O MUNICIPALISMO E A CULTURA POLÍTICA BRASILEIRA *
Otair Fernandes de Oliveira **
1 – Considerações Iniciais
Em um trabalho sobre a Câmara Municipal no atual contexto brasileiro
sentimos a necessidade de ressaltar alguns aspectos relacionados a nossa cultura
política institucional. A idéia era refletir sobre a base e a origem da formação social,
política e institucional da sociedade brasileira. Pois a existência da Câmara como
órgão da administração pública e de representação política, data desde os tempos
coloniais, isto é, muito antes das Assembléias estaduais e do próprio Congresso
Nacional. Herdada dos colonizadores portugueses, a instalação de Câmaras locais
era fator obrigatório para a formação e o reconhecimento do município (Vilas) por
ato da "autoridade régia" [1]. Salvo em raríssimo momento, o estímulo para a
instalação de Câmaras locais não buscava a autonomia, mas a subordinação do
município, pois este era submetido, como braço administrativo, à centralização
monárquica [2].
Como um dos primeiros órgãos de administração pública e de representação
política no país, a Câmara Municipal, ao nosso ver, constitui a base da vida pública
brasileira compondo suas primeiras estruturas políticas em um país colonizado,
cujas trajetórias e evolução histórica das suas instituições políticas se reportam aos
avanços
e
retrocessos
da
sua
história
em
direção
à
centralização
ou
à
descentralização política, à autonomia ou limitação de autonomia das instituições e
à aproximação ou ao afastamento do experimento democrático. Acreditamos que,
uma vez explicitada, esta estrutura política local pode revelar aspectos importantes
do conteúdo político-institucional que têm permeado as instituições políticas ao
longo dos tempos.
Nossa intenção é destacar alguns traços característicos da vida institucional
brasileira, tendo como referência certa literatura clássica sobre a política nacional,
notadamente as obras Instituições Políticas de Oliveira Vianna, Os Donos do
Poder de Raymundo Faoro e Coronelismo, Enxada e Voto de Victor Nunes Leal.
Partimos do pressuposto de que alguns traços culturais característicos da
forma de pensar e de fazer política no país têm permanecido inalterados ou
sofreram mínimas modificações ao longo dos tempos, persistindo no
comportamento político institucional de hoje. Mesmo considerando as alterações
sofridas na morfologia institucional brasileira com o recente processo de
redemocratização vivenciado no país, sobretudo, dos órgãos legislativos, no caso
investigado a Câmara dos Vereadores, esses traços são reproduzem práticas
políticas tradicionais que podem funcionar como freio ou limites para possíveis
avanços em prol do aprimoramento e aperfeiçoamento institucional na direção da
consolidação de uma vida democrática. Mas, quais são essas características?
2 - Oliveira Vianna e a Ausência do Espírito Público
Um dos primeiros traços característicos da nossa cultura política consiste no
problema da ausência ou carência de “motivações coletivas” ou a falta do “espírito
público” nas instituições políticas brasileiras, apontado por Oliveira Vianna na sua
interpretação desenvolvida na obra “Instituições Políticas Brasileira” (1974), onde
enfatiza os fundamentos sociais e políticos da formação do Estado brasileiro.
Partindo de uma análise com um viés chamado pelo próprio autor de
“culturológico”, tendo como base as estruturas políticas municipais Vianna investiga
os antecedentes históricos e a "influência subconsciente dos usos e costumes
tradicionais da nossa vida local". Ressalta o que ele próprio denomina de “fracasso
ou inexecução das instituições políticas vindas de importação ou de pura inspiração
ideológica”, e, ainda, salienta as dificuldades para a implantação das instituições
democráticas liberais no país, quando afirma que “não era fácil impor-se a um povo
uma nova modalidade de comportamento político” [3].
Como
traço
principal
da
cultura
política
brasileira,
Vianna
destaca
o “privatismo” e o “personalismo”, formadores de uma psicologia política, parte das
heranças coloniais e da tradição do subconsciente coletivo do país desde os
primórdios da nossa história e que subsistem nas estruturas locais, envolvendo as
"elites superiores", interferindo na formação e no funcionamento dos governos
provinciais e do Império.
Nesse caminho, o motivo privado ou privatista se constituía na marca da
disputa pela conquista do poder municipal. Motivo identificado com o interesse
pessoal dos “chefes de clãs”, uma vez que essa motivação consistia na força
inspiradora dos “clãs eleitorais”, formadores dos partidos políticos, vistos como
“simples organizações de interesse privado com funções no campo político”. Assim
esse poder era disputado, segundo o autor:
“Não para que realizassem qualquer interesse geral e público das localidades
(municípios); mas, apenas como meio de prestígio, de orgulho, de realce
pessoal, ou de defesa contra os adversários locais” [4].
