UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA A POESIA NEGRA FEMININA DE LÍVIA NATÁLIA: “ESCREVIVÊNCIAS” DE TERREIRO Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro1 Quando as aranhas se unem, podem amarrar um leão. (Provérbio Etíope) O presente artigo objetiva apresentar a escrita feminina negra de Lívia Natália, poeta baiana2 que, em sua primeira publicação, sugestivamente intitulada de “Águas Negras” (2011), marca uma escrita impregnada com sua vivência em comunidade de terreiro, aqui ousadamente denominada de “Escrevivências” de terreiro. Tomo emprestado o termo “escrevivência” de Evaristo (2007) que a concebe como: “a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil” (EVARISTO, 2007, p. 20). Apresento nas páginas que compõem esse artigo, quatro dos seus poemas, sendo escolhidos os que mais explicitamente carregam tais características de pertencimento étnico-religioso, o candomblé de nação Kétu3. A poeta é uma ìyàwó4, recém-iniciada, omo òrìsà de Òsun5, filha do Òrìsà Òsun e essa condição marca seus escritos poéticos, nos levando ora por águas doces e calmas, como os rios, lagos e lagoas em que mora, essa rainha, ora por águas que nos enganam com uma aparente calmaria, mas que são essencialmente revoltas. Tal dualidade encontra-se impressa, também, no comportamento das filhas desse Òrìsà. Aparentemente calmas e faceiras, não ouse passar dos 1 Mestranda em Educação e Contemporaneidade pela Uneb/PPGEDUC. [email protected]. Lívia Maria Natália de Souza Santos por ela mesma assim se define em seu blog: “Outras Águas”: “Sou baiana de Salvador (1979) e, como boa filha de Osun, me criei nas dunas no Abaeté e, alimentada por Iemanjá, muito me banhei na poética praia de Itapuã. Talvez por isto as águas sejam meu grande tema em Água Negra, livro de estréia, premiado pelo Concurso Literário do Banco Capital (2011), e Correntezas, minha próxima publicação. Ser poeta e contista é a minha missão afetiva primordial, e isto me faz atenta às inutilidades de mundo. É a literatura que atravessa também a minha atuação profissional, professora vocacionada, ensino Teoria da Literatura na Universidade Federal da Bahia, onde me titulei Doutora em Estudos Literários. Mas a literatura é anterior: quando criança não tinha grandes narrativas a contar na volta das férias, então inventava. Nasce aí a ficcionista. A poeta vem, desde sempre, descosendo o mundo. E é esta intimidade com as palavras que atravessa as Oficinas de Criação literária que ministro e meu ser e estar no mundo”. Coordena o projeto de pesquisa Corpus Dissidente: Poéticas da Subalternidade em escritas e estéticas da diferença. Disponível em: http://outrasaguas.blogspot.com.br/p/quem-sou-eu.html Acesso em: 03 abr. 2012. 3 A noção de Nação no que se refere aos diversos povos negros em terras brasileiras se dá pelo pertencimento religioso desses povos. Três são as principais nações religiosas. A saber: Nação Kétu, Nação Jeje e Nação Congo/Angola. 4 Vale comentar que optei por fazer uso da bacia semântica yorùbá. Dessa forma, as palavras em yorùbá serão grafadas e apresentadas, neste artigo, o mais próximo possível de como as mesmas são grafadas em seu país de origem, a Nigéria. 5 Todas as vezes que o “s” aparecer com um acento subsegmental (embaixo da letra) é para sinalizar a letra “s” que no idioma yorùbá equivale ao som represento pela letra “x” ou pelo dígrafo “ch” na língua portuguesa. Vale comentar que nem a letra “x” nem os dígrafos existem no alfabeto da língua yorùbá. 2 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA limites estabelecidos de sua paciência e tolerância que muitas vezes parecem infinitos, mas que, definitivamente, não são. Os poemas escolhidos para compor esse texto-tecido revelam, também, essa bipolaridade. Tais poemas compartilham, ainda, os ensinamentos adquiridos “da porteira para dentro” (LUZ,1992, p. 59), local esse demarcatório de territorialidades sacras, na qual a oralidade reina predominante, mas não exclusivamente. Lívia Natália, essa bela filha de Òsun, nos convida, através do seu rico abèbè, instrumento litúrgico herdado da mãe, a nos inspirarmos nas