Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 JORNAL ESCOLAR: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS Vanessa W. LIMA1 Paula I. CAMPOS-ANTONIASSI2 RESUMO: A utilização do jornal como instrumento de ensino escolar vem crescendo no Brasil, especialmente depois da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1998, que propõem que os gêneros, inclusive os da imprensa, sejam elementos centrais do ensino e aprendizagem de linguagem. O objetivo deste trabalho é apresentar uma proposta de utilização do jornal escolar com o propósito de valorizar as práticas de letramento locais discentes, utilizando-as na produção do jornal; utilizar os gêneros da imprensa para o ensino de linguagem e, promover uma prática de ensino baseada nas três unidades básicas de Geraldi (2006): prática de leitura, produção de textos e análise linguística. A produção de jornal escolar é uma forma de oferecer oportunidade de autoria e protagonismo aos alunos, levando-os a assumir papel central em seu próprio processo educativo. Essa proposta está fundamentada nos Estudos do Letramento (BARTON, HAMILTON, 1998; STREET, 2003; ROJO, 2009) e na Pedagogia Crítica (FREIRE, 2011/1987) e, pretende incentivar os alunos a pensarem criticamente sobre a realidade em que vivem. Configura-se como pesquisa-ação, pois são estabelecidas ações por parte dos envolvidos (docentes e discentes) e o pesquisador, neste caso, desempenha apenas um papel auxiliar. Os resultados são preliminares, porém é possível sugerir e refletir sobre uma série de práticas, envolvendo a produção de jornal escolar, que preveem um ensino baseado na leitura, produção e análise textual. PALAVRAS-CHAVE: Jornal Escolar; Gêneros; Ensino de Linguagem. ABSTRACT: Using the newspaper as a teaching school instrument is growing in Brazil, especially after the publication of the “Parâmetros Curriculares Nacionais” (PCN) in 1998, which propose that the genres, including the press, should be central elements of teaching and learning of language. The aim of this paper is to present a proposal to use the school newspaper for the purpose of enhancing the literacy practices local students, using them in newspaper production, using the genres of media to teach language and to promote a teaching practice based on three basic units of Geraldi (2006): reading practice, production of text and linguistic analysis. The production of school newspaper is a way to provide opportunity for authorship and leadership to students, leading them to assume a central role in their own educational process. This proposal is based on studies of literacy (BARTON, HAMILTON, 1998; STREET, 2003; ROJO, 2009) and Critical Pedagogy (FREIRE, 2011/1987) and aims to encourage students to think critically about the reality in which they live. Configures itself as action research, as are established by actions of those involved (teachers and students) and the researcher, in this case, plays only an auxiliary role. The results are preliminary, but you can suggest and reflect on a series of practices involving the production of school newspaper, which predict an education based on reading, production and textual analysis. KEYWORDS: School Newspaper; Genres; Language Teaching. 1 Mestre e Doutoranda em Ciências da Linguagem. Universidade do Sul de Santa Catarina/Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected] 2 Graduada em Letras – Português/Inglês. Mestranda em Linguística Aplicada. Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected] 1 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 1 Introdução A utilização do jornal no ensino escolar de linguagem vem aumentando desde que os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) sugeriram um ensino de linguagem baseado nos gêneros discursivos/textuais, especialmente sobre os gêneros da imprensa. Não é recente a vertente que privilegia um ensino de linguagem aplicado à utilização social da língua em detrimento daquele normativo, pesado, baseado em regras gramaticais. Esse aspecto pragmático da língua tem sido trabalhado nas escolas, através do ensino de gêneros, mesmo que este ensino, muitas vezes, ponha os gêneros em fôrmas, normatizando-os e enchendo-os de regras que, em muitas situações, nem são tão estáticos assim. O