Essa situação consistia na ausência da compreensão do poder do Estado
como órgão do interesse público, quando na formação do Império e da ordem
constitucional, constituindo um problema para a instalação e consolidação do
regime democrático no país.
Reside aí, segundo Vianna, o nosso “grande mal”, posto que “os órgãos do
Estado são para estes chefes de clãs, locais ou provinciais, apenas uma força posta
à sua disposição para servir aos amigos e aos interesses, ou para oprimir os
adversários e os interesses destes” [5].
Na opinião do autor, esse comportamento político herdado desde a Colônia
não sofreu profundas alterações até a fundação do Império. Com isso, ele identifica
outra característica das nossas instituições políticas, que se refere à contradição
existente entre o legal e o comportamental ou costumeiro, ou seja, à questão de
que os
textos
constitucionais
brasileiros
(1824,
1891
e
1934)
inspirados
externamente são contrastantes com a nossa cultura política. Daí, afirmar a
impossibilidade prática de se instalar no Brasil um Estado Nação no “puro estilo
inglês ou americano”, assentado sobre “bases populares e democráticas”. Nesse
sentido, o município é visto como a primeira estrutura local do novo Estado
Nacional de base democrática, que o autor identificava no Império brasileiro.
Outra característica da vida pública institucional destacada por Vianna
refere-se à ausência de educação política das nossas instituições, compreendida
como a falta de preocupação das instituições brasileiras em se organizar e
desenvolver uma educação “democrática ou de liberalismo prático”, pois:
“... nos grandes domínios da Colônia e do Império, debalde
procuramos qualquer instituição pública - qualquer sistema
econômico, ou religioso, ou administrativo, ou jurídico, ou
político - que importasse na iniciação ou preparação do nosso
povo-massa para a vida democrática, isto é, para sua direta
intervenção nas gestões da coisa pública local; menos ainda da coisa pública provincial; muito menos ainda - da coisa
pública nacional. De qualquer uma delas o nosso povo-massa
esteve sempre - seja legalmente, seja praticamente - ausente
durante todo o curso da nossa história política e administrativa;
isto é, durante cerca de 400 anos” [6].
No entanto, ao contrário do que muitos possam imaginar, não é na formação
política do “povo-massa” para uma intervenção direta na vida pública que o autor
acredita e defende para o país. Para além de uma visão de história temporal e
cronológica
que
coloca
a
história
do
Brasil
à
imagem
e
semelhança
do
desenvolvimento histórico europeu, as bases teóricas do pensamento de Oliveira
Vianna estão relacionadas à influência dos argumentos darwinistas da seleção
natural, segundo os quais os fatores biológicos, genéticos, determinam a formação
e os atributos culturais do ser humano. Tais argumentos constituem a base do
pensamento elitista, conservador e racista predominante no país e no mundo
ocidental à época da formação do Estado-Nação brasileiro [7]. Isso não tira o
mérito teórico de que, em relação ao comportamento político institucional no país,
o autor tenha levantado aspectos importantes.
3 - Raymundo Faoro e o Estamento Burocrático
Aos traços ressaltados por Vianna, somam-se os destacados por Raimundo
Faoro em “Os Donos do Poder” (1976), obra com interpretação histórico-crítica da
formação social brasileira. Por meio do que é chamado de “estamento burocrático”,
Faoro revela a contradição entre o processo de modernização do país, cujas bases
são instituições “anacrônicas” e comandadas por um “estamento burocrático”.
Estefunda-se num sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado, que
nem mesmo a pressão da ideologia liberal e democrática conseguiu quebrar, diluir
ou desfazer.
O autor ressalta a persistência de uma estrutura patrimonial, assentada no
tradicionalismo, transplantado para a Colônia pelos portugueses, que aqui se
consolidou
e
se
adaptou
às
mudanças
políticas
da
história
nacional
[8].
Tradicionalismo que, segundo ele, aqui se reproduziu na formação dos primeiros
órgãos da administração colonial (Câmaras ou Senado da Câmara), com base em
um sistema eleitoral restrito e restringido na seletividade dos chamados “homens
bons” para a composição da máquina administrativa [9].
Por “estamento burocrático”, Faoro identifica um “quadro administrativo e
estado-maior de domínio característico do patrimonialismo, em que uma minoria
comanda, disciplina e controla a economia e os núcleos humanos” [10]. Num
estágio inicial, esse tipo de domínio se apropria das oportunidades econômicas de
desfrute dos bens, das concessões, dos cargos, confundindo o setor público com o
privado, que, com o aperfeiçoamento da estrutura política, se fixa com divisão dos
poderes.
