1 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja Rodney Petersen A primeira pergunta na interpretação da Escritura que o cristão, após reconhecer o senhorio de Jesus Cristo, faz, é como relacionar as Escrituras hebraicas com o “Novo” Testamento.1 Muitas divisões entre igrejas cristãs surgem das diferentes maneiras de compreender esse relacionamento. Isso foi o que aconteceu nos primeiros anos da igreja. Foi um assunto tratado durante a Reforma, bem como em períodos posteriores e recentes de reavivamento da igreja. Nossa pergunta é a que foi feita por Filipe ao eunuco etíope: Compreendes o que vens lendo? (At 8.30). Foi a dos dois discípulos na estrada de Emaús (Lc 24.13-49). Precisaríamos reformulá-la hoje. Por exemplo: A crise de saúde gerada pela aids é uma praga lançada sobre a sociedade moderna por um Deus indignado? O clamor por 13 Continuidade e descontinuidade liberdade e justiça feito pela população negra da África do Sul tem semelhanças com o clamor dos hebreus sob a tirania egípcia? Tem Israel o direito profético à Palestina que exclui total concessão à população árabe? A resposta de Filipe foi direcionar o etíope para Cristo. Nesse ponto o enigma do AT deve ser compreendido. No final das contas essa é a resposta da igreja à relação entre os Testamentos. É muito mais do que isso, mas temos de começar aqui. A Escritura registra Jesus tratando a tradição apontando para si mesmo (Jo 5.39). Ele e sua missão se ocuparam do cumprimento de conceitos fundamentais das Escrituras hebraicas. Além disso, não somente algo se cumprira nele, como um novo período da história havia começado (Lc 4.16-21). Finalmente, Jesus traçou uma distinção entre a vontade de Deus, em nome da qual ele pareceu falar diretamente, e o que havia sido autorizado pela tradição (p. ex., Mc 10.2-12). Todavia, quase paradoxalmente, Jesus manteve um ponto de vista rigoroso; toda a lei devia ser cumprida. Sua vigência continuou (Mt 5.18; Lc 16.17), mas foi humanizada e aprofundada pela lealdade a ele.2 Esses três temas são encontrados nos Evangelhos. Eles aparecem na primeira pregação cristã em Atos. Entretanto, pode-se argumentar que a primeira consideração metodológica dada a eles, quando abordam nossa questão, veio do apóstolo Paulo. A resolução da revelação em duas dispensações, cada uma com sua própria “lei” relacionada a Cristo, vem primeiro como um dom de Deus (2Co 4.3,4). Isso foi sugerido por Jesus (Mc 4.9-12). É um princípio seguido pela igreja, especialmente em discernir os significados mais profundos do texto à medida que eles provêm da inter-relação dos Testamentos. Em segundo lugar, Paulo argumenta explicitamente em Gálatas e em Romanos que toda a Escritura aponta para Cristo. Deus é seu autor formal; Cristo, a mensagem material. Finalmente, a natureza do relacionamento entre a antiga e a nova dispensações, frequentemente entendida como tipo ou alegoria, é apresentada claramente por Paulo em referência aos filhos de Abraão, Ismael e Isaque, nascidos de Hagar e Sara (Gl 4.21-31).3 O argumento de Paulo em Gálatas, ampliado mais livremente pelo autor do livro de Hebreus, traz duas considerações relevantes em relação aos Testamentos. Em primeiro lugar, ele oferece uma hermenêutica ou metodologia para a interpretação da Escritura. Em 14 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja segundo lugar, algo é dito a respeito do movimento da história que gera uma compreensão da inter-relação dos Testamentos. Ambas as questões são de interesse direto quando indagamos como vários pensadores da história da igreja procuraram compreender a relação entre o AT e o NT. Os pais apostólicos e os apologistas Os Testamentos começam a tomar sua forma canônica no século I. Documentos provenientes da origem do cristianismo logo apareceram juntos com e depois do estabelecimento da igreja. O surgimento do cristianismo como religião distinta do judaísmo e a destruição do segundo templo em 70 A.D. estimularam a formulação do protótipo para o Texto Massorético. Isso, junto com a Septuaginta e outras variantes, tornou-se o “Antigo” Testamento cristão. A Septuaginta, considerada a versão usada por Jesus e pela igreja primitiva, foi a forma padrão do AT para quase todos os pais da igreja até o século IV. Em seguida ao término da Vulgata Latina, por Jerônimo, os cristãos foram supridos com uma versão padronizada do AT baseada nos textos grego e hebraico, e isso se estendeu pelos mil anos seguintes. 4 Esses são os documentos com os quais os pais apostólicos e os apologistas trabalharam. Inicialmente, a interpretação deles ofereceu pouco senso de perspectiva histórica para a questão dos Testamentos. Reconhecido como importante, o AT tornou-se um manual para o comportamento moral, e suas imagens, um protótipo para a igreja cristã ou um repositório de imagens proféticas e alegóricas. Para alguns não passou de um livro “cristão” mal compreendido pelos judeus, por causa do excessivo literalismo ou carnalidade. Por exemplo, 1 Clemente usa o AT como uma fonte para o comportamento cristão (XIX). Seu culto é um protótipo para o ministério e o serviço religioso adequado (XLII–XLIII). A Epístola de Barnabé encontra significado no AT num sistema de imagens ou tipos (VII–XII) que são pano de fundo para o evangelho. Há pouco senso de história como tal. Os judeus, também pegos no literalismo histórico, fracassaram em ver Cristo. Uma satânica influência obscureceu a visão deles. De acordo com a polêmica de Barnabé, a carnalidade deles tem um pouco do anticristo sobre ela (II–IV). Eles perderam as promessas da aliança para uma melhor compreensão dos cristãos (XIII). 