jornal escolar é uma maneira de privilegiar o uso social da linguagem em sala de aula e de esquecer um pouco as normas linguísticas pesadas e que, muitas vezes, afastam os alunos, causando desinteresse e cansaço. Através do jornal escolar é possível valorizar as práticas de letramento locais (BARTON, HAMILTON, 1998), ou seja, é uma forma de mostrar aos alunos que aquela utilização da escrita e da leitura a qual eles já estão habituados também pode ser valorizada e também é uma forma de ingressar no mundo letrado. Aliás, mundo letrado ao qual ele já é parte, mas não sabe, pois ainda acredita que só o ensino tradicional escolar é capaz de levá-lo ao tão distante mundo letrado. Segundo Freire (2011/1987), a educação deve estar mais para uma porta aberta para a liberdade do que para uma fôrma que potencializa e mantém a sociedade estatizada e dominada, indiferente às lutas sociais e relações de poder. Uma educação libertadora deve privilegiar a formação de um cidadão crítico e engajado, de um indivíduo que se preocupe com seu futuro, sim, mas que antes disso, preze por uma sociedade mais justa, mais igualitária. Por conta disso, o jornal escolar deve privilegiar a realidade local dos estudantes, permitindo que esta realidade tome lugar de destaque no processo educativo e levando-a para além das paredes escolares. Os PCNs (1998) incentivam práticas de ensino que deem destaque aos gêneros, haja vista que estes criam um vínculo entre ações individuais e sociais. Através do jornal escolar é possível trabalhar com as três unidades de linguagem (leitura e produção textual, e análise linguística), sugeridas pelos PCNs (1998) e reforçadas por Geraldi (2006). Neste caso, apresentamos duas experiências de ensino com o jornal escolar e mostramos como a prática de análise linguística pode ser parte das atividades propostas. A primeira experiência de ensino de linguagem através do jornal escolar acontece numa escola pública estadual de ensino fundamental do município de Tubarão/SC. Esse projeto começou em fevereiro de 2012 e deve seguir por todo o ano letivo. O trabalho se deve à aplicação de uma tese de doutoramento que tem o jornal escolar como objeto de ensino de linguagem, de valorização das práticas de letramento locais na tentativa de promover uma educação mais igualitária com o intuito de libertação dos indivíduos. Os participantes do projeto pertencem a uma turma de correção de fluxo formada por alunos que possuem 13 anos ou mais que estavam na 5ª série (4º ano) e/ou alunos de 14 anos ou mais que estavam na 6ª série (5º ano). A faixa etária da turma é de 15/16 anos. A segunda experiência acontece em uma escola municipal de Florianópolis e já existe há alguns anos. No início, os jornais eram impressos na escola, mesmo, em folhas A4, diagramados de forma bastante amadora. No entanto, desde que a escola começou a fazer parte do Projeto Mais Educação 3, do Governo Federal, o trabalho vem sendo desenvolvido 3 Segundo o portal do MEC, o “Programa Mais Educação [...] aumenta a oferta educativa nas escolas públicas por meio de atividades optativas que foram agrupadas em macrocampos como acompanhamento pedagógico, meio ambiente, esporte e lazer, direitos humanos, cultura e artes, cultura digital, prevenção e promoção da saúde, 2 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 com mais ‘profissionalismo’, contando com uma equipe de diagramação e a impressão é feita na gráfica de um grande jornal da cidade. Nesta escola, o trabalho é feito por meio de oficinas – elas acontecem uma vez por semana – e conta com um ‘oficineiro’ e uma professora da escola que coordena o projeto. Os alunos são de diversas séries da 2ª fase do Ensino Fundamental – há alunos do 6º e 7º anos e 7ª e 8ª séries 4. Espera-se, com essas experiências, mostrar como e quanto o jornal escolar serve ao propósito de ensino de linguagem, ao menos da forma como os PCNs sugerem que aconteça. Assim, acredita-se que os jornais escolares apresentados estejam mais próximos da educação libertadora que de uma educação forjada nos moldes e manuais programáticos que não respeitam a individualidade discente e tão pouco permitem uma atuação docente livre, adequada às realidades locais dos alunos. 