PARTICULARIDADES DA UNIVERSIDADE NO ÂMBITO DA CULTURA Professor Ney Luiz Teixeira de Almeida – UCB/RJ A noção de cultura que atravessa a reflexão de Gramsci permite-nos identificar, nos chamados organismos de cultura, um conjunto de instituições que desempenham funções tanto de formação dos indivíduos e grupos sociais quanto de produção – em seus diversos graus de complexidade – de conhecimentos e de valores que contribuem para a constituição das visões de mundo. Dentre estes organismos, Gramsci (1988) situa a escola, as academias, a universidade, as revistas e os jornais, entre outros. A ampla variedade de organismos de elaboração e difusão cultural pode ser compreendida pela percepção particular, fornecida pelo autor, dos fenômenos e processos que envolvem a esfera da cultura nas sociedades ocidentais, do tipo urbanoindustrial. Gramsci, ao demarcar um conceito de cultura que associa o acervo moral e intelectual aos instrumentos, às formas e às condições de sua produção, impingiu ao mesmo um caráter de atividade, conferindo-lhe o estatuto de prática social, portanto, determinada historicamente por sujeitos que atuam dinamicamente na sociedade. Os organismos de cultura podem emergir junto com uma dada formação social, como atravessar diversos períodos históricos, modificando-se de acordo com necessidades historicamente construídas no interior de um único ou de vários modos de organização social. Temos como exemplo, neste sentido, a universidade, que existe desde a Idade Média1 e que, mesmo neste período, sofreu significativas variações a ponto de podermos reconhecer já na sua gênese distintos processos constitutivos. O movimento universitário europeu inicia-se nos fins do século XII, quando então surgiram as primeiras e as mais importantes universidades: Bolonha, Paris, Oxford, Montpellier. Foram elas também as mais características das universidades de origem chamada ex-consuetudine, isto é, que nasceram espontaneamente. Mas é no decorrer do século XIII que o movimento universitário vai mais se desenvolver: as universidades citadas estão em 1 Ullmann & Bohnen fazem a seguinte observação sobre a demarcação da Idade Média, mais precisamente o século XII, como período de referência para o surgimento da universidade: “Tomandose como rígido parâmetro a universitas medieval, no sentido de agremiação de professores e/ou alunos, com o seu cosmopolitismo, com o seu significado social e político, com a sua organização jurídico-estatutária, a sua homologação oficial pelos Papas e/ou reis e, ainda, a concessão da licentia ubique docendi, não existiram universidades antes do século XII ou XIII” (1994: 58-59). pleno apogeu da sua atividade; surgem – primeira metade do século – novas universidades, e ainda espontaneamente, como é o caso de Vicenza, Arezzo, Pádua, Vercelli, Siena na Itália, Orléans e Angers na França, Cambridge na Inglaterra, Valladolid na Espanha. E surgem também novas universidades, mas do tipo diferente, no que se refere a sua origem: são as universidades ex-privilegio, isto é, fundadas pela autoridade (papal, imperial ou real), que, em lugar “de esperar a combinação de circunstâncias favoráveis e de acasos felizes, serão o resultado dos desejos pessoais, submetidos às exigências da política”. É o caso das universidades de Nápoles (fundação imperial - 1224), da Cúria Romana e Piacenza (fundação papal - 1244 e 1248), de Toulouse (fundação papal - 1229), das universidades espanholas (fundações reais) de Palência (1212 - 1214), Salamanca (ante 1230), Sevilha (1254). Como é o caso também da Universidade Lisboa – Coimbra, fundada por D. Diniz em 1290 (...) (JANOTTI, 1992: 109) (aspas do autor) 2. Contudo, não é difícil verificarmos que, apesar de certas características da universidade ainda permanecerem, conferindo-lhe alguns traços particularizadores – que, aliás, permite-nos reconhecê-la como tal nas mais diferentes épocas –, muito provavelmente suas funções e importância no âmbito da dinâmica cultural de cada período variaram bastante. Podemos até afirmar que o significado da universidade na esfera da cultura alterou-se muito dentro de um mesmo período histórico, dentro de um mesmo modo de organização social da produção, como ocorreu durante o próprio período medieval e, mais recentemente, ao longo