Essa característica, segundo o autor, tem atravessado toda a história política
brasileira, que, no caso da ausência do “quadro administrativo”, a chefia dispersa e
assume caráter patriarcal, identificável no mando da pessoa do fazendeiro, do
senhor de engenho e dos coronéis. Quando se estrutura, o patrimonialismo pessoal
se converte em patrimonialismo estatal, devido ao fato de que:
“... o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em
caráter
flexivelmente
estabilizador
do
modelo
externo,
concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação,
com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão
pública de atividade, controle de crédito, de consumo, de
produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à
regulamentação material da economia” [11].
Além disso, Faoro chama a atenção para o fato de que esse tipo de
“estamento burocrático” se perpetua como uma camada social sobre a sociedade,
posicionando-se acima das classes sociais. Tal camada é configurada num estrato
social, é comunitária, mas nem sempre articulada, muitas vezes amorfa, constitui o
aparelhamento político "que impera, rege e governa em nome próprio, num círculo
impenetrável de comando". Ela muda e se renova, "(...) substituindo moços por
velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos,
imprimindo-lhes os seus valores".
Nesse sentido, o “estamento burocrático” com aparelhamento próprio invade
e dirige a esfera econômica, política e financeira, comandando o ramo civil e militar
da administração. No âmbito político, interno à estrutura, o quadro de comando se
centraliza, pretendendo “se não a coesão monolítica”, ao menos a “homogeneidade
de consciência, identificando-se às forças de sustentação do sistema”.
Na peculiaridade histórica brasileira, segundo a interpretação de Faoro, essa
camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos
derivados de sua posse do aparelhamento estatal. Na opinião do autor, o impacto
das novas forças sociais tem sido amaciado, domesticado e transformado por essa
camada dirigente, que incorpora seus próprios valores, mesmo, às vezes, adotando
uma ideologia diversa, mas compatível com seu esquema de domínio. Dessa forma,
ele afirma:
"O poder - a soberania nominalmente popular - tem donos, que
não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O
chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de
negócios e não um mandatário. O Estado, pela cooptação sempre
que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os
assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros
graduados de seu estado-maior" [12].
Esse conteúdo institucional, segundo Faoro, tem moldado a fisionomia do
chefe do governo. Este é gerado e limitado pelo quadro que o cerca (o rei, o
imperador, o presidente). Assim, o chefe governa oestamento e a máquina que
regula as relações sociais. Dessa maneira:
“(...) o chefe provê, tutela os interesses particulares, concede benefícios e
incentivos, distribui mercês e cargos, numa atmosfera que dele se espera
que faça justiça sem atenção às normas objetivas e impessoais” [13].
Esse sistema é compatível com uma ordenação formalmente jurídica (órgãos
estatais
separados,
assembléias
ou
tribunais)
e
pode
conviver
com
um
constitucionalismo formal, nominal, em que a Carta Magna tem validade jurídica,
mas não se adapta ao processo político e não alcança capacidade normativa,
“adulterando-se no aparente constitucionalismo”[14].
Nessa situação, “a soberania popular não existe, senão como farsa,
escamoteação ou engodo”, pois a autocracia pode operar sem que o povo perceba
seu caráter ditatorial, “salvo em momentos de conflitos e de tensões, quando os
órgãos estatais e a carta constitucional cedem ao real, verdadeiro e atuante centro
do poder político”.
Por outro lado, o autor ressalta a incompatibilidade desse tipo de sistema
autocrático e autoritário com o que ele considera “sistema normativamente
constitucional e democrático”, pois este tipo de estrutura tem como essência o fato
de que “os detentores do poder participam na formação das decisões estatais,
mediante mecanismos de controle que atuam na participação popular” [15].
Conforme essa interpretação de Faoro, o Brasil convive “com duas partes
desacreditadas e opostas que navegam para pontos antípodas: a sociedade e
o estamento”. Os processos de modernização, em todos os níveis, desde a
transmigração da família real têm ocorrido de “cima para baixo" sob o pressuposto
da “incultura”, senão da “incapacidade do povo”. Assim, ao povo resta oscilar entre
o
parasitismo,
a
mobilização
de
passeatas
sem
participação
política
e
a
nacionalização do poder, ficando mais preocupado com os “novos senhores”, com o
“bom príncipe”, dispensários de justiça e proteção. “A lei, retórica e elegante, não o
interessa [ao povo]. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha
entre opções que ele não formulou” [16].