15 Continuidade e descontinuidade Existe algum senso de perspectiva histórica em Justino Mártir (c. 100-c.160). Em sua Primeira apologia ele oferece um esquema um tanto completo de profecia e cumprimento (p. ex., XXXI, XLIX). Seu Diálogo com Trifão apresenta um incipiente federalismo: os cristãos são chamados da mesma forma que Abraão (CXIX). Entretanto, o AT ainda parece mais um livro cristão do que judeu (Trifão, XI–XIV). Há também uma percepção de que todas as testemunhas de Deus foram cristãs, seja pelo judaísmo (VIII) ou pela cultura grega (no caso de Platão, p. ex., LIX–LX). Justino tem uma percepção razoavelmente bem definida de figuras e imagens que prenunciam a verdade cristã mais completa, uma ideia propositadamente desenvolvida por um contemporâneo, Mileto de Sardes. Entretanto, é Ireneu (c. 130-c. 200) que começa a oferecer reflexão histórica mais profunda sobre a questão do inter-relacionamento dos Testamentos. Em Contra as heresias, Ireneu argumenta que Deus vem a nós de duas maneiras: na história e por meio de seu Filho. A Escritura esboça os caminhos pelos quais a Trindade se manifesta gradativamente a nós (IV, 22). A ordem e o contexto de eventos se relacionam com estágios do desenvolvimento da humanidade (IV, 13-15). O AT, cheio de imagens e tipos, aponta o caminho na direção da revelação mais completa de Deus, que é Cristo (IV.10.26). É também usado para dar orientação em descrever a futura felicidade do milênio na terra (V) subsequente à segunda vinda de Cristo (de acordo com Justino Mártir, Hipólito e Tertuliano). Ireneu rebateu a especulação gnóstica dizendo que foi o mesmo Deus que veio até nós em Cristo, bem como em diferentes períodos da história (IV, 5, 12), e posteriormente estabeleceria seu reino tangível. Os argumentos de Ireneu irão influenciar tanto as questões hermenêuticas como as questões de evolução histórica, à medida que estas surgirem das tentativas de inter-relacionar os Testamentos.5 Nem todos no século II viram a relevância do AT em relação ao NT. Os mestres que se opunham a Ireneu viram pouca necessidade da antiga revelação. Marcião do Ponto († c. 160), um dos mais famosos, desenvolveu um plano de salvação gnóstico que argumentava sobre uma dicotomia radical entre a velha e a nova dispensações. Seu sistema teológico, construído com base em um dualismo sistemático, postulava dois deuses, o deus da lei e da antiga revelação e o deus do evangelho, pai de Jesus Cristo. Geralmente, estes eram opostos, ou seja, um deus bom e um deus mau. A história e a materialidade foram denegridas. A salvação era 16 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja totalmente espiritual – e apenas para o intrinsecamente espiritual. O “cânon” de Marcião consistia em versões das epístolas paulinas e do evangelho de Lucas. Seu centro se baseava numa leitura espiritual de Romanos e Gálatas. Entretanto, até mesmo esses livros foram editados em partes (p. ex., Rm 9–11). Outros mestres gnósticos como Valentino e Ptolomeu divulgaram sistemas de salvação semelhantes, porém menos radicais. Uma frase utilizada por alguns estudiosos para identificar esse período é: “a verdadeira batalha no século II centrou-se em torno da posição do Antigo Testamento”.6 Os teólogos Uma forma de lidar com os textos problemáticos levantados pelos gnósticos ou oponentes filosóficos do cristianismo foi olhar para um significado mais profundo da Escritura sem negar por completo o texto literal. Essa é uma metodologia que encontramos nos escritos daqueles que são geralmente chamados de teólogos e que o trabalharam com nossa questão, no século III. Eles foram geralmente orientados por duas “escolas” de teologia: uma localizada em Alexandria e a outra em Antioquia. Ambas entendiam o AT como um documento histórico, a obra do mesmo Espírito divino presente no NT. Ambas concordavam em certos eventos fundamentais e na forma nas quais estes prenunciavam Cristo e a igreja (Adão e Moisés eram tipos de Cristo, e a arca, um tipo da igreja). Ambas acreditavam que o novo estava contido no antigo. As diferenças apareceram na maneira pela qual a nova revelação era detectada na antiga e no tipo de independência que a primeira tinha à luz da nova. A “escola” doutrinadora localizada em Alexandria encontrou na exegese alegórica uma forma de tornar o AT um livro cristão. O teólogo e exegeta Orígenes (c. 185-c. 254) foi o precursor. Os princípios que orientaram o trabalho de Orígenes foram estabelecidos pelo exegeta judeu Filo de Alexandria (c. 20 a.C. - 54 A.D.). Na tentativa de acomodar as Escrituras judaicas aos cânones helenísticos de conhecimento, Filo defendeu a importância de uma interpretação espiritual ou alegórica mais profunda por trás da história ou da letra do texto. Um texto que não dizia nada de valor a respeito de Deus, que apresentava dificuldades ou contradições, ou que era evidentemente alegórico por natureza, tinha de receber essa compreensão espiritual aprofundada.7 17 Continuidade e descontinuidade Esse método, usado por Clemente de Alexandria (155-c. 220), foi melhor desenvolvido por Orígenes com respeito às Escrituras cristãs. A interpretação histórica ou literal sempre foi fundamental. Entretanto, o AT em particular estava cheio de enigmas. Era uma alegoria ou símbolo espiritual. O significado – e de certo modo a nova dispensação – estava oculto no antigo com discutível consideração pela história. Foi trabalho do exegeta encontrar o significado espiritual. A influência de Orígenes foi ampla. Ela não somente aprofundou a perspectiva teológica de sua própria época, embora com significativas imperfeições, como também se tornou a base para muita exegese medieval, na medida em que buscava encontrar diferentes compreensões figurativas do texto construído sobre sua superfície ou sentido literal. Esse sistema deu esperanças para uma aprofundada apropriação teológica da Escritura. O AT e o NT foram mostrados para apresentar os mesmos ensinos; somente o estilo de conhecimento deles foi diferente. As imperfeições desse método repousam na perda da realidade histórica e na abertura de brechas para o desenvolvimento de um sistema espiritual imaginário de salvação promovido posteriormente por pensadores gnósticos que o estenderam ao NT. 8 O alegorismo encontrou oposição nos teólogos associados à “escola” exegética encontrada em Antioquia da Síria. O formato desse movimento é visto em pensadores como Luciano († 312), Diodoro de Tarso (c. 330-c.390), e especialmente Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428). Diodoro oferece uma definição mais penetrante de alegoria (Gl 4.24), mais adequadamente denominada “tipologia”, indicando a direção de interesse entre esses comentaristas no sentido de discernir uma relação mais forte entre os Testamentos. Esse relacionamento foi visto como correspondência, não simplesmente simbolismo. Acreditava-se estar presente na própria Escritura (Is 51.9-16; Gl 4.24). Eventos e pessoas numa revelação anterior eram “tipos” das que apareceriam depois. Dessa forma, o significado espiritual e o sentido histórico do texto estavam intimamente ligados. Pela percepção (theoria) podia-se discernir tanto a realidade histórica quanto o propósito espiritual de um texto colocado dentro de um quadro mais claro da evolução gradual da revelação (verdade mais completa sobre Cristo é encontrada nos Evangelhos, não numa interpretação do AT). Isso teve a vantagem de oferecer uma compreensão mais integral da unidade da Bíblia. A alegoria pareceu perder isso por associações não confiáveis ou desautorizadas.9 18 