REINAÇÕES DE MONTEIRO LOBATO: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA. Luciana Haddad Ferreira, Ana Luisa Bueno Sobral, Raquel Andrade Hofstatter. Colégio Anglo Campinas Taquaral: Campinas - SP. “Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar” (Monteiro Lobato, 1974). Ler histórias, imaginar cenas, recriar personagens, vivenciar cada palavra trazida pelo autor. Fazer da Literatura Infantil uma experiência rica e inesquecível. Embora essa seja uma grande aspiração de muitos educadores quando o assunto é leitura e escrita, sabe-se que tornar esse objetivo em realidade nem sempre é tarefa fácil. Com este conceito em mente, buscaremos hoje relatar o percurso vivido por certo grupo de alunos e professores das séries iniciais do Ensino Fundamental da cidade de Campinas que se depararam com o universo encantador da leitura através das obras de Monteiro Lobato. Trata-se de uma análise sensível que busca, além da verificação de ganhos pedagógicos inerentes ao projeto desenvolvido, compartilhar a riqueza do processo de tornar-se leitor. Compreendemos, então, que trabalhar com Literatura não se restringe a decodificar, resumir ou assimilar textos prontos e acabados, mas sim vivenciar o processo imaginativo, criar possibilidades para a construção de conhecimentos que tenham significado para o sujeito. É, sobretudo, inspirar-se e comover-se com a obra lida, com os pensamentos e sentimentos presentes unicamente naquele livro. "Na origem da obra literária não está um acontecimento da vida do autor, mas só a emoção, desatada por esse acontecimento; a obra é tanto mais perfeita, quanto mais a emoção original está dominada, transformada em forma" (Carpeaux, O.). O trabalho aqui descrito não envolve apenas o livro e seu leitor. Muito além disso, trata-se da relação entre a Literatura e diferentes pessoas que, através das histórias lidas, conectam-se e partilham experiências, relacionam-se e interagem, formando uma teia que é desenhada dinamicamente. Mais do que falar sobre a experiência de ler livros, buscaremos relatar, neste curto espaço de tempo, a apropriação de conhecimentos que foi gerada através deste projeto. “Muitos homens iniciaram uma nova era na sua vida a partir da leitura de um livro” (Thoreau, W.). A importância da Literatura em nossa vida cotidiana é inquestionável, uma vez que, por meio dela, podemos aprender, ensinar e sentir. É fundamental que a mesma seja vista, além da leitura e da escrita, como uma experiência que possibilite o desenvolvimento em âmbito interpretativo, ou seja, a compreensão daquilo que se lê. Vygotsky (1998) afirma que a leitura é um sistema particular de símbolos e signos que, uma vez dominados pelo indivíduo, tem repercussão em todo o desenvolvimento cultural da criança. Nessa mesma linha, Bourdieu (1996) acredita que a língua falada e a escrita não são apenas um instrumento de comunicação ou de conhecimento, mas um instrumento de poder. O indivíduo não busca apenas ser compreendido, mas também acreditado, respeitado. Assim, acredita-se que a criança apropria-se do mundo da linguagem pela prática da escrita e da leitura, e para produzir seus próprios textos precisa ter contato constante e prazeroso com a Literatura Infantil e reconhecê-la como forma de manifestação cultural. No âmbito pedagógico, é papel do professor possibilitar situações nas quais as crianças possam interagir com as obras apresentadas, ampliando seus conhecimentos neste universo. Através desta experiência, a criança pode perceber o texto literário como elemento constitutivo do seu patrimônio histórico e cultural, como conquista pessoal e social, fonte de criatividade e observação. Desta forma, se o objetivo do professor é proporcionar uma relação prazerosa com a leitura, é necessário que a escolha do autor seja muito cuidadosa. Optamos pelas obras de Monteiro Lobato, uma vez que elas reúnem muitas qualidades e representam material ideal para base do projeto literário idealizado neste caso. Por apresentar-se como nacionalista convicto, Lobato permitiu-se explorar a cultura do país como nenhum outro autor, criando aventuras com personagens ligadas à cultura brasileira, recuperando costumes da roça