Seminário para Juízes de Direito, sobre Direito Comunitário e Nacional da Concorrência, Tomar, 13 de Janeiro de 2006 Sobre os Fundamentos do Direito e Economia da Concorrência Abel M. Mateus Presidente da Autoridade da Concorrência Professor da Universidade Nova de Lisboa 1 Sendo a democracia o sistema de governação ideal de um país/nação, e a economia de mercado o sistema económico mais eficiente que se conhece, é evidente que o funcionamento da concorrência, como mecanismo que faz accionar a economia de mercado, é fundamental para a eficiência da nossa sociedade. Poderão então colocar-se algumas questões. Porque é necessária a “regulação da concorrência”? Qual a sua importância no ordenamento jurídico português? Será o direito da concorrência uma parte do direito público ou privado? Deverá apenas relevar das relações comerciais entre empresas? Analisados os argumentos económicos é então fácil esclarecer alguns aspectos jurídicos: a preservação e promoção da concorrência é um bem público que suporta o funcionamento da economia de mercado e mesmo a própria democracia. É, pois, uma parte integrante do direito público. Neste caso, a sua avaliação é sempre feita em termos do seu impacto no bem-estar dos consumidores e social, assim como na preservação da própria concorrência. Porém, os comportamentos dos agentes económicos (empresas ou Estado) têm também efeitos na esfera privada das outras empresas, pelo que deve ser objecto da litigação na esfera privada. O direito da concorrência é um dos ramos fundamentais do Direito Comunitário. Portugal, como país membro da União Europeia, cedeu parte da sua soberania para a esfera comunitária. Daí, o primado do direito comunitário da concorrência sobre as leis nacionais. O Regulamento (CE) 1/2003 que descentraliza as funções da Comissão nesta área para as Autoridades Nacionais da Concorrência e Tribunais Nacionais constitui uma landmark na arquitectura da aplicação das leis da concorrência. Contudo, a nível do processo continua a vigorar o regime do direito adjectivo nacional, pelo que se colocam importantes problemas de harmonização da implementação e aplicação da lei não só entre os países da União, como entre as práticas da Comissão e de cada um dos países membros. 1 Agradeço o apoio e comentários do Eng. Eduardo Lopes Rodrigues e Drs. Miguel Moura e Silva e Miguel Mendes Pereira. 1 Finalmente vamos abordar o conteúdo das leis da concorrência, os fundamentos da existência de uma Autoridade da Concorrência e o seu papel dentro no quadro institucional, não deixando de levantar algumas questões que requerem reflexão e aperfeiçoamento futuro. 1. A concorrência como fundamento da democracia económica Uma das principais, senão a maior realização do sec. XX foi a aceitação quase universal da democracia como modelo ideal de funcionamento do sistema político. Segundo R. Dahl, um dos maiores cientistas políticos dos nossos tempos, a democracia (do grego (δηµοκρατία (demokratia), δηµος (demos) a “regra/governo do povo” ) é um regime que proporciona oportunidades para: (i) uma efectiva participação, (ii) igualdade na votação, (iii) obtenção de informação sobre as alternativas e consequências das políticas, (iv) exercício do controle sobre a “agenda”, (v) inclusão (dos adultos)2. Em termos mais específicos, e clarificando os termos institucionais, democracia é o sistema político baseado no respeito pelas liberdades individuais, é um regime constitucional, com partidos políticos e associações livremente estabelecidos, em que existem três ramos de poder – executivo, legislativo e judicial – com “checks and balances” (equilíbrio de poderes) entre si, em que existe liberdade de expressão e em que os órgãos que decidem da política são sujeitos a eleições periódicas e livres por todos os cidadãos, dentro de um Estado de Direito com regra da maioria mas respeito pelas minorias. A ideia de democracia, nascida na antiga Grécia, há mais de dois milénios, teve uma longa gestação, tendo emergido como sistema de governação depois de inúmeras contribuições desde a Magna Carta de 1215, às Revoluções francesa e americana do séc. XVIII, ao alargamento da votação na Europa e América do Norte no séc. XIX. Mas foi apenas no séc. XX que a ideia de democracia, e sobretudo depois da derrota das ditaduras, se afirmou como uma ideia universal. Abandonou-se a teoria segundo a qual teriam de existir condições prévias para um país “estivesse preparado para uma democracia” em favor da teoria de que um país se desenvolve através da democracia.3 Na democracia existe para todos os cidadãos e mesmo órgãos de governo a limitação do seu poder (aboliu-se o poder absoluto), e nos órgãos que exercem o poder a responsabilização pelos seus actos. Esta limitação do poder estabelece-se, entre outros, pelos seguintes mecanismos: a cada cidadão um voto, multiplicidade de partidos e associações, e controle constitucional entre os órgãos de soberania. Ora, não pode existir limitação do poder político sem limitação do poder económico, pois o substracto do poder político é em grande parte o poder económico. Daí que seja uma condição necessária para o funcionamento da democracia económica o funcionamento eficaz e equilibrado da concorrência. Vejamos agora os fundamentos económicos da concorrência. O que é a concorrência? É o mecanismo básico de funcionamento da economia de mercado. É o mecanismo em que cada empresa decide autonomamente das suas concorrentes as variáveis sob o seu controlo, tais como preços, quantidades, investimentos, mercados geográficos e de clientes, actividades de marketing, de forma a maximizar o lucro dessa mesma empresa. Através deste mecanismo dá-se a descentralização das decisões de produção, investimento e consumo dos diversos produtos e serviços que satisfazem as necessidades humanas, segundo a alternativa mais eficiente, tendo em conta a restrição da escassez de recursos. 2 3 On Democracy, Yale University Press, 1998. Amartya Sem, Democracy as a Universal Value”, Journal of Democracy 10.3 (1999) 3-17. 2 2. A concorrência como fundamento da economia de mercado O que é a concorrência? Desde a escola primária que aprendemos a concorrer. Quando estudamos para aprender não só o fazemos pela “sede de aprender” como também pela rivalidade que se estabelece com os outros: o ser melhor que os outros.4 O mesmo tipo de relação se estabelece nas competições desportivas. E seja na escola como no jogo existem regras. O professor ensina-nos que não se pode copiar, que o teste tem uma duração fixa, etc. As regras do jogo são estabelecidas a priori e existe em muitos casos um árbitro para verificar se elas são seguidas ou avaliar do seu julgamento (por exemplo, o árbitro no futebol tem que avaliar se numa dada situação se deu o fora de jogo ou não). O fenómeno da competição é a concorrência, as regras do jogo são as leis da concorrência estabelecidas pelo poder legislativo e o árbitro são as autoridades da concorrência (Autoridade Nacional da Concorrência e Tribunais). A moderna teoria do equilíbrio geral duma economia de Arrow-Debreu prova que uma economia em que actuam as famílias que maximizam a sua utilidade dada a restrição orçamental, em que existe uma multiplicidade de empresas a actuar em concorrência e que maximizam o lucro dada a tecnologia, e em que existe um Estado que produz bens públicos que maximiza o bem-estar social tem um equilíbrio que é eficiente5. Mas mais ainda, este equilíbrio é um “óptimo de Pareto”6. Note-se que dissemos a mais eficiente, mas pode não ser a mais equitativa, em termos de distribuição de riqueza, o que obriga o Estado a intervir de forma a assegurar a distribuição compatível com os objectivos de igualdade de cada sociedade. Visto agora de uma forma inversa. É possível concretizar um óptimo de Pareto através da descentralização das decisões dos agentes económicos, em concorrência e através do mecanismo do mercado. Durante muito tempo discutiu-se se este óptimo de Pareto não se poderia também atingir através de uma economia com meios de produção colectivizados e planeamento central com algum tipo de descentralização a nível de empresas. Como as diferentes experiências de economia socialista demonstraram na prática, e Herbert Simon e Hayek demonstraram teoricamente, existem problemas insurmontáveis de incentivos, organizacionais e de tratamento da informação que acabam por tornar estes sistemas muito menos eficientes. Por conseguinte, a economia de mercado é o sistema económico mais eficiente que conhecemos, e que hoje é universalmente aceite pela maioria dos Estados. Porém, como ficou claro na definição do modelo de equilíbrio geral, a concorrência é o mecanismo básico de funcionamento da economia de mercado. O mecanismo do mercado que funciona através da concorrência pode dizer-se que foi descoberto teoricamente por Adam Smith na famosa descrição da “mão invisível”. É através 4 Mas também aprendemos a cooperar: A cooperação num exame é proibida, mas é admitida entre os membros de uma equipe de trabalho. Por exemplo, numa corrida de veleiros, as equipas de cada veleiro cooperam entre si, mas concorrem umas com as outras para vencer a corrida. Também os trabalhadores de uma empresa cooperam entre si através da divisão de tarefas dentro da empresa (embora concorram em termos de performance nas suas respectivas tarefas) mas concorrem com as restantes empresas do mercado em que se situam. 