de todo o processo de expansão do capitalismo. A universidade, desde sua origem, indubitavelmente, pode ser reconhecida como um organismo de cultura, aliás, um organismo com uma marcante característica: a de atuar na formação de intelectuais que lidam com os níveis de conhecimento mais complexos, aqueles que exigem um grau maior de elaboração. Partindo dos estudos de Rashdall (1936) sobre as universidades européias na Idade Média, Janotti recupera o significado da universidade naquele período destacando os sentidos adquiridos pelo termo universitas: É necessário observar-se que na Idade Média o termo que mais tecnicamente correspondia à Universidade como instituição de cultura medieval não era universitas e sim studium generale. Universitas significava apenas um número, uma pluralidade, um conjunto de pessoas; num sentido mais técnico, significava uma corporação legal ou pessoa jurídica, encontrando equivalência no termo collegium do direito romano. No fim do século XII e começo do XIII, universitas é aplicada para designar as 2 Além das modalidades de origem já referidas por Janotti (1992), “ex-consuetudine” e “exprivilegio”, “ex-voluntaria” ou, ainda, “ex-auctoritate”, temos a “ex-migratione” que eram “as universidades originadas pela migração de alunos e professores que tinham desavenças com as autoridades locais” (ULLMANN & BOHNEN, op. cit.: 76-79). 2 corporações tanto de professores quanto de estudantes (mas continua, e por muito tempo, a ser aplicada a outras corporações, como, por exemplo, de comerciantes, de artífices etc.), e nesse sentido escolástico “era simplesmente uma espécie particular de corporação – uma associação de pessoas, exercendo uma ocupação comum para a regulamentação de seu ofício e a proteção dos seus direitos contra o mundo exterior”. Daí o termo, a princípio, nunca ser usado absolutamente: a expressão era sempre “Universidade de Estudantes”, “Universidade de Mestres e Estudantes”, “Universidade de Estudo”. Studium generale era o termo que mais proximamente correspondia à noção de Universidade como instituição distinta de uma mera escola, seminário ou estabelecimento educacional privado: mas significava, a princípio, não o lugar onde todos os assuntos eram ensinados e sim o lugar onde estudantes de todas as partes eram recebidos. A partir do começo do século XIII o termo studium generale vai se tornando comum e, no conjunto, segundo Rashdall, ele parece implicar três características: 1. escola que atraía estudantes de todas as partes e não apenas de uma região particular; 2. que era um local de educação superior: isto é, pelo menos uma das faculdades superiores (teologia, direito, medicina) ali era ensinada, 3. os assuntos eram ensinados por um número considerável de professores (IDEM: 22-23). As funções destes intelectuais, assim como o significado social da produção de conhecimentos, cada vez mais especializados sobre a realidade e suas feições, marcava a universidade já na Idade Média. Esta especialização esteve sempre imbricada às formas de organização escolar e de formação de certos profissionais, que também estavam relacionadas com o próprio grau de desenvolvimento econômico e cultural do período medieval. Manacorda, ao traçar um painel da história da educação da antiguidade aos dias atuais, observou, desta forma, a relação entre desenvolvimento da organização escolar e desenvolvimento sociocultural no medievo para situar o surgimento da universidade: Paralelamente ao surgimento da economia mercantil das cidades e à sua organização em comunas, um novo processo se introduz na instrução com o aparecimento dos mestres livres que, sendo clérigos ou leigos, ensinam também aos leigos. Munidos da licentia docendo concedida pelo magischola, ensinando fora das escolas episcopais e freqüentemente, para evitar concorrência, fora dos muros da cidade (extra muros civitatis), eles satisfazem as exigências culturais das novas classes sociais. (...) Estes mestres livres ensinavam especialmente as artes liberais do trívio e do quadrívio; mas aqui e ali aparecem também escolas livres de outras disciplinas. É provável que justamente destes mestres livres, que atuavam junto às escolas episcopais e sempre sob a tutela jurídica da Igreja (e também do império), tenham nascido em seguida as universidades. Em Salerno, já antes do ano 1000, existia uma tradição de prática médica que paulatinamente assumiu o caráter de uma verdadeira escola teórica e que, dois séculos mais tarde, foi reconhecida como Studium generale (isto é, cujos títulos eram reconhecidos em qualquer lugar: em suma, uma universidade) (MANACORDA, 1989: 145). 