UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
Africanias, Imagens e Linguagens
29 a 31 de agosto de 2012
Salvador – BA
A POESIA NEGRA FEMININA DE LÍVIA NATÁLIA:
“ESCREVIVÊNCIAS” DE TERREIRO
Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro1
Quando as aranhas se unem, podem amarrar um leão.
(Provérbio Etíope)
O presente artigo objetiva apresentar a escrita feminina negra de Lívia Natália, poeta baiana2
que, em sua primeira publicação, sugestivamente intitulada de “Águas Negras” (2011), marca uma
escrita impregnada com sua vivência em comunidade de terreiro, aqui ousadamente denominada de
“Escrevivências” de terreiro. Tomo emprestado o termo “escrevivência” de Evaristo (2007) que a
concebe como: “a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil”
(EVARISTO, 2007, p. 20).
Apresento nas páginas que compõem esse artigo, quatro dos seus poemas, sendo escolhidos
os que mais explicitamente carregam tais características de pertencimento étnico-religioso, o
candomblé de nação Kétu3.
A poeta é uma ìyàwó4, recém-iniciada, omo òrìsà de Òsun5, filha do Òrìsà Òsun e essa
condição marca seus escritos poéticos, nos levando ora por águas doces e calmas, como os rios,
lagos e lagoas em que mora, essa rainha, ora por águas que nos enganam com uma aparente
calmaria, mas que são essencialmente revoltas. Tal dualidade encontra-se impressa, também, no
comportamento das filhas desse Òrìsà. Aparentemente calmas e faceiras, não ouse passar dos
1
Mestranda em Educação e Contemporaneidade pela Uneb/PPGEDUC. [email protected].
Lívia Maria Natália de Souza Santos por ela mesma assim se define em seu blog: “Outras Águas”: “Sou baiana de
Salvador (1979) e, como boa filha de Osun, me criei nas dunas no Abaeté e, alimentada por Iemanjá, muito me banhei
na poética praia de Itapuã. Talvez por isto as águas sejam meu grande tema em Água Negra, livro de estréia, premiado
pelo Concurso Literário do Banco Capital (2011), e Correntezas, minha próxima publicação. Ser poeta e contista é a
minha missão afetiva primordial, e isto me faz atenta às inutilidades de mundo. É a literatura que atravessa também a
minha atuação profissional, professora vocacionada, ensino Teoria da Literatura na Universidade Federal da Bahia,
onde me titulei Doutora em Estudos Literários. Mas a literatura é anterior: quando criança não tinha grandes narrativas a
contar na volta das férias, então inventava. Nasce aí a ficcionista. A poeta vem, desde sempre, descosendo o mundo. E é
esta intimidade com as palavras que atravessa as Oficinas de Criação literária que ministro e meu ser e estar no mundo”.
Coordena o projeto de pesquisa Corpus Dissidente: Poéticas da Subalternidade em escritas e estéticas da diferença.
Disponível em: http://outrasaguas.blogspot.com.br/p/quem-sou-eu.html Acesso em: 03 abr. 2012.
3
A noção de Nação no que se refere aos diversos povos negros em terras brasileiras se dá pelo pertencimento religioso
desses povos. Três são as principais nações religiosas. A saber: Nação Kétu, Nação Jeje e Nação Congo/Angola.
4
Vale comentar que optei por fazer uso da bacia semântica yorùbá. Dessa forma, as palavras em yorùbá serão grafadas
e apresentadas, neste artigo, o mais próximo possível de como as mesmas são grafadas em seu país de origem, a
Nigéria.
5
Todas as vezes que o “s” aparecer com um acento subsegmental (embaixo da letra) é para sinalizar a letra “s” que no
idioma yorùbá equivale ao som represento pela letra “x” ou pelo dígrafo “ch” na língua portuguesa. Vale comentar que
nem a letra “x” nem os dígrafos existem no alfabeto da língua yorùbá.