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja Teodoro de Mopsuéstia fez mais para esclarecer o pensamento antioqueno, separando textos da Escritura que se aplicavam somente à história daqueles que continham um elemento preditivo. Ele chegou a ponto de dizer que Cantares, normalmente entendido como uma alegoria entre Cristo e a alma ou a igreja, foi escrito por Salomão para celebrar seu casamento com uma princesa egípcia. Embora Teodoro não negasse a interpretação alegórica, sua obra sustentou claramente a sugestão e levantou a questão acerca da possibilidade e do modo em que se deve separar na história a área sagrada e a secular, um assunto que realçava a preocupação cristológica com o nestorianismo.10 Tanto Alexandria como Antioquia aprofundaram as perspectivas teológicas sobre o inter-relacionamento dos Testamentos. Entretanto, na primeira isso aconteceu às expensas da história, e na segunda, às custas do mistério ou da espiritualidade. O alegorismo, mostrado em teólogos tão eminentes como Cirilo de Alexandria e os pais capadócios, no Oriente, e Hilário de Poitiers e Ambrósio de Milão, no Ocidente, afetou a exegese medieval de uma forma dominante. As ideias desenvolvidas em torno de Antioquia forneceram a perspectiva para a pregação de João Crisóstomo (c. 347-407). Elas influenciaram também Jerônimo e outros doutores da igreja, que, não obstante, muito deveram ao alegorismo de Alexandria. Os princípios articulados por Antioquia continuaram a testemunhar a importância da história e se tornaram influentes, de uma forma mais dominante, nos anos da Reforma Protestante. Os doutores da igreja De acordo com Tertuliano, os teólogos do século III ilustraram a harmonia existente entre os Testamentos. Isso foi estabilizado e fixado com autoridade por quatro teólogos no século seguinte que deram liderança à igreja. Três – Jerônimo, Agostinho e Gregório, o Grande – são de interesse para nós. Eles são também importantes no sentido de que completam um processo de redefinição espiritual do milênio, iniciado com Orígenes, segundo o qual as promessas de Deus dadas a Israel serão aplicadas à igreja. Encontramos o nome de Jerônimo (c.342-420) ligado ao trabalho de dar forma ao AT. Jerônimo se destacou mais do que Orígenes, Atanásio ou Rufino na defesa da Bíblia hebraica e na divisão da 19 Continuidade e descontinuidade literatura hebraica e da Septuaginta, disponível para a igreja, numa dupla classificação: literatura canônica e apócrifa. Jerônimo sugeriu a natureza secundária dos livros que formaram a literatura apócrifa, recomendando que ficassem entre os Testamentos, mas que fossem usados para a edificação moral, não como doutrina. Muitas de suas sugestões, como a segregação do cânon dos apócrifos, não foram colocadas em prática até o tempo da Reforma. Autor de numerosos comentários bíblicos, Jerônimo recebeu influência de Orígenes. Ele deu uma interpretação espiritual a muito do AT, buscando alinhá-lo com o NT, e, por meio disso, tratou de aparentes antropomorfismos, inconsistências e erros. Seus comentários sobre Oseias e Apocalipse revelam certa dificuldade com o primeiro e temor do literalismo judaico no último. No fim da vida, cresceram as dúvidas de Jerônimo quanto a Orígenes e ao alegorismo em geral.11 Agostinho (354-430) domina o período. Sua compreensão da Escritura e perspectiva da história darão forma à igreja medieval. Vários estágios marcaram a passagem de Agostinho à fé em Cristo. Cada um deles deixou sua marca sobre a interpretação do texto. No começo, submetido pelos arcaísmos e infelicidades do texto, Agostinho foi impelido para o dualismo maniqueísta com a denegação do AT. Isso foi seguido por um período de ceticismo acadêmico anterior ao seu despertar cristão (386), o qual foi estimulado pelo neoplatonismo de Ambrósio de Milão (c. 339-397). A interpretação alegórica de Ambrósio ajudou Agostinho a aceitar a Escritura sem dificuldade. Em sua própria obra, Agostinho fazia uso frequente do alegorismo. Esse tom sobre o valor espiritual do texto (2Co 3.6) enfatizava a verdade subjacente por trás dos símbolos de expressão. Essa verdade podia ser vista por meio de múltiplos significados no texto, dados pelo Espírito e discernidos pelo exegeta espiritual. O neoplatonismo aparente na obra inicial de Agostinho seria desafiado em suas premissas filosóficas em virtude do grande respeito desse teólogo pela Escritura. As palavras da Escritura, sinais que apontavam para a única coisa verdadeira (Deus), foram necessárias desde a queda. Somente elas davam conhecimento verdadeiro do caminho para Deus e, daí, à plenitude do amor. A importância do texto da Escritura, junto com o crescente corpo da igreja de conclusões metafísicas, foi ordenada por Agostinho, que adotou as regras de interpretação de Ticônio. Estas buscaram relacionar a Bíblia toda a Cristo, à igreja ou a seus opostos. Agostinho resumiu seu ponderado pensamento hermenêutico na obra Sobre a doutrina 20 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja cristã (427), um texto que se tornaria o guia hermenêutico padrão para os mil anos seguintes. Como ele escreveria em outra parte: “O NT está escondido no AT, e no NT o AT está revelado”.12 Da experiência pessoal de Agostinho e da compreensão da interrelação dos Testamentos cresceu uma visão da história, esboçada em A cidade de Deus (XV–XXII), que moldaria a vida da igreja. Agostinho percebeu na Escritura uma linha progressiva da história divina e da profecia movendo-se por meio de uma série de períodos históricos e culminando no período de Cristo, o sexto período da igreja. Ao longo desse tempo existiram dois grupos de pessoas que formavam duas cidades – uma dedicada ao amor deste mundo. A outra, a Deus. O último período histórico, o da igreja, continuaria até o dia do julgamento. Agostinho, ao lutar com o entendimento tradicional do milênio (Ap 20.3), um tempo em que as promessas a Israel seriam realizadas, rejeitou o que sentiu ser o literalismo crasso de muitos de seus predecessores. Em vez disso, ele seguiu Orígenes, oferecendo uma interpretação espiritual. Foi o tempo simbolizado pela vida presente da igreja, experimentada por aqueles que, tendo aceitado a Cristo, vivem sob sua influência geral. Esse milênio espiritualizado diferiu em suas implicações políticas das ideias antes apresentadas por Eusébio de Cesareia (c.260-c. 340), no Oriente cristão. Ali, as promessas dadas a Israel pareciam ser mais imediata e diretamente aplicáveis à existência do império eclesial já estabelecido.13 Agostinho argumentou que a Escritura é melhor compreendida dentro da igreja. A disposição