3 Na verdade, as condições que favoreceram a emergência da universidade compõem um quadro social com amplas transformações que, apesar da estandartização com que o período é, por vezes, tratado, representou um certo renascimento econômico e cultural, materializado pelo fenômeno urbano, ou seja, pelo ressurgimento das cidades. Janotti produz a seguinte leitura, neste sentido: As condições que presidiram o nascimento das universidades foram proporcionadas pela cidade: concentração demográfica, aparecimento de uma classe interessada no direito romano (a burguesia), intensificação das relações, contatos com civilizações até então quase desconhecidas, concentração cultural, tais foram os fatores que condicionaram, social e culturalmente, as origens das universidades. Mas estes fatores condicionantes são caracteristicamente urbanos. O mesmo se pode dizer quanto aos interesses laicos ou eclesiásticos, não importa: se religiosos, era a Igreja quem tinha interesse em fundar universidades, a fim de transformálas numa máquina de guerra, em centros a serviço de “uma verdadeira teocracia intelectual”, de onde o papado fazia oposição ao ensino do direito romano, “que dá àqueles que estudam, diferentemente do direito canônico, a concepção de uma sociedade civil autônoma” e de onde o papado também ainda, inicialmente, fazia oposição à Física, à Moral e à Metafísica de Aristóteles, que davam à teologia “um objeto mais vasto, e ao espírito um horizonte mais largo”; e se laicos, era o Estado quem os manifestava, fundando ou favorecendo a fundação das universidades, a fim de atender às necessidades da administração estatal e da política real. Muitos dos conflitos entre a Igreja e o Estado devem ser explicados como conseqüência dessa duplicidade de interesses que, às vezes, chegavam a se tornar antagônicos. O que importa, porém, é constatar que foi com o renascimento urbano, quando então a Igreja passou a estar ameaçada, tanto na sua ortodoxia quanto nos seus privilégios, e o Estado passou a conhecer a sedentarização, laicização e complicação de sua máquina administrativa, que aqueles interesses se manifestaram (JANOTTI, op. cit.: 49-50). Contudo, em sua análise, Janotti deixa de considerar, como salientam Ullmann & Bohnen (op. cit.:76), um elemento importante para a compreensão do surgimento da universidade e que ele mesmo já havia sinalizado ao discorrer sobre os sentidos do termo universitas: a constituição das corporações. Seja enquanto fenômeno econômico, relacionado mais diretamente às salvaguardas para o exercício de certos ofícios, seja enquanto um fenômeno referente à própria organização das emergentes universidades, o fato é que eles não se mantiveram isolados, incólumes um do outro. A universidade se constituiu numa instituição socialmente reconhecida como formadora de certos tipos de profissionais, chegando, a ampliação e dinamização desta característica, a torná-la, séculos mais tarde, numa grande “corporação”. 4 As exigências intelectuais para a produção de novos conhecimentos foram se tornando cada vez mais fortemente determinadas por fatores econômicos e políticos. Destarte, as mudanças políticas e econômicas passaram gradativamente a compor um importante campo de determinação para a organização da vida intelectual, entendendo aí os processos sócio-institucionais que hierarquizam o acesso e a produção dos diversos graus do conhecimento humano, ou seja, do senso comum ao conhecimento científico e filosófico. Gramsci, ao tratar das condições materiais de produção e organização da vida moral e intelectual, salientou que as determinações econômicas não deveriam ser tomadas apenas unidirecionalmente. A consolidação, ou mesmo ruptura, de uma dada ordem econômica, de um dado modo de produção, exige um amplo processo de reforma moral e intelectual que a preceda. A construção da hegemonia – a direção dada a um processo cultural e político – é, portanto, um processo de fundamental