e lendas do folclore. Todo seu trabalho esteve dedicado à luta pela preservação dos valores culturais e das riquezas do Brasil. Lobato dedicou mais da metade de seus livros para o público infanto-juvenil, com intenção de ajudar na formação intelectual e moral dos jovens. Seu estilo simples e direto, repleto de ironia, cativa os leitores, chama-os para participar de suas discussões. Além da experiência e do contato com um texto literário rico e criativo, um dos principais objetivos do projeto de trabalho aqui apresentado era oferecer às crianças meios e materiais com os quais elas pudessem, como leitoras, questionar, construir, discutir, elaborar, pesquisar e também criar suas próprias histórias. Isso se mostra importante uma vez que, através desse trabalho, as crianças puderam refletir e se apropriar de diferentes conceitos e valores culturais presentes nas obras trabalhadas. O exercício da escrita também esteve presente durante todo o desenvolvimento do projeto literário. Considerando a escrita como um ato íntimo e singular, que articula os aspectos eminentemente pessoais como a representação, a memória, a afetividade e o imaginário, acreditamos que não se pode fornecer a uma criança essa aprendizagem, mas sim oferecer meios para que ela construa sua bagagem pessoal e, a partir dela, desenvolva-se em diversos aspectos. Para melhor compreender o caminho aqui descrito, faz-se necessário saber de onde partiram os educadores: quais eram suas necessidades e expectativas, que lembranças e histórias tinham desta literatura especificamente. Nosso relato começa com a busca por parte dos educadores da Unidade por alternativas que fizessem do momento da leitura algo singular e realmente significativo para seus alunos. Partindo dessa inquietação, o projeto em questão começou a ser pensado e desenvolvido não só entre os professores, mas principalmente com os alunos, dando origem a uma proposta de trabalho muito rica e envolvente. A escolha pelo autor e sua obra se deu entre os educadores e aconteceu de forma espontânea e unânime: todos tinham lembranças significativamente positivas de leituras de Lobato e viam em suas histórias elementos atuais, de possível identificação por parte dos alunos, aliados a temas sociais importantes e um texto de elevada qualidade lingüística e estética. Essas qualidades, por sua vez, atendiam às necessidades que haviam sido sinalizadas pelas próprias crianças em diferentes momentos, dando claros sinais de que nem sempre a prática da leitura estava de fato se mostrando interessante para todos os grupos, tornando-se em alguns momentos mais um recurso pedagógico utilizado em sala de aula. Para Paulo Freire (1979), a educação só tem significado se estiver conectada com as necessidades reais dos membros envolvidos no processo e chama de “ensino bancário” aquele que se preocupa apenas em transferir conhecimentos, sem considerar as aspirações do sujeito. Assim, a educação só faz sentido se esta lhe trouxer algo que o permita compreender melhor e de forma mais crítica a si próprio e a sua cultura. A conseqüência desse processo é um ser sensível e consciente, capaz de apropriar-se dos conceitos e conteúdos escolares. “Transformar o mundo através do seu trabalho, dizer o mundo, expressá-lo e expressar-se é próprio dos seres humanos. A educação qualquer que seja o nível em que se vê, se fará tão mais verdadeira quanto mais estimule o desenvolvimento desta necessidade radical dos seres humanos, a de sua expressividade” (Paulo Freire, 1979). . Desde o início das discussões, houve sempre a preocupação de caracterizar a Literatura como uma manifestação artística essencial para a expressão e desenvolvimento do sujeito, com finalidade em si própria. Neste sentido, o projeto de trabalho foi se estruturando coletivamente, com o objetivo de incentivar, questionar e possibilitar novas experiências literárias, contribuindo para a formação de leitores críticos e autônomos. Mas de que adiantaria falar de Literatura se não fosse proporcionado espaço para a criação? O trabalho com Literatura nas séries iniciais do Ensino Fundamental aqui descrito foi elaborado de maneira a estimular as inventividades, a pesquisa, a