5 Diz-se que uma economia é eficiente, se dados os recursos primários não é possível aumentar a produção de um bem sem reduzir a de um outro. Numa perspectiva dinâmica esta regra exige que só se realizem projectos de investimento com rentabilidade superior ao custo do capital. Esta verdade já demonstrada por Hicks tem hoje difícil compreensão entre alguns círculos políticos. 6 Afectação de recursos em que não é possível aumentar a utilidade de uma pessoa sem diminuir a de uma outra. 3 da concorrência que as empresas procuram baixar preços e melhorar qualidade ou serviços aos clientes/consumidores de forma a aumentar o seu lucro. Este processo leva à redução dos custos, melhoria das técnicas ou à estratégia de expansão em novos mercados. É assim também o incentivo principal para a inovação e progresso técnico.7 Assim como o paradigma ideal dos cientistas políticos é a democracia, o paradigma ideal dos economistas é a concorrência perfeita. Por serem modelos ideias não quer dizer que os abandonemos, antes constituem modelos normativos que utilizamos na aferição das políticas reais. A concorrência perfeita é um mercado em que existe um grande número de empresas, e em que nenhuma tem poder para manipular (influenciar) o preço de equilíbrio, sem incerteza e com informação perfeita. Nesta situação, a empresa observa as condições de mercado e toma as suas decisões. O lucro anormal é eliminado e prevalece a situação em que o preço é igual ao custo marginal. Qualquer lucro anormal será imediatamente eliminado pela entrada de novas empresas. Este modelo existe de forma aproximada numa série de mercados, mas há muitos mercados em que as curvas de custos em comparação com a procura não permitem a existência senão de um pequeno número de empresas. Neste caso a manutenção de um equilíbrio em que o preço seja próximo do custo marginal (p.ex. modelo à la Bertrand) exige que não existam barreiras à entrada. A teoria de Baumol, Panzar e Willig, que surgiu como reacção ao break-up da AT&T afirmou a importância das barreiras à entrada (contestabilidade dos mercados) na análise da concorrência. Se estas não existissem, então os lucros anormais num dado mercado atrairiam imediatamente novas empresas que os eliminariam. Um monopólio estaria sujeito a essa ameaça de entrada, pelo que este reduziria os lucros anormais para evitar essa entrada, mesmo que a entrada fosse temporária. É evidente que mais uma vez esta teoria tem limitações porque em muitos sectores existem sunk-costs8 ou custos irreversíveis que as empresas têm que incorrer para entrar no mercado e que não conseguem recuperar ao sair. Mesmo assim, existem mercados com barreiras criadas pela lei ou regulamentação, que não são justificadas por qualquer outro objectivo, e que infligem pesados custos ao bem-estar social. O paradigma da Economia Industrial baseado na estrutura-comportamento-performance ou resultado tem demonstrado que uma maior concentração está associada a margens (mark-up) mais elevadas, e em geral a um menor nível de eficiência. Por outro lado, a teoria endógena dos mercados mostra que a existência de sunk-costs, devido, por exemplo, a investigação e desenvolvimento ou custos de marketing, pode justificar um maior nível de concentração. Poderemos ainda assim continuar a falar do modelo ideal de Arrow-Debreu? Sim, mas de uma forma aproximada. É necessário que os sectores onde exista concorrência imperfeita tenham funcionamento semelhante à concorrência perfeita ou em alternativa tenham uma expressão reduzida no total (sejam de medida nula), ou então estejam submetidos a regulação no caso dos monopólios naturais. 7 A única excepção que se conhece é a protecção atribuída pelas patentes ou propriedade intelectual para permitir a recuperação do investimento realizado ou permitir remunerar o trabalho associado a um talento raro, através de rendas de monopólio, e com delimitação no tempo. 8 Custos, que uma vez realizados, não se podem recurperar no futuro. 4 Mas a nível comunitário, a política da concorrência é instrumental para construir o mercado comum. De facto, o objectivo das Comunidades Europeias não é só construir um espaço em que existe liberdade de trocas como de movimento de bens e serviços, capitais e pessoas, como também criar condições similares para a actuação das empresas, qualquer que seja a sua localização. Não faria sentido que fugindo aos países em que uma dada concentração fosse proibida, as empresas pudessem constituir um monopólio noutro país que as permitisse para depois actuarem no mercado comunitário. Da mesma forma, duas ou mais empresas poderiam constituir um cartel num país onde ele fosse permitido (ou tolerado) para depois actuarem em prejuízo de todos os consumidores do mercado único.9 Numa economia de mercado deve haver liberdade das empresas definirem as suas estratégias, pelo que a intervenção estatal só deve existir enquanto essas estratégias têm um impacto líquido negativo sobre o bem-estar dos consumidores, o que só pode acontecer havendo poder de mercado. E como se avalia o bem-estar social? Na moderna teoria económica ordinalista do consumidor, é a liberdade e soberania do consumidor que determinam esse valor. 3. As falhas do mercado e a necessidade da regulação Os princípios dos Direitos do Homem ou os valores morais de uma sociedade são ingredientes básicos que não podem estar sujeitos ao funcionamento do mercado. Mais do que isso, são como que a “infra-estrutura” essencial para o funcionamento eficiente da actividade económica, na acepção de Arrow. Imaginemos como poderia funcionar uma economia moderna se em cada transacção as partes estivessem sempre desconfiadas de a outra parte estar a actuar de má-fé. Além disso, é necessário garantir as “regras do jogo” dos sistemas político ou económico. É hoje demonstrado em qualquer curso de microeconomia que os monopólios reduzem o bemestar social, vendendo uma menor quantidade a um preço maior. Porém, basta a existência de algum poder de mercado, seja de uma só empresa ou por um conjunto de empresas, para que se dê a redução do bem-estar dos consumidores, que só pode ser positivo em termos de bem-estar social se a eficiência compensar. Daí que a política da concorrência permita aumentar o bem-estar social, e ao prevenir a constituição de agrupamentos de empresas ou grandes empresas que possam abusar do seu poder económico não só para “impor barreiras à entrada” por práticas predatórias ou cartelização, também contribui para a democracia económica. Por estas razões a primeira regulação que existiu foi a política anti-trust nos EUA, em finais do sec. XIX, e que hoje se espalhou por mais de uma centena e meia de países.10 A regulação sectorial pode dizer-se que surgiu, a nível federal, com o Public 9 A liberdade de concorrência ocupa assim uma posição central no sistema de economia de mercado criado pelo Tratado CE. Com a liberdade de circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais, é um dos elementos constitutivos do mercado interno (n.º 2 do artigo 7º-A) e constitui, além disso, uma condição essencial para a realização dos objectivos gerais do Tratado (artigo 2º). Os fundadores da Comunidade adoptaram assim as disposições necessárias para garantir o bom funcionamento do mecanismo de mercado. A alínea g) do artigo 3º do Tratado encarrega a Comunidade de criar um regime que garanta que a concorrência não seja falseada no mercado interno. As principais características deste regime encontram-se consagradas no próprio Tratado. São as regras de concorrência. Trata-se de um conjunto de disposições jurídicas, destinadas tanto às empresas como aos Estados-membros, e que proíbem a ambos a tomada de certas medidas que prejudiquem a concorrência no mercado comum e no comércio intracomunitário. Comissão Europeia, DG COMP, 2000 – Aplicação do Direito de Concorrência pelos Tribunais Nacionais 10 Mesmo a China tem em fase de preparação uma lei da concorrência. 