UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
Africanias, Imagens e Linguagens
29 a 31 de agosto de 2012
Salvador – BA
IDENTIDADE E RESISTÊNCIA EM A ÁRVORE DE UMBIGO (2004) ¹
Ellen Caroline Oliveira Lima/²
Inara de Oliveira Rodrigues /³
Os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), após a independência,
tomaram a literatura como um espaço para a mobilização de seus povos, “através de seus temas de
resistência [...] deslocando-se para a busca e preservação das fontes da cultuara popular e raízes
nacionais autênticas” (TUTIKIAN, 2006, p.19). O presente trabalho consiste em evidenciar
elementos do processo de construção identitária e de resistência presentes na obra Contos da Cor do
Tempo (2004), especificamente no conto “A Árvore do Umbigo” da escritora Julie Agossa
Djomatin. A identidade tem sido objeto de investigação, pois é possível reconhecer em GuinéBissau um movimento de construção de sua identidade, mas atravessado por desafios do atual
mundo globalizado que torna a identidade algo imprevisível, inacabado e em constante movimento
(BAUMAN, 2005).
A literatura de Guiné-Bissau, comparativamente aos demais países de literatura africana de
língua portuguesa foi a que começou mais tardiamente. De acordo com Moema Paurente Augel
(2007, p 99) “nem no campo da historiografia nem no da crítica ou da teoria literária existem muitas
obras”. Nesse sentido, podemos perceber que tanto em relação à publicação quanto à recepção essa
literatura ainda é bastante recente.
Ela acrescenta alguns autores que se destacam no cenário guineense. No século XIX,
destaca-se o Cônego Marcelino Marques de Barros cujo estudo abarca a oratura em língua das
etnias de sua nação. Por exemplo, o livro Litteratura dos negros (1900) foi transcrito em idiomas
originais, bem como o crioulo, canções e curtas histórias da tradição oral de algumas etnias.
Após a independência do país, surge Benjamim Pinto, o qual além de tratar da estrutura do
crioulo, aborda os conhecimentos deste como patrimônio cultural. É realizado um balanço da
literatura de Guiné apenas em 1990, quando contaram autores estrangeiros que trataram de
temáticas ligadas ao universo literário guineense.
Ainda hoje são poucas as publicações que conseguem ultrapassar as fronteiras do país,
destacando-se como iniciativa editorial a Kusimom, a qual foi fundada por Teresa Montenegro,
Fafali Kouduwa e Abdulai Sila. E foi essa editora que deu o "boom" literário registrado em meados
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da década de 1990 na Guiné-Bissau, onde, até então, o panorama era desolador para um país já com
quase duas décadas de independência.
Segundo Augel (2007), Guiné-Bissau ainda não estabilizou, apesar de já ter conquistado sua
independência há quase três décadas, o país está configurado entre os dez mais pobres do mundo.
Emt levantamento das Nações Unidas do ano de 2000, a nação localiza-se em 169º lugar dos 174
países do mundo, considerando-se indicadores econômicos e sociais que demonstram a grave
situação desse país: 87% da população vivem com menos de um dólar, já que os salários são
extremamente baixos, chegando a recebem cerca de vinte e cinco dólares mensais, além da grande
irregularidade para o recebimento.
Há déficit de emprego e fora do funcionalismo público e do militarismo não sobram muitos
empregos formais. Falta qualificação profissional e o ensino é provavelmente um dos piores da
África, sendo a taxa de alfabetismo muito alta. A autora traz à tona a questão da língua portuguesa,
a qual ainda hoje, apesar do ensino, por tratar-se da língua oficial do oficial do país, “continua a ser
desconhecido pela grande maioria da população” (AUGEL, 2007, p.72).
Essas questões alarmantes só atestam e complicam ainda mais os problemas vividos pelo
país após a conquista de sua independência, bem como a difícil manutenção do regime democrático.
Guiné-Bissau está situada na costa ocidental do continente africano com uma área de
aproximadamente 36.125km². Segundo Augel (2007), Portugal limitou a região por longo período
como ponto de apoio para o comércio escravista. No século XVI, os portugueses começaram a
adotar uma política de respeito para com os seus parceiros comerciais para que os africanos não
fossem tratados inferiormente. Com o crescimento do comércio escravista, a ação colonial dos
portugueses foi facilitada, sobretudo pela desintegração dos reinos do oeste africano.
Como consequência desses acontecimentos, o processo de colonização se expandiu e,
concomitantemente, deu margem a desavenças e rivalidade entre grupos étnicos, necessitando
assim, de presença militar efetiva no território, a qual operou repressivamente no país. No século
XX, o tráfico de escravos diminui significativamente e só assim há preocupação entre os
portugueses na conquista territorial de Guiné-Bissau. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o
território guineense conheceu a mais sangrenta e violenta dominação do país.