4 - Victor Nunes Leal e o Fenômeno do Coronelismo
O conjunto das características destacadas tanto por Vianna quanto
por Foaro refere-se aos fatores macroinstitucionais da política nacional, sob o
ângulo de aspectos mais abrangentes do nosso comportamento políticoinstitucional. A esses, acrescentam-se e complementam-se as observações de
Victor Nunes Leal em “Coronelismo, Enxada e Voto” (1986), que oferece um estudo
mais aprofundado do quadro da vida social e política brasileira, tendo como base os
municípios do interior, predominantemente rurais. Tal estudo possibilita uma
visão microinstitucional da nossa vida pública.
Segundo
o
autor,
o
fenômeno
do
“coronelismo” é
o
principal
traço
característico do regime republicano, apesar da percepção originária de diversos
elementos que o compõem no regime colonial, pois ele consiste num sistema
político de compromisso entre o poder público e o poder privado, tendo como base
de sustentação econômica uma estrutura agrária decadente. Nesse sentido, para o
autor, conceitualmente, “(...) o „coronelismo‟ é sobretudo um compromisso, uma
troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a
decadente influência social dos chefes locais, notadamente, dos senhores de
terras”[17].
Esse compromisso reside num certo grau de fraqueza de ambos os lados,
principalmente do poder público, que, diante da debilidade de constituir-se frente
ao alargamento do regime representativo por meio da ampliação do sufrágio,
incapaz de exercer a plenitude das suas funções, compõe-se com o poder privado
dos donos de terras. Desse modo, segundo Leal,
"A superposição do regime representativo, em base ampla, a
essa
inadequada
estrutura
econômica
e
social,
havendo
incorporado à cidadania ativa um volumoso contingente de
eleitores incapacitados para o consciente desempenho de sua
missão política, vinculou os detentores do poder público, em
larga medida, aos condutores daquele rebanho eleitoral. Eis aí a
debilidade particular do poder constituído, que o leva a comporse com o remanescente poder privado dos donos de terras no
peculiar compromisso do 'coronelismo” [18].
A situação de dependência do eleitorado rural (massa de assalariados,
parceiros, posseiros e pequenos proprietários) em relação aos donos de terras e à
falta de consciência política dos eleitores faz, segundo o autor, com que
o coronelismo se estabeleça num sistema de reciprocidade, de “troca de favores”
entre os políticos locais e o poder público estadual. De um lado, os chefes
municipais e os coronéis conduzem uma quantidade de eleitores, de outro lado, a
situação política dominante no Estado, “que dispõe do erário, dos empregos, dos
favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da
desgraça” [19].
Assim, para Leal, o advento da República, sob as bases do regime federativo
e a eleição do governo do Estado, repousa no compromisso coronelista facilitador
da “montagem, nas antigas províncias, de sólidas máquinas eleitorais (...)
estáveis, que determinaram a instituição da „política dos governadores‟”[20].
Portanto,
o governo
estadual
constituía a
parte
forte desse
compromisso
consolidado por meio do uso do poder público para fins de política partidária.
Nesses
termos,
o
autor
compromisso coronelista consiste
no
afirma
que
incondicional
a
apoio
essência
aos
do
candidatos
do oficialismo nas eleições estaduais e federais, pela parte dos chefes locais. Da
parte do governo estadual, é dada carta branca ao chefe local governista (de
preferência ao líder da facção majoritária) referente a todos os assuntos relativos
ao município, inclusive para a nomeação de funcionários estaduais do lugar. Com
isso, os dirigentes políticos locais, direcionando seus votos para os candidatos
governistas, tornam-se credores de especial recompensa, que consiste em ficarem
com as mãos livres para consolidarem sua dominação no município.
Diferentemente de uma visão negativa do sistema político brasileiro,
depreendida subjacentemente nas idéias concebidas por Vianna de “privatismo ou
da
ausência
do
espírito
público”
ou
nas
idéias
de
Faoro,
de
um
“estamento burocrático”, Victo Nunes Leal não vê o coronelismo de todo negativo,
uma vez que salienta os aspectos positivos do sistema coronelista, argumentando
que muitos melhoramentos nas localidades devem-se ao interesse e à insistência
do chefe político local. Construções de escolas, estradas, correio, ferrovia, posto de
saúde, hospital, luz elétrica, rede de esgoto, água encanada, campos de futebol,
dentre outros, “exigem o esforço, muitas das vezes penosos, chegando até ao
heroísmo desse chefe político local”. Assim, na sua opinião, “é um erro supor que o
chefe local procede por meio de capricho, sem idealismo e sem espírito
público”, pois
“É com essas realizações de utilidade pública, algumas das
quais
dependem só do
seu
empenho
e
prestígio
político,
enquanto outras podem requerer contribuições pessoais suas e
dos amigos, é com elas que, em grande parte, o chefe
municipal constrói ou conserva sua posição de liderança”[21].
