REINAÇÕES DE MONTEIRO LOBATO: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA.
Luciana Haddad Ferreira, Ana Luisa Bueno Sobral, Raquel Andrade Hofstatter.
Colégio Anglo Campinas Taquaral: Campinas - SP.
“Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar”
(Monteiro Lobato, 1974).
Ler histórias, imaginar cenas, recriar personagens, vivenciar cada palavra
trazida pelo autor. Fazer da Literatura Infantil uma experiência rica e inesquecível.
Embora essa seja uma grande aspiração de muitos educadores quando o assunto é
leitura e escrita, sabe-se que tornar esse objetivo em realidade nem sempre é tarefa
fácil.
Com este conceito em mente, buscaremos hoje relatar o percurso vivido por
certo grupo de alunos e professores das séries iniciais do Ensino Fundamental da
cidade de Campinas que se depararam com o universo encantador da leitura
através das obras de Monteiro Lobato. Trata-se de uma análise sensível que busca,
além da verificação de ganhos pedagógicos inerentes ao projeto desenvolvido,
compartilhar a riqueza do processo de tornar-se leitor.
Compreendemos, então, que trabalhar com Literatura não se restringe a
decodificar, resumir ou assimilar textos prontos e acabados, mas sim vivenciar o
processo imaginativo, criar possibilidades para a construção de conhecimentos que
tenham significado para o sujeito. É, sobretudo, inspirar-se e comover-se com a obra
lida, com os pensamentos e sentimentos presentes unicamente naquele livro.
"Na origem da obra literária não está um acontecimento da vida do autor, mas
só a emoção, desatada por esse acontecimento; a obra é tanto mais perfeita, quanto
mais a emoção original está dominada, transformada em forma" (Carpeaux, O.).
O trabalho aqui descrito não envolve apenas o livro e seu leitor. Muito além
disso, trata-se da relação entre a Literatura e diferentes pessoas que, através das
histórias lidas, conectam-se e partilham experiências, relacionam-se e interagem,
formando uma teia que é desenhada dinamicamente. Mais do que falar sobre a
experiência de ler livros, buscaremos relatar, neste curto espaço de tempo, a
apropriação de conhecimentos que foi gerada através deste projeto. “Muitos homens
iniciaram uma nova era na sua vida a partir da leitura de um livro” (Thoreau, W.).
A importância da Literatura em nossa vida cotidiana é inquestionável, uma
vez que, por meio dela, podemos aprender, ensinar e sentir. É fundamental que a
mesma seja vista, além da leitura e da escrita, como uma experiência que possibilite
o desenvolvimento em âmbito interpretativo, ou seja, a compreensão daquilo que se
lê.
Vygotsky (1998) afirma que a leitura é um sistema particular de símbolos e
signos que, uma vez dominados pelo indivíduo, tem repercussão em todo o
desenvolvimento cultural da criança. Nessa mesma linha, Bourdieu (1996) acredita
que a língua falada e a escrita não são apenas um instrumento de comunicação ou
de conhecimento, mas um instrumento de poder. O indivíduo não busca apenas ser
compreendido, mas também acreditado, respeitado.
Assim, acredita-se que a criança apropria-se do mundo da linguagem pela
prática da escrita e da leitura, e para produzir seus próprios textos precisa ter
contato constante e prazeroso com a Literatura Infantil e reconhecê-la como forma
de manifestação cultural. No âmbito pedagógico, é papel do professor possibilitar
situações nas quais as crianças possam interagir com as obras apresentadas,
ampliando seus conhecimentos neste universo. Através desta experiência, a criança
pode perceber o texto literário como elemento constitutivo do seu patrimônio
histórico e cultural, como conquista pessoal e social, fonte de criatividade e
observação.
Desta forma, se o objetivo do professor é proporcionar uma relação prazerosa
com a leitura, é necessário que a escolha do autor seja muito cuidadosa. Optamos
pelas obras de Monteiro Lobato, uma vez que elas reúnem muitas qualidades e
representam material ideal para base do projeto literário idealizado neste caso.