5 Utilities Holding Company Act de 1935 e o Natural Gás Act de 1938 para controlar as restrições verticais, horizontais e geográficas e assegurar que as utilities não fugiam à regulação estatal já existente. De facto, enquanto que em reacção à Grande Depressão a Europa caminha no sentido da estatização da actividade económica, os EUA acentuam a regulação. Mas a moderna teoria da regulação económica só surgiu nos anos 1970 também nos EUA com Alfred Khan. De facto, não existe nenhum caso teórico em que se possa dizer que existe contradição entre a política da concorrência e a política industrial de um governo. Daí que se afirme que a melhor política industrial é a política da concorrência.11 Mas a eficiência do mercado tem limites. Existem falhas do mercado no caso da existência de externalidades positivas ou negativas, na assimetria de informação e em mercados afectados pela incerteza. Esta é a génese da criação dos organismos reguladores. Estes são hoje parte essencial das democracias modernas, e que têm subido de relevância há medida que o Estado tem diminuído a sua intervenção directa no mercado através do movimento de privatizações. Hoje ninguém contesta que é necessário regular os monopólios naturais (privados). É o caso dos sistemas de transporte e distribuição de energias, gás e água, sectores em que existem redes tal como nas telecomunicações e transportes. É necessária regulação para o ambiente.12 É necessária regulação para a comunicação social, não só para assegurar diversidade política, social e cultural,13 como também para assegurar a liberdade de expressão e para preservar a reputação e os valores culturais de uma sociedade. Outra regulação fundamental é a do sector financeiro, onde a assimetria de informação, a selecção adversa e o moral hazard típico da relação creditícia levam à necessidade de um dos mais apertados sistemas de regulação: bancos, seguros e mercados de capitais. Quais devem ser as características institucionais óptimas de um regulador? Se tomarmos o paradigma do banco central que é um dos reguladores com maiores pergaminhos históricos, sobretudo como executor da política monetária, deve ser independente, ter uma missão específica (inflação efectiva nula) e ser avaliado de acordo com a realização desse objectivo. 11 É frequente ouvirmos argumentos no sentido de uma política de concorrência laxista em relação a grandes empresas em função da composição nacional das suas estruturas accionistas. A prioridade deveria então ser a de proteger os “campeões nacionais” que benevolamente aplicariam os lucros supranormais obtidos no mercado nacional na sua expansão em mercados internacionais. Ora além de assim se permitir uma verdadeira tributação, à margem da lei e a favor de interesses de grupo, dos consumidores nacionais, em clara ofensa aos valores da nossa Constituição e do Tratado de Roma, sucede que, na óptica dominante na moderna ciência económica, a melhor forma de assegurar a competitividade internacional das empresas de um determinado país consiste em submetê-las ao estímulo da concorrência no seu mercado interno. Como refere Michael Porter, “Few roles of government are more important to the upgrading of an economy than ensuring vigorous domestic rivalry. Rivalry at home is not only uniquely important to fostering innovation, but benefits the national industry and cluster in many other ways (…) In fact, creating a dominant domestic competitor rarely results in international competitive advantage. Firms that do not have to compete at home rarely succeed abroad. Economies of scale are best gained through selling globally, not through dominating the home market” (o itálico é nosso). Ver Michael E. PORTER, The Competitive Advantage of Nations, Free Press, Nova Iorque, 1990, p. 662. 12 Deixamos de fora a regulamentação que deve existir para preservar a saúde pública, para o licenciamento industrial com vista a assegurar a segurança dos trabalhadores, etc.. 13 Assegurar um acesso (voice) equilibrado de todos os grupos, e a verdade dos factos reportados. 6 Também em muitos países o banco central regula o sector bancário, tendo como objectivo assegurar a estabilidade financeira do sistema. Assim, um regulador deve ser uma instituição com objectivos claros definidos na lei, com autonomia para poder executar a sua missão, e que deve reger-se por critérios estritamente técnicos, independentemente dos ciclos eleitorais. A sua independência perante o poder político está normalmente assegurada por nomeação dos seus dirigentes por um período fixo e com limite de cargo, e com direito de inamovibilidade. Em contrapartida, deve estar sujeito ao escrutínio público, nomeadamente do Parlamento e Tribunais. 4. A concorrência é um bem público “Competition is a public good, and society cannot expect the victims of anticompetitive conduct to protect themselves.”14 A concorrência é um bem constitucional. A Constituição da República Portuguesa estabelece como incumbência prioritária do Estado, no plano económico, “assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre empresas, a contrariar as formas de organização monopolista e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral”, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 81º. A regulação/defesa (melhor ainda a promoção) da concorrência promove o bem-estar dos consumidores, corrigindo as falhas de mercado decorrentes dos cartéis e outros acordos restritivos, bem como dos abusos de posição dominante e de dependência económica. Assim, a regulação da concorrência beneficia a sociedade no seu todo, em particular os consumidores. Porém, frequentemente esses benefícios estão tão disseminados que não surgem incentivos suficientes para que os lesados reajam a essas infracções. São aqui aplicáveis as mesmas considerações que motivam, do ponto de vista processual, a consagração das acções colectivas em matéria ambiental e de direito do consumo. Do mesmo modo que a democracia ou outros bens institucionais, a concorrência assume algumas características de um bem público: em especial, o facto de todos ganharem com ela. E, do facto desses benefícios se disseminarem pela comunidade faz com que a sua “produção” seja insuficiente: um consumidor lesado por um cartel que aumenta o preço do pão em 1 cêntimo dificilmente irá incorrer nos custos associados à perseguição de um hipotético cartel de padeiros.15 Mas quando consideramos os custos dessa restrição para a 14 Jonathan B. BAKER, “The Case for Antitrust Enforcement”, Journal of Economic Perspectives, vol. 17, n.º 4, 2003, p. 27. 15 O problema do free riding perpassa toda a regulação. Não existe nenhum incentivo para que um simples depositante pague a um auditor para acompanhar a gestão do banco, e se o fizesse todos os outros depositantes beneficiariam sem ter que pagar. Existe, pois, uma “produção insuficiente” de regulação. A Nova Zelândia fez a experiência de eliminar a supervisão do sistema financeiro por requisitos estritos de difusão de informação pelas empresas. Contudo, a experiência não durou muito tempo. Seria de supor que a publicação de informação sobre o balanço e contas de um banco, acompanhado de informação detalhada sobre os rácios prudenciais, acompanhados por agências de rating e por um mercado de capitais eficiente pudesse resolver o problema. Contudo, é possível demonstrar do ponto de vista teórico de que existe um forte incentivo para o banqueiro fazer aplicações de elevada rentabilidade mas que podem ter um risco superior ao que o depositante desejaria. Mais ainda, a situação financeira crítica pode ser “descoberta” demasiado tarde, e sabemos que nesta situação de crise se dá a “corrida aos bancos” que coloca problemas de risco sistémico. 7 sociedade no seu conjunto, facilmente identificamos prejuízos na ordem dos muitos milhões de euros. O direito da concorrência, sendo mais vasto que o direito da regulação, pois tem uma aplicação transversal à economia,16 na sua aplicação carece de se articular com aquele. O direito da regulação é também parte do direito público pois destina-se a preservar um bem público – o funcionamento eficiente de um mercado – em benefício dos utentes ou consumidores desse produto ou serviço. Por exemplo, no caso do monopólio natural, que abandonado a si próprio levaria a uma solução ineficiente, o regulador procura aproximar o equilíbrio do custo marginal de longo prazo, sujeito à restrição de cobertura financeira dos custos fixos (ou outra regra semelhante). Porque é que é preferível a concorrência à regulação? Devido a assimetrias de informação entre o regulador e o regulado, ou ao problema da captura do regulador pelo regulado, existindo condições estruturais concorrenciais, a concorrência é sempre superior à regulação. A existência de regras de concorrência e a criação de autoridades independentes incumbidas da missão de perseguir essas práticas visa resolver esses problemas de coordenação. Como ficou demonstrado acima, a concorrência é não só o mecanismo fundamental de funcionamento da economia de mercado, como a sua preservação exige a intervenção do Estado. Mas não é só em termos de direito objectivo que as leis da concorrência são parte do direito público. Tal também se verifica no aspecto subjectivo, ao integrarem um conjunto de normas sancionatórias que são aplicadas por entidades com autoridade pública. Mais ainda, como também sabemos, a nível comunitário, a política da concorrência é instrumental para construir o mercado comum. E este objectivo comunitário, que é prosseguido na prática pela DG-Comp e Tribunais Comunitários, o que é fundamentalmente um objectivo de natureza pública, realiza-se na esfera privada quando os actos têm como destinatários as empresas e, na esfera pública, quando os actos têm como destinatários os próprios Estados Membros. A Comissão intervém na esfera das diferentes empresas para assegurar a realização daquele objectivo. 