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Continuidade e
descontinuidade: o debate ao
longo da história da igreja
Rodney Petersen
A
primeira pergunta na interpretação da Escritura que o
cristão, após reconhecer o senhorio de Jesus Cristo, faz,
é como relacionar as Escrituras hebraicas com o “Novo”
Testamento.1 Muitas divisões entre igrejas cristãs surgem das
diferentes maneiras de compreender esse relacionamento. Isso
foi o que aconteceu nos primeiros anos da igreja. Foi um assunto
tratado durante a Reforma, bem como em períodos posteriores e
recentes de reavivamento da igreja.
Nossa pergunta é a que foi feita por Filipe ao eunuco etíope:
Compreendes o que vens lendo? (At 8.30). Foi a dos dois discípulos
na estrada de Emaús (Lc 24.13-49). Precisaríamos reformulá-la hoje.
Por exemplo: A crise de saúde gerada pela aids é uma praga lançada
sobre a sociedade moderna por um Deus indignado? O clamor por
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Continuidade
e descontinuidade
liberdade e justiça feito pela população negra da África do Sul tem
semelhanças com o clamor dos hebreus sob a tirania egípcia? Tem
Israel o direito profético à Palestina que exclui total concessão à
população árabe?
A resposta de Filipe foi direcionar o etíope para Cristo.
Nesse ponto o enigma do AT deve ser compreendido. No final das
contas essa é a resposta da igreja à relação entre os Testamentos.
É muito mais do que isso, mas temos de começar aqui. A Escritura
registra Jesus tratando a tradição apontando para si mesmo (Jo
5.39). Ele e sua missão se ocuparam do cumprimento de conceitos
fundamentais das Escrituras hebraicas. Além disso, não somente
algo se cumprira nele, como um novo período da história havia
começado (Lc 4.16-21). Finalmente, Jesus traçou uma distinção
entre a vontade de Deus, em nome da qual ele pareceu falar diretamente, e o que havia sido autorizado pela tradição (p. ex., Mc
10.2-12). Todavia, quase paradoxalmente, Jesus manteve um ponto
de vista rigoroso; toda a lei devia ser cumprida. Sua vigência
continuou (Mt 5.18; Lc 16.17), mas foi humanizada e aprofundada
pela lealdade a ele.2
Esses três temas são encontrados nos Evangelhos. Eles
aparecem na primeira pregação cristã em Atos. Entretanto,
pode-se argumentar que a primeira consideração metodológica
dada a eles, quando abordam nossa questão, veio do apóstolo
Paulo. A resolução da revelação em duas dispensações, cada uma
com sua própria “lei” relacionada a Cristo, vem primeiro como um
dom de Deus (2Co 4.3,4). Isso foi sugerido por Jesus (Mc 4.9-12). É
um princípio seguido pela igreja, especialmente em discernir os
significados mais profundos do texto à medida que eles provêm da
inter-relação dos Testamentos. Em segundo lugar, Paulo argumenta
explicitamente em Gálatas e em Romanos que toda a Escritura
aponta para Cristo. Deus é seu autor formal; Cristo, a mensagem
material. Finalmente, a natureza do relacionamento entre a antiga
e a nova dispensações, frequentemente entendida como tipo ou
alegoria, é apresentada claramente por Paulo em referência aos
filhos de Abraão, Ismael e Isaque, nascidos de Hagar e Sara (Gl
4.21-31).3
O argumento de Paulo em Gálatas, ampliado mais livremente
pelo autor do livro de Hebreus, traz duas considerações relevantes
em relação aos Testamentos. Em primeiro lugar, ele oferece uma
hermenêutica ou metodologia para a interpretação da Escritura. Em
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e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja
segundo lugar, algo é dito a respeito do movimento da história que
gera uma compreensão da inter-relação dos Testamentos. Ambas
as questões são de interesse direto quando indagamos como vários
pensadores da história da igreja procuraram compreender a relação
entre o AT e o NT.
Os
pais apostólicos e os apologistas
Os Testamentos começam a tomar sua forma canônica no
século I. Documentos provenientes da origem do cristianismo logo
apareceram juntos com e depois do estabelecimento da igreja. O
surgimento do cristianismo como religião distinta do judaísmo
e a destruição do segundo templo em 70 A.D. estimularam a formulação do protótipo para o Texto Massorético. Isso, junto com a
Septuaginta e outras variantes, tornou-se o “Antigo” Testamento
cristão. A Septuaginta, considerada a versão usada por Jesus e pela
igreja primitiva, foi a forma padrão do AT para quase todos os pais
da igreja até o século IV. Em seguida ao término da Vulgata Latina,
por Jerônimo, os cristãos foram supridos com uma versão padronizada do AT baseada nos textos grego e hebraico, e isso se estendeu
pelos mil anos seguintes. 4
Esses são os documentos com os quais os pais apostólicos
e os apologistas trabalharam. Inicialmente, a interpretação deles
ofereceu pouco senso de perspectiva histórica para a questão dos
Testamentos. Reconhecido como importante, o AT tornou-se um
manual para o comportamento moral, e suas imagens, um protótipo
para a igreja cristã ou um repositório de imagens proféticas e alegóricas. Para alguns não passou de um livro “cristão” mal compreendido pelos judeus, por causa do excessivo literalismo ou carnalidade. Por exemplo, 1 Clemente usa o AT como uma fonte para
o comportamento cristão (XIX). Seu culto é um protótipo para o
ministério e o serviço religioso adequado (XLII–XLIII). A Epístola
de Barnabé encontra significado no AT num sistema de imagens ou
tipos (VII–XII) que são pano de fundo para o evangelho. Há pouco
senso de história como tal. Os judeus, também pegos no literalismo
histórico, fracassaram em ver Cristo. Uma satânica influência obscureceu a visão deles. De acordo com a polêmica de Barnabé, a carnalidade deles tem um pouco do anticristo sobre ela (II–IV). Eles
perderam as promessas da aliança para uma melhor compreensão
dos cristãos (XIII).
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Continuidade
e descontinuidade
Existe algum senso de perspectiva histórica em Justino Mártir
(c. 100-c.160). Em sua Primeira apologia ele oferece um esquema um
tanto completo de profecia e cumprimento (p. ex., XXXI, XLIX). Seu
Diálogo com Trifão apresenta um incipiente federalismo: os cristãos
são chamados da mesma forma que Abraão (CXIX). Entretanto, o AT
ainda parece mais um livro cristão do que judeu (Trifão, XI–XIV). Há
também uma percepção de que todas as testemunhas de Deus foram
cristãs, seja pelo judaísmo (VIII) ou pela cultura grega (no caso de
Platão, p. ex., LIX–LX). Justino tem uma percepção razoavelmente
bem definida de figuras e imagens que prenunciam a verdade cristã
mais completa, uma ideia propositadamente desenvolvida por um
contemporâneo, Mileto de Sardes. Entretanto, é Ireneu (c. 130-c.