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limites estabelecidos de sua paciência e tolerância que muitas vezes parecem infinitos, mas que,
definitivamente, não são.
Os poemas escolhidos para compor esse texto-tecido revelam, também, essa bipolaridade.
Tais poemas compartilham, ainda, os ensinamentos adquiridos “da porteira para dentro”
(LUZ,1992, p. 59), local esse demarcatório de territorialidades sacras, na qual a oralidade reina
predominante, mas não exclusivamente.
Lívia Natália, essa bela filha de Òsun, nos convida, através do seu rico abèbè, instrumento
litúrgico herdado da mãe, a nos inspirarmos nas referências ancestrais negro-africanas e não mais
no espelho midiático que tentam impor um padrão nórdico de beleza e humanidade, pautado na
branquidade.
No poema “Onde o espelho?”, apresentado um pouco mais adiante, a autora demonstra uma
preocupação com a estética, com o belo, com o como apresentar-se, nele são problematizadas tais
imposições e padrões. Nessa produção, também, que ela revelará a força e determinação dessas
águas, aparentemente flexíveis e calmas. É importante destacar ainda que nesse poema-indagação o
cabelo crespo é o tema-problematização.
O que se nota é que suas enunciações preto-poéticas mostram-se na contramão do até então
institucionalizado sobre nossa condição de mulheres negras, àwon6 obìnrin dúdú, historicamente
caricaturizadas, estereotipadas e, no mais das vezes, ridicularizadas a partir de um cânone
“faloetnocêntrico (SACRAMENTO; NEIVA, 2009, p. 153)”. Natália toma a palavra, ou seria
melhor dizer arrebata? para falar do seu lugar de pertencimento: mulher, negra e de candomblé. Não
deixa margem ao Outro, representante do coloniza-dor, com suas lentes distorcidas, embaçadas e
preconceituosas falando de nós. Autoreferencialidade é disso que estou a falar. Trata-se, ainda, de
um processo de (res) significar para dignificar o que historicamente tentou-se vilipendiar. Processo
que Evaristo (2005) chamará: “Da representação à auto-apresentação”, ou ainda: “assenhorar-se da
pena” (2005). A escrita dessa poeta negra aponta para um lugar de desconstrução 7. Se outrora
predominavam representações negativas sobre nós, àwon obìnrin dúdú, seremos nós agora que
pintaremos nossas próprias faces, com as cores e matizes que julgarmos mais pertinentes e
condizentes com o que de fato somos. Não mais o Outro procurando nos caricaturizar, pois:
6
Prefixo na língua yorùbá que representa o plural dos substantivos.
Proposta de análise que questiona operações ou processos que tendam a ocultar ou olvidar o trabalho envolvido em
sua construção social, tais como a naturalização, o essencialismo, a universalização ou o fundacionismo.
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Se há uma literatura que nos inviabiliza ou nos ficciona a partir de estereótipos
vários, há um outro discurso literário que pretende rasurar modos consagrados de
representação da mulher negra na literatura. Assenhorando-se “da pena”, objeto
representativo do poder falocêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever
no corpus literário brasileiro imagens de autorrepresentação. Criam, então, uma
literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como
objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulhernegra que se descreve, a
partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na
sociedade brasileira. Pode-se dizer que o fazer literário das mulheres negras, para
além de um sentido estético, busca semantizar um outro movimento a que abriga
todas as nossas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se
torna o lugar da vida (EVARISTO, 2005, p. 54).
Trata-se, então, de uma escrita que já nasce tensionada pelo enorme desejo de se contar, de
se (re) desenhar, quando necessário e/ou desejoso, como uma espécie de “contra-vozes”. Tomando
essa perspectiva das “contra-vozes”, a escrita desse texto perpassa pelo movimento de um “contradizer” o que até então foi imposto e instituído. Se outrora éramos personagens apresentadas sem
nenhuma humanidade e sempre pela ótica perversa e extremamente negativa e estigmatizante do
homem branco e colonizador, hoje, entramos na cena literária para falarmos de nós mesmos, a partir
das nossas vivências, das nossas experiências e valores ancestrais. Recuperando a voz que não pode
ecoar outrora de tantas outras que nos antecederam. Não que estas estivessem caladas, pois nunca
estiveram. Mas, muitas foram invisibilizadas, colocadas no ostracismo para que fossem
desacreditadas das “palavras-lâminas8” que certamente lançariam no ar para rebater a forte
negatividade perpetrada sobre nós.
