15 15 Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, 15-24 Sobre a situação analítica: a experiência de psicoterapia psicanalítica no hospital universitário da Unicamp Débora Siqueira Bueno e Mário Eduardo Costa Pereira E ste artigo descreve a experiência de implantação e funcionamento de um serviço ambulatorial de psicoterapia psicanalítica em um hospital universitário. Apresentam-se algumas dificuldades e alternativas para tornar possível a instalação da situação analítica em contextos clínicos muito diversos daqueles originalmente pensados por Freud, num esforço de elaboração metapsicológica do tratamento proposto. Em relação aos desafios que se colocam neste processo de fundação de uma proposta clínica, destacam-se as questões ligadas à transferência, ao setting e à direção do tratamento. Palavras-chave: Psicoterapia psicanalítica, situação analítica, transferência, setting T h e experience of implementing and operating a psychoanalytical psychotherapy service in a university hospital is described here. In an effort to establish a metapsychological approach to the proposed treatment, the author discusses difficulties and alternative forms of treatment related to the process of introducing an analytical situation into contexts that are very different from those originally imagined by Freud. The questions of transference, setting, and direction of treatment are highlighted in this discussion on the challenges that emerge in developing this type of clinical proposal. Key words: Psychoanalytical psychotherapy, analytical situation, transference, setting Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, maio 2002 16 A Débora Siqueira Bueno e Mário Eduardo Costa Pereira questão é antiga. Trata-se do desafio de se instalar a situação analítica em contextos clínicos muito diversos daqueles originalmente pensados por Freud e posteriormente sedimentados nas formas aceitas em nosso tempo como tratamentos-tipo. Assim considerado, o termo “situação analítica” definiria a condição transferencial e técnica particular capaz de sustentar, face a um sujeito que sofre com seus sintomas, o enigma de seu inconsciente e o desejo de elucidação do saber que supostamente ele comporta. Tal condição clínico-transferencial daria consistência de portadora potencial de verdade à palavra livremente produzida pelo sujeito e autorizaria a intervenção do ato psicanalítico, no sentido de confrontar o sujeito às implicações simbólicas de seu próprio dizer. É a instauração de tal situação que garante o qualificativo de “psicanalítico” a uma proposta clínica, quer esta se dê nas condições habituais de setting ou não. Nesse último caso, chamaremos a tal dispositivo clínico de “psicoterapia psicanalítica”. Sem dúvida, trata-se de uma aposta. Não se partiu da pergunta esterilizante de se é possível ou não instalar a situação analítica em condições radicalmente diferentes do chamado setting-padrão. Ao contrário, aceitou-se o desafio de tornar possível a instalação da situação analítica – legítima do ponto de vista da metapsicologia da cura – em contextos de atividade clínica que não os da prática liberal de consultórios privados aos quais estamos habituados. O que aqui será chamado de “psicoterapia psicanalítica” não tem qualquer relação com algum suposto ideal médico de curar ou aliviar o sofrimento mediante o acréscimo de sentidos fornecidos pelo psicoterapeuta, ordenados por uma pretensa teoria compreensiva do funcionamento mental. Tampouco se coloca como um esforço normalizante que busque a adaptação do comportamento do sujeito a uma realidade concebida como objetiva. Não se recorre ao aconselhamento, ao consolo puro e simples ou à influência empática. Talvez fosse mais apropriado – e menos gerador de confusão – manter singelamente o nome “psicanálise”, embora realizada em contextos que não aquele do setting habitual. Contudo, tal escolha repousa sobre motivos de ordem estratégica que ficarão claros mais adiante. Em termos positivos, e em uma primeira aproximação – ainda que provisória –, a psicoterapia psicanalítica, tal como é aqui concebida, inscreve-se na definição freudiana de uma seeliche Behandlung: um tratamento do psíquico pelo psíquico, ou seja, pela palavra. O cuidado “manual” e a posição de “mansuetude” implicados nesse processo, Be-hand – lung, fundam-se na recusa da influência e da sugestão e na busca da produção de um dispositivo de fala em transferência, que interpela menos o sentido do que o Real organizado pela fantasia. Este processo pode, então, conduzir a um encontro e a uma tomada de posição face ao próprio