impositiva aqui promovida oferecia pouco espaço para mais exploração exegética, pelo menos no futuro imediato. A atitude predominante foi resumida por Vicente de Lérins († c. 450) em seu Commonitorium [O Comunitório]: “Quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est” (O que é crido em toda parte, sempre, e por todo mundo). A obra exegética de Jerônimo, a teologia de Agostinho e o propósito moral encontrado nos comentários de Gregório, o Grande (c. 540-604) conferiram uma marca confiável para uma visão geralmente alegórica do AT em relação ao NT e um senso suavemente progressivo da história. O AT tornou-se frequentemente um repositório de instrução moral e fonte de informações de textos comprobatórios, proféticos e alegóricos para a verdade do cristianismo. Esse estilo de interpretação é particularmente evidente nos comentários de Gregório sobre Jó, Ezequiel, 1 e 2Reis e partes dos Evangelhos.14 21 Continuidade e descontinuidade A Idade Média Uma exegese geralmente espiritual ou alegórica com propósitos morais proveu, então, a forma aceitável pela qual os Testamentos deveriam se relacionar. Quatro “sentidos” da Escritura (literal, alegórico, tropológico e anagógico), definidos primariamente por Orígenes e Agostinho, foram separados da “letra” e do “espírito” do texto e perceptíveis em João Cassiano († 435). Estes dominariam a exegese medieval, particularmente no que se refere ao AT em relação ao NT. Isso pode ser visto nas palavras de importantes comentaristas medievais como Isidoro de Sevilha (c. 560-636), Beda, o Venerável (c. 673-735), e Ambrósio Autperto († 781). Durante a Idade Média essa tradição tornou-se diferenciada e regularizada em modos monásticos e escolásticos de reflexão teológica. Embora frequentemente mescladas, a teologia monástica buscava na Bíblia um texto para a vida litúrgica e devocional. A implicação disso é que os vários níveis espirituais de significado na Bíblia foram ressaltados como ajudas à vida moral. A teologia escolástica, impulsionada pela curiosidade e pelo questionamento dialético, fez maiores exigências filosóficas sobre o texto. Tal teologia se defrontaria mais diretamente com o problema de outras fontes de conhecimento e como essas fontes desafiariam um ou ambos os Testamentos.15 O período carolíngio trouxe um despertamento aos estudos bíblicos. Entretanto, somente no século XVII começamos a encontrar coisas de interesse à nossa pergunta. Por exemplo, o desenvolvimento da teologia monástica na obra de indivíduos como Rupert de Deutez (c. 1075-1129/30), Bernardo de Clairvaux (1090-1153), Ricardo de São Vítor († 1173), Joaquim de Fiore (1132-1202) e Boaventura (c. 12171274) mostra uma aprofundada interpretação espiritual da Escritura, que une os Testamentos por meio da elaborada figurae para ilustrar o movimento de tempo em direção ao julgamento final concomitante com as virtudes adequadas a cada período da história. Quando a teologia escolástica atingiu certo ápice em Tomás de Aquino, o mesmo aconteceu em relação à teologia monástica com referência à história em Joaquim de Fiore e com respeito à alma, em Boaventura. Joaquim é de particular interesse. Seu elaborado plano de tipos e figuras do AT foi composto por uma grade semelhante, discernida no livro de Apocalipse, para criar uma explosiva visão tripartida da história. Isso aniquilou os grupos ortodoxos e dissidentes que criam na iminência do milênio na Reforma e durante seu período.16 22 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja O desenvolvimento da teologia escolástica pode ser reconhecido desde as leis carolíngias, de acordo com as quais as catedrais tinham a incumbência de prover educação para o clero de sua diocese. Seu aspecto é claramente discernível a partir do século XIV. Sem investigar seu desenvolvimento, é suficiente notar que a partir desse ponto as interpretações do texto da Escritura ficam reunidas nos comentários da primeira sentença, ou teologias, das quais as Sentenças de Pedro Lombardo (1100-1160) são notáveis. Além da Bíblia, fontes de conhecimento cada vez mais crescentes ocasionaram questionamento mais profundo do texto. A crítica dialética de Pedro Abelardo (1079-1142) representa essa evolução. Um interesse específico pelo AT, sua história e interpretação literal da Escritura é perceptível entre os cânones de São Vítor, em Paris. Certo autor argumentou que o período de tempo entre 1100 e 1350 é marcado por um crescente estudo dos textos originais hebraicos da Escritura, comparável apenas com a obra da Renascença, que focou os textos originais gregos. Esse interesse é visível em Hugo de São Vítor (10961141). Ele enfatizou as artes liberais como propedêutica à exegese literal, o ambiente para o desenvolvimento da doutrina. A descoberta correta da alegoria e da verdade divina veio em seguida, de forma adequada. Um sentido histórico do texto foi promovido mais radicalmente por André de São Vítor († 1175). Orientado pela erudição judaica contemporânea, sua pesquisa o levou a contestar profecias tipicamente messiânicas como Isaías 7.14-16. Aqui, André seguiu a interpretação judaica, acreditando não ser “virgem”, e sim “jovem”, a tradução adequada. Embora muito criticado nesse ponto por seu contemporâneo Ricardo de São Vítor († 1173), pode-se perceber um interesse marcante numa leitura histórico-gramatical do AT.17 A chave para a interpretação foi a capacidade para compreender o adequado sentido de um texto. Uma terminologia instável, diferenças no gênero de literatura encontrado e questões sobre onde terminava a exegese literal e começava a alegórica, tudo fazia parte do debate hermenêutico na Alta Idade Média. Além disso, quando se juntava os dois Testamentos da Escritura, surgiam questões sobre as passagens proféticas. O que constituía seu sentido literal diante da interpretação espiritual? Se a interpretação literal era básica, em que ponto poder-se-ia ler com legitimidade uma mensagem profética ou cristológica num texto, uma questão composta pela retórica antijudaica. Questões como essa levaram mentes escolásticas a desenvolver abordagens convencionais do 23 Continuidade e descontinuidade texto. Aqui, como em outra parte, a teologia de Tomás de Aquino (c. 1225-1274) deu forma resumida. Aquino enfatizou o sentido literal do texto (ST 1a.I.10), mostrando a tendência natural de sua filosofia. Embora não temendo a alegoria, ele argumenta que o sentido literal exibe o peso completo da intenção do autor. Podia existir um sentido espiritual, mas seu lugar era de edificação, não de prova. Era conhecido por Deus e podia ser discernido à luz de revelação