A partir de tal contexto, nota-se, ainda, que se trata de uma escrita arte-denúncia e, portanto,
um ato, necessariamente, de insubordinação, como declara ainda Evaristo: “[...] Em se tratando de
um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais
diferenciados dos lugares ocupados pela cultura dominante, escrever adquire um sentido de
insubordinação” (EVARISTO, 2007, p. 21) ou ainda: “[...] Consciência que compromete a minha
escrita como um lugar de auto-afirmação de minhas particularidades, de minhas especificidades
como sujeito-mulher-negra” (EVARISTO, 2007, p. 20).
Se da “porteira para fora” estamos nós, obìnrin dúdú, sujeitas a toda sorte de imposições da
branquidade, ou mais vulneráveis as mesmas, uma vez que se trata de um processo ininterrupto e,
no mais das vezes, de grande eficácia, com as aprendizagens e ensinamentos adquiridos “da porteira
8
Rendendo homenagens e fazendo referência ao texto de Leda Martins. A fina lâmina da palavra. Disponível em:
http://www.letras.ufmg.br/poslit
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para dentro”, com o auxílio do abèbè, quando nos miramos nas referências ancestrais, quando
passamos a conhecer os owe, provérbios, itan, mitos, orin, cânticos, enfim o rico e complexo acervo
do continnum civilizatório africano-brasileiro, rebatemos com mais segurança e firmeza e
superamos com mais facilidade o estigma imputado a nós, negros, de que nossa sofisticada história
se inicia com o tráfico de escravizados e com a lógica perversa do coloniza-dor que remete sempre
à ideia do negro a peça, coisa, mercadoria. É Gilroy (2001, p. 38) quem afirmará: “Nossa história
não começa no Middle Passage, nem muito menos perdemos a memória na árvore do
esquecimento. Nossas raízes são muito mais fortes e profundas”. E Ayoh’OMIDIRE (2005)
complementará, inspirado nele: “Middle Passage não se configura como o marco zero da identidade
negra”.
Com as suas memórias iniciáticas e as aprendizagens de terreiro apresentadas em seus
poemas, a poeta nos fortalece para e no duro e incansável embate contra o racismo e a
discriminação. Uma vez aproximada do seu Bará, Rei do corpo e do seu Olorí, “dono” da sua
cabeça, muito mais facilmente nos auxilia no destrancar dos nossos caminhos” (FERREIRA
SANTOS, 2011, p. 14) e seguimos, então, mais plenas rumo a autoaceitação e autorrealização, pois
se a princípio partimos de memórias que podem ser consideradas e, de fato são, memórias
individuais, estas acabam se configurando, também, como coletivas, pois, definitivamente, como
afirma mais uma vez Evaristo (1996): “A literatura negra é um lugar de memória”.
Nesse sentido, Dias (2012, p. 80) também comenta sobre essa dupla marca que remete
simultaneamente ao individual e ao coletivo:
A sua luta imprime-se na palavra poética pela rememoração de suas ancestrais e se
faz eco, hoje, no rosto de tantas outras, suas iguais, através de suas carências e
realizações, de suas reflexões e auto-aceitação. A sua poesia registra, nessa
travessia de tantos eus, não mais uma resistência, mas uma legitimação enquanto
ser capaz de se deixar ser repositório e se deixar reconhecer nos outros que a
constituem (DIAS, 2012, p.80).