5. A concorrência na esfera do direito privado Sendo a concorrência um bem público e integrando-se as regras que a protegem na esfera da ordem pública económica, também os institutos do direito privado são chamados a assegurar a sua salvaguarda. Numa ordem caracterizada pelo respeito do princípio do Estado de Direito, é essencial que aqueles que atentam contra o normal funcionamento do mercado sejam chamados a 16 É interessante que a Nova Zelândia tentou recentemente substituir a regulação sectorial pelo controle do mercado. Porém, nunca aboliu a regulação da concorrência. Por outro lado, à medida que um sector é privatizado e se estabelece um nível aceitável de concorrência, este deixa de estar sujeito a regulação sectorial e passa a estar apenas sujeito às leis da concorrência. Contraste-se o mercado da geração de energia, onde pode existir um número suficiente (o modelo de Cournot estabelece um mínimo de 4 a 5) de empresas a concorrer com o mercado do transporte e distribuição de electricidade em alta tensão que é um monopólio natural e assim terá de continuar sujeito a regulação. O que a Comissão Europeia tem feito nos diferentes sectores é procurar separar o sector em segmentos em que possa existir concorrência de outros em que exista regulação de forma a que aquela avance o mais possível tornando os mercados mais eficientes. 8 responder pelos danos causados. À tutela sancionatória que compete à AdC, sob o controlo dos tribunais, acresce a tutela compensatória, esta última competência dos tribunais comuns. Insere-se nessa linha a referência do Regulamento n.º 1/2003 ao papel dos tribunais nacionais, sublinhando a sua complementaridade face às atribuições das autoridades nacionais de concorrência.17 Considero particularmente felizes e claras as afirmações da mais alta instância judicial comunitária num caso em que, a pedido de um tribunal nacional, foi tratada a questão da responsabilidade civil por danos causados na sequência de uma violação das regras comunitárias da concorrência: 26. A plena eficácia do artigo [81.°] do Tratado e, em particular, o efeito útil da proibição enunciada no seu n.° 1 seriam postos em causa se não fosse possível a qualquer pessoa reclamar reparação do prejuízo que lhe houvesse sido causado por um contrato ou um comportamento susceptível de restringir ou falsear o jogo da concorrência. 27. Com efeito, um direito deste tipo reforça o carácter operacional das regras comunitárias da concorrência e é de natureza a desencorajar acordos ou práticas, frequentemente disfarçados, capazes de restringir ou falsear o jogo da concorrência. Nesta perspectiva, as acções de indemnização por perdas e danos junto dos órgãos jurisdicionais nacionais são susceptíveis de contribuir substancialmente para a manutenção de uma concorrência efectiva na Comunidade.18 Iguais consequências devem resultar quanto às práticas que infrinjam os artigos 4.º, 6.º ou 7.º da Lei n.º 18/2003, como há muito reconhecem dois dos mais prestigiados civilistas portugueses.19 Em Dezembro de 2005, a Comissão Europeia submeteu a discussão pública um Livro Verde sobre Acções de indemnização devido à violação das regras comunitárias no domínio antitrust, onde são indicadas várias opções que permitirão aumentar a protecção dos interesses das vítimas das práticas anticoncorrenciais, em particular os consumidores, principais prejudicados pelas práticas de cartel que têm sido vigorosamente reprimidas a nível internacional e, mais recentemente, em Portugal.20 Não se trata aqui de criar incentivos perversos e fomentadores de uma litigiosidade excessiva mas antes de garantir uma justiça efectiva, reparação dos danos e, questão mais controversa em que será fundamental ouvir a opinião dos meios judiciários, a introdução de uma função sancionatória autónoma, a meio caminho do sistema norte-americano de treble damages. 17 Considerando 7 do Regulamento n.º 1/2003: “Os tribunais nacionais desempenham uma função essencial na aplicação das regras comunitárias de concorrência. Ao deliberarem sobre os litígios entre particulares, salvaguardam os direitos subjectivos decorrentes do direito comunitário, nomeadamente através da concessão de indemnizações às vítimas das infracções.” Ver ainda o artigo 15.º do mesmo diploma, bem como a Comunicação da Comissão sobre a cooperação com os tribunais nacionais, J.O. C 101, de 27.4.2004, p. 54. 18 Acórdão do Tribunal de Justiça de 20.9.2001, Courage c. Crehan, Proc. C-453/99, Colect. 2001, p. I-6297. 19 Ver Pires de LIMA e Antunes VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 472, defendendo que as normas de defesa da concorrência se incluem entre aquelas que, “tutelando certos interesses públicos, visam ao mesmo tempo proteger determinados interesses particulares”. 20 Disponível em versão electrónica em: http://europa.eu.int/comm/competition/antitrust/others/actions_for_damages/gp_pt.pdf . A consulta pública decorre até 21.4.2006. 9 Estou certo que, do ponto de vista substantivo, o sistema judicial português já está em condições de assegurar esta tutela, pelo menos na medida em que dela se pretenda exclusivamente a compensação dos lesados; tal não prejudica a importância de uma reflexão em torno de alguns problemas processuais, caso das acções colectivas em defesa dos consumidores ou do efeito probatório das decisões da Comissão Europeia e das autoridades nacionais da concorrência. A Autoridade da Concorrência irá oportunamente procurar propiciar essa discussão em Portugal. Atenta a importância de que hoje se revestem as regras de concorrência para uma economia competitiva e uma sociedade justa, facilmente se compreende que os valores por elas tutelados não possam ser postergados por um qualquer acordo entre litigantes privados, o qual, de resto, poderá infringir, ele próprio, essas mesmas regras.21 É esse o sentido de outro importante aresto do Tribunal do Luxemburgo, segundo o qual, 41. […]um órgão jurisdicional nacional chamado a conhecer de um pedido de anulação de uma decisão arbitral deve deferir tal pedido quando entenda que essa decisão é efectivamente contrária ao artigo [81.º] do Tratado, desde que deva, segundo as suas normas processuais internas, deferir um pedido de anulação baseado na violação de normas nacionais de ordem pública.22 Daqui resulta que, por maioria de razão, o interesse público que subjaz à intervenção da Autoridade da Concorrência não é susceptível de arbitragem, a par com qualquer interesse privado, dada a imperatividade da Lei n.º 18/2003. Por outras palavras, a intervenção sancionatória da Autoridade da Concorrência, fundada na defesa da legalidade e da ordem pública económica, deve sim ser controlada pelos tribunais pelas vias de recurso adequadas e previstas naquela lei. 6. A primazia do Direito Comunitário. A relação entre o Direito Comunitário e o Direito Processual Nacional O Tratado da União Europeia estabeleceu uma Ordem Jurídica Comunitária autónoma (não derivada dos direitos nacionais) que se impõe às dos Estados Membros.23 São sobretudo três os elementos a saber que estão claramente presentes na ordem jurídica comunitária24 - o primado (acórdãos COSTA/ENEL e SIMMENTHAL), - o efeito directo (acórdão VAN GEND e LOOS), - a passagem de competências anteriormente nacionais a exclusivamente comunitárias após a sua alocação prévia, como as regras de concorrência aplicáveis às Ajudas de Estado. Importa contudo sublinhar que nenhum destes princípios está expressamente formulado nos Tratados, mas resultaram da jurisprudência dos Tribunais Comunitários, como está expresso no acórdão Bosch 25,26. 21 O que acarretará a nulidade do acordo, nos termos do n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 18/2003. Acórdão do Tribunal de Justiça de 1.6.1999, Eco Swiss c. Benetton, Proc. C-126/97, Colect. 1999, p. I-3055. 23 Ver, por exemplo, Rodrigues, E. Lopes. O Essencial da Política da Concorrência. INA, 2005. 