posterior. Aquino colocou em evidência um tríplice argumento contra a alegoria: (1) ela é suscetível de engano; (2) sem um método claro ela leva à confusão; e (3) ela carece de um senso de integração adequada da Escritura.18 Alguns, como Pedro Auriol e Nicolau de Lyra (c. 1270-1340), continuaram a linha dos que ofereceram uma leitura mais aguçada dos Testamentos. Nicolau de Lyra inspirou-se na obra de exegetas judeus, particularmente o comentarista Rashi (1040-1105). Seu comentário enfatizava uma compreensão “literal dupla” do texto. Tanto a intenção de Deus quanto a do autor humano podiam ser designadas como sentido literal adequado do texto. Dir-se-ia mais tarde a respeito de Lyra que ninguém, desde Jerônimo, havia contribuído tanto para a compreensão do AT quanto ele.19 A Renascença e a Reforma A obra de Martinho Lutero (1483-1546) ficou em débito com a obra de Lyra, como também com as correntes derivativas mais amplas da Renascença. Sua crítica a Roma começou com o sistema sacramental e a teologia escolástica; depois continuou a questionar a exegese. Lutero insistiu na autoridade e suficiência da Escritura em oposição à tradição da igreja. Entendidos pela fé e pela iluminação do Espírito (Weimar, VII, 96-98), ambos os Testamentos da Escritura estavam abertos a todos os cristãos. A revelação, seja preparatória ou progressiva, teve uma história que o Espírito possibilitou ser compreendida. Lutero rejeitou os significados “espirituais” tradicionais ou a quádrupla interpretação da Escritura e foi na direção de um único significado do texto, exceto onde uma interpretação espiritual tinha a clara intenção do autor. Essa abordagem histórica do AT foi um fator central na teologia da Reforma. Entretanto, a questão do seu sentido literal em relação ao NT permaneceu legítima. Lutero seguiu Lefèvre d’Etaples e argumentou que os escritores do AT estavam conscientes da vinda 24 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja de Cristo. A unidade da Escritura, encontrada em Cristo, significava que Lutero se inclinava a ler o AT através do evangelho; seu sentido histórico era obscurecido por prenúncios de Cristo e sua igreja. Finalmente, a antítese que Lutero traçou entre a lei e o evangelho promoveu a diferença que ele encontrou entre os dois Testamentos, quando receou introduzir uma nova lei sob o pretexto do evangelho, uma característica que ele encontrou tanto em Roma quanto nos movimentos emergentes radicais da Reforma.20 Mais dois pontos devem ser levantados quanto a Lutero. Primeiro, Lutero foi também um tradutor da Escritura. A ordem que ele deu ao AT tem sido seguida desde sua época. Em segundo lugar, Lutero continuou, em geral, o sentido agostiniano da história com implicações para a relação dos Testamentos. Entretanto, ele tinha maior consciência de estar vivendo no fim do tempo, pouco antes do juízo final. Esta crença foi predominante entre os primeiros radicais espirituais e anabatistas, alguns dos que retornaram a uma forma de milenismo visível na igreja primitiva. Outros, de forma mais consciente, seguiram o precedente joaquino e dividiram nitidamente a era agostiniana em termos de imagens tiradas do livro de Apocalipse.21 A Reforma entre os reformados geralmente se deu com linhas de ação esboçadas por Lutero. Entretanto, houve diferenças, que podem ser vistas em Ulrico Zuínglio (1484-1531), João Calvino (15091564) e (João) Henrique Bullinger (1504-1575). Quando chegamos à questão da relação entre os Testamentos, podemos distinguir pelo menos três diferenças. Primeira, a tendência para enfatizar a superfície ou sentido histórico do texto contra o alegorismo foi mais forte entre os reformados do que entre os luteranos (Calvino, Institutas, I.1.7,8). Não obstante, em contraste a alguns grupos anabatistas, cuja tendência era ver o AT como um livro judaico com pouco a oferecer à era da nova dispensação, os reformados, junto com a maioria dos protestantes, preservaram alguma percepção do sentido espiritual do texto pretendido pelo Espírito. Em segundo lugar, houve uma tendência entre os reformados em enfatizar a identidade das duas dispensações à custa de sua diversidade. Isso foi particularmente visível em edições posteriores das Institutas de Calvino (II.9-11; cf. Bullinger, Sobre o Testamento). Em terceiro lugar, a implicação disso foi que as leis morais e os preceitos do AT receberam um peso maior como orientações à vida cristã.22 25 Continuidade e descontinuidade Uma perspectiva histórica agostiniana foi em geral dominante entre os principais teólogos reformados por várias razões exegéticas e sociais. Entretanto, podemos notar certa tensão escatológica em Calvino e Bullinger, uma expectativa da glória visível de Deus entre os cristãos e em comunidades e estados cristãos. Essa esperança tornou-se o contexto para uma crescente tendência milenarista vista entre alguns teólogos continentais posteriores (p. ex., Brocardo) e outros anglo-americanos (p. ex., Brightman). Aqui o debate acerca da identidade do verdadeiro Israel, há muito definido como sendo a igreja, crescerá. Se igreja ou antigo Israel, a expectativa de uma realidade visível e histórica de tudo o que foi prometido a Israel nesta era ou na posterior ao iminente retorno de Cristo crescerá.23 Uma era de conflito A crescente consciência histórica afetou a maneira pela qual as origens da fé cristã foram compreendidas e usadas. Os progressos filológicos e historiográficos da Renascença, repre sentados por Lorenzo Valla, João Reuchlin nos estudos hebraicos, os discernimentos de Thomas Morus, João Colet e Erasmo (14691536), favoreceram essas percepções. Outras tendências da Renascença, parcialmente derivadas do neoplatonismo, seriam assimiladas na exegese de Erasmo, acentuando as interpretações espirituais do texto. Isso seria usado para acrescentar mais nuanças à forma pela qual os Testamentos foram interpretados e inter-rela cionados, destacando uma compreensão não corpórea, até mesmo racionalista da Escritura. Quando diferentes comunidades cristãs procuraram defender suas perspectivas teológicas, organizando a história defensivamente, esses temas contribuíram para um aprofundamento da perspectiva histórica.24 A época foi, em primeiro lugar, de conflitos teológicos. Isso esteve frequentemente relacionado à nossa questão dos Testa mentos. Muitos teólogos luteranos ortodoxos como João Gerhard (1582-1637), J. B. Carpzov (1607-1657) e Abraão Calovius (16121686) usaram o AT principalmente como uma coleção de textos comprobatórios, uma metodologia que refletia as próprias tendências de Lutero. Entre os reformados, o