Por apresentar-se como nacionalista convicto, Lobato permitiu-se explorar a
cultura do país como nenhum outro autor, criando aventuras com personagens
ligadas à cultura brasileira, recuperando costumes da roça e lendas do folclore. Todo
seu trabalho esteve dedicado à luta pela preservação dos valores culturais e das
riquezas do Brasil. Lobato dedicou mais da metade de seus livros para o público
infanto-juvenil, com intenção de ajudar na formação intelectual e moral dos jovens.
Seu estilo simples e direto, repleto de ironia, cativa os leitores, chama-os para
participar de suas discussões.
Além da experiência e do contato com um texto literário rico e criativo, um dos
principais objetivos do projeto de trabalho aqui apresentado era oferecer às crianças
meios e materiais com os quais elas pudessem, como leitoras, questionar, construir,
discutir, elaborar, pesquisar e também criar suas próprias histórias. Isso se mostra
importante uma vez que, através desse trabalho, as crianças puderam refletir e se
apropriar de diferentes conceitos e valores culturais presentes nas obras
trabalhadas.
O exercício da escrita também esteve presente durante todo o
desenvolvimento do projeto literário. Considerando a escrita como um ato íntimo e
singular, que articula os aspectos eminentemente pessoais como a representação, a
memória, a afetividade e o imaginário, acreditamos que não se pode fornecer a uma
criança essa aprendizagem, mas sim oferecer meios para que ela construa sua
bagagem pessoal e, a partir dela, desenvolva-se em diversos aspectos.
Para melhor compreender o caminho aqui descrito, faz-se necessário saber
de onde partiram os educadores: quais eram suas necessidades e expectativas, que
lembranças e histórias tinham desta literatura especificamente.
Nosso relato começa com a busca por parte dos educadores da Unidade por
alternativas que fizessem do momento da leitura algo singular e realmente
significativo para seus alunos. Partindo dessa inquietação, o projeto em questão
começou a ser pensado e desenvolvido não só entre os professores, mas
principalmente com os alunos, dando origem a uma proposta de trabalho muito rica
e envolvente.
A escolha pelo autor e sua obra se deu entre os educadores e aconteceu de
forma espontânea e unânime: todos tinham lembranças significativamente positivas
de leituras de Lobato e viam em suas histórias elementos atuais, de possível
identificação por parte dos alunos, aliados a temas sociais importantes e um texto de
elevada qualidade lingüística e estética.
Essas qualidades, por sua vez, atendiam às necessidades que haviam sido
sinalizadas pelas próprias crianças em diferentes momentos, dando claros sinais de
que nem sempre a prática da leitura estava de fato se mostrando interessante para
todos os grupos, tornando-se em alguns momentos mais um recurso pedagógico
utilizado em sala de aula.
Para Paulo Freire (1979), a educação só tem significado se estiver conectada
com as necessidades reais dos membros envolvidos no processo e chama de
“ensino bancário” aquele que se preocupa apenas em transferir conhecimentos, sem
considerar as aspirações do sujeito. Assim, a educação só faz sentido se esta lhe
trouxer algo que o permita compreender melhor e de forma mais crítica a si próprio e
a sua cultura. A conseqüência desse processo é um ser sensível e consciente,
capaz de apropriar-se dos conceitos e conteúdos escolares.
“Transformar o mundo através do seu trabalho, dizer o mundo, expressá-lo e
expressar-se é próprio dos seres humanos. A educação qualquer que seja o nível
em que se vê, se fará tão mais verdadeira quanto mais estimule o desenvolvimento
desta necessidade radical dos seres humanos, a de sua expressividade” (Paulo
Freire, 1979).
.
Desde o início das discussões, houve sempre a preocupação de caracterizar
a Literatura como uma manifestação artística essencial para a expressão e
desenvolvimento do sujeito, com finalidade em si própria. Neste sentido, o projeto de
trabalho foi se estruturando coletivamente, com o objetivo de incentivar, questionar e
possibilitar novas experiências literárias, contribuindo para a formação de leitores
críticos e autônomos. Mas de que adiantaria falar de Literatura se não fosse
proporcionado espaço para a criação?