24 E, o Tribunal de Justiça tem sido pródigo em confirmar a sua existência, por exemplo, nos Acórdãos referidos, COSTA ENEL, Ac. 15/7/64, proc. 6/64, Rec. 1964 p.1141 e seg.; SIMMENTHAL, Ac. 9/3/78, proc. 106/77, Rec. 1978, p.629 e ss; Parecer 1/61 de 14/12/91, Rec. 1991, p. I-6079 e ss. 22 10 5. Les articles 88 et 89 du Traité, qui confèrent des compétences respectivement aux autorités nationales et à la Commission pour l’application de l’article 85, présupposent l’applicabilité de cette disposition dés l’entrée en vigueur du traité. 6. Il serait contraire au principe général de la securité juridique – règle de droit à respecter dans l’application du traité – de frapper de nullité de plein droit certains accords avant même qu’il ait été possible de savoir, donc de constater, à quels accords s’applique l’ensemble de l’article 85. 7. Jusqu’à l’entrée en vigueur du règlement, visé à l’article 87, ensemble l’article 85, alinéa 3, du traité, l’article 85, alinéa 2, de celui-ci ne sort effets qu’à l’égard des décisions et accords au sujet desquels les autorités des États membres ont expressément décidé, sur la base de l’article 88 du traité, qu’ils tombent sous le coup des dispositions de l’alinéa premier de l’article 85 et qu’ils ne peuvent bénéficier de la déclaration visée à l’alinéa 3 ou à l’égard desquels la Commission a constaté, par décision prise en vertu de l’article 89, alinéa 2, qu’ils sont contraires à l’article 85. 8. Les accords et décisions qui tombent sous l’interdiction de l’article 85, alinéa 1, et qui existent lors de l’entrée en vigueur du premier règlement d’application des articles 85 et 86 du traité, ne doivent être considérés comme nuls de plein droit, s’ils ont été notifiés en temps utile conformément à l’article 5 du règlement, que pour autant que soit la Commission décide qu’ils ne sont susceptibles ni d’une décision prévue à l’article 85, alinéa 3, ni d’une application de l’article 7, alinéa 1, du règlement, soit que les autorités des États membres décident d’exercer elles-mêmes les pouvoirs que attribue l’article l’article 88 du traité, conjointement avec l’article 9 dudit règlement. 9. Les accords et décisions qui tombent sous l’interdiction de l’article 85º, alinéa 1, et qui, existant lors de l’entrée en vigueur du premier règlement d’aplication des articles 85 et 86 du traité, et ne relevant pas de l’article 5, alinéa 2, n’ont pas en temps utile été notifiés 25 Fazemos as duas citações em francês por ser a língua original do Tribunal. Texto em português segundo a tradução oficial: 5. Os artigos [84.º e 85.º] do Tratado que conferem competências respectivamente às autoridades nacionais e à Comissão para aplicação do artigo [81.º], pressupõem a aplicabilidade desta disposição desde a data de entrada em vigor do Tratado. 6. Seria contrário ao princípio geral da segurança jurídica – regra de direito a respeitar na aplicação do Tratado – considerar nulos alguns acordos mesmo antes de ter sido possível saber, e portanto de declarar, a que acordos se aplica o artigo [81.º] no seu conjunto. 7. Até à entrada em vigor do regulamento previsto no artigo [83.º] conjugado com o n.º 3 do artigo [81.º] do Tratado, o n.º 2 do artigo [81.º] apenas produz efeitos quanto aos acordos e decisões em relação aos quais as autoridades dos Estados-membros expressamente decidiram, com base no artigo [84.º] do Tratado, que caem na alçada do disposto no n.º 1 do artigo [81.º] e não podem beneficiar da declaração referida no n.º 3, ou que a Comissão, através de decisão tomada nos termos do n.º 2 do artigo [85.º], declarou contrários ao artigo [81.º]. 8. Os outros acordos e decisões, existentes à data de entrada em vigor do primeiro regulamento de execução dos artigos [81.º e 82.º] do Tratado, que são abrangidos pela proibição do n.º 1 do artigo [81.º] e que tenham sido notificados em tempo útil de acordo com o artigo 5.º deste regulamento, só devem ser considerados nulos quando a Comissão decidir que não são susceptíveis, nem de decisão nos termos do n.º 3 do artigo [81.º], nem de aplicação do n.º 1 do artigo 7.º do regulamento, ou ainda quando as autoridades dos Estados-membros decidirem exercer os poderes que lhes atribui o artigo [84.º] do Tratado, em conjugação com o artigo 9.º do referido regulamento. 9. Os acordos e decisões abrangidos pela proibição do n.º 1 do artigo [81.º] e que, apesar de existentes à data de entrada em vigor do primeiro regulamento de execução dos artigos [81.º e 82.º] do Tratado e de não estarem abrangidos pelo n.º 2 do artigo 5.º do regulamento, não tenham sido notificados em tempo útil em conformidade com o n.º 1 do mesmo artigo, são nulos a partir da data de entrada em vigor do regulamento. 26 Acórdão do Tribunal de Justiça de 6.4.1962, Bosch, Proc. 13/61, Rec. 1961 (citação da tradução oficial portuguesa do sumário). 11 conformément à l’article 5, alinéa 1, de ce règlement sont nuls de plein droit dès le moment de l’entrée en vigueur de ce règlement. Acresce que o princípio do primado da ordem jurídica comunitária sobre o direito interno dos Estados Membros, exige, por si só, a existência dos princípios da aplicabilidade directa dos Regulamentos (i.e., sem necessidade de serem vertidos nas ordens nacionais), e, ainda do seu efeito directo. De uma forma pragmática, o Tribunal de Justiça Europeu estabeleceu que o objectivo da criação de um mercado comum uniforme entre os Estados Membros seria prejudicado se as leis comunitárias fossem subordinadas às leis nacionais dos vários Estados. Assim, a validade de uma lei comunitária nunca pode ser aferida por referência a uma lei nacional Como consequência do princípio do primado, qualquer tribunal nacional deve aplicar o direito comunitário na sua integralidade, e isto implica proteger os direitos que aquele confere aos particulares, e, deve também ignorar ou afastar (desaplicar) quaisquer disposições do direito nacional que lhe sejam contrárias, sejam elas anteriores ou posteriores à norma comunitária em questão. Este aspecto é muito importante para a Política de Concorrência, pois permite o enforcement privado, no sentido de permitir que os particulares27 sejam indemnizados por violação das normas comunitárias de concorrência. O efeito directo é igualmente uma característica estruturante da ordem jurídica comunitária, repetidamente assumida pelo Tribunal de Justiça. Este princípio “procede da natureza das Comunidades”, e enfatiza o facto de que, quando os Estados Membros aceitaram criar um mercado comum que os envolvesse, estavam a aceitar que as suas regras se dirigem directamente aos particulares. Além disso, o preâmbulo do Tratado, ao referir que “para além dos Governos se dirige aos Povos” aponta no mesmo sentido.28 Este efeito traduz-se na criação de direitos na esfera dos particulares que os tribunais nacionais devem salvaguardar. Importa, contudo, diferenciar o efeito direito horizontal (que regula as relações entre os particulares) do efeito directo vertical (que regula as relações entre o Estado e os particulares)29 Vários especialistas consideram mesmo que o Tratado de Roma protagonizou uma real transferência de soberania quer em termos de capacidade de aplicação das regras de concorrência às empresas, quer aos próprios Estados Membros. De facto, há muitos anos que a Jurisprudência constante do Tribunal de Justiça sobretudo nos casos COSTA/ENEL, BOSCH, VAN GEND end LOOS pode ser interpretada como fundamentando um modelo de transferência de soberania para as Instâncias Comunitárias, e que essa transferência moldou aspectos determinantes da nova política de concorrência. Assim, por exemplo, do já citado Acórdão COSTA/ENEL, é importante reflectir sobre o seguinte excerto:30 excerto: 27 Acórdão s/ processo 92/7 . Simmenthal SpA c. Comissão (SIMMENTHAL II, col. 1979, p.777). O TJCE tem confirmado esta doutrina nos acórdãos referidos e, em muitos outros: VAN GEND en LOOS ac. 5/2/63, PROC. 26/62, Rec. 1963, p.1 e ss; VAN DUYN, ac. 4/12/74, proc. 41/74, Re. 1974, p. 1337 e ss.; FRANCOVICH, ac. 19/11/91, procs. C-6-9/90, Rec. 1991, p. I-5403 e ss. Para uma análise mais detalhada sobre o efeito directo ver JEAN-VICTOR LOIUS (1995) e ROBERT KOVAR (1984). 29 Acórdãos BRT c. SABAM (Processo 127/73), col. 1974, p.51; HOECHST c. COMISSAO (HOECHST II) (Processo T-10/89), col 1992, p. II-629; DELIMIT’IS (STERGIOS) c. HENNINGER BRAU AG. (Processo C 234/89), col 1991, p. I-953. 