exploração da intuição e da criatividade de forma autêntica. Espera-se que ao final do projeto se verifique o resultado de um processo de apropriação do indivíduo sobre o que já foi produzido por outros artistas, que represente algo significativo para quem o cria. Para Kandinsky (2000), “na Arte a teoria jamais precede a prática, assim como tampouco a comanda. É o contrário que sempre se produz. Aqui, sobretudo no começo, tudo é questão de sensibilidade”. Assim, entendendo Literatura como uma forma artística de expressão, não se pode compreender sua utilização em Educação com sentido puramente técnico, mas sim na possibilidade de ocorrência do gesto criador, capaz de proporcionar ao sujeito a vivência de experiências singulares, que o levem a perceber que pode encontrar uma forma de comunicação sensível a partir de sua espontaneidade e capacidade imaginativa. Sendo assim, antes de propor que os alunos vivenciassem esse processo, os próprios docentes sentiram a necessidade de aprofundar suas leituras e investigações pessoais acerca de Monteiro Lobato, deixando de relacionar-se com a obra apenas de maneira didática. Neste momento, a troca de experiências e a diversidade de percepções acerca do mesmo Lobato foram fundamentais para que o projeto de Literatura se consolidasse como proposta de trabalho para todas as disciplinas e anos iniciais do Ensino Fundamental. Com base nesta partilha, foi possível conhecer um artista que além de escritor era advogado, editor, fotógrafo, enxadrista, industrial do petróleo, pintor e muitas coisas mais. “Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as formas e maneiras possíveis” (Ítalo Calvino). Dentre as muitas facetas do artista, selecionamos algumas delas como foco de nosso trabalho, sendo que cada professor teve a percepção de levar para seu grupo diferentes possibilidades de trabalho, elaborando com os alunos a proposta que melhor se enquadrava ao perfil dos mesmos. Os títulos selecionados levaram em consideração os interesses específicos de cada faixa etária e os assuntos discutidos nas obras, relacionando-os ou não com os conteúdos curriculares de cada ano. Visto que nosso maior objetivo não era o de relacionar diretamente a Literatura escolhida com os conteúdos curriculares, os professores exploraram de diferentes maneiras e com muita criatividade as temáticas abordadas nos livros, somando às leituras as experiências de vida dos alunos e os assuntos que eram discutidos em cada área do conhecimento. Desta forma buscamos trazer para a produção literária das crianças um olhar mais atento, uma escrita espontânea, uma palavra, um som, uma reflexão ou um gesto, mesmo que não tão nitidamente relacionado com os textos lidos, mas sensivelmente influenciado por eles. Todos os educadores se envolveram no desenvolvimento do Projeto Literário e apresentaram diferentes estratégias para contextualizar as disciplinas curriculares nos assuntos dos livros de Monteiro Lobato. Segundo Emília Ferreiro (2000), o conhecimento é mais do que a soma das áreas, ele está na integração de um todo compreensível e, principalmente, na possibilidade de desenvolver no aluno a atitude de indagação, de pesquisa, de crítica. Sendo assim, a unidade de sentido e de idéias entre os professores era extremamente necessária para que a proposta se tornasse significativa para os alunos. Para Chartier (1996), a leitura é um encontro móvel, singular e ao mesmo tempo plural, construído na distância entre o sentido atribuído pelo autor e o uso do texto por um ou mais leitores de carne e osso. “As obras adquirem sentido num processo/tensão operatória: texto, objeto que lhe serve de suporte, práticas que dele se apoderam” (Chartier, 1996). Neste sentido as obras lidas proporcionaram o movimento de todas as áreas do saber que construíram de uma maneira interligada novas relações e novas reflexões sobre aquilo que tocou de maneira mais específica cada grupo de indivíduos. Procuramos relatar nesse texto as experiências vividas sem assumir a complexidade de cada trabalho individualmente, optando pela descrição dos momentos e lembranças que ficaram guardados em nossas memórias. “Os depoimentos exprimem experiências