importância na luta pela manutenção ou pela transformação de uma dada ordem econômica. Entendemos que a universidade é não só um organismo de cultura, mas também um aparelho de hegemonia, uma instituição importante na luta pela hegemonia, pela direção no campo cultural e político, assim como uma instituição na qual esta luta se trava. A idéia moderna de universidade, por exemplo, tem origem na construção de duas experiências: a alemã e a francesa, que bem espelham o atravessamento sofrido pela universidade na luta pela hegemonia e o soerguimento de estruturas que visavam dar conta da vida acadêmica diante dos novos horizontes deflagrados no campo cultural. A criação da universidade de Berlim, em 1810, respondeu não só aos interesses estratégicos quanto à mudança de local da Universidade Real de Halle, mas, sobretudo, expressou um movimento filosófico e político de grande repercussão na Europa que foi o idealismo alemão. Assim, de 1802 a 1816, os maiores filósofos do idealismo alemão escreveram sobre a idéia de universidade e sua realização. Hegel, Schelling, Fichte, Schleiermacher e Humboldt produziram em poucos anos o que é, talvez, a mais densa reflexão sobre a instituição universitária, desde sua criação no século XIII até os dias de hoje. Três desses filósofos intervieram na própria gestão da nova universidade: Humboldt foi o primeiro reitor e Fichte, diretor da faculdade de filosofia, o segundo; Schleiermacher dirigiu a faculdade de teologia. 5 Os cinco filósofos pensadores da universidade em gestação tinham em comum a concepção de que se tratava de realizar, na prática, a Universidade, isto é, a Idéia de Universidade. Para uns, essa idéia implicava na manifestação diversa do saber uno; para outros, na totalização sistemática do saber diverso. Conforme abraçassem uma ou outra variante da concepção ideal de universidade, as propostas para a universidade real brotavam com marcas liberais ou autoritárias. (...) Criada por Humboldt, a Universidade de Berlim teve impressa em seus estatutos uma orientação liberal, a despeito de manter professores da orientação oposta em cargos de direção (CUNHA, 1988: 14-5). Já no caso francês verificamos um processo bem distinto. O cenário é a França pós-revolução de 1789, sob o comando de Napoleão e diante da necessidade de se reordenar o pensamento, as idéias e as instituições. O peso da intervenção napoleônica no sistema universitário francês não foi superado de todo até a atualidade. A marca fundamental desta intervenção foi a fragmentação da universidade em estabelecimentos isolados e a reorientação de suas funções diante da nova ordem social. (...) A burocracia atual iria ter prevalência sobre as normas da antiga Universidade. A idéia supranacional tomou conta dos objetivos da universidade. Captar o conhecimento da era da renovação industrial através do saber científico e tecnológico consistiu numa das premissas da Universidade. Napoleão, como um grande gênio militar que foi, espelhou na Universidade esta faceta, de modo que implantou uma hierarquização tipo militar dentro da Universidade. Ele tinha certeza que somente dando uma ordenação quer do tipo militar quer do tipo civil poder-se-ia ordenar a universidade. (...) O ensino superior francês se coloca em dois momentos, o primeiro nas Universidades, o segundo nas Grandes Escolas de Nível Superior. A pesquisa era feita nas Universidades e o ensino das elites, com o fim de ocuparem altos cargos, era ministrado nas Grandes Escolas. Como Grandes Escolas entende-se: a Escola Normal Superior, a Escola Politécnica, a Escola Central, a Escola de Altos Estudos e o “Collège de France” (LISBÔA, 1993: 75). Ribeiro comenta que o sentido orgânico, a dimensão de totalidade da universidade francesa se perdeu com a intervenção napoleônica. A experiência da corporação de professores, por ela implementada, só não fez decair a qualidade do ensino porque a França experimentou nos anos que sucederam a reforma um período de grande crescimento intelectual e científico. O autor ainda ressalta: (...) o ensino superior francês após a revolução em um período de cem anos (1793 - 1896) não passou de um sistema de escolas superiores autárquicas 6 que não atendiam ao nome de Universidade, organizadas como um serviço público, assim como o ensino