referências ancestrais negro-africanas e não mais no espelho midiático que tentam impor um padrão nórdico de beleza e humanidade, pautado na branquidade. No poema “Onde o espelho?”, apresentado um pouco mais adiante, a autora demonstra uma preocupação com a estética, com o belo, com o como apresentar-se, nele são problematizadas tais imposições e padrões. Nessa produção, também, que ela revelará a força e determinação dessas águas, aparentemente flexíveis e calmas. É importante destacar ainda que nesse poema-indagação o cabelo crespo é o tema-problematização. O que se nota é que suas enunciações preto-poéticas mostram-se na contramão do até então institucionalizado sobre nossa condição de mulheres negras, àwon6 obìnrin dúdú, historicamente caricaturizadas, estereotipadas e, no mais das vezes, ridicularizadas a partir de um cânone “faloetnocêntrico (SACRAMENTO; NEIVA, 2009, p. 153)”. Natália toma a palavra, ou seria melhor dizer arrebata? para falar do seu lugar de pertencimento: mulher, negra e de candomblé. Não deixa margem ao Outro, representante do coloniza-dor, com suas lentes distorcidas, embaçadas e preconceituosas falando de nós. Autoreferencialidade é disso que estou a falar. Trata-se, ainda, de um processo de (res) significar para dignificar o que historicamente tentou-se vilipendiar. Processo que Evaristo (2005) chamará: “Da representação à auto-apresentação”, ou ainda: “assenhorar-se da pena” (2005). A escrita dessa poeta negra aponta para um lugar de desconstrução 7. Se outrora predominavam representações negativas sobre nós, àwon obìnrin dúdú, seremos nós agora que pintaremos nossas próprias faces, com as cores e matizes que julgarmos mais pertinentes e condizentes com o que de fato somos. Não mais o Outro procurando nos caricaturizar, pois: 6 Prefixo na língua yorùbá que representa o plural dos substantivos. Proposta de análise que questiona operações ou processos que tendam a ocultar ou olvidar o trabalho envolvido em sua construção social, tais como a naturalização, o essencialismo, a universalização ou o fundacionismo. 7 2 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA Se há uma literatura que nos inviabiliza ou nos ficciona a partir de estereótipos vários, há um outro discurso literário que pretende rasurar modos consagrados de representação da mulher negra na literatura. Assenhorando-se “da pena”, objeto representativo do poder falocêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de autorrepresentação. Criam, então, uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulhernegra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade brasileira. Pode-se dizer que o fazer literário das mulheres negras, para além de um sentido estético, busca semantizar um outro movimento a que abriga todas as nossas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se torna o lugar da vida (EVARISTO, 2005, p. 54). Trata-se, então, de uma escrita que já nasce tensionada pelo enorme desejo de se contar, de se (re) desenhar, quando necessário e/ou desejoso, como uma espécie de “contra-vozes”. Tomando essa perspectiva das “contra-vozes”, a escrita desse texto perpassa pelo movimento de um “contradizer” o que até então foi imposto e instituído. Se outrora éramos personagens apresentadas sem nenhuma humanidade e sempre pela ótica perversa e extremamente negativa e estigmatizante do homem branco e colonizador, hoje, entramos na cena literária para falarmos de nós mesmos, a partir das nossas vivências, das nossas experiências e valores ancestrais. Recuperando a voz que não pode ecoar outrora de tantas outras que nos antecederam. Não que estas estivessem caladas, pois nunca estiveram. Mas, muitas foram invisibilizadas, colocadas no ostracismo para que fossem desacreditadas das “palavras-lâminas8” que certamente lançariam no ar para rebater a forte negatividade perpetrada sobre nós. A partir de tal contexto, nota-se, ainda, que se trata de uma escrita arte-denúncia e, portanto, um ato, necessariamente, de insubordinação, como declara ainda Evaristo: “[...] Em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura dominante, escrever adquire um sentido de insubordinação” (EVARISTO, 2007, p. 21) ou ainda: “[...] Consciência que compromete a minha escrita como um lugar de auto-afirmação de minhas particularidades, de minhas especificidades como sujeito-mulher-negra” (EVARISTO, 2007, p. 20). Se da “porteira para fora” estamos nós, obìnrin dúdú, sujeitas a toda sorte de imposições da branquidade, ou mais vulneráveis as mesmas, uma vez que se trata de um processo ininterrupto e, no mais das vezes, de grande eficácia, com as aprendizagens e ensinamentos adquiridos “da porteira 8 Rendendo homenagens e fazendo referência ao texto de Leda Martins. A fina lâmina da palavra. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit 3 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA para dentro”, com o auxílio do abèbè, quando nos miramos nas referências ancestrais, quando passamos a conhecer os owe, provérbios, itan, mitos, orin, cânticos, enfim o rico e complexo acervo do continnum civilizatório africano-brasileiro, rebatemos com mais segurança e firmeza e superamos com mais facilidade o estigma imputado a nós, negros, de que nossa sofisticada história se inicia com o tráfico de escravizados e com a lógica perversa do coloniza-dor que remete sempre à ideia do negro a peça, coisa, mercadoria. É Gilroy (2001, p. 38) quem afirmará: “Nossa história não começa no Middle Passage, nem muito menos perdemos a memória na árvore do esquecimento. Nossas raízes são muito mais fortes e profundas”. E Ayoh’OMIDIRE (2005) complementará, inspirado nele: “Middle Passage não se configura como o marco zero da identidade negra”. Com as suas memórias iniciáticas e as aprendizagens de terreiro apresentadas em seus poemas, a poeta nos fortalece para e no duro e incansável embate contra o racismo e a discriminação. Uma vez aproximada do seu Bará, Rei do corpo e do seu Olorí, “dono” da sua cabeça, muito mais facilmente nos auxilia no destrancar dos nossos caminhos” (FERREIRA SANTOS, 2011, p. 14) e seguimos, então, mais plenas rumo a autoaceitação e autorrealização, pois se a princípio partimos de memórias que podem ser consideradas e, de fato são, memórias individuais, estas acabam se configurando, também, como coletivas, pois, definitivamente, como afirma mais uma vez Evaristo (1996): “A literatura negra é um lugar de memória”. Nesse sentido, Dias (2012, p. 80) também comenta sobre essa dupla marca que remete simultaneamente ao individual e ao coletivo: A sua luta imprime-se na palavra poética pela rememoração de suas ancestrais e se faz eco, hoje, no rosto de tantas outras, suas iguais, através de suas carências e realizações, de suas reflexões e auto-aceitação. A sua poesia registra, nessa travessia de tantos eus, não mais uma resistência, mas uma legitimação enquanto ser capaz de se deixar ser repositório e se deixar reconhecer nos outros que a constituem (DIAS, 2012, p.80). O que essa escrita negra poética aponta é para outras possibilidades de ser e estar no mundo, a partir de outras referências que não as brancas europeias. Configura-se como uma proposta de descolonização de mentes e corpos, que parece pautar-se na “Estética do Sagrado”9 (LUZ, 1992) 9 “O elemento estético é bom, essencialmente porque é portador de determinada qualidade e quantidade de axé: é belo porque sua composição, forma, textura, matéria e cor, simbolizam aspectos de representação da visão de mundo característica da tradição, realizando a comunicação”. (LUZ, 1995, p. 566). 4 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA para ficar Odara10 (LUZ, 1992). A obìnrin dúdú aqui eleita socializa lições “da porteira para dentro” que poderão nos fortalecer “da porteira para fora”, quer sejamos da religião ou não. Para tanto, faz uso da literatura afro feminina, sua “arma” de combate contra a forte e ininterrupta imposição de um padrão nórdico de beleza e humanidade, que no mais das vezes, faz muitas das nossas irmãs zanzarem perdidas na encruzilhada identitária, sem saber ou sem conseguir decidir que rumo tomar e seguir, perseguindo um ideal de ego branco, irrealizável para nós (SOUZA, 1989), obìnrin dúdú, ou identidades fantasmáticas, como chama Nogueira (1998), não