O que essa escrita negra poética aponta é para outras possibilidades de ser e estar no mundo,
a partir de outras referências que não as brancas europeias. Configura-se como uma proposta de
descolonização de mentes e corpos, que parece pautar-se na “Estética do Sagrado”9 (LUZ, 1992)
9
“O elemento estético é bom, essencialmente porque é portador de determinada qualidade e quantidade de axé: é belo
porque sua composição, forma, textura, matéria e cor, simbolizam aspectos de representação da visão de mundo
característica da tradição, realizando a comunicação”. (LUZ, 1995, p. 566).
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para ficar Odara10 (LUZ, 1992). A obìnrin dúdú aqui eleita socializa lições “da porteira para
dentro” que poderão nos fortalecer “da porteira para fora”, quer sejamos da religião ou não. Para
tanto, faz uso da literatura afro feminina, sua “arma” de combate contra a forte e ininterrupta
imposição de um padrão nórdico de beleza e humanidade, que no mais das vezes, faz muitas das
nossas irmãs zanzarem perdidas na encruzilhada identitária, sem saber ou sem conseguir decidir que
rumo tomar e seguir, perseguindo um ideal de ego branco, irrealizável para nós (SOUZA, 1989),
obìnrin dúdú, ou identidades fantasmáticas, como chama Nogueira (1998), não aceitando seus belos
e fortes traços fenotípicos negro-africanos e desejando insistentemente ser o Outro, branco,
europeu, coloniza-dor.
A poeta toma a palavra para falar como aquela que adentra a porteira e fala desse lugar,
representando a si e aos seus, guarda, preserva e, concomitantemente, difunde a memória grupal de
tais “territorialidades” (LUZ) sacras falando a partir do que se é e não do que o Outro tenta impor
que sejamos. Faz da sua escrita poética, seu instrumento de luta, respaldada que se encontra pela
sabedoria e memória ancestral dos povos negro-africanos.
Sendo o ara, corpo, lugar que habita o sagrado, sendo a mesma uma elégùn, recém-iniciada,
quebra, com seus poemas, silêncios seculares, desconstrói representações negativas, subverte o
cânone, ou como a poeta prefere e faz uso do termo: “rasura”.
Conheçamos então, ainda que brevemente tais escritos-ensinamentos, compartilhados, aqui,
por ela e da forma como ensinam os mais velhos pertencentes as religiões de matrizes africanas: “de
boca perfumada a ouvidos dóceis”11 (SÀLÁMÌ; RIBEIRO, 2011, p.175).
Onde o espelho?12
Para minhas irmãs negras
Este cabelo que lhe vai liso sobre a carapinha,/ é o simulacro infeliz do que não
és.// (Ao vestir-se com a pele do inimigo/ o que de ti silencia e se perde?/ Quantos
animais conheces/ que assim o fazem senão para reagir?)// Este cabelo pesa
10
Segundo Luz (1992, p. 122): “Odara exprime, simultaneamente, o bom e belo. O útil e eficaz não estão dissociados
da beleza e do sentimento; o técnico e o estético são expressões únicas!” Nesse contexto e proposta não há afastamento
entre o sentir e o pensar, entre a razão e a emoção”.
11
“A boca perfumada do conselheiro só é perfumada se o seu ori e seu iwá lhe conferem a condição de autoridade no
melhor sentido do termo, ou seja, se ele é capaz de granjear a confiança, a crença e a fé de seu interlocutor [...]”.
(SÀLÁMÌ; IYAKEMI, 2011, p. 175).
“Por outro lado, ter ouvidos dóceis e limpos supõe que o ouvinte, aquele que escuta o conselho, também tenha ori e iwá
favoráveis aos atos de ouvir, compreender, acatar e se dispor a realizar o recomendado”. (SÀLÁMÌ; IYAKEMI, 2011,
p. 176).
12
Esse poema foi retirado do blog da poeta, não fazendo parte da publicação “Águas Negras” (2011). Disponível em:
http://outrasaguas.blogspot.com.br/ Acesso em: 03.abr.2012.