cotidianas individuais que se fazem em relação com outras experiências individuais em uma rede de interdependência, em uma dada configuração histórica” (Elias José, 1991). Um evento especialmente significativo, por exemplo, ocorreu nas aulas de música, onde todos os alunos tiveram a oportunidade de criar, juntamente com o professor de música, letras e melodias que estivessem relacionadas às personagens do Sítio do Picapau Amarelo. O enredo de suas histórias, as características e jeito de ser de algumas personagens foram temas para as músicas. Cada turma optou por um tipo de ritmo musical (rock, RAP, forró, balada etc.) e tudo foi sendo construído, ensaiado e modificado conforme os alunos percebiam o desenrolar das histórias lidas em sala. A experiência de cantar foi, neste caso, capaz de ligar por si só duas experiências distintas: ao colocarem suas vozes nas letras das musicas, os alunos enredam nos versos suas experiências de leitura. Colocar um texto na voz não significa somente um trabalho fonético sobre a escrita, mas uma incorporação dela, um corpo atravessando um texto em sons. A partir do momento em que o aluno percebe este movimento, corpo e linguagem se transformam em uma coisa só, capaz de tocar os sujeitos das mais diferentes maneiras, enriquecendo-os e desenvolvendo-os através de trabalhos e caminhos distintos. Após o trabalho de construção das músicas, as crianças se apresentaram para o público da escola e gravaram um CD, que foi entregue às famílias ao final do projeto. As aulas de Educação Física e recreação também foram contagiadas pelas brincadeiras tradicionais de Pedrinho e Narizinho. Dentre as muitas situações vividas, momentos especiais como o da construção do “pé de lata”, brinquedo que foi enfeitado pelos alunos inspirados em personagens do Sítio do Picapau Amarelo. Os alunos do 5o Ano, ao lerem “O Minotauro”, estabeleceram diversas relações, percebendo possibilidades de ampliar seus estudos acerca das constelações e sistemas solares, bem como conhecer outras histórias da mitologia grega. Em grupos, as crianças representaram algumas das constelações citadas nas obras e produziram textos com as personagens mitológicas que haviam pesquisado. Um ponto marcante deste trabalho foi a participação e envolvimento da família que, após acompanhar todo o processo de construção textual de seus filhos em casa, pôde não só prestigiar a mostra final dos trabalhos como também deixar registradas suas opiniões sobre a produção escrita de seus filhos, através de uma carta. A participação foi positiva para a maioria dos alunos que recebeu apoio e incentivo dos pais para continuar pesquisando e produzindo textos cada vez melhores. Sabemos que é importante para a criança que ela sinta prazer e alegria em produzir e apresentar seus trabalhos para os outros. Situações como essa podem contribuir para a formação de uma personalidade forte e autoconfiante, pois um aluno pode se perceber capaz de produzir idéias, belezas e trabalhos. Já as crianças do 4º ano leram o livro “Histórias da tia Nastácia”, uma reunião de contos populares brasileiros. Paralelamente a essa leitura, foi apresentada à turma a importância do folclore em todas as culturas, uma vez que essas histórias refletem o imaginário e a memória de cada povo. Foi desenvolvida também a leitura oral através de contos de diversos países, utilizando livros como “Lá vem história” de Heloísa Prieto e “Viagem pelo Brasil em 52 histórias” de Silvana Salerno. Foi interessante a percepção das crianças de que há histórias com o enredo parecido, porém, contadas de maneiras diferentes. Nesse momento foram apresentados a elas importantes folcloristas e historiadores – como Sílvio Romero, Mário de Andrade e Câmara Cascudo - que percorrendo o Brasil, puderam reunir essas narrativas e sistematizá-las. A partir do contato com esse tipo de narrativa, os professores do grupo enfatizaram em suas disciplinas possíveis relações com a obra de Monteiro Lobato. Em Língua Portuguesa, por exemplo, a professora conversou em sala sobre a estrutura dos contos, suas origens, suas características, suas diferenças em relação a outras narrativas e convidou as crianças a escreverem