aceitando seus belos e fortes traços fenotípicos negro-africanos e desejando insistentemente ser o Outro, branco, europeu, coloniza-dor. A poeta toma a palavra para falar como aquela que adentra a porteira e fala desse lugar, representando a si e aos seus, guarda, preserva e, concomitantemente, difunde a memória grupal de tais “territorialidades” (LUZ) sacras falando a partir do que se é e não do que o Outro tenta impor que sejamos. Faz da sua escrita poética, seu instrumento de luta, respaldada que se encontra pela sabedoria e memória ancestral dos povos negro-africanos. Sendo o ara, corpo, lugar que habita o sagrado, sendo a mesma uma elégùn, recém-iniciada, quebra, com seus poemas, silêncios seculares, desconstrói representações negativas, subverte o cânone, ou como a poeta prefere e faz uso do termo: “rasura”. Conheçamos então, ainda que brevemente tais escritos-ensinamentos, compartilhados, aqui, por ela e da forma como ensinam os mais velhos pertencentes as religiões de matrizes africanas: “de boca perfumada a ouvidos dóceis”11 (SÀLÁMÌ; RIBEIRO, 2011, p.175). Onde o espelho?12 Para minhas irmãs negras Este cabelo que lhe vai liso sobre a carapinha,/ é o simulacro infeliz do que não és.// (Ao vestir-se com a pele do inimigo/ o que de ti silencia e se perde?/ Quantos animais conheces/ que assim o fazem senão para reagir?)// Este cabelo pesa 10 Segundo Luz (1992, p. 122): “Odara exprime, simultaneamente, o bom e belo. O útil e eficaz não estão dissociados da beleza e do sentimento; o técnico e o estético são expressões únicas!” Nesse contexto e proposta não há afastamento entre o sentir e o pensar, entre a razão e a emoção”. 11 “A boca perfumada do conselheiro só é perfumada se o seu ori e seu iwá lhe conferem a condição de autoridade no melhor sentido do termo, ou seja, se ele é capaz de granjear a confiança, a crença e a fé de seu interlocutor [...]”. (SÀLÁMÌ; IYAKEMI, 2011, p. 175). “Por outro lado, ter ouvidos dóceis e limpos supõe que o ouvinte, aquele que escuta o conselho, também tenha ori e iwá favoráveis aos atos de ouvir, compreender, acatar e se dispor a realizar o recomendado”. (SÀLÁMÌ; IYAKEMI, 2011, p. 176). 12 Esse poema foi retirado do blog da poeta, não fazendo parte da publicação “Águas Negras” (2011). Disponível em: http://outrasaguas.blogspot.com.br/ Acesso em: 03.abr.2012. 5 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA desfeito sobre sua carapinha./ Veste-a como um manto impuro/ abafando o preto caracolado/ sobresi dobrado:/ filosófico.// Os fios se endurecem como cavalos açoitados,/ e bradam da morbidez desta couraça/ que te mascara branca.// Este cabelo requeimado e grotesco/ sepulta o que em ti há de mais belo./ A dobra também é uma forma/ de Ser (NATÁLIA, 2011). Nesse poema-indagação, a poeta interroga as àwon obìnrin dúdú que ainda se rendem a pressão da alteridade em fantasiar-se e parecem desejar, ainda, ser muito próximo ou parecido daquele que lhe imputou tal desejo. Conclama tais mulheres a se perceberem caricaturas daquelas que desejam imitar. O irun, cabelo, é o ponto “nevrálgico” de tal processo de perseguição de um ideal de ego branco e de branqueamento. Obrigatoriamente me faz recordar de Fanon (1983) com o clássico: “Peles negras, máscaras brancas”. Asé Sou uma árvore de tronco grosso./Minha raiz é forte,/nodosa,/ originária,/betumosa como a noite.//O sangue,/ ejé que corre caudaloso,/ lava o mundo e alimenta/ o ventre poderoso de meus orixás./ A cada um deles dou de comer/ um grânulo vivo do que sou/ com uma fé escura./ (Borrão na escrita do deus de olhos docemente azuis).// Minha fé é negra,/ e minha alma enegrece a terra/ no ilá/ que de minha boca escapa// Sou uma árvore negra de raiz nodosa./ Sou um rio de profundidade limosa e calma./ Sou a seta e seu alcance antes do grito./ E mais o fogo, o sal das águas, a tempestade/ e o ferro das armas.