O trabalho com Literatura nas séries iniciais do Ensino Fundamental aqui
descrito foi elaborado de maneira a estimular as inventividades, a pesquisa, a
exploração da intuição e da criatividade de forma autêntica. Espera-se que ao final
do projeto se verifique o resultado de um processo de apropriação do indivíduo
sobre o que já foi produzido por outros artistas, que represente algo significativo
para quem o cria.
Para Kandinsky (2000), “na Arte a teoria jamais precede a prática, assim
como tampouco a comanda. É o contrário que sempre se produz. Aqui, sobretudo no
começo, tudo é questão de sensibilidade”. Assim, entendendo Literatura como uma
forma artística de expressão, não se pode compreender sua utilização em Educação
com sentido puramente técnico, mas sim na possibilidade de ocorrência do gesto
criador, capaz de proporcionar ao sujeito a vivência de experiências singulares, que
o levem a perceber que pode encontrar uma forma de comunicação sensível a partir
de sua espontaneidade e capacidade imaginativa.
Sendo assim, antes de propor que os alunos vivenciassem esse processo, os
próprios docentes sentiram a necessidade de aprofundar suas leituras e
investigações pessoais acerca de Monteiro Lobato, deixando de relacionar-se com a
obra apenas de maneira didática.
Neste momento, a troca de experiências e a diversidade de percepções
acerca do mesmo Lobato foram fundamentais para que o projeto de Literatura se
consolidasse como proposta de trabalho para todas as disciplinas e anos iniciais do
Ensino Fundamental. Com base nesta partilha, foi possível conhecer um artista que
além de escritor era advogado, editor, fotógrafo, enxadrista, industrial do petróleo,
pintor e muitas coisas mais.
“Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de
experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma
enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos,
onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as formas e
maneiras possíveis” (Ítalo Calvino).
Dentre as muitas facetas do artista, selecionamos algumas delas como foco
de nosso trabalho, sendo que cada professor teve a percepção de levar para seu
grupo diferentes possibilidades de trabalho, elaborando com os alunos a proposta
que melhor se enquadrava ao perfil dos mesmos. Os títulos selecionados levaram
em consideração os interesses específicos de cada faixa etária e os assuntos
discutidos nas obras, relacionando-os ou não com os conteúdos curriculares de
cada ano.
Visto que nosso maior objetivo não era o de relacionar diretamente a
Literatura escolhida com os conteúdos curriculares, os professores exploraram de
diferentes maneiras e com muita criatividade as temáticas abordadas nos livros,
somando às leituras as experiências de vida dos alunos e os assuntos que eram
discutidos em cada área do conhecimento.
Desta forma buscamos trazer para a produção literária das crianças um olhar
mais atento, uma escrita espontânea, uma palavra, um som, uma reflexão ou um
gesto, mesmo que não tão nitidamente relacionado com os textos lidos, mas
sensivelmente influenciado por eles.
Todos os educadores se envolveram no desenvolvimento do Projeto Literário
e apresentaram diferentes estratégias para contextualizar as disciplinas curriculares
nos assuntos dos livros de Monteiro Lobato. Segundo Emília Ferreiro (2000), o
conhecimento é mais do que a soma das áreas, ele está na integração de um todo
compreensível e, principalmente, na possibilidade de desenvolver no aluno a atitude
de indagação, de pesquisa, de crítica. Sendo assim, a unidade de sentido e de
idéias entre os professores era extremamente necessária para que a proposta se
tornasse significativa para os alunos.
Para Chartier (1996), a leitura é um encontro móvel, singular e ao mesmo
tempo plural, construído na distância entre o sentido atribuído pelo autor e o uso do
texto por um ou mais leitores de carne e osso. “As obras adquirem sentido num
processo/tensão operatória: texto, objeto que lhe serve de suporte, práticas que dele
se apoderam” (Chartier, 1996). Neste sentido as obras lidas proporcionaram o
movimento de todas as áreas do saber que construíram de uma maneira interligada
novas relações e novas reflexões sobre aquilo que tocou de maneira mais específica
cada grupo de indivíduos.
Procuramos relatar nesse texto as experiências vividas sem assumir a
complexidade de cada trabalho individualmente, optando pela descrição dos
momentos e lembranças que ficaram guardados em nossas memórias.
