidade. 11 Félix organiza sua narrativa em dois períodos: pré-história e história do Opus Dei no Brasil. Os fragmentos trabalhados até aqui se referem à préhistória do Opus Dei no Brasil, ou seja, consistem em uma série de elementos que, quando encadeados logicamente pelo narrador, ganham um sentido próprio. Desse modo, a entrada de Félix para o Opus Dei, em 1951, e o convite de São Josemaria Escrivá, ainda na Espanha, configuram a pré-história do Opus Dei no Brasil. Félix considera o começo da história, propriamente dita, após 1957, quando os quatro fundadores chegaram ao Brasil. A instituição encontrou uma porta de entrada, no Brasil, através da iniciativa de Dom Hugo Bressane de Araújo (1898-1988), na época, bispo diocesano de Marília (SP). Segundo o relato de Félix, Dom Hugo escreveu e, posteriormente, encontrouse com Josemaria Escrivá, pois estava à procura de padres para as paróquias, uma vez que a diocese de Marília havia recém sido criada. Josemaria Escrivá viu, aí, a oportunidade de começar o Opus Dei no Brasil e enviou quatro membros para a cidade de Marília, onde surgiu a primeira residência do Opus Dei, sendo dois padres e dois leigos, em 1957. Sobre isso, Félix comenta: Eu diria que se entrou no Brasil pela porta pequena. Nosso padre dizia que as coisas se começam como se pode. Era importante isso. Foi a porta real que a Obra encontrou para começar no Brasil. Tanto é que uns anos depois deixávamos Marília. Isso é uma coisa pouquíssimo frequente na Obra. Esse é um dos poucos casos que teríamos visto e, evidentemente, o lugar indicado era São Paulo, uma cidade imponente, com brilho, com ímpeto. Então foi assim. Decorre dessa parte da narrativa de Félix uma série de informações. Essas informações provêm de experiências sociais que ultrapassam o sujeito que relata e que o engloba em seu fluxo. Pode-se dizer que essas experiências envolvem uma realidade externa, ou seja, condições objetivas e materiais do mundo por onde transitam os sujeitos. Aqui, especificamente, refiro-me ao estágio de desenvolvimento urbano e industrial que São Paulo apresentava em 1958 (ano em que os fundadores foram para São Paulo). Isso permitiu a configuração de uma multiplicidade de espaços públicos, tais como aqueles constituídos pelo movimento operário, pelos partidos políticos, pela imprensa, pelas universidades, dentre outros. A dinâmica da vida na capital paulista, com 12 certeza, era mais intensa do que em Marília, no interior do estado. Adequavase mais aos interesses de expansão e trabalho apostólico do Opus Dei. Em seu relato, Félix evoca a cidade de São Paulo como o terreno ideal para que o Opus Dei se desenvolvesse no Brasil. Além de possuir espaços públicos desenvolvidos, onde as enunciações de justificação pública do Opus Dei encontraram condições para circular relativamente bem, também possuía, já em 1958, as principais universidades e colégios do Brasil. Naturalmente, é próprio do Opus Dei procurar vocações, principalmente, entre os estudantes universitários, o que levou os primeiros membros a ir à Universidade de São Paulo (USP) e, através de abordagens diretas, convidar os rapazes a conhecer o Opus Dei. Segundo a fonte da qual recolhi esse relato, essa estratégia funcionava. Para Félix, a USP afigurava-se como campo de trabalho apostólico – ele coloria a realidade externa, que encontrou em São Paulo, com a sua subjetividade. Além disso, encontrou um campo profícuo para o seu trabalho apostólico entre os advogados e juristas, seu meio profissional. Essa dimensão é clara em sua narrativa. Aqui, mais uma vez, surge como pano de fundo o símbolo da santificação do trabalho no meio do mundo. A ênfase no apostolado entre os estudantes e profissionais implica em uma codificação moral que aponta para o mundo como um lugar de pecado, que precisa ser santificado. Desse modo, Félix evoca esse símbolo, ao longo de sua narrativa, para classificar os lugares pelos quais transita (e transitou) como ambientes que necessitam de santificação. Essa forma de colorir o mundo, muito própria do Opus Dei, ganhou na narrativa de Félix traços muito pessoais, uma vez que ele estava como que desbravando um território ainda intocado, uma