Nesse momento, Leal identifica o “espírito governista” como a marca
predominante da mentalidade da política municipal, pois, ao apoiar o governo
estadual, o chefe local obtém para o seu município as melhorias julgadas por ele
necessárias e urgentes. Também identifica uma “ética especial” desse tipo de
relação, que consiste no fato de que “os compromissos não são assumidos à base
de princípios políticos, mas em torno de coisas concretas”, prevalecendo para uma
ou para poucas eleições[22].
De acordo com isso, o paternalismo por intermédio do “favor pessoal” tornase um importante instrumento de dominação política, transformando favores de
toda ordem, tais como a concessão de empregos, empréstimo ou financiamento de
dinheiro, contratação de advogado, providenciamento de médico ou hospitalização,
apadrinhamento ou batismo de filhos ou de casamentos, legalização de terras e
muitos outros; em realizações concretas dos préstimos pessoais que dependem
direta ou indiretamente da pessoa do chefe local.
Nesse tipo de favorecimento, em muitas vezes, não há fronteiras e nem
barreiras entre o que é ou não legal, pois
“para favorecer os amigos, o chefe local resvala muitas vezes
para a zona confusa que medeia entre o legal e o ilícito, ou
penetra em cheio no domínio da delinqüência, mas solidariedade
partidária
passa
sobre
todos
os
pecados
uma
esponja
regeneradora”[23].
Numa contraface desse tipo de sistema de compromisso, Leal identifica
o “filhotismo” e o “mandonismo”. O primeiro reside no favoritismo em relação aos
amigos do governo, com fechamentos dos olhos para as mazelas de seus
apadrinhados
políticos,
contribuindo,
assim,
para
a
desorganização
da
administração municipal, sob a “vista grossa” dos governos estaduais, ainda mais
quando se considera o despreparo técnico dos parentes e amigos e a utilização do
dinheiro, dos bens e dos serviços do governo municipal nas campanhas eleitorais,
entendidas como verdadeiras “batalhas eleitorais”. Já o "mandonismo" se manifesta
na perseguição aos adversários da situação, num permanente clima de hostilidade.
Dessa maneira, tanto o “favor” quanto o “porrete”, segundo o autor, são os
recursos utilizados pelo chefe local na manutenção do seu domínio político, daí
a subexistência de expressões no meio político, tais como: “para os amigos pão,
para os inimigos pau” ou “aos amigos se faz justiça, aos inimigos se aplica a lei”
[24].
Com tudo isso, é possível resumir as principais características "coronelistas"
como sistema de compromisso, da seguinte forma:
a) utilização do dinheiro, dos serviços e dos cargos públicos, como processo
usual de ação partidária;
b) prática de falseamento do voto, influenciada pela precariedade das
garantias da magistratura e do ministério público (ou sua ausência) e a livre
disponibilidade do aparelhamento policial;
c) submissão do município frente à preponderância da situação estadual em
seus entendimentos com os chefes locais;
d) favoritismo em relação aos amigos do governo e forte cobrança ou
retaliações em relação aos adversários.
A questão fundamental nesse sistema de compromisso, para Leal, trata-se da
autonomia municipal, pois, na sua opinião, “o verdadeiro problema não é o da
autonomia dos municípios, mas o de falta de autonomia”, evidência constante em
nossa história, devido ao amesquinhamento das instituições municipais que, salvo
raras exceções, sempre estiveram submetidas à interferência régia, imperial e
republicana. No entanto, paralelo a essa falta de autonomia legal, o autor ressalta
que os chefes municipais governistas contavam com uma ampla autonomia
extralegal. Dessa forma, afirma que:
“É justamente nessa autonomia extralegal que consiste a cartabranca que o governo estadual outorga aos correligionários
locais, em cumprimento da sua prestação no compromisso típico
do „coronelismo‟. É ainda em virtude dessa carta-branca que as
autoridades estaduais
dão o seu
concurso ou
fecham
os
olhos a quase todos os atos do chefe local governista, inclusive a
violências e outras arbitrariedades” [25].
Embora Leal defenda que o “coronelismo” se assenta, por um lado, nas
fraquezas dos donos de terras, que se iludem com o prestígio do poder, obtido à
custa da submissão política, e, por outro lado, na desilusão daqueles que
dependem
das
terras
dos
coronéis
para
sobreviverem,
o
compromisso coronelista não tem se enfraquecido com o fortalecimento do poder
público e com a decadência da estrutura agrária no país, como se poderia esperar.