30 Tradução oficial: Diversamente dos tratados internacionais ordinários, o Tratado [CE] institui uma ordem jurídica própria que é integrada no sistema jurídico dos Estados-membros a partir da entrada em vigor do 28 12 A la différence dés traités internationaux ordinaires, le traité de la CEE a institué un ordre juridique propre intégré au système juridique des Etats Membres lors de l’entrée en vigueur du traité et qui s’impose a leur juridiction. En instituant une communauté de durée illimitée, dotée d’institutions propres, de la personnalité, de la capacité juridique, d’une capacité de représentation internationale et plus particulièrement de pouvoirs réels issus d’une limitation de compétence ou d’un transfert d’attributions des états a la communauté, ceux-ci ont limité leurs droits souverains et crée ainsi un corps de droit applicable a leurs ressortissants et a eux-mêmes. Cette intégration, au droit de chaque pays membre, de dispositions qui proviennent de sources communautaires et plus généralement les termes et l’esprit du traité, ont pour corollaire l’impossibilité pour les états de faire prevalir, contre un ordre juridique accepte par eux sur une base de réciprocité, une mesure unilatérale ultérieure qui ne saurait ainsi lui être opposable, le droit ne du traité issu d’une source autonome ne pouvant, en raison de sa nature spécifique originale se voie judiciairement opposer un texte interne quel qu’il soit sans perdre son caractère communautaire et sans que soit mise en cause la base juridique de la communauté elle-même. Le transfert opère par les États, de leur ordre juridique interne au profît de l’ordre juridique communautaire, des droits et obligations correspondant aux dispositions du traité entraîne donc une limitation définitive de leurs droits souverains.31 Já no que respeita ao Regime Processual desde cedo o TJE estabeleceu o Princípio da Autonomia dos Regimes Processuais nacionais. Segundo o Caso Rewe-Zentral v. Das Saarland, de 1976: “...Na ausência de regras comunitárias sobre o assunto, serão os sistemas legais nacionais de cada Estado Membro que designam os tribunais que têm jurisdição sobre este e as regras processuais que governam as leis que se destinam a assegurar a protecção dos direitos dos cidadãos que advêm do efeito directo da lei da Comunidade....” Tratado e que se impõe aos seus órgãos jurisdicionais nacionais. Efectivamente, ao instituírem uma Comunidade de duração ilimitada, dotada de instituições próprias, de personalidade, de capacidade jurídica, de capacidade de representação internacional e, mais especialmente, de poderes reais resultantes de uma limitação de competências ou de uma transferência de atribuições dos Estados para a Comunidade, estes limitaram, ainda que em domínios restritos, os seus direitos soberanos e criaram, assim, um corpo de normas aplicável aos seus nacionais e a si próprios. Esta integração, no direito de cada Estado-membro, de disposições provenientes de fonte comunitária e, mais geralmente, os termos e o espírito do Tratado têm por corolário a impossibilidade, para os Estados, de fazerem prevalecer, sobre uma ordem jurídica por eles aceite numa base de reciprocidade, uma medida unilateral posterior que não se lhe pode opor. […] Resulta do conjunto destes elementos que ao direito emergente do Tratado, emanado de uma fonte autónoma, em virtude da sua natureza orginária específica, não pode ser oposto em juízo um texto interno, qualquer que seja, sem que perca a sua natureza comunitária e sem que sejam postos em causa os fundamentos jurídicos da própria Comunidade. A transferência efectuada pelos Estados, da sua ordem jurídica interna em benefício da ordem jurídica comunitária, dos direitos e obrigações correspondentes às disposições do Tratado, implica, pois, uma limitação definitiva dos seus direitos soberanos, sobre a qual não pode prevalecer um acto unilateral ulterior incompatível com o conceito de Comunidade. 31 Sublinhado nosso. 13 Mesmo assim, as qualificações de Equivalência e Eficácia das leis tornaram-se importantes instrumentos doutrinais que obrigam os tribunais nacionais a fazer uma análise casuística das regras nacionais.32 Estes devem proceder a uma análise de proporcionalidade específica a cada contexto perante leis nacionais com cláusulas restritivas e a desaplicar estas cláusulas quando for necessário para que a lei comunitária produza o seu efeito directo.33 Este tem sido um tema pouco abordado entre nós. De facto, deu-se uma importante viragem na doutrina estabelecida pelo Tribunal de Justiça Europeu. A orientação inicial de não discriminação (equivalência) na aplicação das leis comunitária e nacional, e de que o exercício desses direitos comunitários não poderia ser de aplicação impossível na prática (possibilidade prática) foi sendo substituída pelos requisitos mais positivos de que os direitos comunitários deveriam gozar de protecção adequada e efectiva. Estes princípios começaram a ser desenvolvidos em FACTORTAME I, EMMOTT e METTALGESELLSCHAFT, e dos casos mais recentes PETERBROECK e VAN SCHIJNDEL. Nestes o TJE articulou a obrigação clara dos tribunais nacionais, na base do art. 10 do Tratado de pôr de lado as regras nacionais obstrutivas que precludiam a aplicação dos remédios apropriados perante a lei comunitária. E, como vimos, no caso COURAGE de 2001 o TJE estabeleceu que um indivíduo tem o direito de colocar uma acção e receber compensação por outra parte que tenha violado o artigo 81.º do Tratado, junto dos tribunais nacionais. Esta casuística limita claramente a autonomia do direito processual nacional, embora obrigue a uma análise do caso específico e não deve ser posto a um nível abstracto.34 7. As três áreas da actuação das regras da concorrência As três áreas fundamentais de actuação das regras da concorrência, seja do regime anti-trust americano ou do Tratado das Comunidades Europeias, são: (i) proibição dos cartéis e outros acordos restritivos da concorrência, (ii) proibição do abuso de posição dominante, e (iii) controle ex-ante do poder de mercado através do controle das concentrações. Também faz parte desta actuação da Comissão o controle das Ajudas de Estado. Vejamos os dois artigos fundamentais da política de concorrência (anti-trust) que respeitam a (i) e (ii). A proibição dos cartéis e outros acordos e práticas concertadas entre empresas são proibidos pelo artigo 81 do Tratado (CE): 32 Wouter Wils, na sua intervenção na “I Conferência de Lisboa sobre Economia e Direito da Concorrência”, organizada pela AdC a 3 e 4 de Novembro de 2005, escreve: “In application of the principles of effectiveness and of equivalence – general principles of Community law, developed in the case-law of the Court of Justice and applicable to all instances where Community law entrusts Member States with a role in the enforcement of Community law. See i.a. Judgments of the Court of Justice of 21 September 1989 in Case 68/88, Commission v Greece [1989] ECR 2965, paras 23-25, of 15 September 1998 in Case C-231/96, Edis [1998] ECR I-4990, paras 34 and 36-37, and of 18 October 2001 in Case C-354/99, Commission v Ireland [2001] ECR I-7657, para 46; see further, for a detailed and very interesting discussion of the application of the principles of equivalence and effectiveness in the application of Articles 81 and 82 EC: P. Oliver, ‘Le règlement 1/2003 et les principes d’efficacité et d’équivalence’, forthcoming in Cahiers de droit européen (Fall 2005). If a Member State were to fail to enforce the Community Law, the Commission could bring an action against that Member State before the Court of Justice under Article 226 EC.” 33 Caso do Consorzio Industrie Fiammiferi de 2003. 34 Consultar sobre esta matéria o capítulo 6 de P. Craig e G. De Burca, EU Law. Text, Cases and Materials. Oxford U. Press, 3ª. Edição, 2003. 14 Artigo 81º 1. São incompatíveis com o mercado comum e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum, designadamente as que consistam em: a) Fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transacção; b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos; c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento; d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos. 2. São nulos os acordos ou decisões proibidos pelo presente artigo. 3. As disposições no n.o 1 podem, todavia, ser declaradas inaplicáveis: - a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas, - a qualquer decisão, ou categoria de decisões, de associações de empresas, e - a qualquer prática concertada, ou categoria de práticas concertadas que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou económico, contanto que aos utilizadores se reserve uma parte equitativa do lucro daí resultante, e que: a) Não imponham às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objectivos; b) Nem dêem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos produtos em causa. Os abusos de posição dominante são proibidos pelo artigo 82 do Tratado (CE): Artigo 82º 15 É incompatível com o mercado comum e proibido, na medida em que tal seja susceptível de afectar o comércio entre os Estados-Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado comum ou numa parte substancial deste. Estas práticas abusivas podem, nomeadamente, consistir em: a) Impor, de forma directa ou indirecta, preços de compra ou de venda ou outras condições de transacção não equitativas; b) Limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento técnico em prejuízo dos consumidores; c) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; d) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos. A terceira área de actuação é a de controlo das concentrações. Foi só em 1989, depois de mais de uma dezena de anos (a primeira proposta é de 1972) de negociações que a Comissão estabeleceu um regime de controle que curiosamente tinha já sido estabelecido em Portugal com o Decreto-Lei n.