200) que começa a oferecer reflexão histórica mais profunda sobre
a questão do inter-relacionamento dos Testamentos. Em Contra as
heresias, Ireneu argumenta que Deus vem a nós de duas maneiras:
na história e por meio de seu Filho. A Escritura esboça os caminhos
pelos quais a Trindade se manifesta gradativamente a nós (IV, 22).
A ordem e o contexto de eventos se relacionam com estágios do
desenvolvimento da humanidade (IV, 13-15). O AT, cheio de imagens
e tipos, aponta o caminho na direção da revelação mais completa de
Deus, que é Cristo (IV.10.26). É também usado para dar orientação
em descrever a futura felicidade do milênio na terra (V) subsequente
à segunda vinda de Cristo (de acordo com Justino Mártir, Hipólito e
Tertuliano). Ireneu rebateu a especulação gnóstica dizendo que foi
o mesmo Deus que veio até nós em Cristo, bem como em diferentes períodos da história (IV, 5, 12), e posteriormente estabeleceria
seu reino tangível. Os argumentos de Ireneu irão influenciar tanto
as questões hermenêuticas como as questões de evolução histórica,
à medida que estas surgirem das tentativas de inter-relacionar os
Testamentos.5
Nem todos no século II viram a relevância do AT em relação
ao NT. Os mestres que se opunham a Ireneu viram pouca necessidade da antiga revelação. Marcião do Ponto († c. 160), um dos
mais famosos, desenvolveu um plano de salvação gnóstico que
argumentava sobre uma dicotomia radical entre a velha e a nova
dispensações. Seu sistema teológico, construído com base em
um dualismo sistemático, postulava dois deuses, o deus da lei
e da antiga revelação e o deus do evangelho, pai de Jesus Cristo.
Geralmente, estes eram opostos, ou seja, um deus bom e um deus
mau. A história e a materialidade foram denegridas. A salvação era
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totalmente espiritual – e apenas para o intrinsecamente espiritual.
O “cânon” de Marcião consistia em versões das epístolas paulinas e
do evangelho de Lucas. Seu centro se baseava numa leitura espiritual de Romanos e Gálatas. Entretanto, até mesmo esses livros foram
editados em partes (p. ex., Rm 9–11). Outros mestres gnósticos como
Valentino e Ptolomeu divulgaram sistemas de salvação semelhantes,
porém menos radicais. Uma frase utilizada por alguns estudiosos
para identificar esse período é: “a verdadeira batalha no século II
centrou-se em torno da posição do Antigo Testamento”.6
Os
teólogos
Uma forma de lidar com os textos problemáticos levantados
pelos gnósticos ou oponentes filosóficos do cristianismo foi olhar
para um significado mais profundo da Escritura sem negar por
completo o texto literal. Essa é uma metodologia que encontramos
nos escritos daqueles que são geralmente chamados de teólogos
e que o trabalharam com nossa questão, no século III. Eles foram
geralmente orientados por duas “escolas” de teologia: uma localizada em Alexandria e a outra em Antioquia. Ambas entendiam
o AT como um documento histórico, a obra do mesmo Espírito
divino presente no NT. Ambas concordavam em certos eventos
fundamentais e na forma nas quais estes prenunciavam Cristo e
a igreja (Adão e Moisés eram tipos de Cristo, e a arca, um tipo da
igreja). Ambas acreditavam que o novo estava contido no antigo.
As diferenças apareceram na maneira pela qual a nova revelação
era detectada na antiga e no tipo de independência que a primeira
tinha à luz da nova.
A “escola” doutrinadora localizada em Alexandria encontrou
na exegese alegórica uma forma de tornar o AT um livro cristão.
O teólogo e exegeta Orígenes (c. 185-c. 254) foi o precursor. Os
princípios que orientaram o trabalho de Orígenes foram estabelecidos pelo exegeta judeu Filo de Alexandria (c. 20 a.C. - 54 A.D.). Na
tentativa de acomodar as Escrituras judaicas aos cânones helenísticos de conhecimento, Filo defendeu a importância de uma interpretação espiritual ou alegórica mais profunda por trás da história
ou da letra do texto. Um texto que não dizia nada de valor a respeito
de Deus, que apresentava dificuldades ou contradições, ou que era
evidentemente alegórico por natureza, tinha de receber essa compreensão espiritual aprofundada.7
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e descontinuidade
Esse método, usado por Clemente de Alexandria (155-c. 220),
foi melhor desenvolvido por Orígenes com respeito às Escrituras
cristãs. A interpretação histórica ou literal sempre foi fundamental.
Entretanto, o AT em particular estava cheio de enigmas. Era uma
alegoria ou símbolo espiritual. O significado – e de certo modo a
nova dispensação – estava oculto no antigo com discutível consideração pela história. Foi trabalho do exegeta encontrar o significado espiritual. A influência de Orígenes foi ampla. Ela não somente
aprofundou a perspectiva teológica de sua própria época, embora
com significativas imperfeições, como também se tornou a base
para muita exegese medieval, na medida em que buscava encontrar
diferentes compreensões figurativas do texto construído sobre sua
superfície ou sentido literal. Esse sistema deu esperanças para uma
aprofundada apropriação teológica da Escritura. O AT e o NT foram
mostrados para apresentar os mesmos ensinos; somente o estilo de
conhecimento deles foi diferente. As imperfeições desse método
repousam na perda da realidade histórica e na abertura de brechas
para o desenvolvimento de um sistema espiritual imaginário de
salvação promovido posteriormente por pensadores gnósticos que
o estenderam ao NT. 8
O alegorismo encontrou oposição nos teólogos associados à
“escola” exegética encontrada em Antioquia da Síria. O formato desse
movimento é visto em pensadores como Luciano († 312), Diodoro
de Tarso (c. 330-c.390), e especialmente Teodoro de Mopsuéstia (c.
350-428). Diodoro oferece uma definição mais penetrante de alegoria
(Gl 4.24), mais adequadamente denominada “tipologia”, indicando
a direção de interesse entre esses comentaristas no sentido de
discernir uma relação mais forte entre os Testamentos. Esse relacionamento foi visto como correspondência, não simplesmente simbolismo. Acreditava-se estar presente na própria Escritura (Is 51.9-16;
Gl 4.24). Eventos e pessoas numa revelação anterior eram “tipos”
das que apareceriam depois. Dessa forma, o significado espiritual
e o sentido histórico do texto estavam intimamente ligados. Pela
percepção (theoria) podia-se discernir tanto a realidade histórica
quanto o propósito espiritual de um texto colocado dentro de um
quadro mais claro da evolução gradual da revelação (verdade mais
completa sobre Cristo é encontrada nos Evangelhos, não numa interpretação do AT). Isso teve a vantagem de oferecer uma compreensão
mais integral da unidade da Bíblia. A alegoria pareceu perder isso
por associações não confiáveis ou desautorizadas.9
18
Continuidade
e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja
Teodoro de Mopsuéstia fez mais para esclarecer o pensamento antioqueno, separando textos da Escritura que se aplicavam
somente à história daqueles que continham um elemento preditivo.