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desfeito sobre sua carapinha./ Veste-a como um manto impuro/ abafando o preto
caracolado/ sobresi dobrado:/ filosófico.// Os fios se endurecem como cavalos
açoitados,/ e bradam da morbidez desta couraça/ que te mascara branca.// Este
cabelo requeimado e grotesco/ sepulta o que em ti há de mais belo./ A dobra
também é uma forma/ de Ser (NATÁLIA, 2011).
Nesse poema-indagação, a poeta interroga as àwon obìnrin dúdú que ainda se rendem a
pressão da alteridade em fantasiar-se e parecem desejar, ainda, ser muito próximo ou parecido
daquele que lhe imputou tal desejo. Conclama tais mulheres a se perceberem caricaturas daquelas
que desejam imitar. O irun, cabelo, é o ponto “nevrálgico” de tal processo de perseguição de um
ideal de ego branco e de branqueamento. Obrigatoriamente me faz recordar de Fanon (1983) com o
clássico: “Peles negras, máscaras brancas”.
Asé
Sou uma árvore de tronco grosso./Minha raiz é forte,/nodosa,/ originária,/betumosa
como a noite.//O sangue,/ ejé que corre caudaloso,/ lava o mundo e alimenta/ o
ventre poderoso de meus orixás./ A cada um deles dou de comer/ um grânulo vivo
do que sou/ com uma fé escura./ (Borrão na escrita do deus de olhos docemente
azuis).// Minha fé é negra,/ e minha alma enegrece a terra/ no ilá/ que de minha
boca escapa// Sou uma árvore negra de raiz nodosa./ Sou um rio de profundidade
limosa e calma./ Sou a seta e seu alcance antes do grito./ E mais o fogo, o sal das
águas, a tempestade/ e o ferro das armas.// E ainda luto em horas de sol obtuso/ nas
encruzilhadas (NATÁLIA, 2011, p. 33).
Nesse poema e nos demais que se seguem, a poeta inicia, desde o título, fazendo uso pela
bacia semântica yorùbá e tal ação acaba por remeter a um determinado pertencimento étnico-racial.
Quando se diz árvore, faz menção a ancestralidade negro-africana que carrega em sua
corporalidade, sendo esta o símbolo de tal noção, demonstra a força que sabe carregar a partir de tal
condição, de descendente daqueles que foram arrancados de seu “solo de origem” e com o desejo de
“rasurar” o até então instituído, passa a usar termos que outrora foram criados e difundidos para
negativizar a condição de ser negro, (res) significa tais termos, positivizando-os, enfim, (res)
significa para dignificar, para enegrecer. São eles: betumosa, fé negra, a alma que enegrece a terra,
dentre outras. A “rasura” aparece, nitidamente, também, na informação que vem discretamente
(será?) entre parênteses: “(Borrão na escrita do deus de olhos docemente azuis)”.
O sangue é outro elemento que quase sempre está presente nesse escritos remetendo aos
nossos ancestrais e a essa literatura negra feminina. Sua genealogia encontra-se, também, presente.
Faz menção a vários elementos que representam determinados àwon Òrìsà, tais como: o rio da mãe
Òsun, a seta de Odé, o pai do seu filho Lógún Ede que também herda tal instrumento; o fogo de
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Sàngó; o sal das águas de Iemojá, a tempestade de Oya e o ferro de Ògún. Não satisfeita em
explicitar que “não nada só”, finaliza o poema afirmando o seu lugar de fala, a encruzilhada, sendo
este por demais significativo para os pertencentes a tal religiosidade, lugar de intenso e ininterrupto
trânsito e de múltiplas possibilidades e declara que a luta é, quase sempre, uma constante.