seus próprios contos, bem como outras produções. Surgiram histórias muito criativas, engraçadas e interessantes. Monteiro Lobato em toda a sua obra, especialmente nesse livro, trabalha muito a questão de comentário sobre a história lida, através das falas de Narizinho, Emília, Pedrinho e tia Nastácia. Para ele era essencial o desenvolvimento do espírito crítico nas crianças. Em cada roda de leitura, os comentários apresentados foram discutidos e analisados pelas crianças. Dessa forma, foi proposta à turma a seleção de livros que elas consideravam muito interessantes e a partir de um roteiro, a escrita de um comentário sobre cada história escolhida. Foram ressaltados pontos como a estrutura da história (personagens, enredo, local), passagem mais interessante, justificativa e convite a outros leitores para que conhecessem o livro. A professora de Ciências desse mesmo grupo também viu suas aulas serem transformadas pelas “Histórias de tia Nastácia”. Observando a riqueza de detalhes e informações presentes nas descrições que Monteiro Lobato faz do cenário do Sítio, levou os alunos a perceber a relevância desse preciosismo ao se realizar uma observação científica. Além disso, os próprios alunos, que haviam discutido recentemente com a professora sobre as diferentes espécies de árvores, puderam relacionar seus estudos com as árvores que são citadas nas obras de Monteiro Lobato, classificando-as e coletando informações sobre suas principais características. O resultado final do trabalho foi a construção de um livro, “Herbário”, com todas as pesquisas das árvores que fazem parte do universo do Sítio do Picapau Amarelo. No 3o ano, as crianças se envolveram muito com a leitura do livro “O Saci”. Dentre outras propostas, as crianças aprenderam a confeccionar um Saci de meia, que ficaria preso em uma garrafa. As crianças buscaram informações sobre a personagem no texto de Monteiro Lobato e discutiram como era preciso fazer para caçar um Saci. O grupo vivenciou o momento de costurar, montar e encher o corpo do seu próprio boneco. Para eles este foi um momento inesquecível, no qual a fantasia sugerida pela história pôde se traduzir em construção e realidade. O texto criou vida. O resultado foi a representação concreta da personagem apresentada pela história. O grupo do 2o ano se envolveu significativamente com a leitura de “Reinações de Narizinho”, conseguindo relacionar a obra com a história do livro “Guilherme Augusto Araújo Fernandes” que também estava sendo lido. A grande semelhança entre as duas histórias estava no fato de existirem em ambas as obras personagens crianças que se relacionavam de maneira bastante afetiva com pessoas idosas: Narizinho com Dona Benta e Guilherme Augusto com Dona Antônia. Surgiu aí a possibilidade de discutir com os alunos sobre a vida do idoso, conhecer seus Direitos, comparar com os Direitos das Crianças, conhecer sobre o modo de vida deles. A partir dessa relação, surgiu nas crianças o interesse em conhecer mais sobre seus próprios avós, bem como os de seus colegas. Sendo assim, foi possível promover uma rodada de visitas de alguns avôs e avós à escola, onde com muita alegria, contaram sobre suas memórias de infância, comparando-as com a infância de seus netos. Cada avô relatou suas experiências de hoje e do passado. Isso possibilitou desenvolvermos a capacidade de comparação e de respeito ao idoso, as marcas do passado, as memórias das pessoas de diferentes épocas e tempos históricos. A turma também se motivou para transformar uma boneca de pano usada, considerada pelas crianças como “bem velhinha”, na Emília da classe. Discutiram sobre a capacidade de transformação das coisas que são consideradas velhas e que, por isso, são consideradas desvalorizadas. Após um bom banho, roupa nova e alguns consertos, a boneca ficou, aos olhos dessas mesmas crianças, “muito linda”, e foi levada para a casa por todos os alunos, para socializar esta transformação tão importante com seus familiares. Partindo do livro “Fábulas de Monteiro Lobato”, os alunos do 1º ano puderam se aproximar do Lobato escritor e tradutor, adentrando ao universo literário das fábulas. "As fábulas em português (...) são pequenas