primário, secundário e normal. Entre 1806 e 1808 Napoleão implantou um monopólio educacional, procurando unificar politicamente e uniformizar culturalmente o arquipélago de províncias em uma nova entidade coesa, a França Republicana (RIBEIRO, 1982: 52). Temos, nos dois casos, a universidade sofrendo significativas e profundas mudanças em função de mudanças na ordem social, econômica, política e cultural. As mudanças de estruturas e mesmo de funções, assim como da relação da universidade com a organização escolar – estabelecendo no caso francês, inclusive, uma nova hierarquização – expressam não apenas uma determinação de fora para dentro. As mudanças sociais pelas quais a França e a Alemanha passaram implicaram em fenômenos de ordem tanto política quanto intelectual, intrinsecamente ligado à luta pela hegemonia e, conseqüentemente, mobilizando a esfera cultural. A universidade adquiriu, ao longo de sua história, um espaço destacado na vida cultural das nações, passando a representar o topo da hierarquia da organização escolar, atuando tanto como uma instituição produtora de conhecimentos, como formadora dos intelectuais que vão lidar com estes conhecimentos e com a difusão da cultura em diversos outros campos da vida social. O enorme desenvolvimento alcançado pela atividade e pela organização escolar (em sentido lato) nas sociedades que surgiram do mundo medieval indica a importância assumida no mundo moderno pelas categorias e funções intelectuais: assim como se buscou aprofundar e ampliar a “intelectualidade” de cada indivíduo, buscou-se igualmente multiplicar as especializações e aperfeiçoá-las. É este o resultado das instituições escolares de graus diversos, inclusive dos organismos que visam a promover a chamada “alta cultura”, em todos os campos da ciência e da técnica. A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis. A complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser objetivamente medida pela quantidade das escolas especializadas e pela sua hierarquização: quanto mais extensa for a “área” escolar e quanto mais numerosos forem os “graus” “verticais” da escola, tão mais complexo será o mundo cultural, a civilização, de um determinado Estado (GRAMSCI, 1988: 9). Gramsci relaciona o alargamento das experiências e complexidade do mundo cultural a cada vez mais freqüente complexificação das funções intelectuais nos vários Estados nacionais, apontando a crescente hierarquia da organização escolar como um significativo parâmetro de verificação da potencialidade da vida cultural de cada formação social. Assim, Gramsci ao analisar a organização escolar e a universidade 7 italiana3 procura apreender o movimento de constituição das mesmas, inscrevendo-o no campo das mudanças culturais travadas já na Idade Média. Ao mesmo tempo, analisa as particularidades adquiridas com o próprio desenvolvimento do capitalismo. Pode-se observar que, em geral, na civilização moderna, todas as atividades práticas se tornaram tão complexas, e as ciências se mesclaram de tal modo à vida, que toda atividade prática tende a criar uma escola para os próprios dirigentes e especialistas e, conseqüentemente, tende a criar um grupo de intelectuais especialistas de nível mais elevado, que ensinam nessas escolas. Assim, ao lado do tipo de escola que poderíamos chamar de “humanista” (e que é o tradicional mais antigo), destinado a desenvolver em cada indivíduo humano a cultura geral ainda indiferenciada, o poder fundamental de pensar e de saber se orientar na vida, foi-se criando paulatinamente todo um sistema de escolas particulares de diferente nível, para inteiros ramos profissionais ou para profissões já especializadas e indicadas mediante uma precisa individualização (Idem, ibidem: 117). Gramsci, mais uma vez, realça o caráter de atividade prático-social da cultura. Ao concebermos a universidade como instituição formadora de certos estratos intelectuais, temos que, na sua história, desde a Idade Média, ela pode ser analisada como organismo formador de intelectuais que já existiam e desenvolviam certas funções socioculturais antes da emergência do capitalismo. Tais intelectuais seriam, no sentido gramsciano, intelectuais do tipo tradicional, pois emergiram enquanto categoria numa formação social anterior, ligados