Ele chegou a ponto de dizer que Cantares, normalmente entendido
como uma alegoria entre Cristo e a alma ou a igreja, foi escrito por
Salomão para celebrar seu casamento com uma princesa egípcia.
Embora Teodoro não negasse a interpretação alegórica, sua obra
sustentou claramente a sugestão e levantou a questão acerca da
possibilidade e do modo em que se deve separar na história a área
sagrada e a secular, um assunto que realçava a preocupação cristológica com o nestorianismo.10
Tanto Alexandria como Antioquia aprofundaram as perspectivas teológicas sobre o inter-relacionamento dos Testamentos.
Entretanto, na primeira isso aconteceu às expensas da história, e na
segunda, às custas do mistério ou da espiritualidade. O alegorismo,
mostrado em teólogos tão eminentes como Cirilo de Alexandria
e os pais capadócios, no Oriente, e Hilário de Poitiers e Ambrósio
de Milão, no Ocidente, afetou a exegese medieval de uma forma
dominante. As ideias desenvolvidas em torno de Antioquia forneceram a perspectiva para a pregação de João Crisóstomo (c. 347-407).
Elas influenciaram também Jerônimo e outros doutores da igreja,
que, não obstante, muito deveram ao alegorismo de Alexandria. Os
princípios articulados por Antioquia continuaram a testemunhar a
importância da história e se tornaram influentes, de uma forma mais
dominante, nos anos da Reforma Protestante.
Os
doutores da igreja
De acordo com Tertuliano, os teólogos do século III ilustraram
a harmonia existente entre os Testamentos. Isso foi estabilizado e
fixado com autoridade por quatro teólogos no século seguinte que
deram liderança à igreja. Três – Jerônimo, Agostinho e Gregório, o
Grande – são de interesse para nós. Eles são também importantes
no sentido de que completam um processo de redefinição espiritual
do milênio, iniciado com Orígenes, segundo o qual as promessas de
Deus dadas a Israel serão aplicadas à igreja.
Encontramos o nome de Jerônimo (c.342-420) ligado ao traba­­lho de dar forma ao AT. Jerônimo se destacou mais do que Orígenes,
Atanásio ou Rufino na defesa da Bíblia hebraica e na divisão da
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Continuidade
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literatura hebraica e da Septuaginta, disponível para a igreja, numa
dupla classificação: literatura canônica e apócrifa. Jerônimo sugeriu
a natureza secundária dos livros que formaram a literatura apócrifa,
recomendando que ficassem entre os Testamentos, mas que fossem
usados para a edificação moral, não como doutrina. Muitas de suas
sugestões, como a segregação do cânon dos apócrifos, não foram
colocadas em prática até o tempo da Reforma. Autor de numerosos
comentários bíblicos, Jerônimo recebeu influência de Orígenes. Ele
deu uma interpretação espiritual a muito do AT, buscando alinhá-lo
com o NT, e, por meio disso, tratou de aparentes antropomorfismos,
inconsistências e erros. Seus comentários sobre Oseias e Apocalipse
revelam certa dificuldade com o primeiro e temor do literalismo
judaico no último. No fim da vida, cresceram as dúvidas de Jerônimo
quanto a Orígenes e ao alegorismo em geral.11
Agostinho (354-430) domina o período. Sua compreensão da
Escritura e perspectiva da história darão forma à igreja medie­val.
Vários estágios marcaram a passagem de Agostinho à fé em Cristo.
Cada um deles deixou sua marca sobre a interpretação do texto. No
começo, submetido pelos arcaísmos e infelicidades do tex­to, Agostinho
foi impelido para o dualismo maniqueísta com a denegação do AT.
Isso foi seguido por um período de ceticismo acadêmico anterior
ao seu despertar cristão (386), o qual foi estimulado pelo neoplatonismo de Ambrósio de Milão (c. 339-397). A interpretação alegórica
de Ambrósio ajudou Agostinho a aceitar a Escritura sem dificuldade. Em sua própria obra, Agostinho fazia uso frequente do alegorismo. Esse tom sobre o valor espiritual do texto (2Co 3.6) enfatizava a verdade subjacente por trás dos símbolos de expressão. Essa
verdade podia ser vista por meio de múltiplos significados no texto,
dados pelo Espírito e discernidos pelo exegeta espiritual.
O neoplatonismo aparente na obra inicial de Agostinho seria
desafiado em suas premissas filosóficas em virtude do grande
respeito desse teólogo pela Escritura. As palavras da Escritura,
sinais que apontavam para a única coisa verdadeira (Deus), foram
necessárias desde a queda. Somente elas davam conhecimento verdadeiro do caminho para Deus e, daí, à plenitude do amor. A importância do texto da Escritura, junto com o crescente corpo da igreja
de conclusões metafísicas, foi ordenada por Agostinho, que adotou
as regras de interpretação de Ticônio. Estas buscaram relacionar a
Bíblia toda a Cristo, à igreja ou a seus opostos. Agostinho resumiu
seu ponderado pensamento hermenêutico na obra Sobre a doutrina
20
Continuidade
e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja
cristã (427), um texto que se tornaria o guia hermenêutico padrão
para os mil anos seguintes. Como ele escreveria em outra parte: “O
NT está escondido no AT, e no NT o AT está revelado”.12
Da experiência pessoal de Agostinho e da compreensão da interrelação dos Testamentos cresceu uma visão da história, esboçada em
A cidade de Deus (XV–XXII), que moldaria a vida da igreja. Agostinho
percebeu na Escritura uma linha progressiva da his­­tória divina e da
profecia movendo-se por meio de uma série de períodos históricos e
culminando no período de Cristo, o sexto período da igreja. Ao longo
desse tempo existiram dois grupos de pessoas que formavam duas
cidades – uma dedicada ao amor deste mundo. A outra, a Deus. O
último período histórico, o da igreja, continuaria até o dia do julgamento. Agostinho, ao lutar com o entendimento tradicional do
milênio (Ap 20.3), um tempo em que as promessas a Israel seriam
realizadas, rejeitou o que sentiu ser o literalismo crasso de muitos
de seus predecessores. Em vez disso, ele seguiu Orígenes, oferecendo uma interpretação espiritual. Foi o tempo simbolizado pela
vida presente da igreja, experimentada por aqueles que, tendo
aceitado a Cristo, vivem sob sua influência geral. Esse milênio
espiritualizado diferiu em suas implicações políticas das ideias
antes apresentadas por Eusébio de Cesareia (c.260-c. 340), no
Oriente cristão. Ali, as promessas dadas a Israel pareciam ser mais
imediata e diretamente aplicáveis à existência do império eclesial
já estabelecido.13
Agostinho argumentou que a Escritura é melhor compreendida dentro da igreja. A disposição impositiva aqui promovida
oferecia pouco espaço para mais exploração exegética, pelo menos
no futuro imediato. A atitude predominante foi resumida por Vicente
de Lérins († c. 450) em seu Commonitorium [O Comunitório]: “Quod
ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est” (O que é crido
em toda parte, sempre, e por todo mundo). A obra exegética de
Jerônimo, a teologia de Agostinho e o propósito moral encontrado
nos comentários de Gregório, o Grande (c. 540-604) conferiram
uma marca confiável para uma visão geralmente alegórica do AT
em relação ao NT e um senso suavemente progressivo da história.