Ao contrário, o fortalecimento do poder público tem
“contribuído para
condutores
da
consolidar
máquina
o
oficial
substancioso
na
barganha
instrumentos
do
poder
que
sistema,
garantindo
do
Estado
o
configura.
constituído
é
que
quinhão
Os
são
aos
mais
próprios
utilizados,
paradoxalmente, para rejuvenescer, segundo linhas partidárias,
o poder privado residual dos „coronéis‟ (...) [ que subsiste], se
adapta, aqui e ali, para sobreviver, abandonando os anéis para
conservar os dedos” [26].
Alerta o autor que tal sobrevivência, no plano político, falseia a representação
política e desacredita o regime democrático, permitindo e estimulando o emprego
habitual da força pelo ou contra o governo. Daí o caráter metamorfoseador do
fenômeno ressaltado na obra do autor.
5 – Considerações Finais
Diante das argumentações aqui abordadas, é perceptível que alguns desses
traços característicos da vida político-institucional permaneçam e persistam de
maneira inequívoca, no contexto atual, frente ao novo quadro político vigente no
país. Mesmo considerando as divergências no plano teórico e metodológico e,
principalmente, do ponto de vista ideológico entre os autores supracitados, no
cômputo geral, pode-se chamar a atenção para três ordens de questões
subjacentes aos aspectos gerais da cultura política das nossas instituições.
A primeira ordem refere-se à relação entre o poder privado e o poder
público, destacada nas idéias de privatismo e na falta ou carência de espírito
público, no controle do poder político por uma minoria dirigente que atua em nome
próprio, e em um sistema de compromisso e de troca de favores entre os donos de
terras e o poder público, segundo Vianna, Faoro e Leal, respectivamente.
A segunda ordem de questões diz respeito à contradição entre a morfologia
institucional e a dinâmica comportamental das instituições e dos agentes políticos.
Tal contradição é revelada por Vianna na idéia da discrepância entre a norma
jurídica e a prática política; por Faoro, na contradição entre o moderno e o
anacrônico das instituições políticas; e por Leal, na relação entre o legal e o ilícito
ou extralegal.
A terceira ordem de questões é de fundamental importância para uma
melhor compreensão das dificuldades e obstáculos referentes ao processo de
democratização no país. Trata-se dos problemas oriundos e decorrentes da
formação e do funcionamento das instituições básicas da democracia liberal,
referentes à participação política. Esses problemas são revelados, segundo Vianna,
na falta de preocupação com a educação política do povo por parte das instituições;
conforme, Faoro no pressuposto da incultura ou incapacidade da população e no
desinteresse desta em participar politicamente; e por Leal, na dependência e
ignorância política do eleitorado rural frente aos chefes políticos locais.
Mas, ao nosso ver, a questão atual de fundamental importância nas
interpretações aqui abordadas, de maneira geral, trata-se dos problemas e das
dificuldades da implantação e funcionamento da democracia no país, mesmo dentro
dos moldes liberais. Em Oliveira Vianna, é clara sua visão pessimista quanto a isso,
daí afirmar à impossibilidade prática de tal realização. Em Raimundo Faoro, a
atenção é para o fato de ser possível o estamento burocrático conviver com a
democracia formal do ponto de vista constitucional com validade jurídica,
adulterando-se no aparente constitucionalismo. Em Victor Nunes Leal, o alerta é
para a sobrevivência do sistema coronelista, que subsiste, se adapta e se molda às
inovações e transformações da vida pública brasileira (metamorfose), impondo
barreiras e limitações à democratização da sociedade, no conjunto de suas
instituições e, com isso, falseando a democracia. Isso significa dizer que, mesmo
nos tempos atuais, em um mundo predominantemente urbano com eleições
eletrônicas e televisivas o fenômeno do coronelismo pode estar redefinido sob nova
roupagem, conforme os padrões exigidos em um contexto de democratização.
Tais
considerações
remetem
a
uma
reflexão
profunda
sobre
as
características e as formas de democratização do Estado e da sociedade brasileira
ora em vigências. Servem como um alerta para o fato de que a realização da
democracia na sua forma legal e normativa não é capaz e nem suficiente para a
garantia
da
consolidação
de
um regime
democrático
no
país.
Essa normatividade constitui um ponto de partida necessário à formulação de
mecanismos legais que precisam ser efetivados e consolidados no conjunto das
práticas político-institucionais.