desejo. Entretanto, o dispositivo para se alcançar Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, maio 2002 A experiência de psicoterapia psicanalítica no hospital universitário... esse ousado objetivo diverge em várias dimensões daquele originalmente concebido por Freud em um contexto burguês, liberal, diádico e mediado pelo pagamento direto da parte do paciente por um serviço “médico” prestado. Dessa forma, pensar e pesquisar a psicoterapia assim definida implica no audacioso desafio de refundar a clínica psicanalítica em novos contextos. É nesse sentido que nos associamos à posição radical de Pierre Fédida (2001, p. 165) que definiu “psicoterapia psicanalítica” como “uma análise complicada”, convocando os psicanalistas a tomarem consciência de “toda a extensão ao mesmo tempo técnica e teórica desta complicação”. É de uma experiência, por certo arriscada e ainda incompleta, que esse trabalho visa a dar, se não conta, ao menos notícia. Não se pretende aqui fornecer uma resposta inequívoca para tamanho desafio, mas, antes, realizar um recenseamento de algumas das grandes questões com as quais a equipe se defrontou durante o percurso até agora realizado. Tal desafio é, como foi dito, arriscado, mas não enfrentá-lo também o é, pois limitaria o avanço da pesquisa em psicanálise em novos contextos clínicos e, sobretudo, deixaria sem alternativa aqueles que sofrem sem ter recurso a uma possibilidade de escuta analítica. 17 A CRIAÇÃO DO AMBULATÓRIO DE PSICOTERAPIA PSICANALÍTICA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS – UNICAMP Este artigo pretende investigar e discutir alguns aspectos da clínica psicanalítica quando inserida em um serviço público, universitário, onde se dão atividades de assistência, ensino e pesquisa. As questões que serão apresentadas e que motivaram essa investigação surgiram a partir do trabalho da equipe responsável pelo Ambulatório de Psicoterapia Psicanalítica do Hospital das Clínicas da UNICAMP. Esta experiência permitiu ao coordenador1 e aos supervisores2 não apenas participar diretamente da construção da proposta e do dispositivo psicanalíticos empregados, mas também acompanhar ao longo do tempo o cotidiano do trabalho realizado. Este tem sido um “posto de observação” privilegiado, que permite constatar como esse tipo de situação clínica introduz variáveis que incidem profundamente sobre o trabalho analítico. Embora estas derivem da singularidade do funcionamento deste serviço específico, o estudo das mesmas poderá contribuir para a discussão sobre as condições sob as quais a psicoterapia psicanalítica poderia fazer parte da assistência em saúde mental em serviços públicos. Isso implica em afirmar, desde logo, que para cada serviço que preten- 1. Dr. Mário Eduardo Costa Pereira. 2. Dr. Mário Eduardo Costa Pereira e Dra. Débora Siqueira Bueno. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, maio 2002 18 Débora Siqueira Bueno e Mário Eduardo Costa Pereira da implantar um dispositivo psicanalítico caberá a tarefa de elaborar continuamente a metapsicologia do processo de tratamento a que se propõe. Essa foi precisamente a atividade fundadora de Freud, que precisou continuamente teorizar a nova proposta clínica que estava a criar, sempre levado a lidar com as condições concretas que lhe eram dadas. Para situar o objeto deste trabalho, é preciso apresentar o serviço e um pouco de sua história. O CONTEXTO HISTÓRICO Em 1995, pouco depois de ter concluído seu doutorado em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise na Universidade de Paris VI , o Dr. Mário Eduardo Costa Pereira, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria (DPMP) da UNICAMP e um dos autores deste artigo, tomou a iniciativa de criar no Hospital das Clínicas (HC) daquela instituição um Ambulatório de Psicoterapia Psicanalítica. As primeiras pessoas que se associaram àquele projeto pioneiro foram a co-autora deste trabalho, Dra. Débora Siqueira Bueno, que permanece até hoje nas atividades de docência, supervisão e atendimento de pacientes que solicitam continuação do tratamento (como será visto mais adiante) e a professora Sônia Novaes Rezende. Essas três pessoas assumiram, assim, a responsabilidade da criação desse serviço, do desenvolvimento de sua proposta clínica e da sustentação das transferências necessárias para seu funcionamento em um plano propriamente psicanalítico. À época existiam condições particularmente favoráveis no Departamento para a implantação de tal proposta. Diferentemente daquilo que ocorre nos dias de hoje na maior parte dos departamentos universitários de