O AT tornou-se frequentemente um repositório de instrução moral
e fonte de informações de textos comprobatórios, proféticos e alegóricos para a verdade do cristianismo. Esse estilo de interpretação
é particularmente evidente nos comentários de Gregório sobre Jó,
Ezequiel, 1 e 2Reis e partes dos Evangelhos.14
21
Continuidade
e descontinuidade
A Idade Média
Uma exegese geralmente espiritual ou alegórica com propósitos morais proveu, então, a forma aceitável pela qual os Testamentos
deveriam se relacionar. Quatro “sentidos” da Escritura (literal,
alegórico, tropológico e anagógico), definidos primariamente por
Orígenes e Agostinho, foram separados da “letra” e do “espírito”
do texto e perceptíveis em João Cassiano († 435). Estes dominariam a exegese medieval, particularmente no que se refere ao AT
em relação ao NT. Isso pode ser visto nas palavras de importantes
comentaristas medievais como Isidoro de Sevilha (c. 560-636), Beda,
o Venerável (c. 673-735), e Ambrósio Autperto († 781). Durante a
Idade Média essa tradição tornou-se diferenciada e regularizada
em modos monásticos e escolásticos de reflexão teológica. Embora
frequentemente mescladas, a teologia monástica buscava na Bíblia
um texto para a vida litúrgica e devocional. A implicação disso é
que os vários níveis espirituais de significado na Bíblia foram ressaltados como ajudas à vida moral. A teologia escolástica, impulsionada pela curiosidade e pelo questionamento dialético, fez maiores
exigências filosóficas sobre o texto. Tal teologia se defrontaria mais
diretamente com o problema de outras fontes de conhecimento e
como essas fontes desafiariam um ou ambos os Testamentos.15
O período carolíngio trouxe um despertamento aos estudos
bíblicos. Entretanto, somente no século XVII começamos a encontrar
coisas de interesse à nossa pergunta. Por exemplo, o desenvolvimento
da teologia monástica na obra de indivíduos como Rupert de Deutez
(c. 1075-1129/30), Bernardo de Clairvaux (1090-1153), Ricardo de São
Vítor († 1173), Joaquim de Fiore (1132-1202) e Boaventura (c. 12171274) mostra uma aprofundada interpretação espiritual da Escritura,
que une os Testamentos por meio da elaborada figurae para ilustrar
o movimento de tempo em direção ao julgamento final concomitante
com as virtudes adequadas a cada período da história. Quando a
teologia escolástica atingiu certo ápice em Tomás de Aquino, o mesmo
aconteceu em relação à teologia monástica com referência à história
em Joaquim de Fiore e com respeito à alma, em Boaventura. Joaquim
é de particular interesse. Seu elaborado plano de tipos e figuras do
AT foi composto por uma grade semelhante, discernida no livro de
Apocalipse, para criar uma explosiva visão tripartida da história. Isso
aniquilou os grupos ortodoxos e dissidentes que criam na iminência
do milênio na Reforma e durante seu período.16
22
Continuidade
e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja
O desenvolvimento da teologia escolástica pode ser reconhecido desde as leis carolíngias, de acordo com as quais as catedrais
tinham a incumbência de prover educação para o clero de sua
diocese. Seu aspecto é claramente discernível a partir do século XIV.
Sem investigar seu desenvolvimento, é suficiente notar que a partir
desse ponto as interpretações do texto da Escritura ficam reunidas
nos comentários da primeira sentença, ou teologias, das quais as
Sentenças de Pedro Lombardo (1100-1160) são notáveis. Além da
Bíblia, fontes de conhecimento cada vez mais crescentes ocasionaram questionamento mais profundo do texto. A crítica dialética de
Pedro Abelardo (1079-1142) representa essa evolução. Um interesse
específico pelo AT, sua história e interpretação literal da Escritura
é perceptível entre os cânones de São Vítor, em Paris. Certo autor
argumentou que o período de tempo entre 1100 e 1350 é marcado
por um crescente estudo dos textos originais hebraicos da Escritura,
comparável apenas com a obra da Renascença, que focou os textos
originais gregos. Esse interesse é visível em Hugo de São Vítor (10961141). Ele enfatizou as artes liberais como propedêutica à exegese
literal, o ambiente para o desenvolvimento da doutrina. A descoberta
correta da alegoria e da verdade divina veio em seguida, de forma
adequada. Um sentido histórico do texto foi promovido mais radicalmente por André de São Vítor († 1175). Orientado pela erudição
judaica contemporânea, sua pesquisa o levou a contestar profecias
tipicamente messiânicas como Isaías 7.14-16. Aqui, André seguiu a
interpretação judaica, acreditando não ser “virgem”, e sim “jovem”,
a tradução adequada. Embora muito criticado nesse ponto por seu
contemporâneo Ricardo de São Vítor († 1173), pode-se perceber um
interesse marcante numa leitura histórico-gramatical do AT.17
A chave para a interpretação foi a capacidade para compreender o adequado sentido de um texto. Uma terminologia instável,
diferenças no gênero de literatura encontrado e questões sobre
onde terminava a exegese literal e começava a alegórica, tudo
fazia parte do debate hermenêutico na Alta Idade Média. Além
disso, quando se juntava os dois Testamentos da Escritura, surgiam
questões sobre as passagens proféticas. O que constituía seu
sentido literal diante da interpretação espiritual? Se a interpretação
literal era básica, em que ponto poder-se-ia ler com legitimidade
uma mensagem profética ou cristológica num texto, uma questão
composta pela retórica antijudaica. Questões como essa levaram
mentes escolásticas a desenvolver abordagens convencionais do
23
Continuidade
e descontinuidade
texto. Aqui, como em outra parte, a teologia de Tomás de Aquino
(c. 1225-1274) deu forma resumida. Aquino enfatizou o sentido
literal do texto (ST 1a.I.10), mostrando a tendência natural de sua
filosofia. Embora não temendo a alegoria, ele argumenta que o
sentido literal exibe o peso completo da intenção do autor. Podia
existir um sentido espiritual, mas seu lugar era de edificação, não
de prova. Era conhecido por Deus e podia ser discernido à luz
de revelação posterior. Aquino colocou em evidência um tríplice
argumento contra a alegoria: (1) ela é suscetível de engano; (2)
sem um método claro ela leva à confusão; e (3) ela carece de um
senso de integração adequada da Escritura.18
Alguns, como Pedro Auriol e Nicolau de Lyra (c. 1270-1340),
continuaram a linha dos que ofereceram uma leitura mais aguçada
dos Testamentos. Nicolau de Lyra inspirou-se na obra de exegetas
judeus, particularmente o comentarista Rashi (1040-1105). Seu
comentário enfatizava uma compreensão “literal dupla” do texto.