É
fato
que
alguns
desses
mecanismos
estão
subscritos no arcabouço constitucional vigente, e sua efetivação depende do
compromisso
e das
responsabilidades assumidas pelas instituições políticas
refletidos nas atitudes e comportamentos dos seus membros, a quem cabe a tarefa
principal de evidenciar a importância dos valores do experimento democrático. O
fato é que nossa experiência nesta direção é incipiente. Daí torna-se fundamental o
aprimoramento e o aperfeiçoamento das instituições políticas existentes em prol do
exercício e do cumprimento dos preceitos legais ora vigentes no país, mesmo que
esses preceitos ainda necessitem de melhores formulações.
Bibliografia
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro.
3ª ed. ver. Porto Alegre: Globo, 1976. V. 1, Cap. XIV, p. 579-749: República Velha
-Os Fundamentos Políticos.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime
representativo no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1986. 276p.
LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil de. Instituições Políticas Democráticas: o segredo da
legitimidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 143p.
MOISÉS, José Álvaro. Os Brasileiros e a Democracia: bases sócio-políticas da
legitimidade democrática. São Paulo: Ática, 1995 (Ensaios 142). 301p. Cap. 3, p.
82-101: Democratização e Cultura Política.
RODRIGUES, Alcides Redondo et al. O Vereador e a Câmara Municipal. Rio de
Janeiro: IBAM, 1997. 132p.
TAVARES, Iris Eliete T. N. de P. O Município Brasileiro: sua evolução histórioconstitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos (UFMG), Belo Horizonte, n.º
86, p. 85-115, jan, 1998.
VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileira – Fundamentos sociais do Estado:
Direito Público e cultura. 3ª ed. Vol. 1. Rio de Janeiro: Record, 1974
Notas
[1] Segundo Diogo Lordello de Mello, a primeira Câmara instalada no Brasil foi
no ano de 1532 em São Vicente, São Paulo. Ver "A Representatividade das
Câmaras Municipais". In: RODRIGUES et al (org.). O Vereador e a Câmara
Municipal. 1997.
[2] Segundo Raimundo Faoro, no início da colonização eram amplas as atribuições
das Câmaras e o poder político local era entregue aos chamados “homens
bons”, mas, depois de curto espaço de tempo com certa autonomia local, as
Câmaras
passaram
a
simples
executoras
das
ordens
superiores.
Sua
composição era de juizes ordinários e dos vereadores e outros funcionários
(eletivos
ou
nomeados),
sem
uma
distinção
clara
nas
atribuições
das
autoridades, funções separadas, no que se refere à administração, justiça e
legislativo, ou com respeito à esfera superior das capitanias. Havia eleições da
Câmara que funcionavam como vínculo entre o povo e a administração pública,
restringida a um corpo eleitoral reduzido aos “homens bons” (Conselho),
confundidos com os proprietários de terras (indivíduos não nobres que possuíam
hereditariamente a propriedade livre). Ver: FAORO. Os Donos do Poder. V. 1,
1976, p. 184.
[3] Op. cit., vol. 1, p. 311.
[4] Sobre as motivações privatistas, Ibid., p.273 et seq. Sobre os clãs eleitorais ver
capítulo XI - Os "Clãs Eleitorais" e sua emergência no IV Século (Gênese dos
partidos políticos), Ibid., pp. 242-257.
[5] O parâmetro de democracia de Oliveira Vianna é o modelo de democracia
representativa de tipo liberal, tendo como referência a Inglaterra e os
Estados Unidos. Esse tipo de democracia se configura fundamentalmente pela
vigência de uma Ordem Constitucional e a existência de eleições. A
convivência com o trabalho escravo e a limitação da participação política
restrita a uma pequena minoria da população, como era no período imperial,
não são fatores que aparecem no ideário democrático de Vianna como
contraditório.
Importante também lembrar que mesmo na democracia grega, base da
cultura da cultura ocidental moderna, mulheres, crianças e escravos eram
excluídos da participação política da pólis, isto é, não eram cidadãos.
[6] Ibid., p. 293.
[7] O autor acredita na formação de uma elite nacional, como ele observa no
Império (segundo reinado), "os homens de 1000". Elite, por ele admirada,
"formada pela força de hereditariedades eugênicas combinadas", gestada e
selecionada no seio do povo devido a sua individualidade superior e dotados
organicamente, constitucionalmente de espírito público e de "espírito de
serviço". "Homens, que D. Pedro II com sua visão panótica e a probidade do
seu critério descobria no cenário da política e fixava nos grandes quadros da
administração
nacional...".
Homens
como
Nabuco,
Paraná,
Vasconcelos,
Uruguai, Itaboraí, Caxias e outros, "não eram grandes porque inspirados no
povo-massa (...), não tinham evidentemente a inspiração popular; eram
homens de moldagem carismática - homens formados pelo Imperador.
Consciente ou subconscientemente, era deste a mensagem que traziam - e não
do povo" (Ibid., p.313 et seq.).