vez que era um dos quatro primeiros a estar ali, construindo o Opus Dei em São Paulo. Ao refletir sobre sua própria experiência, no entanto, Félix não se refere, em momento algum, ao mundo como um lugar desgraçado; não demonstra nenhum tipo de desânimo com relação à sua experiência. Pelo contrário, o mundo aparece como o lugar onde cada um deve estar, santificando e levando a palavra de Deus, cada qual com seu ofício, porque, afinal, Deus quis cada um justamente onde está. 13 Segundo o relato de Félix, o Opus Dei no Brasil, após chegar a São Paulo, em 1958, foi se consolidando com poucos membros, timidamente, até 1974. Esse foi o ano em que o fundador, Josemaria Escrivá, esteve na América Latina e, naturalmente, passou pelo Brasil. Félix relata: A vinda dele [do fundador] foi em 1974. Chegou em 22 de maio de 1974. Passou aqui uns 15 dias. Foi embora... deve ter sido no dia de hoje... deve ter sido em 7 de julho que ele continuou a viajem para a Argentina, para Buenos Aires. Então, a rigor, fez parte da vinda dele à América Latina. Esteve em vários países: no Chile, no Peru... então, esteve no Brasil. E realmente foi muito significativo, importante, e creio que fazia parte da missão dele chegar aos lugares onde a Obra tinha sido implantada através do impulso dele. Todavia, era necessário, conveniente, que ele visse e comprovasse se aquilo que lá era Opus Dei realmente era Opus Dei. Então, ele veio e creio que se pode dizer que comprovou que era o Opus Dei aquilo que se tinha feito aqui ao longo daqueles anos, 57 a 74. (...). Então, foi importante. E, talvez, tenha sido especialmente importante pelo impulso que deu. Aqui, no Brasil, estrategicamente, estávamos concentrados em São Paulo [na capital]. De acordo com a narrativa de Félix, São Josemaria Escrivá, ao visitar o Brasil, viu nesse país um grande potencial para a expansão do Opus Dei. Por conseguinte, após sua vinda, data em que encontrou o Opus Dei plenamente consolidado na cidade de São Paulo, enviou mais membros para o Brasil, o que deu fôlego para que a instituição se expandisse para outras capitais das regiões Sul, Sudeste e para Brasília, assim como para outras regiões da capital paulista. A descrição da expansão do Opus Dei possui força evocativa no relato de Félix, pois dramatiza a intervenção divina no curso dos eventos, que vão desde o relato da pré-história do Opus Dei no Brasil, até a vinda do fundador, em 1974, o que deu um fôlego especial para que o Opus Dei prosseguisse até os dias de hoje. Os elementos encadeados dessa forma, no relato de Félix, conferem uma sincronicidade aos eventos descritos, compreendidos como a Providência atuando no mundo e, naturalmente, valendo-se de meios humanos para realizar Sua vontade. A leitura da narrativa de Félix, portanto, me permite sugerir que não se trata, simplesmente, de um relato histórico comum, mas de uma história protagonizada por Deus no mundo, na qual os homens são instrumentos. Deus é o ator por trás dos eventos relatados. 14 Em uma passagem belíssima e evocativa de sua narrativa, onde Félix interpreta e reflete sobre a experiência vivida, após eu ter perguntado “hoje, olhando para trás, o senhor diria que valeu a pena?”, ele responde: Para dizer francamente, o que você vê é o envolvimento de Deus com o homem. Você acaba vendo que Deus, conjuntamente com você, e na medida que você pena, se sacrifica, vai em frente, que vai construindo espaços plenos. Então, é isso o que eu vejo. Acho que valeu à pena. Aliás, quando esteve aqui, no ano de 74, o fundador da Obra, lembro que me pegou pelo braço e perguntou se tinha valido à pena ter vindo ao Brasil. Eu não tinha a menor dúvida de que tinha valido à pena. (...) Mas, você, também, tem consciência de que não são tuas obras. Você está envolvido, mas são coisas que ganham tal volume, tais dimensões, que você termina vendo a mão de Deus nessas fainas. A experiência de ouvir: Um testemunho, qualquer que seja, tem por intuito narrar uma experiência – que se constitui discursivamente como verdade – da qual se foi testemunha. Desse modo, conta-se para quem não estava lá ou que não experimentou as mesmas coisas. A experiência de ouvir não é, de modo