Tanto a intenção de Deus quanto a do autor humano podiam ser
designadas como sentido literal adequado do texto. Dir-se-ia mais
tarde a respeito de Lyra que ninguém, desde Jerônimo, havia contribuído tanto para a compreensão do AT quanto ele.19
A Renascença
e a
Reforma
A obra de Martinho Lutero (1483-1546) ficou em débito
com a obra de Lyra, como também com as correntes derivativas
mais amplas da Renascença. Sua crítica a Roma começou com o
sistema sacramental e a teologia escolástica; depois continuou a
questionar a exegese. Lutero insistiu na autoridade e suficiência
da Escritura em oposição à tradição da igreja. Entendidos pela
fé e pela iluminação do Espírito (Weimar, VII, 96-98), ambos os
Testamentos da Escritura estavam abertos a todos os cristãos. A
revelação, seja preparatória ou progressiva, teve uma história que
o Espírito possibilitou ser compreendida. Lutero rejeitou os significados “espirituais” tradicionais ou a quádrupla interpretação da
Escritura e foi na direção de um único significado do texto, exceto
onde uma interpretação espiritual tinha a clara intenção do autor.
Essa abordagem histórica do AT foi um fator central na teologia
da Reforma. Entretanto, a questão do seu sentido literal em relação
ao NT permaneceu legítima. Lutero seguiu Lefèvre d’Etaples e
argumentou que os escritores do AT estavam conscientes da vinda
24
Continuidade
e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja
de Cristo. A unidade da Escritura, encontrada em Cristo, significava que Lutero se inclinava a ler o AT através do evangelho; seu
sentido histórico era obscurecido por prenúncios de Cristo e
sua igreja. Finalmente, a antítese que Lutero traçou entre a lei e o
evangelho promoveu a diferença que ele encontrou entre os dois
Testamentos, quando receou introduzir uma nova lei sob o pretexto
do evangelho, uma característica que ele encontrou tanto em Roma
quanto nos movimentos emergentes radicais da Reforma.20
Mais dois pontos devem ser levantados quanto a Lutero.
Primeiro, Lutero foi também um tradutor da Escritura. A ordem
que ele deu ao AT tem sido seguida desde sua época. Em segundo
lugar, Lutero continuou, em geral, o sentido agostiniano da história
com implicações para a relação dos Testamentos. Entretanto, ele
tinha maior consciência de estar vivendo no fim do tempo, pouco
antes do juízo final. Esta crença foi predominante entre os primeiros
radicais espirituais e anabatistas, alguns dos que retornaram a uma
forma de milenismo visível na igreja primitiva. Outros, de forma
mais consciente, seguiram o precedente joaquino e dividiram nitidamente a era agostiniana em termos de imagens tiradas do livro de
Apocalipse.21
A Reforma entre os reformados geralmente se deu com linhas
de ação esboçadas por Lutero. Entretanto, houve diferenças, que
podem ser vistas em Ulrico Zuínglio (1484-1531), João Calvino (15091564) e (João) Henrique Bullinger (1504-1575). Quando chegamos à
questão da relação entre os Testamentos, podemos distinguir pelo
menos três diferenças. Primeira, a tendência para enfatizar a superfície ou sentido histórico do texto contra o alegorismo foi mais forte
entre os reformados do que entre os luteranos (Calvino, Institutas,
I.1.7,8). Não obstante, em contraste a alguns grupos anabatistas, cuja
tendência era ver o AT como um livro judaico com pouco a oferecer
à era da nova dispensação, os reformados, junto com a maioria dos
protestantes, preservaram alguma percepção do sentido espiritual
do texto pretendido pelo Espírito. Em segundo lugar, houve uma
tendência entre os reformados em enfatizar a identidade das duas
dispensações à custa de sua diversidade. Isso foi particularmente
visível em edições posteriores das Institutas de Calvino (II.9-11; cf.