2 Práticas sociais de letramento: por uma educação libertadora A ideia que se tem encontrado hoje como central para uma educação inovadora e de qualidade é a de que a alfabetização e o letramento andam juntos no que se refere ao desenvolvimento do indivíduo em sociedades textualizadas. Sabe-se da importância dos dois para a convivência em sociedade, porém a ideia de aquisição, tanto do código quanto do letramento, tem sido igualada a uma aquisição cognitiva, individual e que não tem mostrado resultados efetivos no que diz respeito ao desenvolvimento do letramento. Esse desenvolvimento está mais relacionado aos grupos sociais e ao que estes grupos fazem com seus textos, escritos ou orais, do que ao ensino propriamente dito. O letramento é consequência da participação em uma cultura textualizada e está especialmente relacionado ao uso que tal cultura faz dos textos. Mais que uma habilidade individual e cognitiva, o letramento é social e seu lugar é na interação. Segundo Barton e Hamilton (1998), apesar de estar primariamente relacionado ao que as pessoas fazem, o letramento deve ser visto como uma atividade localizada no espaço existente entre o pensamento e o texto. O ponto central de uma visão social do letramento está naquilo que as pessoas fazem com o letramento: suas atividades sociais, seus pensamentos e os significados por trás dessas atividades, além dos textos utilizados em cada uma dessas atividades, ou seja, a teoria social do letramento preocupa-se com as práticas sociais relacionadas à escrita, em toda e qualquer atividade da vida social. Street (1984) sugere que o letramento seja visto sob dois aspectos principais, o autônomo e o ideológico, lançando as bases para os Novos Estudos do Letramento (doravante NEL). Para entender tais bases, é preciso entender também que o sentido do termo literacy abrange a alfabetização e o letramento, conforme comumente disseminado no Brasil: Literacy é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever. Implícita nesse conceito está a idéia de que a escrita traz consequências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprende a usá-la (SOARES, 2006, p. 17). Assim, é possível perceber uma relação entre a ideia apresentada e a concepção de educação libertadora de Paulo Freire, que já na década de 60, empreendia um método de educomunicação, educação científica e educação econômica”. Para isso, o Governo Federal repassa recursos “para ressarcimento de monitores, materiais de consumo e de apoio segundo as atividades.”. 4 Nesta escola, o Ensino Fundamental de 9 anos está sendo implantado aos poucos, conforme a turma vai avançando, os ‘anos’ começam a substituir as ‘séries’. 3 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 alfabetização que previa um ensino além do código, primava pela libertação da consciência do indivíduo. Freire entendia que o ato de alfabetizar deveria significar o ato de incentivar a libertação. “Aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra. Aprender a dizer a palavra é aprender a ler o mundo” (FREIRE, 2011/1987, p. 20). O método foi amplamente utilizado no cenário nacional, até que com a chegada do golpe militar de 1964, Freire fora preso e exilado. Paulo Freire e seu método libertador se tornaram uma preocupação para o governo militar, pois a concepção freireana de alfabetização estava diretamente relacionada ao direito de efetivo exercício da cidadania. O método de Paulo Freire é, essencialmente, um método educativo que conscientiza e politiza. Freire (2011/1987) nega a existência de um indivíduo passivo e defende que o indivíduo deve ser um sujeito ativo e participativo de seu próprio processo educativo. Sujeito pensante que discute, age e, principalmente, decide. Fundamental é a leitura que se faz do mundo, leitura que permite que o indivíduo seja capaz de alcançar o conhecimento ou mesmo de se reconhecer no centro de sua aprendizagem e de sua história. Além disso, ao se colocar no centro de seu processo educativo, o estudante pode enxergar e refletir sobre seu lugar e seu papel no mundo. Para este autor, a educação deve vir “como um esforço de libertação do homem, e não como um instrumento a mais de sua dominação” (FREIRE, 2011/1987, p. 159). 