// E ainda luto em horas de sol obtuso/ nas encruzilhadas (NATÁLIA, 2011, p. 33). Nesse poema e nos demais que se seguem, a poeta inicia, desde o título, fazendo uso pela bacia semântica yorùbá e tal ação acaba por remeter a um determinado pertencimento étnico-racial. Quando se diz árvore, faz menção a ancestralidade negro-africana que carrega em sua corporalidade, sendo esta o símbolo de tal noção, demonstra a força que sabe carregar a partir de tal condição, de descendente daqueles que foram arrancados de seu “solo de origem” e com o desejo de “rasurar” o até então instituído, passa a usar termos que outrora foram criados e difundidos para negativizar a condição de ser negro, (res) significa tais termos, positivizando-os, enfim, (res) significa para dignificar, para enegrecer. São eles: betumosa, fé negra, a alma que enegrece a terra, dentre outras. A “rasura” aparece, nitidamente, também, na informação que vem discretamente (será?) entre parênteses: “(Borrão na escrita do deus de olhos docemente azuis)”. O sangue é outro elemento que quase sempre está presente nesse escritos remetendo aos nossos ancestrais e a essa literatura negra feminina. Sua genealogia encontra-se, também, presente. Faz menção a vários elementos que representam determinados àwon Òrìsà, tais como: o rio da mãe Òsun, a seta de Odé, o pai do seu filho Lógún Ede que também herda tal instrumento; o fogo de 6 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA Sàngó; o sal das águas de Iemojá, a tempestade de Oya e o ferro de Ògún. Não satisfeita em explicitar que “não nada só”, finaliza o poema afirmando o seu lugar de fala, a encruzilhada, sendo este por demais significativo para os pertencentes a tal religiosidade, lugar de intenso e ininterrupto trânsito e de múltiplas possibilidades e declara que a luta é, quase sempre, uma constante. Ori Um rio não caminha só,/ ele atravessa:/ rasga pedras e fere o chão com sua correnteza translúcida// A água que cabe apaziguada no copo,/ dança macia nos corpos/ e escapa sinuosa das mãos/ está sempre caminhando.// Dentro do rio cabe um mais além das margens/ e seu limite frágil,/ entre o que é mato rasteiro,/ terra desfeita em lama ligeira e líquido vão.// Dentro dessa água doce cabe a violência das torrentes./ Dentro da água há um espaço sempre preenchido/ onde dança uma mulher castanha e bela.// No fundo, mais que limo e pedra,/ há pulseiras vivas e perfumes feitos de puro mistério// Quando a água para/ - aquietada na carne lívida das lagoas–/ dentro dela há muita vida.// Uma luz dourada emana de seus limites/ como de um ventre,/ enquanto os peixes bebem de seu encanto silencioso (NATÁLIA, 2011, p. 29). As características de sua mãe ancestral estão nesse poema em profunda e latente manifestação. Aqui a poeta fala de andança, de fluidez, da calmaria e simultaneamente da força que a água tem quando deseja ter e se faz necessário que se tenha, explicita a impossibilidade de contêla, controlá-la e ainda fala do ambiente da mãe, apresenta-o como sua morada, ao mesmo tempo, que parece falar de si também, como omo Òrìsà que é da mesma. Um escrito, também, (auto) biográfico. Tais escritos apresentam uma água que é viva, que gera e possibilita a mesma e, novamente, faz menção aos seus, a coletividade a que pertence, uma vez que: “Um rio não caminha só”. Nessa perspectiva, a ancestralidade se faz presente nessa passagem, bem como no momento final em que cita os peixes, sendo estes, também símbolo de tal noção. Omi t’Ayó13 – Quando a quartinha canta,/ prenhe de água absoluta,/ um suntuoso aquário se tece/ no breu de suas bordas.// Na sua voz de metafísica e nada/ ouço a água doce e fria/ de que está plena e emprenhada.//{Sua casca barrosa se limita/ com o chão líquido do Orum/ onde dançam Deuses de pele translúcida.}// Quando a quartinha estala a sua língua/ saveiros dobram seus ombros nas docas/ o mar respira, bebendo a si mesmo,/ enquanto as ondas coçam as costas de cada pedra.// Onde canta o estalido da quartinha/ um Ori se planta profundo (NATÁLIA, 2012). 13 Postado na rede social Facebook. 