Ori
Um rio não caminha só,/ ele atravessa:/ rasga pedras e fere o chão com sua
correnteza translúcida// A água que cabe apaziguada no copo,/ dança macia nos
corpos/ e escapa sinuosa das mãos/ está sempre caminhando.// Dentro do rio cabe
um mais além das margens/ e seu limite frágil,/ entre o que é mato rasteiro,/ terra
desfeita em lama ligeira e líquido vão.// Dentro dessa água doce cabe a violência
das torrentes./ Dentro da água há um espaço sempre preenchido/ onde dança uma
mulher castanha e bela.// No fundo, mais que limo e pedra,/ há pulseiras vivas e
perfumes feitos de puro mistério// Quando a água para/ - aquietada na carne lívida
das lagoas–/ dentro dela há muita vida.// Uma luz dourada emana de seus limites/
como de um ventre,/ enquanto os peixes bebem de seu encanto silencioso
(NATÁLIA, 2011, p. 29).
As características de sua mãe ancestral estão nesse poema em profunda e latente
manifestação. Aqui a poeta fala de andança, de fluidez, da calmaria e simultaneamente da força que
a água tem quando deseja ter e se faz necessário que se tenha, explicita a impossibilidade de contêla, controlá-la e ainda fala do ambiente da mãe, apresenta-o como sua morada, ao mesmo tempo,
que parece falar de si também, como omo Òrìsà que é da mesma. Um escrito, também, (auto)
biográfico. Tais escritos apresentam uma água que é viva, que gera e possibilita a mesma e,
novamente, faz menção aos seus, a coletividade a que pertence, uma vez que: “Um rio não caminha
só”. Nessa perspectiva, a ancestralidade se faz presente nessa passagem, bem como no momento
final em que cita os peixes, sendo estes, também símbolo de tal noção.
Omi t’Ayó13 –
Quando a quartinha canta,/ prenhe de água absoluta,/ um suntuoso aquário se tece/
no breu de suas bordas.// Na sua voz de metafísica e nada/ ouço a água doce e fria/
de que está plena e emprenhada.//{Sua casca barrosa se limita/ com o chão líquido
do Orum/ onde dançam Deuses de pele translúcida.}// Quando a quartinha estala a
sua língua/ saveiros dobram seus ombros nas docas/ o mar respira, bebendo a si
mesmo,/ enquanto as ondas coçam as costas de cada pedra.// Onde canta o estalido
da quartinha/ um Ori se planta profundo (NATÁLIA, 2012).
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Nesse último poema, novamente, a poeta faz honrosa menção ao elemento que a representa
e dignifica, a água e revelando, assim, mais uma vez, a importância da mesma para que a vida
vingue. Aqui, especificamente, ela tratará de um objeto litúrgico que representa, ao mesmo tempo, o
nosso ara, o nosso orí e que precisa ser preenchida sempre com esse líquido insubstituível e
mágico, que gera vida, que proporciona a mesma e desse instante mítico que é o preenchimento da
quartinha com água. Momento de empoderamento, de renovação, que só quem passa pelo mesmo
pode ter noção dos sentimentos que afloram em tal circunstância. Tão inspirada ficou a poeta que
produziu tal èbun, presente. Empoderada em sua licença poética que faz tudo poder e caber num
poema, fala ainda dessa imensidão que é esse lugar e da potência adquirida em tal momento que
extrapola os limites físicos do “quarto do santo” e extravasa indo do òrun, “céu”, alcançando
saveiros, docas, o mar, dada a conexão existente em tudo. Impregnado de silêncios e implícitos,
esse poema guarda mais mistérios do que poderia eu revelar na condição de àbíyan, ainda não
iniciada e que prevalece, então, a máxima aprendida de meus mais velhos, ègbón mi: “Ògbèri nkó
mò màrìwò”, o não iniciado não pode conhecer o mistério do màrìwò.
(IN) CONCLUSÕES: “Se eles fazem, eu desfaço” (SILVA14, 1992)
Conhecer a poesia dessa obìnrin dúdú, Lívia Natália, auxilia a nós mulheres negras,
sobretudo as que pertencem a comunidades de terreiro, a possibilidade de acesso e conhecimento de
outras possibilidades de ser e estar no mundo. Proporciona, ainda, a tantas outras obìnrin dúdú que
ainda estejam presas e seduzidas nas malhas ilusórias do desejo de tornar-se branco e não deseje,
ainda, enegrecer-se (COSTA, 1984, p. 4).