aos grupos sociais fundamentais daquele período. Tomando algumas de suas funções básicas na esfera da cultura, esta leitura é extremamente pertinente, visto que a responsabilidade para com a elaboração e difusão da alta cultura, para com a formação de profissionais especializados, antecede a sociedade capitalista e não é, portanto, fundadas por ela. Por outro lado, não podemos deixar de considerar, como faz o próprio Gramsci, que as atividades práticas e a ciência se implicam continuamente em um movimento de complexificação da vida social que acaba por gerar novas formas de organização destas mesmas atividades e, por conseqüência, da própria cultura. As tarefas dos intelectuais, assim como a sua formação, não são mais orientadas apenas pelo lugar de destaque que ocupam em certos organismos de cultura, elas se alteram em função de novas exigências econômicas, políticas e culturais. Na verdade, o 3 Em Os intelectuais e a organização da cultura, Gramsci (1988) reúne uma série de notas sobre a universidade. Estes comentários, contudo, não se encontram agrupados em torno do tema “universidade”. Esta reunião foi feita posteriormente por Manacorda (1990), ao tratar de toda a obra gramsciana a partir da discussão de seu princípio educativo. 8 avanço tecnológico e científico experimentado com o desenvolvimento do capitalismo gerou uma série de novas especializações, de profissões, de intelectuais e de formas de produzi-los. Apesar da universidade ser uma instituição anterior ao próprio sistema capitalista, ela, com certeza, experimentou uma série de mudanças a partir dele. Novos tipos de intelectuais, novas funções na esfera da cultura, novas profissões e novos valores éticos e morais surgem organicamente vinculados ao novo modo de produção. Desta forma, podemos dizer que certos intelectuais, ainda que formados na universidade, só se constituem enquanto tal a partir de “demandas organizativas no campo econômico, social e político postas por cada novo grupo social, assim identificado a partir de sua função no mundo da produção econômica”, de sua inscrição enquanto componente de uma classe fundamental na sociedade capitalista. Em suma, são intelectuais do tipo orgânico (GRAMSCI, 1988: 3-5). A universidade, embora originariamente não surja a partir do modo de produção capitalista, passa a ser determinada por ele e a ocupar uma função importante no mesmo. Desta forma, além de ter se instituído como um organismo de cultura formador de intelectuais do tipo tradicional, foi paulatinamente se transformando, no âmbito da organização escolar e cultural da sociedade capitalista, em uma instituição onde se dá certa etapa da formação de alguns dos intelectuais orgânicos das classes dirigentes, sejam eles ligados ao processo de gerência da produção, da burocracia estatal ou da própria vida cultural. É importante frisar que se há hoje uma concepção largamente difundida de que a universidade é um dos mais importantes centros formadores de quadros intelectuais, o que reforça sobremaneira seu reconhecimento como instituição que atua na esfera da cultura, a análise feita por Gramsci sobre os intelectuais confere algumas particularidades a este processo de formação. Apesar de desenvolver atividades que exigem alto grau de elaboração, como a produção do conhecimento científico, o que define o papel da universidade na formação do novo tipo de intelectual – na acepção gramsciana – não é exatamente a natureza e a organização interna do trabalho acadêmico nela desempenhado, e sim como ela se inscreve nas relações sociais, que função social desempenha na luta pela hegemonia na sociedade. Podemos tomar a universidade como um organismo de cultura a partir de uma dupla determinação: por ser uma instituição que tem como matéria-prima o trabalho 9 intelectual, os conhecimentos técnicos, científicos e filosóficos da realidade em suas mais diversas manifestações, lidando, em última instância, com valores, visões de mundo e práticas sócio-institucionais que contribuem para a elaboração e a difusão cultural na sociedade; e, em segundo lugar, porque participa ativamente de certas etapas do processo de constituição, formação e reprodução de alguns dos intelectuais orgânicos das classes dominantes4, sublinhando justamente o estatuto intelectual, o