2.1 Letramento como prática social O letramento deve ser concebido como ação cultural e social concreta constituído por, pelo menos, uma das seguintes atividades: escrita, leitura e fala sobre texto escrito ou sobre produções semióticas. Segundo Barton e Hamilton (1998), para compreender a essência do letramento é preciso analisá-lo através de um olhar social, assim como localizá-lo nas interações sociais, que é exatamente onde tais práticas ocorrem. Este olhar permite que se entenda o letramento como prática social. Para Barton e Hamilton (1998), a noção de práticas de letramento é básica à Teoria Social do Letramento, pois ela se apresenta como um conceito poderoso para definir as relações entre as atividades de leitura e escrita e as estruturas sociais em que estão inseridas. “Práticas de letramento são as formas culturais de utilização da escrita nas quais os indivíduos moldam suas vidas” (idem). Em um sentido mais simples, práticas de letramento são o que as pessoas fazem com o letramento. De forma a caracterizar o letramento como prática social, Barton e Hamilton (1998) apresentam seis proposições que permitem a visualização das atividades de leitura e escrita, bem como das estruturas sociais que as envolvem: a) o letramento pode ser mais bem compreendido se for visto como um cenário de práticas sociais; em que estas podem ser inferidas a partir de eventos mediados por textos escritos; b) há diferentes letramentos associados a diferentes áreas da vida; c) práticas de letramento são padronizadas por instituições sociais e relações de poder e alguns letramentos se tornam mais dominantes, visíveis e influentes que outros; d) práticas de letramento são intencionais e sempre estão envolvidas por objetivos sociais e práticas culturais; e) o letramento é historicamente situado. f) as práticas de letramento podem mudar e dar espaço a novas práticas que, frequentemente, são adquiridas através de processos de aprendizado formal e significativo. Considerar o letramento como prática social abre caminho ao debate dos modelos de letramento de Street (1984). Street trabalha com duas concepções de letramento que podem ser consideradas dominantes em uma sociedade: o modelo autônomo e o modelo ideológico de letramento. O modelo autônomo de letramento pressupõe que há apenas uma forma de se desenvolver letramento, levando à crença de que letramento está diretamente relacionado ao progresso ou à mobilidade social. De outro lado, há o modelo ideológico de letramento, no 4 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 qual as práticas de letramentos são determinadas social e culturalmente, permitindo que a escrita assuma diferentes significados, dependendo apenas dos contextos e instituições em que foi adquirida. 2.1.1 Modelos de letramento de Brian Street (1984) Como mencionado, a noção de prática de letramento é essencial à concepção social de letramento. Para Street (1984) as práticas de letramento são culturais, discursivas e determinantes para a produção e interpretação de textos, em contextos específicos. Assim, se as práticas de letramento apresentam relação de dependência com seu contexto, então essa relação se estenderá também, à carga ideológica desse contexto, impedindo, assim, que se dê um tratamento neutro ou técnico a tais práticas. No entanto, pensar o letramento dessa maneira implica pensar que as pessoas, uma vez que aprendam o código escrito, estarão aptas a transitar em qualquer contexto letrado. A essa abordagem, Street (1984) chama de modelo autônomo de letramento. Esse modelo pressupõe que a escrita – de forma autônoma e independente do contexto social que condiciona seu uso – terá fortes efeitos sobre outras práticas sociais e/ou cognitivas, ou seja, o desenvolvimento cognitivo, econômico, a ascensão e mobilidade social dos participantes (KLEIMAN, 1995). Já no que tange à escola, o modelo autônomo se define como a capacidade de ler e escrever, em que ler significa ser capaz de decodificar as palavras e escrever ser capaz de codificar a língua dentro do texto (GEE, 1998, p. 27). É possível perceber que algumas escolas têm suas práticas de ensino apoiadas nesse modelo. “O processo de interpretação estaria determinado pelo funcionamento lógico interno ao texto escrito, não dependendo das reformulações estratégicas que caracterizam a oralidade” (KLEIMAN, 1995, p. 22). Aqui, a