Afirma Augel (2007) que Guiné-Bissau durante muitos séculos foi administrada
conjuntamente com o arquipélago de Cabo Verde. É em 1879 que a colônia tem a sua administração
separada, recebendo o nome de Guiné Portuguesa. Por estar situado em fronteira com colônias
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francesas, ocorreu a partilha da África, pelo Congresso de Berlim, em 1886, entre as nações da
Europa, provocando ainda mais guerras sangrentas entre colonizados e colonizadores. Em 1951,
Guiné é elevada à categoria de Província Ultramarina de Portugal, quando legitimou autonomia
financeira e administrativa. Torna-se independente apenas com a queda do regime ditatorial de
Portugal em 1975.
Conclui se formos remontar os primeiros contactos ao século XV e
acompanharmos em seguida, no decorrer dos séculos, a gradual passagem da
convivência para a ocupação, dentro das diversas modalidades históricas que esses
contatos sofreram, vamos constatar que a presença portuguesa na África foi a mais
longa, comparando-a com a de qualquer dos países europeus. A Guiné foi, aliás,
um dos últimos países africanos a se tornarem independentes, tendo sido, porém, o
primeiro entra as colônias portuguesas (AUGEL, 2007, p.55).
Assim, torna-se relevante entender como a literatura de um país ainda tão jovem aborda
questões de identidade. Sobre esse conceito, Hall (2004) reconhece a identidade como
movimento/processo desencadeado historicamente pelas relações sociais e a literatura como campo
privilegiado de interpretação da cultura, especialmente, no que diz respeito às identidades da
diferença. Através dessas concepções tanto de interação com o outro quanto da literatura quanto
forma de perceber esse outro, nos atentaremos neste trabalho identificar a construção do imaginário
guineense dentro da literatura, além de reconhecer como essa manifestação artista tem percebido
sua própria cultura.
Algumas reflexões acerca das questões identitárias, podemos encontrar na obra da editora
Kusumom, no livro Contos da cor do Tempo, publicado em 2004 para comemorar os dez anos da
editora. A obra contém doze contos dos autores: Olonkó, Julie Agossa Djomatin, Lamine Sadjo,
Uri Sissé e Andrea Fernandes.
Tereza Montenegro, uma das coordenadoras da primeira edição da obra em questão, em nota
à agência Lusa, considera o livro um conjunto de "estórias" do imaginário guineense. "São [contos]
opacos, outros diáfanos, com muito verde e algum lixo pelo meio. Mas todos com um olhar posto
aqui, onde foi plantada a árvore do umbigo". O que parece já indicar essa relação do homem com
terra, podendo ser essa a base da vida. Para Chevalier (1995), umbigo é o símbolo de ligação da
criança com mãe ou do ser humano com terra, o qual é muitas vezes retratado em esculturas
africanas. O dicionário aponta um mito teogônico, referenciando ser o umbigo o centro do mundo.
Em “A Árvore de Umbigo”, destacamos justamente o sentido dessa árvore do umbigo. A
narrativa começa no “famoso cruzamento de Ermokunda” (DJOMATIN, 2004, p 11) com uma
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batida policial para verificação dos documentos e cobrança de impostos. Mafemane, caminhoneiro,
reclama do aumento de suas tarifas, enquanto um homem, “alto e seco” (ibidem, p 11), observa-o,
constantemente com a mão no umbigo.
Passada a conversa com o policial, o camponês inicia um dialogo com o caminhoneiro. Esse
último, indisposto, recebe mal as poucas palavras do interrogador, ao acreditar ser um pedido de
carona, “quando te começam a chamar chefe, é para pedirem boleia. Transporte grátis até a próxima
tabanca” (ibidem, p 12).
Por insistência do camponês, o dialogo é retomado pelo homem anunciando “quero a minha
árvore de volta” (DJOMATIN, 2004, p13), e mostra o tronco no caminhão que Mafemane dirigia
“era uma peça extraordinária”, diz o caminhoneiro. Era ela a peça mais bonita e mais importante do
carregamento “evidentemente a tua árvore não pode ser outra senão aquela. A mais bela, a mais
grossa, a mais cara” (DJOMATIN, 2004, p13). Essa passagem nos remete A Canção de Exílio, na
obra Primeiros Cantos, de Antônio Gonçalves Dias, o qual diz “Minha terra tem palmeiras, Onde
canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá”. Podemos sugerir que em ambas
as há uma valorização da terra, uma exaltação da terra natal. Assim, pode perceber que muitos
textos literários tende a resgatar a memória das ex-colônias africanas portuguesas. Também, Santilli
(1985) afirma que o resultado de um processo de luta que durou mais de uma década, nasceu uma
literatura marginal, produzida em situações extremas (guerras coloniais, memórias do cárcere e
exílio).
O camponês persiste mais uma vez na conversa e o caminhoneiro oferece uma quantia em
dinheiro “estendeu-lhe uma nota amarrotada de mil pesos” (DJOMATIN, 2004, p13). No entanto, a
proposta não é aceita “eu quero a minha árvore. É minha. Compreendes? É a árvore do meu
umbigo. Nascemos juntos. Crescemos juntos. Ela e eu somos a mesma coisa” (ibidem, p 14).