[8] O "patrimonialismo" é visto como um tipo de domínio, de uma forma de poder
institucionalizada, em que a comunidade política conduz, comanda,
supervisiona os negócios, como negócios privados seus na origem e como
negócios públicos depois. Faoro sustenta a idéia de que herdamos a estrutura
do Estado patrimonial português, entendido como uma ordem burocrática, com
o soberano sobreposto ao cidadão, na qualidade de chefe para o funcionário.
"Na monarquia patrimonial, o rei se eleva sobre todos os súditos, senhor da
riqueza territorial, dono do comércio - o rei tem um dominus, um titular da
riqueza eminente e perpétua, capaz de gerir as maiores propriedades do país,
dirigir o comércio, conduzir a economia como se fosse sua empresa"
(op. cit., Vol. 1, p.20.). Maiores informações sobre o domínio patriarcal,
ver Vol. 1, capítulo I - Origem do Estado Português e Vol. 2, capítulo final - A
Viagem Redonda: do patrimonialismo ao estamento.
[9] Sobre os homens bons, diz Faoro:“Na verdade, o escopo íntimo da
superioridade institucional do homem bom será o mesmo que inspira os
conselhos portugueses: inscrever os proprietários e burocratas em domicílio da
terra, bem como seus descendentes, nos „Livros da Nobreza‟, articulando-os,
desta sorte, na máquina política e administrativa do Império. Incorporam-se,
por meio da aristocracia por semelhança, as camadas novas de população,
enobrecidas pelos costumes, consumo e estilo de vida. O complicado sistema
eleitoral destila novas levas, autorizadas pela confiança local, ao estamento,
cada vez mais burocrático na sua densidade”. Ibid., vol. 1, p.185.
[10] Ibid., p.203.
[11] Ibid., p. 736-738
[12] Ibid., p. 748.
[13] Ibid., p.739- 740.
[14] O sistema político de um governo tipo estamental, segundo o autor, é
necessariamente característico de uma "autocracia de caráter autoritário",
entendido como "uma organização política, na qual um único detentor do
poder - uma só pessoa ou 'ditador', uma assembléia, um comitê, uma junta
ou um partido - monopoliza o poder político sem que seja possível aos seus
destinatários a participação real na formação da vontade estatal". Faoro
destaca que o termo "autoritário" refere-se mais à estrutura governamental
do que à ordem social. "O único detentor do poder político impõe à
comunidade sua decisão política fundamental". Assim, o regime autoritário
então,
se
satisfaz
apenas
com
o
controle
político
do
Estado,
sem,
necessariamente, pretender dominar a totalidade da vida sócio-econômica da
comunidade, ou determinar sua atitude espiritual de acordo com sua imagem
(Ibid., p. 741).
[15] Ibid., p.741-2.
[16] Ibid., p.747 e 748.
[17] Op. cit., p. 20.
[18] Ibdem, p. 253.
[19] Ibid., p. 20-43.
[20] Ibid., p.253.
[21] Ibid., p. 37.
[22] Ibid., p.41.
[23] Ibid., p. 38-39.
[24] Ibid., p.38-39.
[25] A atrofia do município, segundo o autor, tem resultado de vários processos,
como a penúria orçamentária, excesso de encargos, redução de suas
atribuições autônomas, limitações ao princípio da eletividadede sua
administração, intervenção da polícia nos pleitos locais etc. (p.50-51).
[26] Ibid., p.255-256.
Resumo: O presente trabalho objetiva refletir sobre alguns traços característicos da
vida político-institucional brasileira, tendo como referência certa literatura clássica
sobre a política nacional, notadamente as obras Instituições Políticas de Oliveira
Vianna, Os Donos do Poder de Raymundo Faoro e Coronelismo, Enxada e Voto de
Victor Nunes Leal. Alerta para os problemas e desafios da implantação e
funcionamento do regime democrático no país.
Palavras-chave: política institucional, personalismo, patrimonialismo e coronelismo
* O presente artigo corresponde a parte do capítulo II – A Câmara Municipal no
contexto brasileiro, da dissertação de mestrado O Legislativo Municipal no Contexto
Democrático Brasileiro: um estudo sobre a dinâmica legislativa da Câmara
Municipal de Nova Iguaçu, defendida em dezembro de 1999, no Programa de PósGraduação em Antropologia e Ciência Política da UFF.
** Otair Fernandes de Oliveira é Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais (UERJ e
FEUC). Mestre em Ciência Política (UFF). Doutorando em Ciências Sociais
(UERJ). Professor Universitário da UNESA.
Contato: telefones: (21) 2669-65-47/2768-6973
E-mail: [email protected]
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