status social e a dimensão cultural das atividades que irão desenvolver. Temos então, a partir da inflexão fornecida pela discussão em torno dos intelectuais efetuada por Gramsci, que a universidade ao mesmo tempo em que conserva, no modo de produção capitalista, alguns traços que já a caracterizavam como organismo de cultura – presentes desde o modo de produção anterior –, como o fato de ter como função básica lidar com o trabalho e com a formação intelectual, também dele incorpora certas requisições e particularidades, como o fato de participar da institucionalização do processo de formação e reprodução de certas categorias de intelectuais orgânicos da burguesia. As alterações sofridas pela universidade guardam, no entanto, relação tanto com as evoluções e transformações da sociedade capitalista quanto com a sua própria dinâmica interna. Esta relação acaba justificando o alcance que estas mudanças adquirem, alterando, por vezes, sua estrutura e noutras sua organização e até mesmo suas funções. Apreender a complexa rede de determinações que existe entre estas mudanças internas e os fenômenos econômicos, políticos e culturais de cada formação social, nas suas mais diversas fases, faculta-nos, portanto, verificar não só o caráter histórico das transformações sofridas pela universidade como a aquisição de novas características. Além, é claro, de nos ajudar a compreender as implicações culturais regionais ou nacionais que fazem com que universidades que atuem numa mesma época possuam significativas diferenças em termos de funções e estrutura. 4 Tomando como referência a sociedade capitalista e os processos culturais e políticos hegemônicos, podemos dizer que a universidade, no atual formato do sistema educacional e na atual correlação das forças sociais, tende a formar os intelectuais orgânicos das classes dominantes, o que não significa dizer que este é um processo acabado. Muito ao contrário, as lutas travadas pela classe trabalhadora, especialmente no campo educacional, têm favorecido em muito o estabelecimento de uma tensão permanente no campo da formação profissional de nível superior, que vem revertendo em larga escala aquela direção. Ainda que estruturada para formar intelectuais orgânicos das classes dominantes, a universidade hoje, fortemente atravessada por outros projetos societários, vem favorecendo também a formação de significativos estratos intelectuais compromissados com a classe trabalhadora e os segmentos excluídos da sociedade. 10 Ainda nos limites desta rede de determinações, destacamos a relação da universidade com o sistema e as formas de organização escolar de cada região ou país, aspecto importante de ser considerado no processo de desvelamento tanto do grau de complexidade da vida cultural regional e/ou nacional quanto da função que nela desempenha a universidade. Salientamos, por último, que tendo como parâmetro, para a leitura da universidade como organismo de cultura, a reflexão gramsciana, trazemos à tona mais um conjunto de questões que devem ser observadas para um melhor e mais preciso entendimento das funções desta instituição. A cultura, na concepção do autor, implica uma teia complexa de atividades práticas, sejam elas organizativas, elaboradoras, difusoras ou persuasivas, que são desenvolvidas por intelectuais cujos papéis são demarcados justamente pela natureza distinta destas atividades. Assim, embora a emergência e constituição destas camadas de intelectuais decorram da função essencial que cada grupo social tem na esfera econômica, a ela, contudo, não se restringe a atuação deles, já que têm como finalidade primordial dar coesão ao próprio grupo social. Ao lidar, portanto, com a construção da consciência de um determinado grupo social, os intelectuais atuam privilegiadamente no nível das superestruturas, desempenhando esse amplo leque de papéis na organização da cultura. Para Gramsci, a cultura significa uma totalidade, uma dimensão da vida social, um dos palcos da luta pela hegemonia. Desta forma, a construção da hegemonia por uma das classes fundamentais é um processo que envolve tanto a luta pela direção política e econômica quanto cultural da sociedade. As transformações de uma dada ordem socioeconômica, segundo Gramsci, devem ser precedidas ou acompanhadas de uma