divisão oral/escrito ainda se faz presente e, em sociedades nas quais o letramento escrito não aparece, o fato é visto como uma lacuna a ser preenchida. Adquirir letramento significaria adquirir lógica e raciocínio crítico. Por conta disso, surge a ideia de que mobilidade social, progresso e civilização estão associados ao letramento: letrarse é ascender socialmente. No entanto, da mesma forma que há a possibilidade de o indivíduo ascender-se socialmente, este modelo atribui o fracasso ao indivíduo, que, normalmente, está à margem da sociedade (GEE, 1998). No entanto, os teóricos dos NEL apoiam suas pesquisas no modelo ideológico de letramento, ou seja, um modelo em que “as práticas de letramento, no plural, são social e culturalmente determinadas, e, como tal, os significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida” (KLEIMAN, 1995, p. 21). Essa é a natureza social do letramento, considerando leitura e escrita como práticas sociais e olhando para tais práticas, não apenas como atividades com um fim em si mesmas (tal como no modelo autônomo de letramento), mas como atividades que servem a um propósito. Segundo Terzi (2006), este modelo não se desvincula do contexto cultural e social no qual é construído, bem como do significado que as pessoas atribuem à escrita e das relações de poder que regem os seus usos, de modo que a junção desses fatores resulta em letramentos múltiplos que variam de comunidade para comunidade, por conta das condições socioeconômicas, culturais e políticas que as influenciam. É importante salientar que, para a autora, optar por esse modelo exige que não se ensine apenas a tecnologia da escrita, mas que se ofereça a oportunidade de entendimento das situações sociais de interação em que os textos circulam, além dos significados dessas interações para indivíduos e comunidades (TERZI, 2006, p. 5). 5 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 3 Experiências de jornal escolar Como forma de identificar mais facilmente as experiências de jornal escolar que descrevemos aqui, optamos por utilizar as nominalizações Experiência A e Experiência B. A primeira experiência é a aplicada na Escola de Educação Básica Professora Célia Coelho Cruz, localizada no bairro São João Margem Esquerda, no município de Tubarão/SC. A escola estadual de ensino fundamental conta com, aproximadamente, 35 professores e possui 350 alunos. Dentre estes, 10 são alunos da turma de correção de fluxo, a chamada 8ª série intensiva. Essa turma de correção de fluxo é formada por alunos que estavam na 5ª série (4º ano) e tinham 13 anos ou mais e por alunos que estavam na 6ª série (5º ano) e tinham 14 anos ou mais. A formação de uma turma específica para a correção de fluxo é uma clara tentativa do governo do Estado de diminuir o número de reprovações, haja vista que estes alunos têm aprovação compulsória. Por ser uma experiência nova, não existem ainda materiais didáticos tradicionais para a turma de correção de fluxo e, além disso, apenas quatro disciplinas compõem o conteúdo programático da turma de Correção de Fluxo, quais sejam: Língua Portuguesa, Matemática, Arte e Educação Física. Apesar disso, os conteúdos trabalhados por tais disciplinas devem atingir, sistemicamente, os conhecimentos geográficos, históricos, químicos e físicos. Assim, foram criadas apenas diretrizes que podem balizar a prática docente. Em vez de criar um material didático para basear a atuação docente, a Secretaria Estadual de Educação entregou às escolas um documento, em que um de seus itens é “Balizadores do Planejamento e das Dinâmicas Didático-Pedagógicas: as expectativas de aprendizagem do estudante do Programa de Correção de Fluxo 2012”. Este documento declara às escolas, e aos professores, quais as expectativas para a aprendizagem dos alunos do Programa. Esta é a única base que os professores possuem para efetuar seu trabalho durante este ano letivo. As expectativas da Secretaria para o aprendizado anual desses alunos estão divididas em quatro grandes blocos: a) expectativas na dimensão textual; b) expectativas na dimensão variação linguística; c) expectativas na dimensão sistêmica; d) expectativas para as estruturas do conhecimento matemático em seus domínios. Dentre os quais destacamos, respectivamente: a) Localizar informação explícita associada ao gênero textual. Identificar gênero textual. Explicitar o sentido global do texto. Relacionar elementos do texto com o contexto de produção. Identificar a tese de um texto. [...] b) Distinguir marcas de linguagem oral e da linguagem escrita em função da situação interlocutiva. Identificar traços de formalidade e informalidade em diferentes gêneros orais. Reconhecer características da língua coloquial. c) [...] Estabelecer relação de sinonímia entre diferentes palavras. Estabelecer relações entre partes de um texto, identificando repetições ou substituições que contribuem para a continuidade do fluxo informacional. Estabelecer relação causa/consequência entre partes e elementos de um texto. identificar efeitos de ironia ou humor desencadeados por diferentes recursos linguísticos. [...] d) construir significados e ampliar os já existentes para os números naturais, inteiros e racionais. Utilizar o conhecimento geométrico, construir noções de grandeza e medidas, construir noções de variação de grandeza a fim de compreender a realidade e de agir sobre ela. A fim de consolidar tais expectativas e para que se atinja um mínimo desejável quanto ao “numeramento ou letramento matemático”, há a sugestão de que alguns conteúdos sejam trabalhados pelas disciplinas, tais como: quantidade e medida, espaço e formas, e, incerteza 6 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 que consiste em “leitura e uso de dados apresentados em tabelas e/ou gráficos simples. Ideia de probabilidade. Representação da probabilidade em forma de percentual ou fração. Média aritmética e sua interpretação”. Por fim, o documento sugere que as disciplinas de Arte e de Educação Física se integrem aos balizadores e conteúdos citados anteriormente no mesmo. Este documento concretiza a ausência de diretrizes didáticas para essa turma ao mesmo tempo em que incentiva o corpo docente a sempre procurar a melhor forma de trabalhar com esses alunos. O maior problema enfrentado por esses professores e alunos é a ausência completa de identificação didática, relacional e institucional, visto que nem professores nem alunos sabem como agir diante da diferença. Por conta disso, alunos e professores passam por uma crise de identidade que os leva a questionar o que estão fazendo na escola. Essa crise de identidade afeta o rendimento (discente e docente) e a frequência escolar, levando os alunos a pensar que não há diferença entre “assistir às aulas” e/ou “não assistir”. Há, então, uma irregularidade na frequência e na permanência em sala de aula. Muitos dos alunos que entraram nessa turma, já desistiram de estudar, por uma série de motivos, tais como: necessidade de trabalhar maior que a de estudar, desinteresse nos estudos, problemas de relacionamento familiar e social. Além disso, há o fato de que esses alunos já chegarem calejados de uma educação tradicional, baseada em cartilhas e manuais, que os desvaloriza e os determina cada vez mais como oprimidos. Trabalhar com estes alunos é um desafio diário e interminável. Apesar disso, a experiência de jornal escolar tem sido edificadora e até, transformadora. A segunda experiência acontece5 na Escola Básica Vitor Miguel de Souza, no bairro Itacorubi, no município de Florianópolis – SC. Esta escola funciona nos turnos Matutino e Vespertino, atendendo à alunos do Ensino Fundamental Anos Iniciais e Anos Finais. O processo de implementação do Ensino Fundamental de 9 anos está em andamento nesta instituição, portanto, há, ainda, turmas denominadas 7ª e 8ª séries. Nos próximos anos, elas serão substituídas por turmas com a nomenclatura que é exigida por essa nova legislação. Os alunos dos ‘Anos Finais’, que estudam pela manhã, tem a possibilidade de participar das oficinas oferecidas pela escola e que fazem parte do Projeto Mais Educação. Estas oficinas acontecem no contraturno, ou seja, os alunos têm as aulas tradicionais pela manhã e continuam na escola para as oficinas – são várias: letramento, jornal escolar, dança, futsal e, para os próximos anos, haverá a oficina de rádio escolar. Com a necessidade de permanecer na escola, os alunos passaram a almoçar na instituição, nos dias que se fazem necessários. Como permanecem por toda a tarde, eles