moitas de amora do mato, espinhentas e impenetráveis. Um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se feito com arte e talento, dará coisa preciosa” (Monteiro Lobato, 1974). A cada história lida, o grupo se sentia muito animado em conhecer melhor os animais que a protagonizaram, indo buscar informações em diversas fontes. Um álbum de animais foi confeccionado para reunir todos os dados coletados, com muitas imagens e registros escritos sobre cada bicho. As crianças também realizaram uma pesquisa na escola para que todos os alunos da unidade escolhessem sua fábula preferida. Após a votação os alunos construíram um gráfico com os resultados obtidos. Os alunos se envolveram, recontaram as fábulas e perceberam que além da linguagem proposta pelos textos, outras formas de expressão podem ser experimentadas também, como aconteceu no campo da análise e da matemática. Além do Lobato escritor, os alunos do 1o ano também conheceram mais sobre o Lobato pintor... aprenderam que ele jamais escondeu sua paixão pela fotografia e pela pintura, e que gostaria de ter cursado uma escola de Belas Artes. Por imposição da família, acabou entrando para a Faculdade de Direito e se fez escritor, numa transposição vocacional com reflexos em toda sua obra. Mas nunca se conformou com isso: “No fundo não sou literato, sou pintor. Nasci pintor, mas como nunca peguei nos pincéis a sério arranjei, sem nenhuma premeditação, este derivativo de literatura, e nada mais tenho feito senão pintar com palavras" (Monteiro Lobato, 1974). De fato, Monteiro Lobato nos deixou obras cheias de cores e de formas como se fossem pinturas! Inspirados nessa paixão do autor, as crianças também pintaram, criaram, conheceram melhor os recursos da fotografia e das artes plásticas. Assim, os alunos puderam ampliar seu repertório expressivo, trabalhando com diversas possibilidades de registrar a mesma idéia. Os contextos diversos garantiram a possibilidade de tocar cada criança e de ajudá-la em seu desenvolvimento cognitivo, uma vez que cada sujeito possui uma maneira singular de exprimir suas emoções e de desenvolver seu pensamento. Os trabalhos possibilitaram discussões que promoveram o diálogo entre as diferentes formas de pensar e agir dos alunos que trocaram saberes e sentimentos, sobre como cada história narrada foi capaz de tocar-lhes, pois cada leitura nos remete, subjetivamente, a uma experiência, a leituras outras e vivências anteriores. Segundo Vygotsky (1998), embora a atividade significativa seja individual, dificilmente ela será solitária. Os alunos precisam interagir com os outros para construírem seus conhecimentos, a aprendizagem ocorre através de um diálogo entre os participantes. Pensando na importância de partilhar experiências e de proporcionar momentos coletivos, a escola promoveu um estudo do meio ao Sítio do Picapau Amarelo e ao Reino das Águas Claras, em Taubaté/SP. No Sítio, as crianças conheceram a casa onde morou o autor, local de inspiração para a criação das obras de Lobato. Também viram as árvores que rodeavam a casa do Sítio, conheceram o museu composto por móveis e objetos que pertenceram ao autor. Os alunos se encontraram com artistas vestidos como as personagens das histórias e assistiram a uma peça teatral adaptada do livro “O Saci”. Para chegar até o Reino das Águas Claras, viajaram de trem e tiveram a possibilidade de conhecer este antigo meio de transporte. Assim, momentos especiais de muita fantasia foram vivenciados por todo o grupo, em que a experiência, iniciada com a leitura das obras literárias, foi capaz de aguçar os sentidos: o toque, o andar, o cheiro, o ver e o ouvir. Todos interagiram com o universo antes só conhecido através dos livros. Após desenvolver muitas atividades e explorar amplamente os textos de Monteiro Lobato, foi realizada uma semana de troca de experiências entre todas as séries, com o objetivo de socializar o conhecimento produzido acerca de Monteiro Lobato, bem como apresentar à comunidade o que os alunos haviam desenvolvido. Durante essa semana, chamada pela equipe pedagógica de “Semana Literária”, foram realizadas diversas oficinas, proporcionando mais situações de vivências concretas e