º 428/1988, introduzindo um regime obrigatório de notificação das concentrações, com vista a evitar que se formem monopólios ou situações de quasemonopólio que prejudiquem os consumidores. Desde logo, interessa estabelecer critérios de notificação que levem apenas os casos potencialmente restritivos da concorrência à Autoridade Nacional. Continua a haver uma divisão de trabalho entre a Comissão e as Autoridades Nacionais da Concorrência. Os casos que afectam o comércio entre países da Comunidade e que ultrapassem um volume de negócios de 150 milhões de euros no mercado da UE são analisados pela Comissão. A lei 18/2003 estabelece que estão sujeitas a notificação à Autoridade todas as operações em que haja alteração do controle da empresa: Artigo 9.º Notificação prévia 1. As operações de concentração de empresas estão sujeitas a notificação prévia quando preencham uma das seguintes condições: a) Em consequência da sua realização se crie ou se reforce uma quota superior a 30% no mercado nacional de determinado bem ou serviço, ou numa parte substancial deste; b) O conjunto das empresas participantes na operação de concentração tenha realizado em Portugal, no último exercício, um volume de negócios superior a 150 milhões de euros, líquidos dos impostos com este directamente relacionados, desde que o volume de negócios realizado individualmente em Portugal por, pelo menos, duas dessas empresas seja superior a dois milhões de euros. 16 2. As operações de concentração abrangidas pelo presente diploma devem ser notificadas à Autoridade no prazo de sete dias úteis após a conclusão do acordo ou, sendo caso disso, até à data da publicação do anúncio de uma oferta pública de aquisição ou de troca ou da aquisição de uma participação de controlo. As operações de concentração que não tiverem sido notificadas são nulas. Contudo, levantase o problema de saber como desfazer operações sobre as quais já decorreram alguns anos e o problema de ressarcimento de prejuízos de terceiros que decorreram daquela operação, não tendo esses terceiros conhecimento daquela falha. Também o critério da quota vem sendo abandonado pela maioria dos países, pois leva à necessidade de identificação prévia da estrutura do mercado, o que pode pôr problemas complicados na análise na fase de pré-notificação. 8. Porquê uma Autoridade da Concorrência? Numa economia de mercado e numa democracia económica as empresas devem ter liberdade de definirem as suas estratégias de negócio e actuarem de acordo com a estratégia de maximização do lucro que escolherem. Não cabe a um “regulador da concorrência” fazer micro-management dos mercados. Primeiro, porque não tem tanta informação como os agentes económicos directamente involvidos. Segundo, porque não pode prever nem simular o mercado de forma a determinar a estrutura óptima de funcionamento, até porque muitas vezes existem restrições ao óptimo, decorrentes de imperfeições da informação ou incerteza que levam a uma solução de segundo ou terceiro óptimo que é a única concretizável. O “regulador” deve ser sobretudo um árbitro que estabelece o level playing field e faz respeitar as regras da concorrência definidas pela lei. De facto, a missão da Autoridade da Concorrência, nos termos do artigo 1º. dos seus Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n. º 10/2003, de 18 de Janeiro, consiste em “assegurar a aplicação das regras de concorrência35 no respeito pelo princípio da economia de mercado e da livre concorrência, tendo em vista o funcionamento eficiente dos mercados, a repartição eficaz dos recursos e os interesses dos consumidores”. Assim, incumbe à Autoridade, segundo os seus Estatutos (Decreto-Lei n.º 10/2003) (artigo 6º): a) Velar pelo cumprimento das leis, regulamentos e decisões destinadas a promover a defesa da concorrência; b) Fomentar a adopção de práticas que promovam a concorrência e a generalização de uma cultura de concorrência junto dos agentes económicos e do público em geral; c) Difundir, em especial junto dos agentes económicos, as orientações consideradas relevantes para a política da concorrência; d) Acompanhar a actividade das autoridades de defesa da concorrência em outros países e estabelecer, com elas, e com os organismos comunitários e internacionais competentes, relações de cooperação; 35 Consagradas na Lei nº 18/2003, de 11 de Junho, que aprovou o Regime Jurídico da Concorrência 17 e) Promover a investigação em matéria de defesa da concorrência, desenvolvendo as iniciativas e estabelecendo os protocolos de associação ou de cooperação, com entidades públicas ou privadas, que se revelarem adequados para esse efeito; f) Contribuir para o aperfeiçoamento do sistema normativo português, em todos os domínios que possam afectar a livre concorrência, por sua iniciativa ou a pedido do Governo; g) Exercer todas as competências que o direito comunitário confira às autoridades administrativas nacionais, no domínio das regras de concorrência aplicáveis às empresas; h) Assegurar a representação técnica do Estado português nos organismos comunitários ou internacionais em matéria de política de concorrência; i) Exercer as demais atribuições que lhe sejam legalmente cometidas. Para cumprir a sua missão a Autoridade dispõe de poderes de supervisão, sancionatórios e de regulamentação. No domínio destes últimos poderes, a Autoridade recebeu um poder que não existia nas anteriores instituições da concorrência: a emissão de recomendações às empresas e ao Governo quando exista legislação ou regulamentação que restrinjam a concorrência ou ponham em causa o funcionamento eficiente dos mercados.36 9. Enquadramento institucional: os vários modelos e a opção portuguesa Desde logo, e como se defendeu acima, o regulador é uma instituição com legitimidade democrática, sendo parte do Estado, constituída segundo a lei e com a direcção nomeada pelos órgãos de soberania democraticamente eleitos. Mas, mais ainda, é hoje um importante pilar da democracia. Como se referiu acima, para que o regulador desempenhe eficientemente a sua missão deve ter um estatuto com as seguintes características: (i) missão claramente definida, (ii) instrumentos e poderes proporcionais e suficientes para desempenhar essa missão, (iii) ser independente, mas responsabilizado pela sua actividade. Vejamos como estes critérios são satisfeitos no caso português. A secção anterior especificou claramente a missão da Autoridade e que está alinhada com os artigos correspondentes do Tratado das Comunidades. No que respeita aos instrumentos, poderes e recursos para cumprir cabalmente a sua missão, houve problemas na disponibilização de recursos à Autoridade. Tendo iniciado as suas funções com orçamento zero, foi só com a aprovação pelo Decreto-Lei n.º 30/2004 que o financiamento das suas actividades ficou assegurado de uma forma sustentável. Uma grande parte das receitas da Autoridade é constituída por transferências automáticas no quadro da Rede de Reguladores constante do Decreto-Lei n.º 10/2003, pelos serviços que a Autoridade presta às empresas dos mercados regulados ao assegurar a concorrência. É uma solução inovadora a nível internacional e que apresenta grandes vantagens de independência em relação ao financiamento pelo orçamento do Estado. Contudo, tem uma falha, do nosso ponto de vista, e que só se justifica na fase de constituição da Autoridade. É necessária a negociação anual com os reguladores sectoriais e respectivas tutelas da percentagem das taxas cobradas por 36 “Adoptar e dirigir às empresas e agentes económicos as recomendações e directrizes que se mostrem necessárias à boa aplicação das regras de concorrência e ao desenvolvimento de uma cultura favorável à liberdade de concorrência.” (artigo 17º). 