algum, passiva. Aquele que ouve é atravessado por experiências afetivas, sentimentos e imagens – cria-se uma comunicação involuntária entre quem narra e quem ouve. Com efeito, o testemunho é sempre destinado a um público específico que, supõe-se, entenderá a gramática na qual fala o narrador. Desse modo, a narrativa de Félix era orientada para um público cristão, mas não qualquer cristão. As pessoas do Opus Dei dirigem-se a estudantes universitários e profissionais com alguma representatividade na cena pública. Esse público, no momento da entrevista, sintetizava-se em mim enquanto pesquisador. Portanto, é interessante, agora, refletir sobre a forma como fui “afetado”, de uma forma ou de outra, pela narrativa de Félix e, principalmente, sobre as comunicações involuntárias que foram estabelecidas aí. Quando cheguei ao Centro do Opus Dei onde reside Félix, caia a noite. Era pouco menos de seis da tarde e uma garoa fina anunciava uma noite fria. Todo aquele ambiente comungava para aumentar a aura de mistério que, para mim, representava aquela situação. Vinha-me à mente a primeira vez que entrei em um Centro do Opus Dei, pois a atmosfera era incrivelmente 15 semelhante. Cheguei à frente do suntuoso casarão de três andares e consultei o relógio: faltavam pouco mais de cinco minutos. Aquela espera me deixava ansioso, embora estivesse empolgado com aquela situação toda. Esperei mais alguns minutos e abri o pesado e alto portão de ferro. Atravessei o pátio envelhecido, subi os três degraus da varanda, fechei o guarda-chuva e toquei a campainha. Alguns minutos depois, vi acender-se a luz fraca do hall de entrada e a porta se abriu. Um homem careca, de óculos de aros grossos e aparentando já alguma idade abriu a porta. Usava um terno simples de cor castanha. Identifiquei-me e falei que havia vindo falar com Félix. O homem, que tinha um ar austero, abriu a porta e eu entrei. Atravessei o hall e ele me indicou uma saleta logo à esquerda. À frente jazia um corredor comprido e largo. Estava com pouca iluminação e não havia sinal de movimentação por ali. Entrei na sala que ele me indicou e sentei em uma poltrona confortável. Disse-me: “você pode aguardar aqui. O Félix já vem”. Minha ansiedade havia diminuído um pouco, mas, com a espera, começara a aumentar. Pela janela grande à minha frente, podia ver uma árvore farfalhar ao vento. A garoa açoitava o vidro. Enquanto esperava, pensava algo como: “eu gostaria de morar aqui. Parece ser a casa de algum conto do Edgar Allan Poe”. De fato, a casa aparentava ser do século XIX ou do início do século XX, a arquitetura parecia remeter a esse período. Alguns minutos depois, ouvi passos lentos vindos do corredor. Finalmente, Félix apareceu à porta. Usava um blusão de lã e estava sorridente, embora gripado. Cumprimentou-me e eu a ele. Depois, chamou-me para ir até outra sala e, saindo dali, fomos para a saleta da frente. Era, de fato, bem mais ampla e com menos móveis. Sentamo-nos próximos à janela, Félix em uma poltrona e eu em um sofá. Expliquei a pesquisa e o intuito da entrevista. Então, Félix disse: “muito bem. Pergunte o que você quiser”. De início, pedi que ele contasse como foi que havia conhecido o Opus Dei. No entanto, como eu deixara claro desde o começo, meu intuito era saber como havia começado o Opus Dei no Brasil. Félix começou sua narrativa contando como entrou para o Opus Dei e, depois, como que naturalmente, passou a contar como o Opus Dei havia chegado ao Brasil. Era impossível, para mim, não projetar reflexos da trajetória de Félix em minha própria história de vida. Na sua narrativa, com efeito, o 16 sujeito desaparecia para dar lugar a Deus como o grande personagem da história, transformando o mundo por meio do homem e conjuntamente com ele. Tratava-se, desde o começo, de ouvir o chamado de Deus e responder a ele. A história de Félix corresponde à resposta a esse chamado. Aprendi, convivendo com os numerários do Opus Dei, sobre a oração mental, por meio da qual Deus dá a graça e o esclarecimento ao homem. Com efeito, ele é capaz de conectar e encadear vários acontecimentos da sua vida de modo a compreender o desejo de Deus para si. Orar é dialogar com Deus. Ao mesmo tempo, é preciso ter a visão sobrenatural para compreender que cada acontecimento da vida, por mínimo que seja, é como é porque Deus quis. Deus fala com o homem por meio desses eventos cotidianos. Enquanto Félix falava, eu pensava: “será que Deus já tentou falar comigo? Será que eu também tenho alguma vocação?”