AT figurava junto com o NT como parte de uma elaborada tentativa de determinar a natureza da autoridade bíblica vista mais claramente na Confissão helvética (1675).25 26 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja Outras características da fé reformada trazem o AT para a presente vida dos cristãos. Os reformados se inclinaram a ser politicamente sensíveis com respeito a visível idolatria religiosa e nacional. João Knox (c. 1513-1572) pregou a necessidade de remover as serpentes de bronze da vida e da adoração, baseando-se em 2Reis 18.3,4. Calvino, em suas Institutas, investiu em ataque contra os governos que aconselhavam a idolatria (IV.20.1-32). Ao fazer isso, Calvino extraiu muito da história de Israel. Tal “iconoclastia” uniu interesses políticos de quase todas as nações europeias emergentes. O movimento puritano na Inglaterra, produzido desse relacionamento, a levaria a todas as terras tocadas pelos interesses britânicos. Além disso, essa sensibilidade política aos Testamentos esteve frequentemente ligada à escatologia reformada. Isso pode ser visto em vários planos da revelação progressiva, principalmente a de João Coceio (1603-1669), em que questões de natureza normativa de revelação mais antiga são levantadas, exceto quando ela pode ter alguma significação simbólica. Isso é evidentemente claro nos teólogos apocalípticos anglo-americanos como John Foxe a Jonathan Edwards.26 Dois movimentos emergiram no século XVII buscando a paz, mas ambos, nos termos da nossa questão, na verdade introduziram mais dimensões de debate. O primeiro, o racionalismo, pode ser percebido entre certos reformadores no século XVI que se inclinaram a questionar de forma mais radical e completa a teologia tradicional. Tornou-se explícito em Hugo Grócio (1583-1645), que procurou a unidade teológica, entre grupos em conflito, na pessoa de Cristo e na teologia natural. Sua crítica de inspiração bíblica anteviu mais movimentos radicais por parte de Thomas Hobbes (1588-1679) e Benedito Spinoza (1632-1677). Através de um crescente historicismo, o movimento como um todo começou a questionar o uso anteriormente assumido do AT pelo NT. O AT, antes atraído ao NT por meio de um sentido “espiritual” do texto, era agora por si só um documento histórico. Hobbes rejeitou a inspiração da Escritura. Em seu livro Leviatã, preocupado com questões de poder e política, argumentou que a Bíblia não devia ser tomada como revelação de Deus. Spinoza ampliou sua crítica em Tractatus theologico-politicus, argumentando que não somente a Bíblia é mera história, como o idioma que atribui tudo a Deus refletia uma atitude hebraica e não devia ser confiável como verdade. A razão devia guiar a mente em assuntos filosóficos, 27 Continuidade e descontinuidade embora a teologia lidasse com questões de piedade e obediência. Argumentando dessa maneira, pareceu que Spinoza agiu como Jerônimo, visto que este separou a literatura canônica da apócrifa, e aquele, a razão da revelação. Só que agora toda a Escritura era apócrifa. Richard Simon (1638-1712), Jean Astruc (1648-1766) e outros deram continuidade a essa crítica com respeito ao AT, lançando o fundamento para a moderna “alta” crítica, termo depois empregado por J. G. Eichhorn (1752-1827). Essa crítica recebeu matiz poético em G. E. Lessing (1729-1781), de tal forma que a essência da religião não era adequadamente encontrada na revelação histórica, mas na moralidade. Influenciado por H. S. Reimarus (1694-1769), Lessing barateou a autoridade do AT ao sugerir que Deus havia educado outros povos mais do que os judeus. Sua peça Nathan the Wise [Natã, o sábio] (1779) sugeria que o AT deveria ser resgatado numa forma poética, informando um tipo de moralidade humanitária. Com Lessing, J. G. Herder (17441803) continuou a postular esse valor poético do texto como parte de uma visão progressiva da história das nações, no sentido de uma expressão mais completa da humanidade.27 O pietismo se desenvolveu depois do racionalismo. De alguma forma, foi também uma reação ao conflito teológico que se seguiu como resultado da Reforma. O movimento visava enfatizar uma leitura moral da Escritura por lições pessoais de amor e santidade. Philip Spener (1635-1705), frequentemente visto como fundador do movimento, em seu livro Pia Desideria (1675), tido como sua “constituição”, via a Bíblia como instrumento de Deus para a verdadeira espiritualidade. O movimento também foi formulado por A. H. Francke (1663-1727) e N. L. von Zinzendorf (1700-1760). Francke, e especialmente J. A. Bengel (1687-1752), ofereceram uma compenetrada visão gramatical e filológica da Escritura ao enfatizar a unidade dos Testamentos. Ainda, apesar desses avanços, o AT foi, com frequência, alegorizado, num esforço para encontrar a adequada verdade espiritual voltada para o fim devocional em vez de interesses doutrinários ou exegéticos.28 A exegese racionalista e o interesse bíblico pietista se reúnem na obra de alguns autores do fim do século XVIII, constituindo parte do contexto para criativos desenvolvimentos exegéticos no século XIX. Filólogos como J. A. Ernesti (1701-1781) insistiram na primazia das considerações gramaticais sobre a dogmática na interpretação do texto da Escritura, embora teólogos como J. S. Semler (1725-1791) 28 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja enfatizassem a abordagem metodológica crítico-histórica de todo o cânon. Entretanto, o que poderia ser um árido intelectualismo, estava agora associado a novas visões avançadas da história, separadas dos Testamentos e com mais valor poético. O século XIX Immanuel Kant (1724-1804) leva-nos diretamente às perguntas do século. Crítico de ceticismo cada vez maior (como em David Hume), Kant esforçou-se para compreender os limites do conhecimento. Ele deixou pouco espaço para a metafísica, antevendo, assim, o romantismo de Schleiermacher, o idealismo hegeliano, o reino moral de Ritschl e o Deus distante de Kierkegaard. Nisso ele deu continuidade ao padrão de crítica do século anterior, acrescentando que os estímulos de consciência eram superiores no AT. Em lugar de uma imposição de fora e de uma sujeição ao governo de Deus por natureza, ele defendeu uma percepção interior e uma prática de moralidade oriunda da vontade autônoma, não dependente, sobre a lei heteronômica ou o poder submisso ao governo de Deus.29 O idealismo moral e o progressivismo histórico esboçado por Kant ajudaram a completar o cenário para o desenvolvimento da “alta” crítica como foi desenvolvida originariamente na Alemanha. Na obra de Friedrich Schleiermacher (1768-1834) essa