18 aquelas a transferir para a Autoridade que, depois, é vertida em portaria, o que tem levantado problemas e fica ao sabor das respectivas entidades. Outra parte do financiamento é constituída por 40% do produto das coimas cobradas, revertendo os restantes para o Tesouro. Esta disposição tem levantado críticas por causa de possíveis incentivos perversos. Contudo, o orçamento de despesa tem que ser submetido anualmente a aprovação às Tutelas (Economia e Finanças), pelo que aquele não pode ter efeitos práticos. No que respeita aos poderes de investigação a lei investe a Autoridade de um dos regimes mais fracos dentro da Comunidade. Basta comparar os actuais poderes da Comissão no que respeita a buscas domiciliárias e à apreensão de documentos. Também quanto aos poderes sancionatórios a Comissão e outros organismos nacionais têm possibilidade de impor medidas estruturais como sanções dentro de processos, questão que tem sido polémica entre nós. A questão da independência, embora assegurada pela nomeação do Conselho, e sendo estipulada a autonomia administrativa e financeira, está bem longe de ser a desejada. De facto, a Autoridade tem que submeter todos os anos ao Governo o seu orçamento e plano de actividades, estando ainda sujeita ao controle orçamental dos institutos públicos, o que representa um retrocesso em relação às entidades de supervisão financeira. Não se compreende porque é que aquelas entidades têm que ter um estatuto autonómico superior a uma entidade de concorrência que tem poderes transversais sobre todos os sectores da economia. A Autoridade é uma entidade administrativa. Respeitando os princípios inscritos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem a sua actuação tem que estar sujeita ao contraditório e haver mecanismos que prevejam a separação da instrução da decisão nos processos. O primeiro é estritamente satisfeito no respeito das normas de direito administrativo e de contra-ordenações que regem os processos da Autoridade. Nenhuma Nota de Ilicitude, nenhuma decisão seja em sede de Concentrações seja de Práticas Restritivas é adoptada sem que seja submetida ao princípio do contraditório. Os regulamentos internos adoptados assim o estipulam. Quanto à separação da instrução e decisão ela procura ser assegurada pela condução dos processos que é responsabilidade dos Directores, e a decisão que é tomada pelo Conselho, sob proposta dos Gabinetes do Jurista e Economista Chefes. Nalguns países este problema deu origem à separação da entidade reguladora da concorrência em duas distintas: uma entidade que faz a abertura do processo e a acusação. E outra entidade que recebe o processo e o leva a uma decisão. Nos casos francês e espanhol a primeira é uma Direcção-Geral inserida no Ministério da Economia, e a segunda é um Conselho ou Tribunal da Concorrência, com autonomia perante o Governo. No entanto, estas estruturas não são eficientes porque a segunda não tem qualquer influência no início de processos, e a segunda instância muitas vezes acaba por duplicar o trabalho da primeira. No caso italiano as duas entidades coexistem na mesma Autoridade, mas a instrução é conduzida pelos Serviços e a decisão é tomada pelo Conselho que tem um número elevado de juízes que actuam como relatores. Noutros países, como na Irlanda, a Autoridade não tem poder para tomar decisões e estas são enviadas para os tribunais que conduzem a segunda fase. 19 Mas numa pequena instituição é difícil estabelecer chinese walls que assegurem aquela separação. Por isso, é estipulado pela lei o direito ao recurso para os Tribunais das decisões da Autoridade. Das decisões cabe primeiro recurso para o Tribunal do Comércio de Lisboa e depois para a Relação de Lisboa. Nesta fase, terminada a instrução, o controlo da decisão é feito por estas entidades. A Autoridade é representada pelo Ministério Público, mas pode opôr-se a que a decisão do Tribunal seja tomada sem que se dê o julgamento, como pode ela própria interpor recurso. Está claro, perante este esquema que a eficiência global da aplicação da lei da concorrência depende da qualidade das decisões judiciais, o que exige uma especialização em concorrência nesses tribunais, até agora inexistente, dada a complexidade destas matérias e a falta de experiência casuística nacional. Existe, porém, uma excepção no recurso das decisões que é o recurso extraordinário de uma decisão de proibição de uma concentração para o Ministro da Economia, que ainda é um resquício da anterior lei da concorrência, e que foi inspirada no caso alemão, pondo nas mãos do governo como que um veto político à Autoridade. As autoridades nórdicas e anglosaxónicas não têm esta limitação, sendo o recurso apenas para os tribunais. Das 170 decisões até agora tomadas pela Autoridade da Concorrência apenas houve 2 proibições, e ainda não se verificou nenhum recurso extraordinário. No caso alemão é muito rara a sua utilização e tem de ser fundamentada em outras razões que não a concorrência, mostrando-se que os prejuízos que esta incorre são ultrapassados pelos benefícios noutra área da política económica. Para terminar vamos referir um outro problema de solução difícil e que coloca um sério desafio à aplicação da lei: é a questão do regime processual.37 Uma solução poderia ser o direito administrativo e direito processual administrativo, contudo este é demasiado complexo, os seus tempos dificilmente se coadunam com a rapidez do mundo dos negócios actual, permite o acesso das partes a todos os passos do processo, entre outros problemas. O direito penal convive mal com o direito da concorrência. O primeiro está demasiado ligado ao elemento de dignidade humana e da (privação) da liberdade para poder ser sem mais transposto para a concorrência. Aqui os protagonistas são empresas e os vectores são de cariz económico. Nesta matéria, relembre-se a necessidade de compatibilizar as regras e práticas processuais com as garantias de efectividade na repressão das violações do direito comunitário da concorrência. Daqui decorre que os critérios puros do direito penal se mostrem pouco adequados à maioria dos processos de práticas restritivas. Importa assim que na livre apreciação da prova e na formação da convicção do julgador seja tida em conta a natureza das práticas em causa, levadas a cabo por agentes muito sofisticados, dotados de enormes recursos económicos e bem conscientes da gravidade dos seus ilícitos, como sucede com os cartéis. Com o aumento das coimas em decisões condenatórias destas práticas, os agentes económicos prevaricadores rodeiam-se de cautelas, evitando a produção de elementos escritos ou mesmo, em alguns casos, aconselhando ou ordenando internamente a destruição de quaisquer pistas documentais (paper trail), reunindo no business lounge de um qualquer aeroporto, guardando documentos comprometedores nas residências de familiares, etc. Refira-se que a casuística comunitária reconhece este fenómeno, condenando cartéis em casos onde se verificam indícios claros e coerentes de coordenação entre as partes 37 Outro problema que afecta seriamente toda a justiça portuguesa é o excesso de recursos nos tribunais. Este fenómeno dá-se devido a uma não adequação dos incentivos a uma eficiência do processo judicial. Os sistemas jurídicos dos países mais desenvolvidos contemplam regras sobre pagamento de custas judiciais e de equilíbrio no exercício judicial bem mais eficientes. É matéria que exige um estudo cuidado. 20 e dos seus efeitos (actuais ou potenciais) no mercado. Tal não implica transigir com a salvaguarda dos direitos da defesa e é levado a cabo no respeito pelo regime da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujos preceitos são recebidos no sistema da União enquanto princípios gerais do direito comunitário (artigo 6.º, n.º 2, do Tratado da União Europeia). Uma terceira solução, que é a actualmente adoptada, é a do contra-ordenacional, que foi concebido para pequenas multas, o que dificilmente se coaduna com as dezenas de milhões de euros que a Autoridade pode aplicar de coimas (e já aplicou, como por exemplo, no caso do cartel das farmacêuticas de 16 milhões de euros). Talvez que a solução seja construir um direito processual especifico do direito da concorrência, eventualmente dentro do direito administrativo. Mas a discussão ainda mal começou... 10. Conclusão As matérias abordadas demonstram a necessidade de uma colaboração estreita entre economistas e juristas: ao economista, de preferência com especialização em Economia Industrial exige-se o conhecimento das leis e do processo no enquadramento da sua actividade. Ao jurista exige-se o conhecimento económico das matérias que são o objecto principal de qualquer caso da concorrência. É a intensificação desta colaboração que se exige entre nós, sobretudo num estádio em que existe um reduzido conhecimento destas matérias que têm uma certa complexidade. A ideia fundamental que se deve retirar da nossa análise é que a política da concorrência prossegue o objectivo final de aumentar o bem-estar dos consumidores e o bem-estar social em geral. No caso português, uma maior concorrência entre empresas é a principal política para o aumento da competitividade da economia e que pode vencer a estagnação em que nos encontramos actualmente. 21