. Isso me passava pela cabeça, mas eu não pensava com muita seriedade. Terminada a entrevista, preparávamo-nos para levantar quando Félix falou: “você está indo a fundo nisso... digo, de conhecer a história da Obra. Deve ter alguma coisa a mais aí que você não está percebendo...”. “Como assim?”, perguntei. Félix continuou: “não é todo mundo que frequenta Centros do Opus Dei que se interessa em ir tão a fundo assim e em ouvir histórias do início da Obra, ainda mais em um dia frio como esse”. Aquilo me perturbou um pouco. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Saímos da saleta para o corredor, que já estava mais movimentado. Um padre estava dando direção espiritual em uma sala no fim do corredor, de modo que as pessoas circulavam por ali esperando serem chamadas. Eu já estava me encaminhando para a porta de saída quando Félix perguntou: “você quer conhecer o oratório?”. Eu disse que sim. Passamos pela sala do padre e subimos uma escada. Chegamos ao primeiro andar. Estava mais silencioso e um pouco mais escuro que o térreo. Ali, Félix me mostrou as salas onde eram dados os Círculos de São Gabriel. Em uma delas, havia uma pintura feita quando São Josemaria Escrivá esteve no Brasil, uma imagem de Nossa Senhora que teria sido beijada por ele e um quadro de São Tomas Morus. Saindo dali, fomos para o oratório, que ficava logo à frente do patamar da escada que recém havíamos subido. Félix abriu a 17 porta, fez a costumeira genuflexão e, tomando-me pelo braço, sussurrou: “bom, te deixo”. Agradeci-o e entrei. Félix saiu do oratório e fechou a porta atrás de si. Sentei-me em um banco dos fundos e fiquei contemplando aquele ambiente solene, silencioso. Vi alguém ajoelhado em um dos primeiros bancos. Lembro-me de ter apoiado a testa na mão direita e olhado para o chão, fiquei ali por um bom tempo. Pensava sobre tudo o que havia ouvido de Félix: sobre o desapego, sobre Deus falando com o homem, etc. Pensei: “e se Félix estiver certo? E se Deus quiser me dizer alguma coisa com tudo isso? Mas, não tenho coragem de abrir mão de tudo... de me desapegar do dinheiro, das coisas...” Fiquei dando voltas nisso por um tempo. Pensava: “de fato, não sei por que decidi estudar o Opus Dei... a coisa simplesmente entrou na minha cabeça. Será que Deus está me pedindo alguma coisa por meio disso? Será que me pede para santificar o meu trabalho?”. Fiquei algum tempo ali deixando as perguntas fluírem. Finalmente, como faço quando algum pensamento me perturba, irritei-me e levantei. Desci as escadas, cumprimentei o padre que estava ao pé da escada procurando alguém, e deixei a residência. Lá fora estava frio, embora a chuva tivesse parado. Voltei a pé até o metrô, mas os pensamentos continuavam na minha cabeça. Talvez por minha fraca formação cristã – minha família nunca foi católica praticante – recusava-me a aceitar a ideia de que Deus poderia estar falando comigo de alguma forma e, mais do que isso, que poderia ter um plano para mim totalmente diferente daquele que eu tinha planejado. Antes de conhecer o Opus Dei, eu considerava o cristianismo como uma explicação sofisticada para o mundo, nada mais do que isso. Vivenciar formas de relacionamento com Deus nos Centros do Opus Dei, com efeito, tornou-me muito mais flexível. A passagem acima foi extraída do meu caderno de campo, embora editada para ser inserida aqui. Voltando a essas anotações e, ao mesmo tempo, pensando sobre o testemunho, chego à seguinte conclusão: o ato de ouvir um testemunho desperta sentimentos, imagens e experiências afetivas. É claro, o testemunho só tem esse efeito se for ouvido por um público com uma sensibilidade específica. Reler minhas anotações etnográficas um ano depois, para escrever esse trabalho, fez com que eu fosse afetado de novo, tal como 18 sugeriu Márcio Goldman (2003). Nesta parte, procurei falar da experiência de ouvir um testemunho