“Os depoimentos exprimem experiências cotidianas individuais que se fazem
em relação com outras experiências individuais em uma rede de interdependência,
em uma dada configuração histórica” (Elias José, 1991).
Um evento especialmente significativo, por exemplo, ocorreu nas aulas de
música, onde todos os alunos tiveram a oportunidade de criar, juntamente com o
professor de música, letras e melodias que estivessem relacionadas às personagens
do Sítio do Picapau Amarelo. O enredo de suas histórias, as características e jeito
de ser de algumas personagens foram temas para as músicas. Cada turma optou
por um tipo de ritmo musical (rock, RAP, forró, balada etc.) e tudo foi sendo
construído, ensaiado e modificado conforme os alunos percebiam o desenrolar das
histórias lidas em sala.
A experiência de cantar foi, neste caso, capaz de ligar por si só duas
experiências distintas: ao colocarem suas vozes nas letras das musicas, os alunos
enredam nos versos suas experiências de leitura. Colocar um texto na voz não
significa somente um trabalho fonético sobre a escrita, mas uma incorporação dela,
um corpo atravessando um texto em sons. A partir do momento em que o aluno
percebe este movimento, corpo e linguagem se transformam em uma coisa só,
capaz de tocar os sujeitos das mais diferentes maneiras, enriquecendo-os e
desenvolvendo-os através de trabalhos e caminhos distintos.
Após o trabalho de construção das músicas, as crianças se apresentaram
para o público da escola e gravaram um CD, que foi entregue às famílias ao final do
projeto.
As aulas de Educação Física e recreação também foram contagiadas pelas
brincadeiras tradicionais de Pedrinho e Narizinho. Dentre as muitas situações
vividas, momentos especiais como o da construção do “pé de lata”, brinquedo que
foi enfeitado pelos alunos inspirados em personagens do Sítio do Picapau Amarelo.
Os alunos do 5o Ano, ao lerem “O Minotauro”, estabeleceram diversas
relações, percebendo possibilidades de ampliar seus estudos acerca das
constelações e sistemas solares, bem como conhecer outras histórias da mitologia
grega. Em grupos, as crianças representaram algumas das constelações citadas nas
obras e produziram textos com as personagens mitológicas que haviam pesquisado.
Um ponto marcante deste trabalho foi a participação e envolvimento da família que,
após acompanhar todo o processo de construção textual de seus filhos em casa,
pôde não só prestigiar a mostra final dos trabalhos como também deixar registradas
suas opiniões sobre a produção escrita de seus filhos, através de uma carta. A
participação foi positiva para a maioria dos alunos que recebeu apoio e incentivo dos
pais para continuar pesquisando e produzindo textos cada vez melhores.
Sabemos que é importante para a criança que ela sinta prazer e alegria em
produzir e apresentar seus trabalhos para os outros. Situações como essa podem
contribuir para a formação de uma personalidade forte e autoconfiante, pois um
aluno pode se perceber capaz de produzir idéias, belezas e trabalhos.
Já as crianças do 4º ano leram o livro “Histórias da tia Nastácia”, uma reunião
de contos populares brasileiros. Paralelamente a essa leitura, foi apresentada à
turma a importância do folclore em todas as culturas, uma vez que essas histórias
refletem o imaginário e a memória de cada povo. Foi desenvolvida também a leitura
oral através de contos de diversos países, utilizando livros como “Lá vem história” de
Heloísa Prieto e “Viagem pelo Brasil em 52 histórias” de Silvana Salerno. Foi
interessante a percepção das crianças de que há histórias com o enredo parecido,
porém, contadas de maneiras diferentes. Nesse momento foram apresentados a
elas importantes folcloristas e historiadores – como Sílvio Romero, Mário de
Andrade e Câmara Cascudo - que percorrendo o Brasil, puderam reunir essas
narrativas e sistematizá-las.
A partir do contato com esse tipo de narrativa, os professores do grupo
enfatizaram em suas disciplinas possíveis relações com a obra de Monteiro Lobato.