ampla reforma intelectual e moral, de uma transformação essencialmente cultural que expresse uma hegemonia não só no campo político, mas no da cultura também. Gramsci enfatiza o papel destas reformas assinalando-as como fundamentais para a conquista do próprio Estado, da sociedade política, do núcleo do poder político. Nesta ordem, temos a hegemonia como um processo que se desenvolve fundamentalmente no âmbito da sociedade civil. Sua construção mobiliza, desta maneira, na dinâmica da sociedade civil as lutas pela direção do processo cultural, a busca de adesão e de consenso em torno de certos temas e valores. A universidade, como organismo de cultura, participa deste processo de organização da vida cultural 11 atuando através da produção e da socialização de conhecimentos no estabelecimento do consenso social necessário à superação ou manutenção de uma dada ordem social. E, enquanto aparelho privado de hegemonia, inscreve-se de forma bem particular, através das atividades que caracterizam a vida acadêmica, nas tramas institucionais que compõem a sociedade civil. Duas novas ordens de questões se apresentam, assim, para a análise da universidade e de sua função social. A primeira delas é a necessidade de mediatizar sua inscrição no âmbito da sociedade civil para melhor apreendermos as funções que ela cumpre no processo de luta pela hegemonia protagonizada pelas classes sociais. Conseqüentemente, tendo em vista o referencial gramsciano, isto implica na abordagem do próprio Estado – Estado ampliado – e da atuação reguladora que ele desenvolve, via políticas sociais, tanto da vida cultural quanto da organização escolar, das quais a universidade faz parte. A segunda diz respeito às relações entre a dinâmica da vida acadêmica e os temas e valores sociais em torno dos quais se dá a busca de adesão e de consenso na sociedade. As formas como se estabelecem estas relações, ou seja, a direção e a natureza dos vetores que orientam a vinculação da universidade às disputas ideológicas e políticas na sociedade, são importantes para a demarcação do nível e do tipo de envolvimento que a universidade tem com relação à vida cultural e ao processo de luta pela hegemonia. O entendimento da universidade como organismo de cultura, a partir da reflexão gramsciana, pressupõe o resgate de importantes movimentos de aproximação da realidade. Teórica e metodologicamente esta perspectiva de tratamento da universidade é parametrada por um olhar que recupera a sua história reconstituindo o jogo das múltiplas e mútuas determinações que a sua dinâmica interna e a própria realidade social, na qual ela se inscreve, têm. Portanto, como salientamos ao longo deste texto, para situarmos concretamente o significado da universidade num dado período da vida cultural de um país ou região, alguns procedimentos tornam-se imprescindíveis. Assim: demarcar como se relaciona a vida cultural com a dinâmica social, econômica e política; localizar os principais agentes, processos e instrumentos de elaboração e difusão cultural; reconhecer o pertencimento de classe destes agentes e os temas e valores em torno dos quais se dá o processo de busca de adesão e consenso social; entender a base sócio-institucional de 12 sustentação da universidade nas formas de organização escolar e da esfera da cultura; e, capturar as formas de relacionamento entre a vida acadêmica e a vida cultural, tornam-se preocupações e, de certa forma, orientações vitais para identificar o significado da universidade, ou as requisições que lhes são feitas, no processo de organização da cultura. REFERÊNCIAS CUNHA, Luiz Antonio. A universidade reformada: o golpe de 1964 e a modernização do ensino superior. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. JANOTTI, Aldo. Origens da universidade. São Paulo: EDUSP, 1992. LISBÔA, Maria da Graça Cavalcanti. A idéia de universidade no Brasil. Porto Alegre: Ed. EST, 1993. MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 2 ed. São Paulo: Cortez / Autores Associados, 1989. ______. O princípio educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. RIBEIRO, Darcy. A universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ULLMANN, Reinholdo & BOHNEN, Aloysio. A universidade das origens à renascença. São Leopoldo: Ed. UISINOS, 1994. 13