psiquiatria, havia na UNICAMP uma atitude basicamente favorável à psicanálise. Na verdade, ao ser criado em 1966, o DPMP teve como primeiro chefe o doutor Roberto Pinto de Moura, eminente psicanalista da região. Contam algumas versões que esta indicação não foi aleatória, pois Zeferino Vaz, o legendário primeiro reitor daquela universidade, teria sido um grande simpatizante da psicanálise. Como a constituição dos primeiros institutos estava amplamente sob direta influência da reitoria, o jovem departamento de psiquiatria de sua universidade foi propositalmente concebido para ter uma orientação psicanalítica. Dez anos mais tarde, a chefia do DPMP foi confiada ao Prof. Dr. Maurício Knobel, renomado psicanalista argentino, internacionalmente conhecido por seus trabalhos sobre a hipercinesia infantil e sobre a clínica psicanalítica com crianças e adolescentes. Quando assumiu o cargo seu famoso livro A adolescência normal, de 1970, escrito em colaboração com Arminda Aberastury, já era uma referência incontornável para todos os que se ocupassem do tema. Logo em seguida foram criados cursos de especialização em infância e adolescência, de forte influência psicanalítica, que atraíram alunos de todo o Brasil. No campo do atendimento psicoterapêu- Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, maio 2002 A experiência de psicoterapia psicanalítica no hospital universitário... tico de adultos, contudo, não houve o mesmo sucesso de implantação de uma proposta psicanalítica sistematizada. Embora muitos professores do departamento fossem psicanalistas (das mais diversas orientações), e apesar da existência de um antigo projeto de se sistematizar uma prática ambulatorial dessa ordem, tal serviço nunca pôde de fato ser implantado. Durante todo o tempo foram feitos atendimentos de adultos baseados na teoria e na escuta psicanalíticas, mas que dependiam apenas de iniciativas isoladas de alguns docentes e residentes. Ao longo dos anos 1980 a psiquiatria mundial passou por fortes e decisivas modificações. Lentamente a psicanálise – que outrora havia ocupado uma posição hegemônica, sobretudo no contexto psiquiátrico norte-americano dos anos 1940 e 1950 – começava a entrar em declínio nesse campo médico e cedia lugar às classificações operacionais, às pesquisas de orientação epidemiológica e biológica e às abordagens psicofarmacológicas dos transtornos mentais. O cenário internacional não poderia deixar de estender sua influência sobre a psiquiatria brasileira, que se voltou para o esforço de buscar reconhecimento como especialidade médica de pleno direito, pela eliminação de toda 19 a influência de disciplinas que não estivessem rigorosamente submetidas ao modelo experimental de validação. Nessas condições, a psicanálise acabaria por perder espaço tanto como psicopatologia quanto como disciplina fundadora de propostas clínicas no campo da psiquiatria. Em meados dos anos 1990 o DPMP encontrava-se diante da ambígua situação de buscar a consolidação de seu projeto de desenvolvimento de uma prática psicanalítica com adultos, ao mesmo tempo em que a psicanálise já declinava de importância no campo psiquiátrico. Foi assim que, naquele momento e naquela conjuntura histórica, reuniu-se um grupo de trabalho, formado por pessoas com interesses comuns pela psicanálise, que se empenhou em implantar um espaço para a clínica e para o ensino.3 A forma encontrada foi a criação de um estágio de psicoterapia psicanalítica, de um ano de duração, cujo programa poderia acolher também residentes do terceiro ano de psiquiatria que desejassem se aprofundar nessa área. Desde o início o modelo escolhido, de estágio – e não de curso de extensão ou de especialização –, responderia a uma questão de princípios. Não se tratava de formar “especialistas” em psicanálise ou 3. A configuração da equipe de professores e supervisores do APP apresentou algumas modificações ao longo do tempo. A coordenação coube ao Dr. Mário E. C. Pereira que, ao lado da Dra. Débora Siqueira Bueno, constituem os dois remanescentes do grupo inicial, do qual também fazia parte a Profa. Sônia Novaes de Rezende. Durante algum tempo, contamos com a participação dos professores Ruth Cerqueira Leite, Roosevelt S. Cassorla, Luiz Carlos Tarelho e Paulo Roberto Ceccarelli. Em seguida, também passaram a integrar a equipe as Dras. Vera Lamanno, Eloísa Helena Valer Celeri, Adriana Campos de Cerqueira Leite e Luciana Gomes Balbo. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, maio 2002 20 Débora Siqueira Bueno e Mário Eduardo Costa Pereira em psicoterapia psicanalítica. Não seriam dados nem um diploma de formação psicanalítica sensu strictu, nem a autorização como psicanalista pela via universitária. Tratava-se, de fato, de se oferecer um “estágio”, ou seja, um período delimitado em um percurso pessoal da formação psicanalítica que pressupunha um “antes” e um “depois”. Buscava-se, sobretudo, que aquele período do “durante” fosse o mais fecundo possível ao expor o estagiário a uma intensa prática de escuta e de sustentação da transferência. Os candidatos foram admitidos após passarem por uma entrevista na qual deveriam explicitar seu interesse pela proposta do estágio. Além disso, também foram levados em conta durante a seleção o percurso acadêmico e clínico, a experiência psicanalítica anterior e a análise pessoal de cada um. A partir de então o atendimento em psicoterapia psicanalítica foi estruturado vinculado a esse estágio e passou a acontecer de forma sistematizada. A opção pela denominação de “Ambulatório de Psicoterapia Psicanalítica” obedeceu, antes de tudo, a questões estratégicas. Consideramos que o termo “psicoterapia psicanalítica” encontraria um acolhimento muito mais direto e assimilável pelas instâncias administrativas da instituição do que as alternativas “Ambulatório” ou “Serviço de Psicanálise”. De fato, a proposta foi imediatamente aceita, o estágio autorizado e o serviço oficialmente implantado. Foi feita, assim, a aposta – sem garantias a priori – de que seria possível instalar uma legítima situação analítica naquele contexto de psicoterapia. NAS FENDAS DA INSTITUIÇÃO O trabalho clínico ocorre em um ambulatório de saúde mental de um hospital universitário, referência para a assistência médica secundária e terciária na região de Campinas, no interior do Estado de São Paulo. Esse ambulatório possui vários serviços voltados para o atendimento de adultos, tais como psiquiatria clínica, atendimento psiquiátrico de patologias específicas (ambulatório de psicóticos, de transtornos afetivos, de dependências químicas, etc.), psicoterapia de grupo e de família, entre outros. O Ambulatório de Psicoterapia Psicanalítica passou a constituir, assim, um dos subserviços especializados do Ambulatório de Saúde Mental de Adultos do HCUNICAMP e em pouco tempo recebeu uma demanda significativa de pacientes (atualmente responde por cerca de um terço do total dos atendimentos ambulatoriais de adultos). Os pacientes chegam ao Ambulatório de Saúde Mental de Adultos por diferentes vias: encaminhamentos de Centros de Saúde da região, encaminhamentos sob a forma de interconsultas de outros setores do Hospital (ambulatórios ou enfermarias), pronto-socorro, enfermaria de psiquiatria e procura espontânea. Constituem, portanto, um grupo muito heterogêneo, tanto no que diz respeito às patologias que apresentam quanto à gravidade das mesmas. Todos os pacientes são previamente avaliados pela psiquiatria e só então encaminhados para o serviço de psicoterapia. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, maio 2002 A experiência de psicoterapia psicanalítica no hospital universitário... Tal procedimento garante ao psicoterapeuta a liberdade institucional de não precisar se ocupar diretamente de eventuais intercorrências psiquiátricas com seus pacientes, uma vez que todos têm um psiquiatra de referência a quem podem recorrer diretamente em caso de necessidade. Deste modo, apesar de dividirem o mesmo espaço físico e manterem contatos pessoais informais, as equipes de psiquiatria e psicoterapia psicanalítica preservam a independência de suas respectivas atividades. Esta posição do serviço de psicoterapia, ao mesmo tempo interna e externa em relação à instituição, permite a sustentação de transferências sem que os ideais psiquiátricos estejam diretamente implicados no trabalho clínico. Em relação ao estágio, os alunos devem realizar um mínimo de doze horas semanais de atendimento. Outras doze horas são ocupadas por cursos de teoria e clínica psicanalíticas, três supervisões em grupo e uma supervisão individual. Os alunos podem ainda recorrer a seus supervisores, a qualquer momento, em caso de necessidade. Quanto à proposta clínica, havia desde o início o consenso entre os docentes do grupo de que não se pretendia criar um serviço baseado nas chamadas “psicoterapias breves” ou “focais”. Estipulou-se, portanto, a seguinte relação contratual: o paciente permaneceria com o psicoterapeuta com quem iniciara o atendimento até fevereiro do ano seguinte (época em que termina o período de estágio). Após este prazo, aqueles que desejassem poderiam continuar no serviço, porém aten- 21 didos por outro profissional. Aceita