Em Língua Portuguesa, por exemplo, a professora conversou em sala sobre a
estrutura dos contos, suas origens, suas características, suas diferenças em relação
a outras narrativas e convidou as crianças a escreverem seus próprios contos, bem
como outras produções. Surgiram histórias muito criativas, engraçadas e
interessantes.
Monteiro Lobato em toda a sua obra, especialmente nesse livro, trabalha
muito a questão de comentário sobre a história lida, através das falas de Narizinho,
Emília, Pedrinho e tia Nastácia. Para ele era essencial o desenvolvimento do espírito
crítico nas crianças. Em cada roda de leitura, os comentários apresentados foram
discutidos e analisados pelas crianças.
Dessa forma, foi proposta à turma a seleção de livros que elas consideravam
muito interessantes e a partir de um roteiro, a escrita de um comentário sobre cada
história escolhida. Foram ressaltados pontos como a estrutura da história
(personagens, enredo, local), passagem mais interessante, justificativa e convite a
outros leitores para que conhecessem o livro.
A professora de Ciências desse mesmo grupo também viu suas aulas serem
transformadas pelas “Histórias de tia Nastácia”. Observando a riqueza de detalhes e
informações presentes nas descrições que Monteiro Lobato faz do cenário do Sítio,
levou os alunos a perceber a relevância desse preciosismo ao se realizar uma
observação científica. Além disso, os próprios alunos, que haviam discutido
recentemente com a professora sobre as diferentes espécies de árvores, puderam
relacionar seus estudos com as árvores que são citadas nas obras de Monteiro
Lobato, classificando-as e coletando informações sobre suas principais
características. O resultado final do trabalho foi a construção de um livro, “Herbário”,
com todas as pesquisas das árvores que fazem parte do universo do Sítio do
Picapau Amarelo.
No 3o ano, as crianças se envolveram muito com a leitura do livro “O Saci”.
Dentre outras propostas, as crianças aprenderam a confeccionar um Saci de meia,
que ficaria preso em uma garrafa. As crianças buscaram informações sobre a
personagem no texto de Monteiro Lobato e discutiram como era preciso fazer para
caçar um Saci. O grupo vivenciou o momento de costurar, montar e encher o corpo
do seu próprio boneco. Para eles este foi um momento inesquecível, no qual a
fantasia sugerida pela história pôde se traduzir em construção e realidade. O texto
criou vida. O resultado foi a representação concreta da personagem apresentada
pela história.
O grupo do 2o ano se envolveu significativamente com a leitura de “Reinações
de Narizinho”, conseguindo relacionar a obra com a história do livro “Guilherme
Augusto Araújo Fernandes” que também estava sendo lido. A grande semelhança
entre as duas histórias estava no fato de existirem em ambas as obras personagens
crianças que se relacionavam de maneira bastante afetiva com pessoas idosas:
Narizinho com Dona Benta e Guilherme Augusto com Dona Antônia. Surgiu aí a
possibilidade de discutir com os alunos sobre a vida do idoso, conhecer seus
Direitos, comparar com os Direitos das Crianças, conhecer sobre o modo de vida
deles.
A partir dessa relação, surgiu nas crianças o interesse em conhecer mais
sobre seus próprios avós, bem como os de seus colegas. Sendo assim, foi possível
promover uma rodada de visitas de alguns avôs e avós à escola, onde com muita
alegria, contaram sobre suas memórias de infância, comparando-as com a infância
de seus netos. Cada avô relatou suas experiências de hoje e do passado. Isso
possibilitou desenvolvermos a capacidade de comparação e de respeito ao idoso, as
marcas do passado, as memórias das pessoas de diferentes épocas e tempos
históricos.
A turma também se motivou para transformar uma boneca de pano usada,
considerada pelas crianças como “bem velhinha”, na Emília da classe. Discutiram
sobre a capacidade de transformação das coisas que são consideradas velhas e
que, por isso, são consideradas desvalorizadas. Após um bom banho, roupa nova e
alguns consertos, a boneca ficou, aos olhos dessas mesmas crianças, “muito linda”,
e foi levada para a casa por todos os alunos, para socializar esta transformação tão
importante com seus familiares.