Bullinger, Sobre o Testamento). Em terceiro lugar, a implicação disso
foi que as leis morais e os preceitos do AT receberam um peso maior
como orientações à vida cristã.22
25
Continuidade
e descontinuidade
Uma perspectiva histórica agostiniana foi em geral dominante
entre os principais teólogos reformados por várias razões exegéticas
e sociais. Entretanto, podemos notar certa tensão escatológica em
Calvino e Bullinger, uma expectativa da glória visível de Deus entre
os cristãos e em comunidades e estados cristãos. Essa esperança
tornou-se o contexto para uma crescente tendência milenarista vista
entre alguns teólogos continentais posteriores (p. ex., Brocardo) e
outros anglo-americanos (p. ex., Brightman). Aqui o debate acerca
da identidade do verdadeiro Israel, há muito definido como sendo
a igreja, crescerá. Se igreja ou antigo Israel, a expectativa de uma
realidade visível e histórica de tudo o que foi prometido a Israel
nesta era ou na posterior ao iminente retorno de Cristo crescerá.23
Uma
era de conflito
A crescente consciência histórica afetou a maneira pela
qual as origens da fé cristã foram compreendidas e usadas. Os
progressos filológicos e historiográficos da Renascença, repre­
sentados por Lorenzo Valla, João Reuchlin nos estudos hebraicos,
os discernimentos de Thomas Morus, João Colet e Erasmo (14691536), favoreceram essas percepções. Outras tendências da
Renascença, parcialmente derivadas do neoplatonismo, seriam
assimiladas na exegese de Erasmo, acentuando as interpretações
espirituais do texto. Isso seria usado para acrescentar mais nuanças
à forma pela qual os Testamentos foram interpretados e inter-rela­
cionados, destacando uma compreensão não corpórea, até mesmo
racionalista da Escritura. Quando diferentes comunidades cristãs
procuraram defender suas perspectivas teológicas, organizando
a história defensivamente, esses temas contribuíram para um
aprofundamento da perspectiva histórica.24
A época foi, em primeiro lugar, de conflitos teológicos. Isso
esteve frequentemente relacionado à nossa questão dos Testa­
mentos. Muitos teólogos luteranos ortodoxos como João Gerhard
(1582-1637), J. B. Carpzov (1607-1657) e Abraão Calovius (16121686) usaram o AT principalmente como uma coleção de textos
comprobatórios, uma metodologia que refletia as próprias tendências de Lutero. Entre os reformados, o AT figurava junto com o NT
como parte de uma elaborada tentativa de determinar a natureza
da autoridade bíblica vista mais claramente na Confissão helvética
(1675).25
26
Continuidade
e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja
Outras características da fé reformada trazem o AT para a
presente vida dos cristãos. Os reformados se inclinaram a ser
politicamente sensíveis com respeito a visível idolatria religiosa e
nacional. João Knox (c. 1513-1572) pregou a necessidade de remover
as serpentes de bronze da vida e da adoração, baseando-se em
2Reis 18.3,4. Calvino, em suas Institutas, investiu em ataque contra
os governos que aconselhavam a idolatria (IV.20.1-32). Ao fazer isso,
Calvino extraiu muito da história de Israel. Tal “iconoclastia” uniu
interesses políticos de quase todas as nações europeias emergentes. O movimento puritano na Inglaterra, produzido desse relacionamento, a levaria a todas as terras tocadas pelos interesses britânicos. Além disso, essa sensibilidade política aos Testamentos esteve
frequentemente ligada à escatologia reformada. Isso pode ser visto
em vários planos da revelação progressiva, principalmente a de
João Coceio (1603-1669), em que questões de natureza normativa
de revelação mais antiga são levantadas, exceto quando ela pode
ter alguma significação simbólica. Isso é evidentemente claro nos
teólogos apocalípticos anglo-americanos como John Foxe a Jonathan
Edwards.26
Dois movimentos emergiram no século XVII buscando a paz,
mas ambos, nos termos da nossa questão, na verdade introduziram
mais dimensões de debate. O primeiro, o racionalismo, pode ser
percebido entre certos reformadores no século XVI que se inclinaram a questionar de forma mais radical e completa a teologia
tradicional. Tornou-se explícito em Hugo Grócio (1583-1645), que
procurou a unidade teológica, entre grupos em conflito, na pessoa de
Cristo e na teologia natural. Sua crítica de inspiração bíblica anteviu
mais movimentos radicais por parte de Thomas Hobbes (1588-1679)
e Benedito Spinoza (1632-1677). Através de um crescente historicismo, o movimento como um todo começou a questionar o uso anteriormente assumido do AT pelo NT. O AT, antes atraído ao NT por
meio de um sentido “espiritual” do texto, era agora por si só um
documento histórico.
Hobbes rejeitou a inspiração da Escritura. Em seu livro Leviatã,
preocupado com questões de poder e política, argumentou que
a Bíblia não devia ser tomada como revelação de Deus. Spinoza
ampliou sua crítica em Tractatus theologico-politicus, argumentando
que não somente a Bíblia é mera história, como o idioma que atribui
tudo a Deus refletia uma atitude hebraica e não devia ser confiável
como verdade. A razão devia guiar a mente em assuntos filosóficos,
27
Continuidade
e descontinuidade
embora a teologia lidasse com questões de piedade e obediência. Argumentando dessa maneira, pareceu que Spinoza agiu como
Jerônimo, visto que este separou a literatura canônica da apócrifa,
e aquele, a razão da revelação. Só que agora toda a Escritura era
apócrifa. Richard Simon (1638-1712), Jean Astruc (1648-1766)
e outros deram continuidade a essa crítica com respeito ao AT,
lançando o fundamento para a moderna “alta” crítica, termo depois
empregado por J. G. Eichhorn (1752-1827).
Essa crítica recebeu matiz poético em G. E. Lessing (1729-1781),
de tal forma que a essência da religião não era adequadamente
encontrada na revelação histórica, mas na moralidade. Influenciado
por H. S. Reimarus (1694-1769), Lessing barateou a autoridade do
AT ao sugerir que Deus havia educado outros povos mais do que
os judeus. Sua peça Nathan the Wise [Natã, o sábio] (1779) sugeria
que o AT deveria ser resgatado numa forma poética, informando um
tipo de moralidade humanitária. Com Lessing, J. G. Herder (17441803) continuou a postular esse valor poético do texto como parte
de uma visão progressiva da história das nações, no sentido de uma
expressão mais completa da humanidade.27
O pietismo se desenvolveu depois do racionalismo. De alguma
forma, foi também uma reação ao conflito teológico que se seguiu
como resultado da Reforma. O movimento visava enfatizar uma
leitura moral da Escritura por lições pessoais de amor e santidade.
Philip Spener (1635-1705), frequentemente visto como fundador
do movimento, em seu livro Pia Desideria (1675), tido como sua
“constituição”, via a Bíblia como instrumento de Deus para a verdadeira espiritualidade. O movimento também foi formulado por A.
H. Francke (1663-1727) e N. L. von Zinzendorf (1700-1760). Francke,
e especialmente J. A. Bengel (1687-1752), ofereceram uma compenetrada visão gramatical e filológica da Escritura ao enfatizar
a unidade dos Testamentos. Ainda, apesar desses avanços, o AT
foi, com frequên­cia, alegorizado, num esforço para encontrar a
adequada verdade espiritual voltada para o fim devocional em vez
de interesses doutrinários ou exegéticos.28
A exegese racionalista e o interesse bíblico pietista se reúnem
na obra de alguns autores do fim do século XVIII, constituindo parte
do contexto para criativos desenvolvimentos exegéticos no século
XIX. Filólogos como J. A. Ernesti (1701-1781) insistiram na primazia
das considerações gramaticais sobre a dogmática na interpretação
do texto da Escritura, embora teólogos como J. S. Semler (1725-1791)
28
Continuidade
e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja
enfatizassem a abordagem metodológica crítico-histórica de todo o
cânon. Entretanto, o que poderia ser um árido intelectualismo, estava
agora associado a novas visões avançadas da história, separadas
dos Testamentos e com mais valor poético.
O
século
XIX
Immanuel Kant (1724-1804) leva-nos diretamente às perguntas
do século. Crítico de ceticismo cada vez maior (como em David
Hume), Kant esforçou-se para compreender os limites do conhecimento. Ele deixou pouco espaço para a metafísica, antevendo, assim,
o romantismo de Schleiermacher, o idealismo hegeliano, o reino
moral de Ritschl e o Deus distante de Kierkegaard. Nisso ele deu
continuidade ao padrão de crítica do século anterior, acrescentando
que os estímulos de consciência eram superiores no AT. Em lugar
de uma imposição de fora e de uma sujeição ao governo de Deus
por natureza, ele defendeu uma percepção interior e uma prática de
moralidade oriunda da vontade autônoma, não dependente, sobre a
lei heteronômica ou o poder submisso ao governo de Deus.29
O idealismo moral e o progressivismo histórico esboçado por
Kant ajudaram a completar o cenário para o desenvolvimento da
“alta” crítica como foi desenvolvida originariamente na Alemanha.