lúdicas. Em uma das oficinas, por exemplo, alunos e professores, fizeram biscoitos de sequilho e discutiram sobre o modo de viver das personagens do Sítio, que a partir de deliciosas receitas faziam seus próprios alimentos. Depois, cada criança decorou a sua lata para guardá-los. Em outra oficina, todos confeccionaram bonecos do Visconde de Sabugosa, utilizando para isso sabugos de milho. Ainda nessa semana, as turmas puderam assistir a antigos episódios do “Sítio do Picapau Amarelo” e em seguida conversar sobre semelhanças e diferenças entre a primeira temporada e a atual. Eles observaram diferenças nos atores, no cenário, na linguagem e até mesmo nos recursos técnicos. Os alunos também receberam a visita do professor de Literatura do Ensino Médio da escola, que lhes contou um pouco sobre sua experiência com os livros de Lobato, suas descobertas, o desenvolvimento do seu conhecimento e sua paixão pela leitura. O Projeto de Literatura de Monteiro Lobato encerrou-se com uma exposição aberta aos pais de todos os trabalhos desenvolvidos pelos alunos nesse período. Após uma breve apresentação das músicas e coreografias compostas por cada ano, cada grupo recebeu os visitantes em uma sala se aula, onde os trabalhos haviam sido organizados. De um modo geral, todas as experiências foram pensadas e elaboradas pela equipe pedagógica da escola, considerando as necessidades manifestadas pelo grupo de alunos atendido pela mesma. Unindo ingredientes como a sensibilidade e criatividade às situações de leitura propostas, foi possível despertar o poder mágico das palavras contidas nos livros, possibilitando às crianças o convívio com o universo que os textos literários lhes desvendam. Geraldi (2003), ao entender a língua como “portos de passagem”, como lugar de movimento, critica o ensino que se restringe a exercícios tarefeiros, que não ampliam e nem desenvolvam capacidades e habilidades nas crianças, em defesa da leitura que tenha sentido, que proporcione aprendizagens múltiplas. Sendo assim, a aprendizagem ocorreu a partir do momento em que as crianças desenvolveram seus saberes ou suas competências, com a mediação dos adultos e de seus pares. Isso se difere das atividades escolares que focalizam o ensino da leitura e da escrita como transmissão de conhecimentos, pois nossa proposta foi a de proporcionar aos alunos situações que lhes permitissem produzir saberes a partir da leitura e da escrita. Assim o processo passa a ter significado para os sujeitos envolvidos. A equipe pedagógica acreditava que o trabalho com as obras do Monteiro Lobato renderia bons frutos. Depois de todas as produções e reflexões das crianças, é possível perceber que conseguimos atingi-los além de nossas expectativas, pois os alunos foram tocados de formas diversas, possibilitando seu crescimento com ralação à escrita e também em outras áreas do conhecimento, que interligadas, construíram uma rede ampla de conceitos e conteúdos, um convite maravilhoso para um conhecimento em movimento. Referências Bibliográficas: BOURDIEU, P. e CHARTIER, R. “Práticas da Leitura” São Paulo: Estação Liberdade, 1996. CHARTIER, R. “A História Cultural entre Práticas e Representações”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. FERREIRO, E. “Com Todas as Letras”. São Paulo: Cortez, 2001. FREIRE, P. “Ação cultural para a liberdade”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. _________. “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa”. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GERALDI, J. W. (org.). “O texto na sala de aula”. São Paulo: Ática, 2002. GERALDI, J. W. “Portos de Passagem”. São Paulo: Martins Fontes: 2003. JOLIBERT, J. “Formando Crianças produtoras de textos”. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. KANDINSKY, W. “Do Espiritual na Arte”. São Paulo: Martins Fontes, 1996. LOBATO, M. “Cartas a Godofredo Rangel” 1974. RIBEIRO, L. F. “Entre Caixas de Pandora, Canastras de Emília, Bolsas Amarelas: Caçada de indícios da formação de leitores”. Dissertação de Mestrado / Unicamp, 2004. VYGOTSKY, L. S. “A Formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores”. 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