Partindo do livro “Fábulas de Monteiro Lobato”, os alunos do 1º ano puderam
se aproximar do Lobato escritor e tradutor, adentrando ao universo literário das
fábulas.
"As fábulas em português (...) são pequenas moitas de amora do mato,
espinhentas e impenetráveis. Um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos
exóticos, se feito com arte e talento, dará coisa preciosa” (Monteiro Lobato, 1974).
A cada história lida, o grupo se sentia muito animado em conhecer melhor os
animais que a protagonizaram, indo buscar informações em diversas fontes. Um
álbum de animais foi confeccionado para reunir todos os dados coletados, com
muitas imagens e registros escritos sobre cada bicho.
As crianças também realizaram uma pesquisa na escola para que todos os
alunos da unidade escolhessem sua fábula preferida. Após a votação os alunos
construíram um gráfico com os resultados obtidos. Os alunos se envolveram,
recontaram as fábulas e perceberam que além da linguagem proposta pelos textos,
outras formas de expressão podem ser experimentadas também, como aconteceu
no campo da análise e da matemática.
Além do Lobato escritor, os alunos do 1o ano também conheceram mais sobre
o Lobato pintor... aprenderam que ele jamais escondeu sua paixão pela fotografia e
pela pintura, e que gostaria de ter cursado uma escola de Belas Artes. Por
imposição da família, acabou entrando para a Faculdade de Direito e se fez escritor,
numa transposição vocacional com reflexos em toda sua obra. Mas nunca se
conformou com isso:
“No fundo não sou literato, sou pintor. Nasci pintor, mas como nunca peguei
nos pincéis a sério arranjei, sem nenhuma premeditação, este derivativo de
literatura, e nada mais tenho feito senão pintar com palavras" (Monteiro Lobato,
1974).
De fato, Monteiro Lobato nos deixou obras cheias de cores e de formas como
se fossem pinturas! Inspirados nessa paixão do autor, as crianças também pintaram,
criaram, conheceram melhor os recursos da fotografia e das artes plásticas. Assim,
os alunos puderam ampliar seu repertório expressivo, trabalhando com diversas
possibilidades de registrar a mesma idéia. Os contextos diversos garantiram a
possibilidade de tocar cada criança e de ajudá-la em seu desenvolvimento cognitivo,
uma vez que cada sujeito possui uma maneira singular de exprimir suas emoções e
de desenvolver seu pensamento.
Os trabalhos possibilitaram discussões que promoveram o diálogo entre as
diferentes formas de pensar e agir dos alunos que trocaram saberes e sentimentos,
sobre como cada história narrada foi capaz de tocar-lhes, pois cada leitura nos
remete, subjetivamente, a uma experiência, a leituras outras e vivências anteriores.
Segundo Vygotsky (1998), embora a atividade significativa seja individual,
dificilmente ela será solitária. Os alunos precisam interagir com os outros para
construírem seus conhecimentos, a aprendizagem ocorre através de um diálogo
entre os participantes.
Pensando na importância de partilhar experiências e de proporcionar
momentos coletivos, a escola promoveu um estudo do meio ao Sítio do Picapau
Amarelo e ao Reino das Águas Claras, em Taubaté/SP. No Sítio, as crianças
conheceram a casa onde morou o autor, local de inspiração para a criação das
obras de Lobato. Também viram as árvores que rodeavam a casa do Sítio,
conheceram o museu composto por móveis e objetos que pertenceram ao autor.
Os alunos se encontraram com artistas vestidos como as personagens das
histórias e assistiram a uma peça teatral adaptada do livro “O Saci”. Para chegar até
o Reino das Águas Claras, viajaram de trem e tiveram a possibilidade de conhecer
este antigo meio de transporte. Assim, momentos especiais de muita fantasia foram
vivenciados por todo o grupo, em que a experiência, iniciada com a leitura das obras
literárias, foi capaz de aguçar os sentidos: o toque, o andar, o cheiro, o ver e o ouvir.
Todos interagiram com o universo antes só conhecido através dos livros.