Que as aprendizagens adquiridas “da porteira para dentro” por essa omo Òrìsà de Òsun e
aqui compartilhadas possam nos proporcionar a descoberta das delícias de ser como se é! E que
com o auxílio do seu abèbè, das referências ancestrais, não sejamos mais coagidas a desejar a
identidade branca, compulsoriamente a nós imposta. Caminhemos, pois, na direção contrária a até
então apresentada e imposta. Dirijamos-nos a porteira e nela adentremos.
14 14
Proposta apresentada e defendida pela professora doutora Ana Célia Silva. Tal expressão ganhou domínio público e
é bastante utilizada quando se deseja chamar atenção para a existência de mecanismos racistas. É ainda título de um dos
seus trabalhos: “SE ELES FAZEM EU DESFAÇO”: uma proposta de reversão dos estereótipos em relação ao negro no
livro didático. Centro de Estudos Afro Asiáticos do Complexo Universitário Cândido Mendes, Rio de Janeiro, 1992
(relatório de pesquisa).
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O que se deseja nessa “empreitada” é que se alcance a construção positiva de si, a
autoaceitação, a autorrealização, uma vez que, “a busca do reconhecimento é uma necessidade
existencial” (d’ADESKY, 2006) e assim sendo, que todos possam ter direito a tal realização e de ter
domínio de nossa existência (d’ADESKY, 2006, p.115).
Autorrealizar-se, chegar inteiro, despertar. Conhecer as reais possibilidades e assumir-se
como se é de fato, é o que mais se deseja com tal proposta. A escrita negra de Lívia Natália
apresentada nesse artigo fornece “pistas” importantes para quem deseja sair do “patrulhamento” e,
consequentemente, “aprisionamento” estético, pautado e respaldado pela branquidade. Para tanto,
faz-se necessário, no caso das mulheres negras, público desse artigo, se livrar da idealização e
perseguição da brancura, imposta há tanto tempo como modelo de identificação normativo, de
humanidade e de beleza. Buscar nas referências ancestrais inspiração, respeito e dignidade e ter a
possibilidade de sair do estigma e do estereótipo impostos incansavelmente aos negros e caminhar
em direção à estima, ao aceitar-se e mais do que isso ao gostar-se, descobrir a boniteza de ser como
se é, eis o dignificante do texto e dos poemas partilhados.
Referências
Ayoh’OMIDIRE, Félix. Yorubanidade: o reinado da oralitura em textos ioruba nigerianos e afrobaianos contemporâneos. Tese de doutoramento em Letras na UFBA, 2005.
COSTA, Jurandir Freire. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: Violência e Psicanálise. Rio
de Janeiro: Graal, 1984.
d’ADESKY, Jacques. Anti-racismo, liberdade e reconhecimento. Rio de Janeiro: Daudt, 2006.
d’ADESKY, Jacques. Reconhecimento e liberdade de realização – Parte 1. In: Estudos afroasiáticos. CEAA 2006/1-2-3 ISSN 0101-546X Estudos Ano 28 – JAN-DEZ-2006/1-2-3. pp. 97-116.
DIAS, Valdenildes Cabral de Araújo. Escrevivência e frutescências: outros movimentos Em
poemas da recordação de Conceição Evaristo. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e
Literatura_ / V Seminário Internacional Mulher e Literatura (UFRN-CERES-DCSH). Disponível
em:http://www.telunb.com.br/mulhereliteratura/anais/wpcontent/uploads/2012/01/valdenides_cabral.pdf. Acesso em 04/03/2012.
FANON, Franz. Pele negra máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983.
EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha
escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras:
teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza, 2007.
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EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: uma poética da nossa afro brasilidade. Dissertação de
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a poesia negra feminina de lívia natália - SIALA