e como ele é capaz de afetar um público específico. Considerações finais: Procurei mostrar, aqui, a articulação de três níveis de experiência por meio do testemunho de Félix: a experiência de narrar; a experiência de ouvir; as experiências suscitadas por processos mais amplos. Durante o trabalho de campo, mesmo quando não se tratava de entrevistas formais, foi comum encontrar pessoas dando seu testemunho acerca da sua história com o Opus Dei e do seu relacionamento com Deus – histórias que são testemunhos de verdades. Cada uma dessas histórias despertou em mim experiências afetivas singulares. Com efeito, ao deixar fluir a escrita etnográfica, revivi algumas delas. A narrativa de Félix, de fato, transformou minha forma de encarar o lugar do sobrenatural na vida das pessoas. Meu intuito foi demonstrar, portanto, a articulação das experiências de narrar e de ouvir e, ao mesmo tempo, a sua conexão com processos mais amplos e com experiências sociais. Bibliografia Livros: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: estratégia poder-saber. Vol. 4. São Paulo: Forense Universitária, 2006. ______. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. INGOLD, Tim. Being Alive. London and New York: Routledge, 2011. REVEL, Judith. Foucault: Conceitos Essenciais. São Carlos: Clara Luz, 2005. RHONHEIMER, Martin. Transformación del mundo: la actualidad del Opus Dei. Madrid: Rialp, 2006. Artigos: ALMEIDA, Ronaldo. “Religião em transição”. In: MARTINS, Carlos Benedito; DUARTE, Luiz F. Dias (Org.). Horizontes das ciências sociais: Antropologia. São Paulo: Anpocs/Barcarolla, 2010. 19 ASAD, Talal. “A construção da religião como uma categoria antropológica”. Cadernos de Campo, 19, p. 263-285, 2010. HERRNSTEIN, Barbara. “Narrative Versions, Critical Inquiry, Vol. 7, No. 1, On Narrative 213-236 , The University of Chicago Press. Narrative Theories”, (Autumn, 1980), pp. KOFES, Suely. “Experiências sociais, interpretações individuais: histórias de vida, suas possibilidades e limites”. Cadernos Pagu (3), 1994: pp. 117-141. GOLDMAN, Márcio. “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia”. Revista de Antropologia. V. 46, n° 2, São Paulo, USP, 2003. GOODMAN , Nelson: "Twisted Tales: Or, Story, Study, and Symphony" in Critical Inquiry, Vol. 7, No. 1, On Narrative (Autumn, 1980), pp. 103-119 , The University of Chicago Press. MONTERO, Paula. “Talal asad: para uma crítica da teoria do símbolo na antropologia religiosa de Clifford Geertz”. Cadernos de Campo, 19, p. 259-262, 2010. Site: Opus Dei: site oficial, 07/10/2011, <www.opusdei.org.br> i Utilizo o termo símbolo fazendo referência à forma como Talal Asad (2010), em crítica a Geertz, o entende. Para aquele autor, os símbolos não podem ser separados dos contextos históricos e das práticas de poder nas quais surgem. Dito de outra forma: os símbolos são intrínsecos às práticas históricas de organização e significação. Muito foucaultianamente, Asad afirma que são relações de poder que criam as condições para que certas verdades, discursos e símbolos possam ser experimentados. Existem, portanto, processos históricos e materiais através dos quais símbolos e significados são construídos e em torno dos quais se configuram experiências. Os símbolos, portanto, são um conjunto de relações entre objetos e eventos agregados cuja formação é condicionada por relações sociais e, principalmente, por processos de poder. Entendo, segundo Asad, que os símbolos não são mais elementos universais de significados transhistóricos, mas são, ao contrário, constituídos historicamente e envolvem processos de poder e de subjetivação. ii Os membros do Opus Dei utilizam o termo Obra para referir-se àquela instituição. iii O termo tertúlia é utilizado para designar as reuniões diárias dos frequentadores dos centros e residências do Opus Dei. Essas reuniões são regulares e, às vezes, tem apresentações musicais, ou simplesmente conversas informais. iv O termo Nosso Padre é utilizado internamente para referir-se ao fundador, São Josemaria Escrivá. v O Colégio Romano da Santa Cruz foi erigido em Roma, em 1948, por Josemaria Escrivá. Era um centro internacional de formação de membros do Opus Dei. 20