Podemos entender uma relação de formação identitária.
Podemos lembrar, aqui, que Paul Ricoeur (1997), considerando que o indivíduo está
profundamente inscrito na dimensão da história, afirma que a tomada de consciência da sua própria
identidade se fundamenta na elaboração de narrativas sobre “si-mesmo”.
Com ironia, o caminhoneiro diz ser “a primeira vez que encontro o irmão gémeo de uma
árvore que estou a transportar” (ibidem, p 14). Nesse momento da narrativa há divagações do
caminhoneiro em relação à resolução de problema como esse em outros tempos, refletia acerca de
sua superioridade dentre os demais caminhoneiros “por ter concluído o quarto ano da escola
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secundária, gabava-se de ser um intelectual” (ibidem, p 14). E “repetia do alto do seu orgulho de
citadino” (ibidem, p 15).
Mafemane decide levar o caso ao policial, mas logo se arrepende. A autoridade, no primeiro
momento, apoia o camponês dizendo, “este homem diz que você roubou a sua árvore [...] A árvore
foi plantada quando ele nasceu, na morança do seu pai” (ibidem, p 15). Mais uma vez
Aqui, tem início a explicação da origem do camponês. Esse nasceu em uma aldeia em
Barofa, como consequência do seu nascimento foi plantado o cordão umbilical e a placenta do
recém-nascido na árvore. Há a necessidade de falar da origem do homem, mostrando o sentimento
de pertença a um lugar bem especifico na narrativa. Há um lugar de onde ele veio e esse lugar tem
de ser evidenciado como forma apoio da construção de identidade desse personagem. Assim, “a
naturalidade do pressuposto de que pertencer-por-nascimento significava, automática e
inequivocadamente, pertencer a uma nação” (BAUMAN, 2005, p.29).
Ao cortarem esta árvore, tinham abatido o seu duplo, mutilado a sua vida. A corda
invisível que o ligava ao reino vegetal. Ao ar por cima das folhas, ao solo por
debaixo das raízes, rompera-se. O resto da sua existência tornava-se incerto
(ibidem, p 16).
Assim, a ligação entre eles é muito forte, comprometendo a continuidade da vida do
camponês com a retirada de metade de si. Há uma conexão entre homem e a terra, sendo essa o
principal motor da continuidade da vida. Sem ela o homem deixa de ser bem estruturado e passa a vagar
em busca de si, de sua identidade.
A situação se agrava. Mafemane, simples carregador, não tinha muito que fazer, a
solução seria que o homem falasse com o chefe. Novamente é travada uma nova discussão entre
o policial e o caminhoneiro, mas ao saber nome do responsável pelo corte, “o protetor da ordem
pública” (ibidem, p 17) desiste do assunto.
O transportador da carga parte rumo ao lugar de descarga. Durante o percurso, pensa nos
compromissos adiados por conta da história do homem e seu irmão vegetal. A farra com os
amigos, bem como o encontro com Almira, sua mulher.
Já é segunda-feira, há o reencontro dos homens no armazém, para surpresa do
caminhoneiro e “perguntava-se como é que o homem conseguira chegar á capital, e ainda por
cima ao armazém” (ibidem, p 24).
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Mais uma vez há interferência de um policial, o qual também entende a posição do
homem. A narrativa se prolonga na discussão em torno do vegetal. A solução proposta é a
procura de familiares do camponês para convencê-lo da perda.
Passa-se cinco dias e após a partida de um barco de transporte de madeira, o camponês
reaparece e lança-se ao mar. E o mais surpreendente acontece: “vinha sentado na árvore, e
remava com as duas mãos” (ibidem, p 26). Sugerimos que a persistência do personagem ao
enfrentar diversas barreiras e concretização dessa busca pode ser o momento de equilíbrio da
narrativa ao conquistar o que de fato lhe pertencia e que lhe foi retirado bruscamente,
podendo aludir ao processo de colonização do continente africano, á partilha da África e
principalmente a imposição de costumes alheios.
Assim, é possível percebermos a representação de questões identitária na trajetória do
camponês. De certo modo, ao procurar resgatar sua árvore da vida, que nesse conto é
representativo da terra mãe, a África, e Guiné em especialmente, o personagem busca resgatar
sua identidade perdida.
Referências
AUGEL, Moema Parente. O Desafio do Escombro. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2007.
BAUMAN, Zygmund. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. 9. ed. rev. e aum. Rio de JanLeiro: J. Olympio, 1995.
DIAS, Gonçalves, de. Canção do Exílio. Disponível em:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/banco_de_questoes/portugues/cancao_do_exilio.
Acesso em 19/07/2012
DJOMATIN, Julie Agossa. A Árvore do Umbigo. In______ Contos da Cor do Tempo. GuinéBissau: Kusimon, 2004.
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: História e Antologia. São Paulo, Ática, 1985.
TUTIKIAN, Jane. Velhas identidades novas. O pós-colonialismo e a emergência das nações de
Língua portuguesa. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2006.
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