também lancham na escola nesse período, evitando assim que o aluno saia da escola, logo permanecendo em segurança. A escolha das oficinas fica a cargo dos alunos. Eles podem escolher a (ou as) oficina (s) que mais interessar e começar a fazer parte deste projeto. A oficina com o jornal é composta por alunos de 6º e 7º Anos e 7ª e 8ª séries, muitos deles também participam da oficina de Letramento. Neste projeto, há uma professora que coordena a oficina e um ‘oficineiro’, quem, efetivamente, trabalha com os alunos. O trabalho deste oficineiro é auxiliar/ensinar os alunos a produzirem o jornal da escola. Nas oficinas, os alunos decidem a pauta, escolhem quem vai escrever cada matéria, decidem a forma com que estas matérias serão escritas (se haverá imagem, caso tenham que fazer entrevistas, quem serão os entrevistados e quais as perguntas serão feitas, se eles não dominam determinado conhecimento, deverão pesquisar antes de escrever, etc.) e começam o processo de produção textual. Neste momento, os alunos escrevem suas primeiras impressões – sempre pedindo auxílio ao oficineiro – e já começam a entender que a primeira versão deve ser lida 5 Para analisar esta experiência, que já existe na escola há muitos anos, estamos desenvolvendo uma pesquisa diagnóstica, de cunho etnográfico, para compor uma dissertação de Mestrado. 7 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 novamente, corrigida e readequada antes de colocar ‘um ponto final’ e mandar para a publicação. Todo este processo se faz muito importante, pois apenas assim, os alunos perceberão a importância de construir conhecimento, de readequar seus textos e de transmitir ao leitor uma postura ética e comprometida com a escola e comunidade. Esta pesquisa tem evidenciado o caráter positivo de uma educação libertadora e que preza pela autonomia dos sujeitos. Ao se tornarem produtores/autores dos próprios textos, os alunos têm sua autoestima elevada e percebem que suas vozes serão ouvidas. 3.1 Produção textual e análise linguística: práticas de sala de aula Na Experiência A, os alunos apresentaram uma dificuldade muito grande com o ensino formal: não tinham paciência em ficar sentados ouvindo o professor, não traziam material para a sala de aula e, muitas vezes, nem paravam para prestar atenção no que o professor falava. Logo, a alternativa mais viável de conseguir produções textuais que pudessem ser publicadas foi trabalhar individualmente com esses alunos. Por virem de turmas diferentes e por possuírem algumas dificuldades de aprendizagem, as produções textuais desses alunos também vieram carregadas do reflexo de seus processos de aprendizagem, muitas vezes, falhos. Após algumas aulas sobre como funciona um jornal convencional, os propósitos de uma notícia, as possibilidades de leitura e de autoria nas produções jornalísticas, foi possível começar a estruturação das responsabilidades na produção do jornal escolar, bem como dos temas que os alunos escolheriam para seus textos. Toda a produção textual dessa turma foi realizada diretamente no laboratório de informática, pois foi possível perceber uma diferença no comportamento dos alunos quando estavam fora da sala de aula. Assim, depois de produzirem e entregarem os textos, estes foram analisados e reescritos pelos próprios alunos. A cada nova versão, novas dúvidas iam surgindo e novos textos também. Aos poucos foi possível perceber que textos muito marcados, ou seja, com muitas correções a serem feitas, os melindravam, vinha a “preguiça” de reescrever aquele texto. A reação dos alunos, ao encontrar um texto cheio de marcações, também era a de “mávontade” de continuar a escrever um mesmo texto. A maioria dos alunos da Experiência A mostrou que depois de um trabalho individual, face a face, seus textos podiam ser considerados como melhores no nível ortográfico ou discursivo. Porém, se um trabalho individual não fosse feito com cada um deles, havia uma indiferença muito grande com seu próprio texto, inclusive no sentido de aprender com aquela produção. O trabalho com o jornal na Experiência B acontece por meio de oficinas. Os alunos assistem às aulas ‘tradicionais’ no turno matutino e no contraturno participam da oficina de jornal escolar. Este jornal, como já dissemos, existe há algum