Na obra de Friedrich Schleiermacher (1768-1834) essa crítica reivindicou oferecer orientação à igreja para uma fé mais esclarecida. Fundamentando a autoridade religiosa na “percepção de
absoluta dependência de Deus”, ele rejeitou as partes de ambos
os Testamentos mais distantes de um profundo senso interior
de divindade. O AT era, de fato, de muito maior valor do que a
mitologia grega. Ambas as tradições constituíram caminhos de preparação para o evangelho. A filosofia de G. W. F. Hegel (1770-1831)
e a teologia de F. C. Baur (1792-1860) provavelmente melhor representam o progressivismo histórico do período. Em ambas, a religião
dos judeus foi parte de uma contínua realização de uma verdade
mais completa da história. A crítica bíblica de Julius Wellhausen
(1844-1918) pode muito bem ser vista suportando estas e também
mais recentes premissas racionalistas, em sua articulação do desenvolvimento gradual da religião hebraica desde uma forma animista
nômade até a criação de um sistema racional de leis. De formas
diferentes Adolf Harnack (1851-1930) conduziu seu progressismo
de volta à busca pelo autêntico passado de Jesus, pondo de lado
29
Continuidade
e descontinuidade
muito do AT, e A. F. Loisy (1857-1940) transportou-o para a futura
plenitude das implicações de sua pessoa.30
O historicismo racional junto com o valor poético do texto
tornou-se a forma mais eloquente de tratar os Testamentos. Outras
formas de fazê-lo podem ser vistas na escola de pensamento
da história da salvação, articulada por J. C. K. von Hoffman (18101877), de Erlangen. Ele tentou reafirmar a unidade dos Testamentos,
perdida pelos interesses racionalistas ou poético-liberais, ao
discernir um sistema de história da salvação enraizado numa visão
orgânica da Escritura. Os eventos do texto, enraizados na história,
deram significado para o presente e importância ao futuro. Toda a
Escritura foi unida desse modo integral. Até mesmo a era atual foi
vista cheia de significado ao apontar para outro período milenário
por vir. Ernst W. Hengstenberg (1802-1869) foi outro que postulou
a unidade dos Testamentos, nesse caso em torno de um duplo testemunho de Jesus como o Messias. Outros métodos de discernir a
unidade dos Testamentos podem ser vistos em Patrick Fairbairn
(1805-1874), pela tipologia, e em John H. Newman (1801-1890), por
um renovado senso de objetivo espiritual do texto.31
Em todo o século o milenismo, em parte, esteve no ar por meio
de um penetrante reavivamento e uma atmosfera materialmente
eufórica. A tradição anglo-americana, preocupada com a realização
do governo de Deus na história, prosperou e baseou-se em questões
da inter-relação dos Testamentos. Para alguns, a igreja, como o
novo Israel, era herdeira de todas as promessas de Deus. Agostinho
havia compreendido essas promessas para encontrar seu cumprimento espiritual na era da igreja, uma posição agora denominada
de amilenarismo. Essa perspectiva havia sofrido mudanças, particularmente desde Thomas Brightman (1562-1607), de forma que
alguns compreenderam que essas promessas deveriam ocorrer
literalmente num novo período milenar, revelando-se no mundo
antes da volta de Cristo para julgar, uma posição agora chamada de
pós-milenarismo. Os pré-milenaristas, igualmente certos do cumprimento literal dessas promessas, discordaram exegeticamente
ou por meio do pessimismo social, crendo que tal ocorreria depois
da volta de Cristo para de fato governar sobre a terra. Tanto os pósmilenaristas quanto os pré-milenaristas realçaram o papel do povo
judeu na história: os primeiros como sinais do reino, e os últimos
como sinais e adequados receptores dele. Quanto ao milênio, das
três posições citadas, os pré-milenaristas se inclinaram à direção
30
Continuidade
e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja
de uma abordagem dispensacionalista dos Testamentos, enquanto
os outros dois foram mais de orientação federalista.32
O
século
XX
Em certo sentido, todo o espectro de questões que tem
ocorrido em relação aos Testamentos apareceu no século XX.
Guerra, mudança social e tendência intelectual trabalharam na
direção do fim do progressivismo do período anterior. Os estudos
de Albert Schweitzer (1875-1965), que apareceram num momento
de mudança social, sugeriam a realidade de um Jesus apocalíptico,
desconhecido da teologia contemporânea, arraigado no passado de
Israel. Aquele mundo, aberto a todos por meio de estudos arqueológicos e filológicos, revolucionou as perspectivas sobre o AT e sua
relação com o NT. O AT não pode mais ser comparado com fábulas
gregas, mesmo sendo esse o conceito defendido por alguns no
século anterior.33
A reafirmação da veracidade histórica do AT, a identidade
radical de Jesus, o lugar do ser humano perante a “diversidade” de
Deus e a maneira pela qual tais ideias foram canalizadas por uma
teologia de “crise” (principalmente a obra de Karl Barth [18861968]) ajudaram a criar uma nova consciência teológica para a
nossa questão. Além disso, a escatologia da neo-ortodoxia, de forma
tão diferente quanto foi articulada, aprofundou, sem negar explicitamente, posições milenaristas tradicionais através de uma compreensão mais imediata do reino de Deus. Isso ofereceu possibilidade
para trazer o poder profético do AT para as preocupações sociais
presentes (p. ex., os Blumhardts, os Niebuhrs, Jürgen Moltmann).
Esse movimento tornar-se-ia mais claro quando estendido por
posteriores teólogos da libertação, frequentemente devedores
às premissas marxistas ou secularistas, todavia em muitos casos
ligados à maneira na qual os primeiros movimentos reformados ou
cristãos restauracionistas usaram os Testamentos como guia para a
santidade compartilhada.34
Hoje, o estudo da inter-relação dos Testamentos está chegando
ao fim do seu segundo milênio. Enquanto isso acontece, estamos
conscientes das formas pelas quais as considerações hermenêuticas
moldam nossa compreensão da fé. Tais assuntos incluem a importância da história em seu próprio direito. A primeira pergunta para
31
Continuidade
e descontinuidade
compreender qualquer texto é o que ele significa em seu contexto
original como determinado pela filologia, análise cultural, questões
de forma literária, estilo, propósito e comunicação. O desenvolvimento de uma ciência de documentos, em certo sentido sempre
presente na história da igreja, tem sido uma contribuição importante
dos últimos dois séculos. Ele representa tendências que no começo
pareceram destrutivas da fé, mas tem, com mais desenvolvimento,
frequentemente dado um novo suporte principal.