7 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA Nesse último poema, novamente, a poeta faz honrosa menção ao elemento que a representa e dignifica, a água e revelando, assim, mais uma vez, a importância da mesma para que a vida vingue. Aqui, especificamente, ela tratará de um objeto litúrgico que representa, ao mesmo tempo, o nosso ara, o nosso orí e que precisa ser preenchida sempre com esse líquido insubstituível e mágico, que gera vida, que proporciona a mesma e desse instante mítico que é o preenchimento da quartinha com água. Momento de empoderamento, de renovação, que só quem passa pelo mesmo pode ter noção dos sentimentos que afloram em tal circunstância. Tão inspirada ficou a poeta que produziu tal èbun, presente. Empoderada em sua licença poética que faz tudo poder e caber num poema, fala ainda dessa imensidão que é esse lugar e da potência adquirida em tal momento que extrapola os limites físicos do “quarto do santo” e extravasa indo do òrun, “céu”, alcançando saveiros, docas, o mar, dada a conexão existente em tudo. Impregnado de silêncios e implícitos, esse poema guarda mais mistérios do que poderia eu revelar na condição de àbíyan, ainda não iniciada e que prevalece, então, a máxima aprendida de meus mais velhos, ègbón mi: “Ògbèri nkó mò màrìwò”, o não iniciado não pode conhecer o mistério do màrìwò. (IN) CONCLUSÕES: “Se eles fazem, eu desfaço” (SILVA14, 1992) Conhecer a poesia dessa obìnrin dúdú, Lívia Natália, auxilia a nós mulheres negras, sobretudo as que pertencem a comunidades de terreiro, a possibilidade de acesso e conhecimento de outras possibilidades de ser e estar no mundo. Proporciona, ainda, a tantas outras obìnrin dúdú que ainda estejam presas e seduzidas nas malhas ilusórias do desejo de tornar-se branco e não deseje, ainda, enegrecer-se (COSTA, 1984, p. 4). Que as aprendizagens adquiridas “da porteira para dentro” por essa omo Òrìsà de Òsun e aqui compartilhadas possam nos proporcionar a descoberta das delícias de ser como se é! E que com o auxílio do seu abèbè, das referências ancestrais, não sejamos mais coagidas a desejar a identidade branca, compulsoriamente a nós imposta. Caminhemos, pois, na direção contrária a até então apresentada e imposta. Dirijamos-nos a porteira e nela adentremos. 14 14 Proposta apresentada e defendida pela professora doutora Ana Célia Silva. Tal expressão ganhou domínio público e é bastante utilizada quando se deseja chamar atenção para a existência de mecanismos racistas. É ainda título de um dos seus trabalhos: “SE ELES FAZEM EU DESFAÇO”: uma proposta de reversão dos estereótipos em relação ao negro no livro didático. Centro de Estudos Afro Asiáticos do Complexo Universitário Cândido Mendes, Rio de Janeiro, 1992 (relatório de pesquisa). 8 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA O que se deseja nessa “empreitada” é que se alcance a construção positiva de si, a autoaceitação, a autorrealização, uma vez que, “a busca do reconhecimento é uma necessidade existencial” (d’ADESKY, 2006) e assim sendo, que todos possam ter direito a tal realização e de ter domínio de nossa existência (d’ADESKY, 2006, p.115). Autorrealizar-se, chegar inteiro, despertar. Conhecer as reais possibilidades e assumir-se como se é de fato, é o que mais se deseja com tal proposta. A escrita negra de Lívia Natália apresentada nesse artigo fornece “pistas” importantes para quem deseja sair do “patrulhamento” e, consequentemente, “aprisionamento” estético, pautado e respaldado pela branquidade. Para tanto, faz-se necessário, no caso das mulheres negras, público desse artigo, se livrar da idealização e perseguição da brancura, imposta há tanto tempo como modelo de identificação normativo, de humanidade e de beleza. Buscar nas referências ancestrais inspiração, respeito e dignidade e ter a possibilidade de sair do estigma e do estereótipo impostos incansavelmente aos negros e caminhar em direção à estima, ao aceitar-se e mais do que isso ao gostar-se, descobrir a boniteza de ser como se é, eis o dignificante do texto e dos poemas partilhados. Referências Ayoh’OMIDIRE, Félix. Yorubanidade: o reinado da oralitura em textos ioruba nigerianos e afrobaianos contemporâneos. Tese de doutoramento em Letras na UFBA, 2005. COSTA, Jurandir Freire. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1984. d’ADESKY, Jacques. Anti-racismo, liberdade e reconhecimento. Rio de Janeiro: Daudt, 2006. d’ADESKY, Jacques. 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