tempo nesta escola, no entanto, a equipe deste ano é praticamente nova, o que pode explicar o fato de o trabalho não ter acontecido da maneira planejada pela professora coordenadora e pelo ‘oficineiro’. Perdia-se muito tempo chamando a atenção dos alunos, pedindo que eles parassem de conversar com os colegas, que ficassem em sala de aula e até mesmo que eles participassem da discussão. Todos esses problemas determinaram a forma com que o trabalho com a produção textual aconteceu nesta primeira edição do ano. A escolha dos temas a serem abordados nesta edição foi feita pelos alunos. Em uma das oficinas, eles definiram a pauta do jornal, decidiram quem seriam os autores – normalmente eles trabalham em duplas – e determinaram quais itens comporiam a matéria – texto, foto, desenho, etc. 8 Anais do X Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel-PR | 24 a 26 de outubro de 2012 | ISSN 2178-7751 Quando passavam para a produção textual, os alunos percebiam que precisavam pesquisar mais sobre o assunto que iriam escrever e que também seria interessante entrevistar pessoas ligadas ao tema. A partir daí, começavam a produzir seus textos e construir a matéria que seria publicada. No entanto, o processo não era tão simples assim. A escola é uma das instituições que participa do PROUCA – Projeto Um Computador Por Aluno – e cabia aos alunos que levassem seus notebooks para a oficina para que agilizassem o trabalho de escrita. Isso raramente acontecia, eles esqueciam, reclamavam do peso, mas o fator mais preponderante era o grande número de computadores estragados e sem possibilidade de consertar. Assim, a maioria dos alunos escrevia os textos manualmente e entregava para o ‘oficineiro’. Cabia a este, então, digitar todos os textos e enviar para o e-mail do projeto. Este processo durou bastante tempo o que dificultou o trabalho de correção e reescrita dos textos. Com o passar dos meses, os alunos foram finalizando os textos e foi necessário que se fizesse uma ‘força-tarefa’ para a correção e reescrita destes. Neste momento, a equipe do jornal decidiu que ia readequar os textos dos alunos, pois era preciso entregar o jornal para a escola em poucas semanas e não seria possível fazer este trabalho com a ajuda dos autores. A fim de manter as características de cada autor e permitir que eles se enxergassem como ‘donos’ dos textos, a equipe decidiu corrigir apenas problemas de ordem ortográfica, lógica textual e tentar, em alguma medida, diminuir a repetição de palavras. Apesar de não ser o ideal, esta decisão foi, de certa forma, acertada para aquele momento. A equipe do jornal tinha uma demanda a ser atendida – entregar o jornal para a comunidade antes de findar o semestre – e os alunos precisavam do estímulo de ver o trabalho de cada um estampado nas páginas do jornal. Com isso, podemos dizer que o jornal escolar não é apenas uma oportunidade de aprendizado efetivamente libertador e de valorização das práticas locais, mas também de que ele abre muitas possibilidades de práticas de sala de aula que permitem a leitura, a produção textual, além da análise linguística. 4 Considerações Finais Estas experiências de jornal escolar mostram que as práticas de sala de aula precisam apenas de um pano de fundo para se estabelecerem. Estes jornais escolares, que tem por objetivo primeiro a prática de uma educação libertadora que valorize o conhecimento prévio dos alunos e, acima de tudo, estabeleça como base de ensino suas experiências de letramento fora dos muros escolares, mostram que práticas de leitura, produção textual e análise linguística são apenas formas de se trabalhar em sala de aula. Através dessas formas, os alunos podem, efetivamente, participar de um processo de ensino e aprendizagem formal, porém sem esquecer-se das práticas letradas que o cercam diariamente. O ensino de linguagem não pode estar alheio às práticas sociais a que os alunos estão habituados, mesmo que o objetivo seja o ensino da gramática básica de uma língua. Referências BARTON, D.; HAMILTON, M. Worlds of literacy. Clevedon: Multilingual Matters, 1998. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GEE, J. P. Social linguistics and literacies: ideology in discourses. 2. ed. 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