Após desenvolver muitas atividades e explorar amplamente os textos de
Monteiro Lobato, foi realizada uma semana de troca de experiências entre todas as
séries, com o objetivo de socializar o conhecimento produzido acerca de Monteiro
Lobato, bem como apresentar à comunidade o que os alunos haviam desenvolvido.
Durante essa semana, chamada pela equipe pedagógica de “Semana Literária”,
foram realizadas diversas oficinas, proporcionando mais situações de vivências
concretas e lúdicas.
Em uma das oficinas, por exemplo, alunos e professores, fizeram biscoitos de
sequilho e discutiram sobre o modo de viver das personagens do Sítio, que a partir
de deliciosas receitas faziam seus próprios alimentos. Depois, cada criança decorou
a sua lata para guardá-los. Em outra oficina, todos confeccionaram bonecos do
Visconde de Sabugosa, utilizando para isso sabugos de milho.
Ainda nessa semana, as turmas puderam assistir a antigos episódios do “Sítio
do Picapau Amarelo” e em seguida conversar sobre semelhanças e diferenças entre
a primeira temporada e a atual. Eles observaram diferenças nos atores, no cenário,
na linguagem e até mesmo nos recursos técnicos. Os alunos também receberam a
visita do professor de Literatura do Ensino Médio da escola, que lhes contou um
pouco sobre sua experiência com os livros de Lobato, suas descobertas, o
desenvolvimento do seu conhecimento e sua paixão pela leitura.
O Projeto de Literatura de Monteiro Lobato encerrou-se com uma exposição
aberta aos pais de todos os trabalhos desenvolvidos pelos alunos nesse período.
Após uma breve apresentação das músicas e coreografias compostas por cada ano,
cada grupo recebeu os visitantes em uma sala se aula, onde os trabalhos haviam
sido organizados.
De um modo geral, todas as experiências foram pensadas e elaboradas pela
equipe pedagógica da escola, considerando as necessidades manifestadas pelo
grupo de alunos atendido pela mesma. Unindo ingredientes como a sensibilidade e
criatividade às situações de leitura propostas, foi possível despertar o poder mágico
das palavras contidas nos livros, possibilitando às crianças o convívio com o
universo que os textos literários lhes desvendam.
Geraldi (2003), ao entender a língua como “portos de passagem”, como lugar
de movimento, critica o ensino que se restringe a exercícios tarefeiros, que não
ampliam e nem desenvolvam capacidades e habilidades nas crianças, em defesa da
leitura que tenha sentido, que proporcione aprendizagens múltiplas.
Sendo assim, a aprendizagem ocorreu a partir do momento em que as
crianças desenvolveram seus saberes ou suas competências, com a mediação dos
adultos e de seus pares. Isso se difere das atividades escolares que focalizam o
ensino da leitura e da escrita como transmissão de conhecimentos, pois nossa
proposta foi a de proporcionar aos alunos situações que lhes permitissem produzir
saberes a partir da leitura e da escrita. Assim o processo passa a ter significado para
os sujeitos envolvidos.
A equipe pedagógica acreditava que o trabalho com as obras do Monteiro
Lobato renderia bons frutos. Depois de todas as produções e reflexões das crianças,
é possível perceber que conseguimos atingi-los além de nossas expectativas, pois
os alunos foram tocados de formas diversas, possibilitando seu crescimento com
ralação à escrita e também em outras áreas do conhecimento, que interligadas,
construíram uma rede ampla de conceitos e conteúdos, um convite maravilhoso para
um conhecimento em movimento.
Referências Bibliográficas:
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Liberdade, 1996.
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Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
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_________. “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa”.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
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GERALDI, J. W. “Portos de Passagem”. São Paulo: Martins Fontes: 2003.
JOLIBERT, J. “Formando Crianças produtoras de textos”. Porto Alegre: Artes
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KANDINSKY, W. “Do Espiritual na Arte”. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
LOBATO, M. “Cartas a Godofredo Rangel” 1974.
RIBEIRO, L. F. “Entre Caixas de Pandora, Canastras de Emília, Bolsas Amarelas:
Caçada de indícios da formação de leitores”. Dissertação de Mestrado /
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VYGOTSKY, L. S. “A Formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos
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