esta condição, o psicoterapeuta conduzia um período de entrevistas preliminares até que o paciente formulasse com clareza o pedido de análise. O trabalho clínico era então iniciado, seguindo a recomendação da livre associação. Dado o contexto médico em que ocorrem os encaminhamentos, um número significativo de pacientes chega ao serviço com a expectativa de receber passivamente um “tratamento” médico e alívio de seus sintomas. Durante as entrevistas preliminares alguns têm dificuldade de compreender a especificidade do espaço de palavra que lhes é oferecido e rapidamente se decepcionam quando percebem que o êxito do tratamento depende de uma implicação subjetiva. Como foi visto, tanto do ponto de vista prático quanto ético descobriu-se a importância de se constituir uma equipe de trabalho independente do grupo de psiquiatras, embora haja um grande convívio comum e troca informal de experiências entre estagiários e todos os demais membros do ambulatório. O que está em jogo é a possibilidade de se criar, no seio da instituição hospitalar, um espaço, uma fenda na qual o sujeito possa dar livre curso a sua palavra sem que a escuta a ela dirigida esteja orientada por ideais médicos de cura ou de reabilitação. Em algumas situações clínicas essa independência de campos é a própria condição de possibilidade para o trabalho psicanalítico. Pensa-se aqui em condições como a anorexia nervosa e as drogadições, nas quais a identificação pura e simples do psi- Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, maio 2002 22 Débora Siqueira Bueno e Mário Eduardo Costa Pereira coterapeuta com os ideais médicos constitui um obstáculo absolutamente intransponível para a instalação da situação analítica. A duração e a freqüência das sessões são determinadas pelo estagiário em interlocução com seu supervisor. Não são feitas restrições a priori quanto às condições psicopatológicas susceptíveis de serem atendidas, deixando-se, ainda aqui, a decisão de acolher ou não um pedido de psicoterapia ao próprio estagiário. Será a história das experiências concretas de psicoterapia que determinará as limitações da técnica e de suas indicações. UMA CLÍNICA QUE INTERROGA A TÉCNICA Ao longo dos sete anos de existência desse estágio inúmeras questões clínicas foram identificadas, o que implicou em constantes reformulações teóricas e práticas. Como visto, foram instaladas simultaneamente uma proposta de ensino e uma proposta clínica, ambas intrinsecamente relacionadas. A primeira revelou-se de execução mais simples e rapidamente apresentou resultados muito favoráveis. A segunda mostrou-se mais incerta e demandou um enorme esforço de elaboração metapsicológica do tratamento proposto, embora os resultados empíricos tenham sido igualmente encorajadores. Desde logo se observou que seria preciso lidar com diferentes planos transferenciais sobrepostos, que atuariam simultaneamente na situação analítica. O significante “UNICAMP”, por exemplo, estaria inseparavelmente implicado no contexto transferencial e, de certa forma, garantiria a continuidade de um processo analítico mesmo com a mudança de psicoterapeuta. O fato de o paciente não realizar um pagamento direto não se mostrou uma dificuldade na maioria dos casos, talvez pelo fato de tratar-se de uma instituição pública e não de um trabalho filantrópico. O “pagamento” da “UNICAMP” e, por extensão, do próprio psicoterapeuta, estava de certa forma suposto. Além disso, o preenchimento da “ficha azul”, por meio da qual o hospital recebe o reembolso do SUS pelo atendimento realizado, é feito diante do paciente a cada consulta. Exige-se também um respeito por parte do paciente ao comparecimento às sessões. No caso de ausências freqüentes e injustificadas o psicoterapeuta pode, se julgar pertinente, interromper o tratamento. O período final de cada estágio, que raramente coincidia com o da dissolução da transferência, mostrou-se extremamente sensível. Para alguns indivíduos, tratava-se de uma época de recrudescência extremamente fecunda de suas questões fundamentais. Em outros casos, este período tornava-se tão perturbador que levava a atuações ou abandono do atendimento. Além disso, encontrava-se por parte dos estagiários a angústia (ou defesas contra ela) de estar face a estas perturbações. Passou-se a tomar um cuidado especial com a discussão clínica e supervisão destas situações, na tentativa de se ampliar sua compreensão e manejo. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, maio 2002 A experiência de psicoterapia psicanalítica no hospital universitário... Após alguns anos foi necessário modificar o dispositivo de “passagem” de um psicoterapeuta a outro. Como assinalado anteriormente, a princípio a continuidade do tratamento estava automaticamente garantida para os pacientes que assim desejassem. Contudo, observou-se que tal procedimento estimulava uma desimplicação do sujeito com o seu tratamento e conduzia a perpetuações freqüentemente estéreis e burocráticas. O novo dispositivo de passagem passou a ser constituído por uma entrevista com um psicanalista, professor e supervisor do estágio, especialmente designado para esta função. Nesta entrevista os pacientes que desejam continuar um processo psicoterapêutico devem formular claramente esse pedido ao serviço da UNICAMP, diretamente a um representante simbólico da instituição, de modo que questões transferenciais a ela relacionadas tenham um espaço de acolhimento. O paciente é convidado a expressar o que tem significado para ele o tratamento até agora realizado e os motivos que o levaram a solicitar a continuidade do processo. Além disso, é indagado especificamente sobre seus sentimentos em relação à perspectiva ou experiência de troca de psicoterapeuta. Trata-se de um momento em que o sujeito deve entrar em contato com sua história, com a história de sua(s) análise(s) e, principalmente, com seu desejo de prosseguir no processo analítico, ainda que seja com um novo psicoterapeuta. Em relação aos desafios que ainda se colocam nesse contínuo processo de 23 fundação psicanalítica de uma proposta clínica, várias questões são preponderantes. Para além do complexo emaranhado transferencial que se busca deslindar estão inúmeras dúvidas sobre os possíveis efeitos de seguidas trocas de terapeutas, sobretudo em situações clínicas em que o setting e seu manejo são ou se tornam fundamentais. Ao se procurar ouvir os efeitos das condições de atendimento clínico na instituição, abre-se o caminho para que intervenções psicanalíticas neste setting possam também ser formuladas. Para finalizar, destaca-se a necessidade de delimitação mais clara da direção do tratamento com vistas ao seu final. Trata-se de teorizar sobre a que fim este tratamento pode e deve conduzir. Obviamente esta não é uma questão menor. Ana Cristina Figueiredo, em seu livro que aborda as propostas de clínica psicanalítica em serviços públicos, destaca justamente a grande dificuldade de quase todas as experiências ao se confrontarem com essa questão. Por enquanto só é possível formular hipóteses genéricas e intuitivas. Nas condições disponíveis, tal esforço pode ser conduzido até certos pontos a partir dos quais o próprio sujeito considere que já obteve o que esperava daquele processo. O trabalho de uma teorização mais sólida a respeito da direção do tratamento nessas condições, e sobre a estrutura de seu(s) fim(ns) ainda aguarda uma elaboração mais precisa. Tentou-se, aqui, realizar uma exposição sintética de uma experiência concreta de implantação de situação analítica no con- Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, maio 2002 24 Débora Siqueira Bueno e Mário Eduardo Costa Pereira texto de um ambulatório público de saúde mental, de modo a suscitar o debate e a encorajar o surgimento de novas propostas e perspectivas nesse campo clínico fundamental. REFERÊNCIAS ABERASTURY, A. e KNOBEL, M. A adolescência normal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981. FÉDIDA, P. Teoria dos lugares I e II. In: Nome, figura e memória. São Paulo: Escuta, 1992, p. 113-48. ____ Os benefícios da depressão. elogio da psicoterapia. São Paulo: Escuta, 2002. FIGUEIREDO, A.C. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. Artigo recebido em outubro/2001 Aprovado para publicação, em fevereiro/2002 DIVULGA A Livraria Pulsional possui mala direta eletrônica com 5.000 endereços da área psi. Divulgue suas atividades pela nossa mala. Consulte-nos F ONES: (11) 3672-8345 / 3675-1190 / 3865-8950 e-mail: [email protected] Os 10 mais vendidos em março de 2002 1o O carvalho e o pinheiro. Freud e o estilo romântico Ines Loureiro 2o Elaboração psíquica. Teoria e clínica psicanalítica Paulina Cymrot 3o Introdução à psicanálise Luis Hornstein 4o Desenvolvimento kleiniano – I Donald Meltzer 5o Psicoterapia breve psicanalítica Haydée C. Kathuni 6o A invenção do psicológico Luís Claudio Figueiredo 7o Doença ocupacional Marina Durand 8o Ética e técnica em psicanálise Luís Claudio Figueiredo e Nelson Coelho Jr. 9o A criança e o infantil em psicanálise Silvia Abu-Jamra Zornig 10o Educação para o futuro Psicanálise e educação Maria Cristina Kupfer Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 157, maio 2002