crítica reivindicou oferecer orientação à igreja para uma fé mais esclarecida. Fundamentando a autoridade religiosa na “percepção de absoluta dependência de Deus”, ele rejeitou as partes de ambos os Testamentos mais distantes de um profundo senso interior de divindade. O AT era, de fato, de muito maior valor do que a mitologia grega. Ambas as tradições constituíram caminhos de preparação para o evangelho. A filosofia de G. W. F. Hegel (1770-1831) e a teologia de F. C. Baur (1792-1860) provavelmente melhor representam o progressivismo histórico do período. Em ambas, a religião dos judeus foi parte de uma contínua realização de uma verdade mais completa da história. A crítica bíblica de Julius Wellhausen (1844-1918) pode muito bem ser vista suportando estas e também mais recentes premissas racionalistas, em sua articulação do desenvolvimento gradual da religião hebraica desde uma forma animista nômade até a criação de um sistema racional de leis. De formas diferentes Adolf Harnack (1851-1930) conduziu seu progressismo de volta à busca pelo autêntico passado de Jesus, pondo de lado 29 Continuidade e descontinuidade muito do AT, e A. F. Loisy (1857-1940) transportou-o para a futura plenitude das implicações de sua pessoa.30 O historicismo racional junto com o valor poético do texto tornou-se a forma mais eloquente de tratar os Testamentos. Outras formas de fazê-lo podem ser vistas na escola de pensamento da história da salvação, articulada por J. C. K. von Hoffman (18101877), de Erlangen. Ele tentou reafirmar a unidade dos Testamentos, perdida pelos interesses racionalistas ou poético-liberais, ao discernir um sistema de história da salvação enraizado numa visão orgânica da Escritura. Os eventos do texto, enraizados na história, deram significado para o presente e importância ao futuro. Toda a Escritura foi unida desse modo integral. Até mesmo a era atual foi vista cheia de significado ao apontar para outro período milenário por vir. Ernst W. Hengstenberg (1802-1869) foi outro que postulou a unidade dos Testamentos, nesse caso em torno de um duplo testemunho de Jesus como o Messias. Outros métodos de discernir a unidade dos Testamentos podem ser vistos em Patrick Fairbairn (1805-1874), pela tipologia, e em John H. Newman (1801-1890), por um renovado senso de objetivo espiritual do texto.31 Em todo o século o milenismo, em parte, esteve no ar por meio de um penetrante reavivamento e uma atmosfera materialmente eufórica. A tradição anglo-americana, preocupada com a realização do governo de Deus na história, prosperou e baseou-se em questões da inter-relação dos Testamentos. Para alguns, a igreja, como o novo Israel, era herdeira de todas as promessas de Deus. Agostinho havia compreendido essas promessas para encontrar seu cumprimento espiritual na era da igreja, uma posição agora denominada de amilenarismo. Essa perspectiva havia sofrido mudanças, particularmente desde Thomas Brightman (1562-1607), de forma que alguns compreenderam que essas promessas deveriam ocorrer literalmente num novo período milenar, revelando-se no mundo antes da volta de Cristo para julgar, uma posição agora chamada de pós-milenarismo. Os pré-milenaristas, igualmente certos do cumprimento literal dessas promessas, discordaram exegeticamente ou por meio do pessimismo social, crendo que tal ocorreria depois da volta de Cristo para de fato governar sobre a terra. Tanto os pósmilenaristas quanto os pré-milenaristas realçaram o papel do povo judeu na história: os primeiros como sinais do reino, e os últimos como sinais e adequados receptores dele. Quanto ao milênio, das três posições citadas, os pré-milenaristas se inclinaram à direção 30 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja de uma abordagem dispensacionalista dos Testamentos, enquanto os outros dois foram mais de orientação federalista.32 O século XX Em certo sentido, todo o espectro de questões que tem ocorrido em relação aos Testamentos apareceu no século XX. Guerra, mudança social e tendência intelectual trabalharam na direção do fim do progressivismo do período anterior. Os estudos de Albert Schweitzer (1875-1965), que apareceram num momento de mudança social, sugeriam a realidade de um Jesus apocalíptico, desconhecido da teologia contemporânea, arraigado no passado de Israel. Aquele mundo, aberto a todos por meio de estudos arqueológicos e filológicos, revolucionou as perspectivas sobre o AT e sua relação com o NT. O AT não pode mais ser comparado com fábulas gregas, mesmo sendo esse o conceito defendido por alguns no século anterior.33 A reafirmação da veracidade histórica do AT, a identidade radical de Jesus, o lugar do ser humano perante a “diversidade” de Deus e a maneira pela qual tais ideias foram canalizadas por uma teologia de “crise” (principalmente a obra de Karl Barth [18861968]) ajudaram a criar uma nova consciência teológica para a nossa questão. Além disso, a escatologia da neo-ortodoxia, de forma tão diferente quanto foi articulada, aprofundou, sem negar explicitamente, posições milenaristas tradicionais através de uma compreensão mais imediata do reino de Deus. Isso ofereceu possibilidade para trazer o poder profético do AT para as preocupações sociais presentes (p. ex., os Blumhardts, os Niebuhrs, Jürgen Moltmann). Esse movimento tornar-se-ia mais claro quando estendido por posteriores teólogos da libertação, frequentemente devedores às premissas marxistas ou secularistas, todavia em muitos casos ligados à maneira na qual os primeiros movimentos reformados ou cristãos restauracionistas usaram os Testamentos como guia para a santidade compartilhada.34 Hoje, o estudo da inter-relação dos Testamentos está chegando ao fim do seu segundo milênio. Enquanto isso acontece, estamos conscientes das formas pelas quais as considerações hermenêuticas moldam nossa compreensão da fé. Tais assuntos incluem a importância da história em seu próprio direito. A primeira pergunta para 31 Continuidade e descontinuidade compreender qualquer texto é o que ele significa em seu contexto original como determinado pela filologia, análise cultural, questões de forma literária, estilo, propósito e comunicação. O desenvolvimento de uma ciência de documentos, em certo sentido sempre presente na história da igreja, tem sido uma contribuição importante dos últimos dois séculos. Ele representa tendências que no começo pareceram destrutivas da fé, mas tem, com mais desenvolvimento, frequentemente dado um novo suporte principal. A questão do contexto histórico requer reconhecimento da maneira pela qual a interpretação molda e é moldada pela compreensão. Períodos