A questão do contexto histórico requer reconhecimento da
maneira pela qual a interpretação molda e é moldada pela compreensão. Períodos de reorientação cultural, como o nosso, estão muito
conscientes disso. Um dos modelos enfatizados pela atual teoria da
interpretação é o do diálogo com um texto. Embora muito mais esteja
envolvido, esse modelo reconhece que tanto nossa pré-compreensão quanto a integridade do texto precisam ser levadas em consideração para se chegar a uma honesta avaliação de um documento
histórico. Além disso, ao prestar atenção num texto, é preciso lidar
com as perguntas que ele levanta. Essa prática tem provocado uma
nova consideração pela teologia harmonizada, visto que esta disciplina trata das mais profundas premissas assumidas pelos textos
e por nós mesmos. Interpretações exclusivamente sagradas ou
seculares são indefensáveis se lidamos com todas as questões que
nos confrontam num documento histórico. Finalmente, a importância
de uma comunidade de compreensão, ou fé, em desenvolver mais as
formas nas quais os documentos são usados deve ser considerada,
particularmente no nosso caso. A existência de dois Testamentos
que têm orientado comunidades religiosas vitais durante milênios
desempenha um papel central na forma pela qual compreendemos
os Testamentos individualmente e em inter-relacionamento.35
Muitas dessas considerações estiveram por trás do esboço
do Loccum Report (1978). Este relatório argumentava que o AT é
“parte integral e indispensável da Escritura autorizada[...] nem
obsoleto nem antiquado [desde Cristo], nem deve ser considerado
meramente uma preparação para Cristo”. O relatório oferece diretrizes para interpretação, registrando que, além de considerações
cristológicas, existe uma “especificidade” no AT: ele pode oferecer
verdade não encontrada no NT. Além disso, a ideia de cumprimento,
usada em relação à promessa, é mais complexa do que anteriormente
considerada. Ele inclui perspectivas como tempo, lei e promessas.
Mais controverso é o ponto que trata do processo interpretativo que
32
Continuidade
e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja
começa nas partes mais primitivas da Bíblia e continua no NT, amalgamando-se em linhas de tradição desenvolvidas nas igrejas. Este
assunto é muito importante para a inter-relação dos Testamentos.
Entretanto, sem considerações cuidadosas, ele pode obscurecer a
distinção entre revelação e tradição. Finalmente, o relatório oferece
uma nova afirmação da unidade teológica da Escritura, discernida
não somente em Deus, seu autor formal, mas também em ideias
como aliança, esperança e sabedoria.36
Conclusão
A maneira precisa pela qual os Testamentos se relacionam
é uma discussão que continuará até o dia do juízo final. Todavia,
várias questões são esclarecidas pela história da igreja. Primeiro,
é claro que a percepção de Jesus sobre o AT tem sido fator orientador em quase todos os períodos. A igreja tem consciência do que
se percebeu ser o método de Jesus de abordar a nossa questão.
Em segundo lugar, quatro formas de avaliar o inter-relacionamento
entre os Testamentos podem ser isoladas em termos de sua importância teológica: o AT pode ser lido como mera história; ele é quase
sempre lido por meio do NT; ele pode ser compreendido como
completo, de certa forma, em sua própria integridade teológica; ele
pode simplesmente ser visto como símbolo alegórico em relação
ao NT.
A implicação teológica dessas formas de leitura dos Testa­
mentos pode ser esquematizada como segue.37 Primeiramente,
se o AT é mera história, então nenhuma orientação em particular
é oferecida aos cristãos para a vida pessoal ou social. Não existe
garantia profética particular para a vinda de Jesus. Não há lugar
especial para os judeus na história. Cada agrupamento étnico pode
ser visto como tendo sua própria organização de salvação.
Em segundo lugar, se o AT deve ser lido através dos evangelhos,
então qualquer orientação que ele possa oferecer para os cristãos é
filtrada pela ética de Jesus. O texto pode ser lido por seu possível
valor profético ou cristocêntrico. A nação judaica antes de Cristo pode
ser vista como intérprete de um papel privilegiado na preparação do
advento dele, e tal atuação deve ser harmonizada, do mesmo modo,
depois dele. Além disso, o NT fornece o paradigma necessário para
responder a pessoas de outros ambientes culturais ou religiosos.
33
Continuidade
e descontinuidade
Em terceiro lugar, se o AT é de alguma forma completo em
sua própria integridade teológica, então ele pode ser de imenso
valor para orientação do atual costume social, limitado somente por
considerações de tempo ou dispensação que se possa conceber.
O texto não é somente de valor cristocêntrico, mas pode também
oferecer outras bases de autoridade. O povo judeu antes de Cristo
foi de especial importância; permanece da mesma forma hoje.
Finalmente, uma crítica maior é apresentada aos de outras crenças,
no que se refere a ambos os Testamentos serem considerados o
local da verdade religiosa normativa.
Em quarto lugar, se o AT é somente um símbolo alegórico, o
texto pode oferecer pouco mais do que mitos ou fábulas de outras
culturas às categorias apresentadas acima.
Três pontos de natureza teológica ainda mais fundamental devem ser notados para uma questão de conclusão. Primeiro, o
inter-relacionamento dos Testamentos aponta para o progresso da
revelação. Jesus Cristo representa o ápice da verdade religiosa (Hb
1.1-3). Ele é o meio da unidade com Deus. Como Deus, ele é também
nosso fim. Entretanto, se a revelação anterior é melhor compreendida como sendo uma linha de desenvolvimento ou uma reunião de
momentos preditivos anterior à finalização da revelação em Jesus
Cristo, esse é um assunto de contínuo debate. Em segundo lugar,
as perspectivas escatológicas atuais são derivativas de como essa
questão é abordada. Pode-se dizer que na história da igreja são
conhecidos dois caminhos de Deus. Um enfatiza o movimento horizontal ao longo do tempo. Quanto mais adiante estivermos na história,
mais perto estamos, em certo sentido, de Deus. O outro acentua o
movimento vertical. Qualquer um, em qualquer ponto da história, está
de igual modo perto de Deus por meio da visão mística ou espiritual.
Esses dois movimentos não precisam ser mutuamente exclusivos.
Finalmente, como ponderar a revelação anterior continua a
ser um tema de debate à medida que a igreja busca cumprir seu
mandato missiológico. O AT pode ser visto como revelação fora
de uso, não mais aplicável ao desafio social profético, à santidade
pessoal ou para orientação em relação aos de outras crenças.
Poucos grupos são consistentes ao tratar desses assuntos. A
Bíblia, o livro que une a igreja, frequentemente a divide.38
34
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