de reorientação cultural, como o nosso, estão muito conscientes disso. Um dos modelos enfatizados pela atual teoria da interpretação é o do diálogo com um texto. Embora muito mais esteja envolvido, esse modelo reconhece que tanto nossa pré-compreensão quanto a integridade do texto precisam ser levadas em consideração para se chegar a uma honesta avaliação de um documento histórico. Além disso, ao prestar atenção num texto, é preciso lidar com as perguntas que ele levanta. Essa prática tem provocado uma nova consideração pela teologia harmonizada, visto que esta disciplina trata das mais profundas premissas assumidas pelos textos e por nós mesmos. Interpretações exclusivamente sagradas ou seculares são indefensáveis se lidamos com todas as questões que nos confrontam num documento histórico. Finalmente, a importância de uma comunidade de compreensão, ou fé, em desenvolver mais as formas nas quais os documentos são usados deve ser considerada, particularmente no nosso caso. A existência de dois Testamentos que têm orientado comunidades religiosas vitais durante milênios desempenha um papel central na forma pela qual compreendemos os Testamentos individualmente e em inter-relacionamento.35 Muitas dessas considerações estiveram por trás do esboço do Loccum Report (1978). Este relatório argumentava que o AT é “parte integral e indispensável da Escritura autorizada[...] nem obsoleto nem antiquado [desde Cristo], nem deve ser considerado meramente uma preparação para Cristo”. O relatório oferece diretrizes para interpretação, registrando que, além de considerações cristológicas, existe uma “especificidade” no AT: ele pode oferecer verdade não encontrada no NT. Além disso, a ideia de cumprimento, usada em relação à promessa, é mais complexa do que anteriormente considerada. Ele inclui perspectivas como tempo, lei e promessas. Mais controverso é o ponto que trata do processo interpretativo que 32 Continuidade e descontinuidade: o debate ao longo da história da igreja começa nas partes mais primitivas da Bíblia e continua no NT, amalgamando-se em linhas de tradição desenvolvidas nas igrejas. Este assunto é muito importante para a inter-relação dos Testamentos. Entretanto, sem considerações cuidadosas, ele pode obscurecer a distinção entre revelação e tradição. Finalmente, o relatório oferece uma nova afirmação da unidade teológica da Escritura, discernida não somente em Deus, seu autor formal, mas também em ideias como aliança, esperança e sabedoria.36 Conclusão A maneira precisa pela qual os Testamentos se relacionam é uma discussão que continuará até o dia do juízo final. Todavia, várias questões são esclarecidas pela história da igreja. Primeiro, é claro que a percepção de Jesus sobre o AT tem sido fator orientador em quase todos os períodos. A igreja tem consciência do que se percebeu ser o método de Jesus de abordar a nossa questão. Em segundo lugar, quatro formas de avaliar o inter-relacionamento entre os Testamentos podem ser isoladas em termos de sua importância teológica: o AT pode ser lido como mera história; ele é quase sempre lido por meio do NT; ele pode ser compreendido como completo, de certa forma, em sua própria integridade teológica; ele pode simplesmente ser visto como símbolo alegórico em relação ao NT. A implicação teológica dessas formas de leitura dos Testa mentos pode ser esquematizada como segue.37 Primeiramente, se o AT é mera história, então nenhuma orientação em particular é oferecida aos cristãos para a vida pessoal ou social. Não existe garantia profética particular para a vinda de Jesus. Não há lugar especial para os judeus na história. Cada agrupamento étnico pode ser visto como tendo sua própria organização de salvação. Em segundo lugar, se o AT deve ser lido através dos evangelhos, então qualquer orientação que ele possa oferecer para os cristãos é filtrada pela ética de Jesus. O texto pode ser lido por seu possível valor profético ou cristocêntrico. A nação judaica antes de Cristo pode ser vista como intérprete de um papel privilegiado na preparação do advento dele, e tal atuação deve ser harmonizada, do mesmo modo, depois dele. Além disso, o NT fornece o paradigma necessário para responder a pessoas de outros ambientes culturais ou religiosos. 33 Continuidade e descontinuidade Em terceiro lugar, se o AT é de alguma forma completo em sua própria integridade teológica, então ele pode ser de imenso valor para orientação do atual costume social, limitado somente por considerações de tempo ou dispensação que se possa conceber. O texto não é somente de valor cristocêntrico, mas pode também oferecer outras bases de autoridade. O povo judeu antes de Cristo foi de especial importância; permanece da mesma forma hoje. Finalmente, uma crítica maior é apresentada aos de outras crenças, no que se refere a ambos os Testamentos serem considerados o local da verdade religiosa normativa. Em quarto lugar, se o AT é somente um símbolo alegórico, o texto pode oferecer pouco mais do que mitos ou fábulas de outras culturas às categorias apresentadas acima. Três pontos de natureza teológica ainda mais fundamental devem ser notados para uma questão de conclusão. Primeiro, o inter-relacionamento dos Testamentos aponta para o progresso da revelação. Jesus Cristo representa o ápice da verdade religiosa (Hb 1.1-3). Ele é o meio da unidade com Deus. Como Deus, ele é também nosso fim. Entretanto, se a revelação anterior é melhor compreendida como sendo uma linha de desenvolvimento ou uma reunião de momentos preditivos anterior à finalização da revelação em Jesus Cristo, esse é um assunto de contínuo debate. Em segundo lugar, as perspectivas escatológicas atuais são derivativas de como essa questão é abordada. Pode-se dizer que na história da igreja são conhecidos dois caminhos de Deus. Um enfatiza o movimento horizontal ao longo do tempo. Quanto mais adiante estivermos na história, mais perto estamos, em certo sentido, de Deus. O outro acentua o movimento vertical. Qualquer um, em qualquer ponto da história, está de igual modo perto de Deus por meio da visão mística ou espiritual. Esses dois movimentos não precisam ser mutuamente exclusivos. Finalmente, como ponderar a revelação anterior continua a ser um tema de debate à medida que a igreja busca cumprir seu mandato missiológico. O AT pode ser visto como revelação fora de uso, não mais aplicável ao desafio social profético, à santidade pessoal ou para orientação em relação aos de outras crenças. Poucos grupos são consistentes ao tratar desses assuntos. A Bíblia, o livro que une a igreja, frequentemente a divide.38 34